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coleção clássicos comentados Dirigida por Ivan Teixeira
Editor Plinio Martins Filho
universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca
conselho editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Yaro Burian Junior
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tradução
Odorico Mendes prefácio e notas verso a verso
Sálvio Nienkötter
Copyright © 2008 Ateliê Editorial Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, das editoras. 1a edição – 2008 2a edição – 2010
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Homero Ilíada / Homero; tradução Odorico Mendes; prefácio e notas verso a verso Sálvio Nienkötter. – Cotia, sp: Ateliê Editorial; Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010.
isbn 978-85-7480-393-7 (Ateliê Editorial) isbn 978-85-268-0795-2 (Editora da Unicamp) 1. Homero. Ilíada – Crítica e interpretação 1. Nienkötter, Sálvio. ii. Título.
cdd-883.0109
08-03066
Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia épica: Literatura grega antiga: História e crítica 883.0109
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ateliê editorial
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Printed in Brazil Foi feito o depósito legal 2010
Mergulhar este passado é projetar eqüidistante futuro. No mundo, espelho de si mesmo, ao centro, súbito, estréia e despede-se irrefreável o presente. S. N.
Meus agradecimentos a Altair Nienkötter, Octávio Camargo, Antônio Medina Rodrigues, Patrícia Reis Braga e Plinio Martins Filho pelo apoio recebido e a Nils Skare, Giselle Corrêa Nienkötter e Livy Real pelo apoio e trabalho de revisão nota a nota.
sumário
Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Prefácio – Sálvio Nienkötter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Porque Tais e Tantas Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Ilíada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Questão Homérica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Manuel Odorico Mendes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Tradução Criativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 Neologismos e Compósitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Empolamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Influência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Crítica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Prólogo da Primeira Edição – Henrique Alves de Carvalho. . . . . . 37 Ilíada Canto i . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Canto ii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Canto iii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Canto iv . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Canto v . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .181 Canto vi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Canto vii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 Canto viii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285 Canto ix . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315 Canto x . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .351 Canto xi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381 Canto xii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 425
Canto xiii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449 Canto xiv . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 491 Canto xv . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 519 Canto xvi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 559 Canto xvii . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 605 Canto xviii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 645 Canto xix . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 679 Canto xx . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 701 Canto xxi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 727 Canto xxii . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 759 Canto xxiii. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 787 Canto xxiv . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 833 Notas aos Livros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 873
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apresentação
Este trabalho visa suprir a ausência do texto da Ilíada de Odorico Mendes no meio editorial brasileiro. Haroldo de Campos, no lançamento da Odisséia, traduzida por Odorico Mendes quando publicada pela Edusp1 disse: “Terá, sem dúvida, o condão de repor na circulação sangüínea de nossa literatura essa magna obra tradutória, que tanto dignifica nossa língua”. Esperamos que este lançamento possa merecer igual agouro. Centrada em tornar prática e auto-suficiente a edição, esta publicação procura eximir o leitor da recorrente consulta a dicionários de época, mitológicos ou enciclopédicos. Objetiva proporcionar um fruir pouco entrecortado, quiçá sem entrecortes, desta bela, mas complexa obra-prima da tradução poética. A fixação do texto teve como fonte um exemplar da primeira edição da Ilíada de Odorico Mendes, publicada em 18742, com a atualização ortográfica que se impôs. Não obstante, nesta atualização buscamos, quanto possível, manter a sonoridade; o que faz algumas palavras aparecerem em diacronismo como, por exemplo, a manutenção da vogal u onde hoje mais se usa i. Nos nomes próprios prevaleceu a prosódia do tradutor, por não lhe desfigurar o metro, como: Patroclo em vez de Pátroclo, Agamêmnon e não Agamenón etc.
1.
Homero, Odisséia, tradução de Manuel Odorico Mendes; edição de Antônio Medina Rodrigues, 3. ed., São Paulo, Ars Poética/Editora da Universidade de São Paulo, 2000 (Texto & Arte, 5). 2. Homero, Ilíada de Homero em Verso Português, tradução de Manuel Odorico Mendes, edição e revisão de Henrique Alves de Carvalho, Rio de Janeiro, Tipografia Gutemberg, 1874.
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Na primeira publicação, o editor Henrique Alves de Carvalho acrescentou ao final uma nota assaz pertinente: “Por mais que nos esforçássemos para escoimar a presente impressão de erros tipográficos não nos foi possível isto obter. O leitor inteligente, porém, facilmente os corrigirá” (p. 313). A indústria gráfica se modernizou e não existem mais as falhas tipográficas, contudo, persistem as nossas. Sobre as edições precedentes tivemos ocasião de emendar um expressivo número delas; todavia, invariavelmente, falhas sempre subsistirão. Recorro ao mesmo erudito leitor para a correção das que se furtaram à nossa percepção, ou que, por desventura, tenhamos agregado.
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prefácio
Como esta é uma edição que trata de atalhar as dificuldades oferecidas pelo texto, sem pretensão a edição crítica, nestas linhas (poucas linhas, menor o aborrecimento) não buscamos demonstrar o inaudito, tampouco adentrar as discussões filológicas. Ao contrário, por visar à tradição, concentramos esta breve introdução exatamente no arcabouço dos estudos e ensaios que têm prefaciado as edições da obra tradutória de Odorico Mendes, acatando-lhes o paradigma. Embora tentemos maior leveza e brevidade, é destes que vem o substantivo e o espírito desta introdução, escassamente acrescidos de impressões nossas.
porque tais e tantas notas Lê-lo compreendendo-o é uma delícia. Martins Aguiar, sobre O. M.
As edições dos clássicos, quando anotadas e comentadas, o são, como sabemos: em pé de página, ao termo dos capítulos ou no fim do volume. Embora estes procedimentos sejam consagrados, trazem, todavia, algum desconforto ao leitor, dado que números atrelados ao texto – que remetem às notas – provocam ruído à leitura ao se ter de encontrar, em meio a várias outras notas, o número correspondente à nota buscada, processo que demanda perda de concentração e prejuízo ao prazer da leitura. Há ainda suscetibilidade quando, realizado o esforço e localizada a nota, cogitada pertinente, baldado o afã, depara-se com meros sinônimos de termos familiares ou escusado comentário. i l í a d a 11
Avaliamos que, dispondo notas verso a verso, evitamos esse embaraço, pois será do leitor a iniciativa de buscá-las ou não, já que nunca é incitado a consultá-las. Coube-nos tornar prática a consulta, dispondo as notas ao lado dos versos. Julgamos ainda que tão numerosas notas possam contemplar leitores de diversos contextos culturais nas diferentes regiões. Afinal, cada região brasileira tem vocabulário muito próprio, e se determinado termo é constante aqui, pode ser raro ali, como é próprio em um país-continente como o nosso. A freqüente repetição de notas já dadas quer viabilizar a leitura fragmentária, podendo atender a um leitor que deseje compulsar apenas determinado canto ou alguma outra fração do poema. As notas encontram-se redigidas em concisão extrema, ou por serem de apoio à leitura, ou por terem limitado seu espaço físico. Assim, sem distinção muito explícita, são de duplo caráter: • Notas em redondo – Na maioria são lexicais, indicando o sinônimo julgado mais apropriado ao verso que apóiam. Entretanto, podem ser ainda: indicação de um sujeito oculto; nomeação de um epíteto ou de um patrônimo; indicação da ascendência ou procedência de uma personagem citada; localização geográfica de determinada cidade ou região; citação de um neologismo etc. • Notas em itálico – Na maior parte são apoio à compreensão de alguma passagem ou comentários literários, raras são as de opinião. Também em itálico vem a remontagem de alguns versos, buscando aclarar algum trecho suposto difícil. Porventura, a maior qualidade em prover de notas todos os versos, seja permitir a leitura do poema como se absolutamente elas não existissem; o que não sucederia se fossem intermitentes, pois aí seria menos provável passar por elas sem que interferissem no fruir da leitura. Acrescentamos apenas notas concisas. As de maior fôlego são apresentadas pelo tradutor, e encontram-se todas agrupadas no final do volume. Entretanto, caso o leitor prefira, poderá lê-las separadamente, já que o que elas trazem à compreensão imediata do texto vem repetido ao 12 i l í a d a
lado do verso. Estas notas do tradutor têm indicação remissiva junto às notas da edição e não no próprio texto, por se mostrar mais conveniente à fluência da leitura. Não fizemos nenhum corte às notas do tradutor, como algumas edições anteriores; porém, tomamos a liberdade de desagrupar algumas das que vêm agrupadas no original, onde julgamos que esta reordenação beneficiaria o leitor sem interromper alguma linha de pensamento do autor.
ilíada Mh~nin a[eide, Qeav, Phli>avdew =Acilh`o" oujlomevnhn, h]muriv jAcaioi`" a]lgev e]qhke, pollav" d v ij qivmou" yucav" =Ai>di proi>ayen h&rwvn, autouv" dev e&lwvria teu~ce cuvnesin oijwnoi~siv te pa~si, DioV" d v eteleivto boulhv, evx ou| dhV tav prw~ta diasthvthn erivsante jAtrei>dh" te a]nax ajndrw~n kai di~o" =Acilleuv". Ilíada I, 1-7
Estes versos compõem o proêmio da Ilíada. Neles fica assentado o argumento do poema: a cólera de Aquiles e suas trágicas conseqüências. Embora esse seja o assunto, e o poema se concentre nuns poucos dias da luta, quatro séculos separam Homero da guerra. Por isso, e por estar inspirado por uma deusa, ele a narra onisciente, descreve antecedentes e antecipa eventos posteriores. Temos, assim, na Ilíada um quadro completo dos dez anos da guerra, onde Micenas e as demais cidades da Grécia – no Ocidente – confederaram-se contra Tróia e seus aliados – no Oriente. A causa do conflito fora o rapto de Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, cometido por Páris Alexandre, príncipe troiano. Indignados pela afronta, congregam-se os gregos e elegem por comandante Agamêmnon, irmão de Menelau, rei de Micenas. Decorridos nove anos de guerra acerba, embora os gregos tenham relativa vantagem, não logram derruir o muro troiano, para desferir um ataque decisivo. É no decorrer deste nono ano que acontece a dissidência entre o comandante Agamêi l í a d a 13
mnon e Aquiles, o mais valoroso guerreiro grego, filho da deusa Tétis e do mortal Peleu, rei de Ftia. Esta desavença também foi – assim como a própria guerra – motivada pela disputa de uma mulher, a cativa Briseida. Como Agamêmnon, abusando de sua autoridade, tirou para si a serva de Aquiles, este, inconformado pela honra ultrajada ao ser abertamente espoliado, alheou-se da guerra e, revoltado, evocou a deusa Tétis, sua mãe. Pede então a Tétis que vá ao Olimpo e lá interceda a Júpiter, deus soberano, para que envie derrota e morte aos gregos, até que Agamêmnon reconheça publicamente sua culpa, lhe devolva Briseida e os gregos o cumulem de honras. Nesta súmula brevíssima está o mote: o que vem no desenrolar dos vinte e quatro cantos decorre ou está relacionado a essa causa primeva, já que a ira de Aquiles não se abrandaria nem com a devolução da escrava, mas tresdobrada, muda de foco e se volta contra Heitor, comandante dos troianos. O motivo para essa segunda cólera é que, enquanto Aquiles esteve em ócio, Heitor lhe assassinara Patroclo, seu melhor amigo. Ao saber da morte de Patroclo é que a ira de Aquiles será extravasada: quando em sanha, de prodígio em prodígio vai sozinho arrasando batalhões. Assim, a ira só seria remida quando houvesse matado e ultrajado o cadáver daquele que lhe assassinou o amigo. Portanto, no poema, temos como que duas iras de Aquiles; a primeira, contra Agamêmnon, é contida por preceito da deusa Palas Atena, que se lhe afigura no momento em que estava por trucidar seu próprio comandante: esta é a ira tenaz, sofreada e recozida, amargada em ócio. A segunda, contra Heitor, ao contrário, é a ira sanhosa, que incontida o leva à ação. Do ponto de vista dos gregos, a primeira é nefasta, tende à desagregação e traz ruína. A segunda é favorável, agregadora e traz vitória. Do ponto de vista dos troianos a primeira é positiva, mas os leva ao excesso de confiança, o que os expõe; essa irrefletida exposição lhes obstou resistir à segunda. Homero não toma partido: nem dos gregos nem dos troianos, nem dos deuses nem dos homens, nem de qualquer. Também não explica 14 i l í a d a
nem interpreta fatos; narra-os. Confere essa tarefa ao leitor. Talvez por isso é que nunca perde o frescor. Há quem afirme que em Homero há mais novidade do que no jornal que vai sair amanhã. Haroldo de Campos diz: “Homero não decai; a Ilíada não tem recheio. Oscila entre o pico de Agulhas Negras e o Himalaia”. Oral e formular, a Ilíada, poema mais antigo da literatura do Ocidente, que sobreviveu seus primeiros séculos sendo transmitida apenas oralmente, ainda que embrionariamente, abarca muito do fazer artístico e do pensar ocidental que a sucedeu: nela antevemos a Tragédia, na evolução trágica e imperativo destino dos seus personagens; a Comédia, ao descrever os costumes do vulgo e os seus desconcertos, por exemplo, no canto II (episódio de Tersites), ou em cenas do azafamado Vulcano etc.; alcança também o drama moderno com discursos internos e hesitações que nos lembram Hamlet ou Fausto. Vaga pelas Artes Plásticas na pasmosa descrição do escudo de Aquiles; prenuncia a História tal como a conhecemos desde Heródoto; é modelo de Retórica com toda sorte de discursos, que abarcam desde a injúria protestada ao inimigo antes do combate, até o piedoso discurso de um pai àquele que lhe dizimou os filhos; emula a Teogonia de Hesíodo ao fazer Genealogia; manifesta os primórdios do que viria a ser a Democracia (nas assembléias de guerra), prenuncia a Filosofia em passagens de força aforística, como a resposta de Glauco a Diomedes: “como as folhas somos; que umas o vento as leva emurchecidas, outras brotam vernais e as cria a selva” (Canto VI, 126-128). É modelo para: Códigos de Leis e de Moral; versa sobre hospitalidade; expõe rudimentos de estratégia militar, de técnicas de navegação etc. Encontramos ainda em Homero, não sem exagero, a identificação com o roteiro de Cinema. Em panorâmicas e closes, enquadrados em planos e contra-planos, suas “lentes” passeiam sobre gruas pelo campo de batalha, pela Cidadela ou pelo acampamento grego. Karl Bühler, psicólogo e teórico da lingüística, parece concordar: pelo menos chama Homero de cinematográfico.
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questão homérica A pessoa de Homero está para sempre imersa nas trevas impenetráveis da lenda. Ignoramos quando viveu; não sabemos que terra privilegiada lhe ouviu os primeiros vagidos [...] Venerandas tradições representavam-no como um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava a quem o agasalhava com a declamação de seus poemas. Augusto Magne1
As considerações em epígrafe, do filólogo e lingüista Augusto Magne, condensam o que há de brando e de consenso a respeito do vate. Entretanto, desde a Antigüidade, principalmente a partir dos Gramáticos Alexandrinos, período em que provavelmente os textos homéricos ganharam a forma que conhecemos até hoje, várias teses se têm formulado e defendido, discutindo desde a abrangência da obra até a existência mesma do poeta. Entre os Gramáticos Alexandrinos, Zenão e Helânico consideravam improvável a Ilíada e a Odisséia haverem sido compostas por um único autor, já que a Odisséia lhes parecia um ou dois séculos posterior à Ilíada. Foram por isso alcunhados Khorizontes – separatistas, por insularem a Ilíada e a Odisséia. Aristarco, contemporâneo de Zenão e Helânico, não acreditava nesta separação, mas supunha que aos poemas iniciais foram acrescidos outros poemas independentes. No caso da Ilíada, estariam entre os possíveis acréscimos: o duelo entre Menelau e Páris, a Gesta de Diomedes, o duelo de Heitor e Ajax, a embaixada a Aquiles, o relato da ira de Meleagro, a descrição da confecção do escudo de Aquiles etc., sendo que estes poe mas autônomos teriam sido concatenados a uma Ilíada original, ProtoIlíada, esta atribuída a Homero. A nova teoria, dos acréscimos posteriores, teve amplo respaldo. Havia então basicamente três teorias: a primeira que Homero era autor dos dois poemas, a segunda que só da Ilíada, a terceira que dos dois poe1.
Homero, Ilíada, trad. Manuel Odorico Mendes, São Paulo, Brasileira Ltda, 1970 (Clássicos Jackson, v. XXI).
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mas, mas em dimensões menores. Unanimidade nunca houve sobre o assunto, nem entre os alexandrinos, tampouco entre aqueles que os sucederam. Com doutos estudos filológicos e não menos fábulas, sentenciaram-se veredictos pela Antigüidade. Provavelmente, na Idade Média e no Renascimento também, mas esse processo é, quase sempre, circular e infrutuoso. No século XVIII surgem três importantes publicações: uma de François H. d’Aubignac2, outra de Giambattista Vico3 e outra de Friedrich August Wolf4. Todas, aliando razões históricas, filológicas ou estéticas, idênticas ou não, trazem uma tese nova e controvertida: Homero jamais teria existido, seria seu nome somente uma alegoria. Traziam, como outra hipótese, que Homero fora apenas um compilador das rapsódias tomadas aos aedos e até mesmo ao próprio povo do período arcaico grego. Estes últimos argumentos foram gratíssimos aos românticos; já que consideravam que uma verdadeira epopéia deveria emergir espontaneamente de um povo. Talvez, por esse motivo, aquelas publicações obtiveram respaldo tão amplo. Durante o século XIX e primeira metade do XX, afervorou-se a discussão. Foi quando se publicaram desde compêndios a volumosas edições com teses para tratar da questão. Intelectuais digladiavam-se formando dois grupos opostos: um defendia a autoria única, outro a compilação. Recentemente tem-se arrefecido a discussão, o foco principal hoje são as questões lingüísticas. Mesmo porque em antigüidade tão remota há pouca certeza, mas multiplicam-se as conjecturas. Independente de tantas e quais hipóteses sustentadas, plausíveis em maior ou menor medida sobre o assunto, em nossos comentários e notas acatamos Homero como nos legou a Antigüidade: autor da Ilíada e da Odisséia. Furtamo-nos ainda de discutir aqui as demais obras atribuídas ao poeta, como: a Tebaida, os Hinos, a Batracomiomaquia etc., discussão que excederia o escopo deste prólogo. Acresce que Odorico Mendes sequer toca na Questão Homérica em seus comentários. 2. François Hedelin Aubignac, Conjectures academiques, Paris, Hachette, 1925. 3. Giambattista Vico, La Scienza Nuova, Milano, Rizzoli, 1977. 4. Friedrich August Wolf, Prolegomenos ad Homerum, publicada em 1795.
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manuel odorico mendes Retratado por José Veríssimo como o mais acabado humanista que tivemos e por Medina Rodrigues como um humanista de corpo e alma, é efetivamente no culto às letras clássicas que Odorico Mendes se destacou. Ainda que tenha estudado medicina e abraçado o jornalismo e a política, concomitantemente dedicou-se à poesia e a tradução, sendo esta última atividade a que lhe tem conferido posteridade. Porém, o reconhecimento do valor destas traduções gerou e ainda tem gerado controvérsias, como adiante se verá. Filho do capitão-mor Francisco Raimundo da Cunha e de D. Raimunda Correia de Faria, descendentes de tradicionais famílias maranhenses (entre os antepassados, contam-se Manuel Beckman e Antônio Teixeira de Melo), nasceu em São Luís, Maranhão, a 24 de janeiro de 1799, no dia de Santo Odorico, de onde provém seu nome. Foi criado por um tio de seu pai, Manuel Mendes da Silva, casado com uma neta de Bernardo Perreira Berredo, prima de seus pais. Residiu em São Luís até os dezessete anos. Desde muito cedo toma contato com alta poesia, em suma: com os Clássicos. Querendo-o médico, seu pai o envia a Coimbra em 1816, cidade que catalisava os melhores talentos naquela época. Lá concluiu os preparatórios e foi matriculado na Faculdade de Medicina. Fez completo o curso de Filosofia Natural, após ter cursado Filosofia Racional e Moral, e Língua Grega. Em Coimbra, viveu densamente o momento político. Especialmente o período que ficaria conhecido como Vintismo – movimento inspirado sobretudo em Rousseau e Voltaire. Portugal passa então por um republicanismo relâmpago (1820-1822) baseado em cortes constituintes. Também em Coimbra trava amizade com Almeida Garrett. Escreve então seus primeiros versos. É deste período seu Hino à Tarde, poema que canta a saudade da pátria e infância. Esses anos em Coimbra foram decisivos, e tiveram influência direta em toda a sua atividade política e literária. Em 1824 falece-lhe o pai. Já desprovido dos meios para manter-se em terra estrangeira, mesmo sem haver terminado o curso de medicina, 18 i l í a d a
volta ao Maranhão. Lá cogita viabilizar o retorno à Academia Coimbrã, objetivando a retomada dos estudos. Porém, a realidade política que encontra no Maranhão acaba por o enredar e fixar. Com a maturidade e aparelhamento político que alcançara o Brasil, fora impossível à nossa pátria continuar tutelada por Portugal. Além disso, circunstâncias como a Revolução Pernambucana de 1817 e outras que mais tarde culminariam na Confederação do Equador, precipitaram o desfecho inevitável e, em 1822, o próprio príncipe de Portugal proclamou a independência do Brasil. Passado o primeiro momento, que naturalmente foi de grande entusiasmo, o doravante rei do Brasil, Dom Pedro I, acaba voltando-se contra os que o haviam apoiado, e passa a governar como em estado de exceção. Persegue e deporta antigos aliados, provocando profundo descontentamento no Partido Brasileiro. Juntamente com outras províncias setentrionais ergue-se Pernambuco e proclama a Confederação do Equador, movimento republicano que, pelas armas imperiais, é dura e cruelmente subjugado. Movido por rancor e vingança, Dom Pedro I, que se revoltara contra o mesmo pai e soberano, não pôde admitir que contra si alguém se levantasse. Instaura o fuzilamento e enforcamento público dos contrários. O vulto sinistro dos supliciados, expostos aos olhos consternados da multidão, a desventurada guerra do Rio da Prata, a desastrada negociação na política interna, a ingerência de Portugal nos negócios do Brasil, a inépcia dos seus ministros, o favor declarado à facção reacionária e recolonizante, somados ao despotismo voluntário do rei, o despenharam no precipício da impopularidade. Assim, o príncipe dantes aclamado unanimemente, em 1831 desce do trono, desamparado do último dos cortesãos. Deixa o infante herdeiro aos cuidados dos que o destronaram, e faz-se ao mar em nau estrangeira. Se houve justiça neste desfecho, não menos justo é lhe reconhecer também os grandes feitos. Passados alguns anos, Dom Pedro I tem seu nome reabilitado e peremptoriamente ligado à independência. “O sangue vertido nos cadafalsos” – escreveu João Francisco Lisboa5 no estudo do qual fa5.
João Francisco Lisboa, publicado em 1862 na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil.
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zemos um apanhado – “não era mais que o fruto amargo desta abominável justiça política, tão antiga quanto o mundo, e que o passado lhe legara”. Mesmo sem haver participado diretamente da Confederação do Equador, o Maranhão foi duramente atingido pela guerra civil, e a volta de Odorico Mendes se dá em 1824, ou seja, dois anos após a independência e no momento imediato ao fim daquele conflito. Porém, os ânimos ainda não haviam arrefecido. Incitado por amigos e pelo forte patriotismo, Odorico Mendes passa a redigir um jornal, o Argos da Lei, que faz oposição ao partido representado na imprensa por outros dois jornais dirigidos e redigidos por portugueses: Amigo do Homem e Censor. O triunfo do Argos da Lei leva seu redator Odorico Mendes, poucos meses após sua fundação, à eleição para deputado na primeira Assembléia Geral Legislativa do Brasil. Coimbra e estudos são agora planos preteridos. Com a eleição, muda-se para o Rio de Janeiro. Na capital, numa ampla existência entre beletrista, político e jornalista, passa a integrar a Falange Liberal e, ao lado de ilustres brasileiros na tribuna da câmara e na imprensa, dá início à vigorosa e crescente oposição, só interrompida em 1831, com o desfecho da revolução que culminou na queda do primeiro Imperador. Orador eloqüente, faz boa atuação como deputado. Nesse período, escreveu em vários jornais do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Maranhão. Veio o segundo mandato, que, ao contrário do primeiro, obteve sem o apoio do governador do Maranhão e o alcançou com ampla margem de votos. Mesmo opositor, deteve a admiração de Dom Pedro I. Com a abdicação do primeiro imperador, em 7 de abril de 1831, teve Odorico Mendes influência ativa na escolha dos membros da Regência (em 1840, o senado deu maioridade a Dom Pedro II, que contava 14 anos de idade), e votou em favor da manutenção da Monarquia. Embora tivesse ideais republicanos, via despreparo nas instituições para tornar factível a República, especialmente naquele afogo. E o recente exemplo do que aconteceu a Portugal – que, depois de um republicanismo relâmpago de 1820-1822, caiu nas mãos reacionárias do rei absolutista Dom Miguel – recomendava cautela. Em 1833 (durante a Regência) concorre ao terceiro mandato e perde estrondosamente. Preço amargado pela posição moderada que assu20 i l í a d a