John Maynard Keynes

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John Maynard Keynes


universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara Coleção Macroeconomia Crítica Comissão Editorial Luciano Galvão Coutinho – Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo Maria de Lourdes Rollemberg Mollo Paulo Franchetti – Vanessa Petrelli Corrêa


Hyman P. Minsky

john maynard keynes

tradução

beatriz sidou


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Minsky, Hyman P., 1919M667j John Maynard Keynes / Hyman P. Minsky; tradução: Beatriz Sidou – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. 1. Keynes, John Maynard, 1883-1946. 2. Economia keynesiana. 3. Economia. 4. Capital (Economia) 5. Instituições financeiras. I. Título.

cdd 330.156 330 330.122 332.1

isbn 978-85-268-0939-0 Índices para catálogo sistemático

1. Keynes, John Maynard, 1883-1946 2. Economia keynesiana 3. Economia 4. Capital (Economia) 5. Instituições financeiras Título original: John Maynard Keynes Copyright © Hyman P. Minsky

Copyright da tradução © 2011 by Editora da Unicamp

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Sumário

Prefácio .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1 A interpretação da Teoria geral .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2 A interpretação convencional de Keynes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 3 Perspectivas fundamentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 4 As finanças capitalistas e a precificação dos ativos de capital . . . . . . . . . . . 91 5 A teoria do investimento .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 6 Instituições financeiras, instabilidade financeira e o ritmo do investimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 7 Algumas implicações da interpretação alternativa .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 8 Filosofia social e política econômica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 9 As implicações de política da interpretação alternativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209



Prefácio

O status especial de John Maynard Keynes está em sua obra “revolucionária”, Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. O presente estudo enfoca essa obra e a reivindicação de que ela revolucionou o pensamento econômico, com a ideia de que a Teoria geral realmente resultou em uma mudança revolucionária na teoria econômica, embora essa revolução tenha sido abortada no processo de constituição da atual versão padrão acerca do que Keynes pretendia dizer. Assim, faz-se uma tentativa de recuperar o tema revolucionário da Teoria geral. Este livro se concentra na Teoria geral e praticamente ignora a essência da obra anterior de Keynes sobre a teoria monetária. A vastíssima li­ teratura que desenvolveu, explicou, interpretou e formalizou Keynes tam­bém é praticamente deixada de lado. Não fiz essas omissões por considerar desprovidos de importância o trabalho anterior de Keynes ou a literatura sobre ele, mas porque um estudo profundo e muito bem documentado sobre sua obra e a discussão que este desencadeou se atravessariam em minha mensagem que é a de que, nas facetas menospre­zadas da Teoria geral, há uma teoria dos processos de uma economia capitalista muito mais apropriada para os problemas de análise e ­política econômica que hoje enfrentamos do que contém a teoria econômica padrão. A interpretação de Keynes aqui apresentada evoluiu por muitos anos. Uma contribuição foi meu trabalho sobre a instabilidade financeira. Outra, foi a obra de economistas que, cada um à sua maneira, discordaram da interpretação clássica: Joan Robinson, G. L. S. Schackle, Nicholas Kaldor, Sidney Weintraub, Paul Davidson, Robert Clower e Axel Leijonhufvud são proeminentes entre os dissidentes que afetaram o meu


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pensamento. Seria preciso um volume bem mais extenso do que este para detalhar pontos de acordo e desacordo com os colegas discordantes, e essa discussão e esse detalhamento de pontos de vista interfeririam na mensagem que desejo transmitir. Outra contribuição na evolução das minhas ideias foram as ­discussões que tive durante um agradável ano sabático em Cambridge. Quero agrade­ cer em especial, por algumas conversas muito boas, a Donald Moggridge, que na época estava começando a investigar a papelada de Keynes para preparar o que desde então apareceu como o volume XIII (The General Theory and After: Part I, Preparation) e o volume XIV (The General Theory and After: Part II, Defence and Development) dos Collected writtings de John Maynard Keynes. Contudo, neste trabalho, o material dos volumes XIII e XIV não é apresen­tado explicitamente. Meu original já estava com os editores no momento em que esses volumes apareceram. Além do mais, qualquer exame detalhado desse material seria tema para um tipo de livro muito diferente. Além de Donald Moggridge, quero agradecer aos professores Joan Robinson, W. B. Reddaway, Aubrey Silberston e Alan Roe, por me aguentarem quando eu estava em Cambridge. Muito devo às críticas e aos comentários perspicazes de Phyllis Freeman, Laurence H. Meier, Maurice Townsend e Bernard Shull. Nenhum deles é responsável pelos erros e equívocos de interpretação que apareçam a seguir. Quero agradecer ao Social Science Research Council, à National Scien­ce Foundation e, naturalmente, à minha alma mater, a Washington Univer­sity, pelo apoio a este meu esforço. Eles também não são responsáveis pelo que segue. Connie Pritchard foi rápida, eficiente e conscienciosa na digi­tação e no apoio administrativo; Susan Shiff com muita eficiência assu­miu a verificação das provas e preparou os índices. Bernard Gronert e Karen Mitchell, da Columbia University Press, foram bas­tante pacientes e muito ajudaram. Pela permissão para citar trechos da Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de autoria de John Maynard Keynes, devo agradecimentos a Harcourt Brace Jovanovich, Inc., e The Royal Economic Society. Um agradecimento especial vai para minha esposa Esther, que ajudou e incentivou a realização desta obra de muitas maneiras sutis. Hyman P. Minsky (junho de 1975)


Introdução

Na história intelectual de uma disciplina, há momentos em que sua casa teórica está em ordem e, em outros momentos, em de­sordem. Quando a casa está em ordem, há um amplo consenso a respeito de seu conteúdo, que aparentemente traz resultados benéficos, tanto na interpretação das observações como na qualidade de guia para a tecnologia ou a política adotada. Quando a casa teórica está em desordem, os profissionais espe­ cializados discordam sobre o conteúdo: há teorias antagônicas e para cada teoria antagônica há observações muito difíceis de explicar. Cada teoria parece ter utilidade limitada e há muitas anomalias. Há poucos anos — do início a meados dos anos 1960 — a macroeconomia e a teoria monetária pareciam compreender uma disciplina madura e comportada. Naquela época, apesar da existência de várias dissidências e divergências, o que parece inevitável nas disciplinas sociais, a maioria dos economistas parecia concordar que a síntese neoclássica, integrando as inovações de Keynes ao aparato e aos resultados da tradição clássica, seria o arcabouço adequado para orientar tanto a pesquisa teórica como a empírica, além da análise e das recomendações de política econômica. Hoje, a macroeconomia e a teoria monetária estão em desordem, em grande parte devido a falhas de política que, ao funcionarem como substitutos para experimentos decisivos, revelaram pontos fracos em suas bases analíticas. O último parágrafo da obra mais famosa de Keynes, a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, contém o trecho muito citado: “[…] ideias de economistas e filósofos políticos, estejam certas ou erradas, são mais


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importantes do que em geral se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso” (TG, p. 383). Em frase precedente, Keynes observou: “No presente, há uma expectativa um tanto incomum de um diagnóstico mais embasado; mais do que nunca, todos estão prontos para recebê-lo, ansiosos por experimentá-lo, desde que ele seja pelo menos plausível” (TG, p. 383). No momento em que escrevo, nos Estados Unidos a disposição é semelhante à descrita por Keynes. Mesmo sem a iminência de uma grande depressão mundial, mas talvez devido à persistência da inflação, à consciência da pobreza, não apenas no meio da fartura, mas também por causa da fartura, à experiência e ao medo renovados da instabili­dade financeira e às condições problemáticas do comércio e das finanças internacionais, há uma insatisfação corrosiva com a situação da economia e do pensamento econômico, e um crescente descontentamento com as medidas de política econômica adotadas. Por conseguinte, é necessário um reexame do arcabouço teórico que, quando aplicado, indicava que essas escolhas de política eram adequadas. Assim, nos anos 1970, há um ambiente aparentemente maduro para outra “revolução intelectual”, como a desencadeada pela Teoria geral nos anos 1930. Neste livro, que interpreta a importante contribuição de Keynes à economia, afirmo que os ingredientes para tal “segunda revolução” em nossa maneira de pensar sobre o capitalismo avançado existem em algumas facetas e extensões lógicas esquecidas do argumento que Keynes apresentou na Teoria geral. A meu ver, o que se tornou popular e foi aceito no meio da economia convencional é apenas parte da essência do argumento de Keynes. Eram aceitas as ideias que foram mais facil­mente assimiladas ao corpo de ideias mais antigas — o que denominava Keynes de economia clássica — e também as que tiveram maior importância para os problemas imediatos que o mundo enfrentava no final dos anos 1930 e início dos anos 1940: as consequências estagnantes da Grande Depressão e a mobilização e o envolvimento na Segunda Guerra Mundial. Sustento ainda que foi negligenciada ou perdida boa parte da essência da Teoria geral; essa porção perdida representa um sério rompimento com as formulações fundamentais para as doutrinas clássicas antigas e é mais imediatamente importante para os problemas que agora enfrentam as economias avançadas. Assim, a integrada teoria econômica key-

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nesiana clássica — rotulada de “síntese neoclássica” — violenta o espírito e a essência da obra de Keynes. A essência do que foi deixado de lado no desenvolvimento dessa síntese pode ser agrupada sob três títulos: a tomada de decisões sob incer­teza, o caráter cíclico do processo capitalista e as relações financeiras de uma economia capitalista avançada. Na síntese neoclássica, a ênfase de Keynes no desequilíbrio, ou melhor, no “fato de que é na transição [entre posições de equilíbrio jamais atingidas] que realmente se encontra nossa existência” (TG, p. 343), é ignorada. Os modelos da sín­tese neoclássica são essencialmente atemporais, ao passo que na Teo­ria geral Keynes sempre tinha a consciência do tempo, do processo e da natureza efêmera de situações particulares. Além do mais, en­quanto a Teoria geral tratava explicitamente de uma economia com determinadas caracte­rísticas institucionais, a interpretação padrão se abstrai do detalhe ins­titucional. Em especial, nas diversas versões da síntese neoclássica, o mecanismo fi­nanceiro, central para os interesses de Keynes, quase sempre é tratado de maneira bastante truncada. Uma vez levados em conta os aspectos negligenciados da Teoria geral, surge um modelo do processo capitalista mais útil para explicar o compor­ tamento da economia norte-americana e outras economias avançadas no boom, na recessão e na estagnação com inflação elevada, e mais im­ portante para a determinação das políticas do que a teoria con­ven­cional de hoje. Na reinterpretação aqui apresentada, Keynes contesta a dominân­ cia dos constructos básicos do sistema neoclássico em nosso pen­samento econômico — a função de produção e os sistemas de ­preferências invariantes — e assim dá a oportunidade para propostas sérias de política relativas a questões de “que tipo” e “para quem”, hoje tão importantes. A interpretação convencional da teoria de Keynes legitimava o uso de instrumentos de política fiscal e monetária para atingir o pleno emprego; essa política agora é bastante ortodoxa. A teoria econômica padrão nos diz que o tipo de produto e a distribuição desse produto são determinados pelas características fundamentais de produção e preferência da economia. A perspectiva derivada da interpretação alternativa de Keynes nos permite ir além de uma política generalizada de pleno emprego e torna a questão de que tipo de emprego e como (para quem) a renda será distribuída uma decisão de política. Mais uma vez, são ampliadas as dimensões de uma política legítima.

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Pode-se discernir uma série de linhas diferentes no argumento da Teoria geral. Algumas dessas linhas levam de volta à velha teoria clás­sica e refletem o fracasso de Keynes em escapar completamente das “formas habituais de pensamento e expressão” (TG, p. viii) sobre as quais ele advertia. Outras linhas levam a um desprendimento bem-sucedido dessas velhas ideias. Keynes jamais diferenciou claramente essas linhas. Em apenas um exemplo, sua refutação à resenha do professor Viner (que é central em nosso argumento), ele discutiu publicamente a validade de uma interpretação de seu livro. A resenha de Viner amarrava a nova teoria de Keynes à velha, e Keynes negou explicitamente a validade da interpretação de Viner. Outras interpretações, que se vol­tavam para a antiga, foram simplesmente ignoradas ou casualmente aceitas por Keynes. Por causa dessa omissão em repudiar a interpretação comum, o que prende Keynes às doutrinas clássicas que ele acreditava estar substituindo, a interpretação padrão reivindica sua legitimidade. Entretanto, esses filhos talvez legítimos não herdaram esses atributos da Teoria geral que deixavam ver o sucesso de Keynes em escapar dos confins da teoria econômica ortodoxa, atributos esses que apontam para uma maneira alternativa de ver uma economia capitalista avançada. Por causa de minha ênfase no novo que há na Teoria geral, deixarei praticamente de lado os incontáveis escritos de Keynes como economista antes da Teoria geral. (Contudo, ao delinear as implicações da filosofia social e das políticas públicas da Teoria geral, mostrarei que as implicações esboçadas por Keynes eram claramente coerentes em relação às suas ideias a respeito de políticas públicas nos anos 1920.) Também deixarei de lado outras dimensões de sua carreira multifacetada. Meu enfoque é restrito: trata-se da Teoria geral do emprego, do juro e da moe­ da como um esforço para revolucionar a economia. No que segue argumentarei, como fez Keynes na Teoria geral, como se estivéssemos tratando de uma economia fechada. Evidentemente, nas aplicações da teoria — seja padrão, seja reinterpretada — deve-se dar espaço para os impactos e as repercussões internacionais. Em especial, em minha reinterpretação de Keynes, relações, perturbações e instabilidade financeiras desempenham um papel importante nas sucessões dos estados do sistema as quais caracterizam a trajetória da economia. À luz do que ficou evidente nos anos 1960 e início dos anos 1970, está claro que, no sistema semiaberto que vigora entre as economias capitalistas

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avançadas, a importância da instabilidade e das perturbações financeiras é no mínimo maior do que se cada uma dessas economias fosse tratada isoladamente. Assim, a retórica do argumento, que trata os sistemas financeiros como se estivessem relacionados a economias fechadas, é uma questão de conveniência e necessidade expositiva. A essência de uma in­terpretação da instabilidade cíclica e financeira de Keynes pode ser apresentada dentro desse quadro, e a ampliação do campo de interesse para um sistema de economias capitalistas abertas inter-relacionadas pode apenas intensificar, não atenuar, a força desse argumento.

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Capítulo 1

A interpretação da Teoria geral

Se Keynes — ao lado de Marx, Darwin, Freud e Einstein — pertence ao panteão de pensadores influentes que desencadearam as revoluções intelectuais modernas, isso se deve à sua contribuição para a economia, como ciência e como um guia relevante para as políticas públicas, contida em sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. O volume foi publicado em fevereiro de 1936, quando Keynes tinha 52 anos de idade. Ele havia aparecido na imprensa como economista em 1909. Seu primeiro artigo profissional, “Recent Economic Events in India”1 tratava do impacto que tiveram na Índia a depressão mundial e as perturbações financeiras de 1907-1908, com especial ênfase num fenômeno monetário, o mecanismo de emissão da rúpia. A partir desse primeiro artigo e até 1935, ele escreveu bastante sobre questões econômicas, dirigindo-se aos profissionais e ao público, enfatizando especialmente os problemas da economia monetária; até mesmo suas notáveis contribuições para a economia internacional tratavam amplamente de aspectos financeiros e monetários. No conjunto, sua obra sobre economia durante os 25 anos anteriores a 1935, apesar de inovadora em detalhe, frequentemente sujeita à controvérsia e tipicamente divergindo do pensamento convencional na discussão de políticas públicas, estava inserida na corrente dominante da disciplina: suas críticas não eram à teoria padrão, embora estivessem dentro dela. Uma descrição concisa das contribuições sérias de Keynes à teoria econômica anteriores ao aparecimento da Teoria geral consiste no fato de ele estar especialmente preocupado em tornar

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mais precisa a maneira como funcionava a teoria monetária comum à época — a teoria quantitativa. As proposições fundamentais da teoria quantitativa da moeda são que, em posições de equilíbrio, a moeda é neutra, significando que os pre­ços relativos, as rendas e a produção não dependem da quantidade de moe­ da; o nível geral de preços é determinado pela quantidade de moeda; e uma economia descentralizada é fundamentalmente estável. Antes da Teoria geral, Keynes considerava essas proposições da teoria quantitativa basicamente válidas, mas para ele a teoria era vaga e im­precisa em relação aos mecanismos e processos pelos quais eram atingidos os resul­ tados de longo prazo. A seu ver, mais se deveria conhecer sobre como a economia se comporta entre posições de equilíbrio — ou seja, no curto prazo, definido como estados de desequilíbrio ou transitórios — antes de aceitar-se plenamente essa teoria. A Teoria geral marcou um sério rompimento com sua posição anterior a respeito da teoria quantitativa. Keynes atacou entusiasticamente e com evidente prazer as bases lógicas e empíricas da economia tradicional. Ele redefiniu os problemas da teoria econômica como a determinação da demanda agregada e, assim, do emprego, no curto prazo, dentro de um arcabouço analítico que admitia tratar explicitamente de uma economia capitalista sujeita a períodos de crescimento e crises. Keynes introduziu ferramentas de análise inovadoras, como a função de consumo e a preferência pela liquidez, e empregou conceitos desconhecidos na economia convencional, como a incerteza. O resultado de sua análise foi que a moeda não era neutra. Ao contrário da teoria quantitativa, sua teoria mostrou que as variáveis reais dependem essencialmente de variáveis monetárias e financeiras; que o nível de preços não depende única ou mesmo principalmente da quantidade de moeda; e que os processos transitórios são tais que uma economia capitalista descentralizada e não planejada — uma economia cuja política econômica não intervinha de maneira apropriada — não era um sistema que se autocorrigisse, tendendo a um equilíbrio estável em pleno emprego. Na inovadora visão de Keynes, o pleno emprego, quando atingido, seria em si um estado transitório. A Teoria geral irrompeu no mundo como uma grande obra bem anunciada — assim divulgada por Keynes e pelos economistas mais jovens de Cambridge e arredores que o circundavam. Keynes escreveu

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para George Bernard Shaw: “[…]creio estar escrevendo um livro sobre teoria econômica que revolucionará imensamente […] a maneira como o mundo pensa os problemas econômicos”2. A Teoria foi aceita como tal por muitos dos colegas de Keynes, especialmente pela geração mais jovem, os economistas então neófitos, dos dois lados do Atlântico. Em seu obituário de Keynes, Paul M. Sweezy bem observou que a Teoria geral produziu uma “sensação de liberdade e estímulo intelectual […] entre jovens professores e alunos em todas as mais importantes universidades britânicas e norte-americanas”. Além do mais, Keynes “abriu novos horizontes e novas trilhas para toda uma geração de economistas” 3. O sucesso da Teoria geral foi imediato. Não obstante, desde sua publicação ocorreu um processo para diminuir e denegrir o significado dessa contribuição, processo esse para o qual contribuíram tanto amigos ostensivos das novas doutrinas, como J. R. Hicks, quanto inimigos declarados, como J. Viner. Hoje, a ideia dominante entre os economistas talvez seja o fato de, na melhor das hipóteses, o modelo discutido por Keynes ser um caso especial interessante e talvez intermitentemente relevante, e que, de modo geral, Keynes não tenha conseguido substituir a velha economia clássica por uma nova economia keynesiana. Por exemplo, na introdução de seu bem-sucedido manual, Macroeconomic Theory, Gardner Ackley, que inicialmente foi membro (1962-1964) e depois presidente (1964-1968) do conselho “keynesiano” de consultores econômicos da presidência na era Kennedy-Johnson, sustenta que “a obra de Keynes representa mais uma extensão do que uma revolução nas ideias ‘clássicas’ e a maré de literatura pós-keynesiana levou a macroeconomia para muito além da própria grande contribuição de Keynes”4. A avaliação de Ackley a respeito da contribuição de Keynes não é atí­pica. Muitas ideias atuais deixam a impressão de que a agitação que sau­dou a publicação da Teoria geral foi um erro. Parece que hoje se ­pensa que o que era válido não era novo, e o que era novo não era válido. ­Tanto a interpretação recente, exemplificada por Ackley, quanto a interpretação da contribuição de Keynes como uma revolução intelectual (conforme Sweezy e outros saudaram o trabalho) são interpretações equivocadas do conteúdo: ambas as visões não podem ser válidas. Neste livro, a posição tomada é que a avaliação de Keynes e seus contemporâneos — conforme o exemplo de Sweezy — da Teoria geral

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como revolucionária é correta; a obra realmente contém as sementes para uma revolução intelectual profunda na economia e na visão que os economistas têm da sociedade. Entretanto, essas sementes jamais chegaram à plenitude. A revolução científica embrionária foi abortada, conforme as ideias do livro eram interpretadas e analisadas por acadêmicos e depois aplicadas por esses mesmos acadêmicos como orientação para as políticas públicas. Até mesmo antes do surgimento formal da Teoria geral, com base nas palestras de Keynes em Cambridge e nas provas de impressão que circu­ laram, os economistas acadêmicos começaram a amarrar o novo ao ve­lho, sendo o velho, na teoria monetária, a teoria quantitativa da moeda. O resultado do processo de interpretação foi uma vitória quase completa a favor do velho nos círculos acadêmicos e governamentais. A síntese neoclássica dominante, conforme exemplificada na obra de economistas norte-americanos contemporâneos como Samuelson, Patinkin, Mo­digliani e Friedman, é mais clássica do que keynesiana; ou seja, a validade geral ou “em princípio” da teoria quantitativa da moeda é preservada. Com essa vitória da teoria clássica, a economia acadêmica recriou boa parte da esterilidade e irrelevância a respeito do funcionamento da economia do mundo real que caracterizava a disciplina antes do aparecimento da Teoria geral. Patinkin, um dos arquitetos da visão hoje dominante, celebrou a irrelevância da teoria econômica quando escreveu o seguinte na introdução de seu influente e prestigiado Money, Interest and Prices: As proposições da teoria quantitativa da moeda se sustentam sob condições muito menos restritivas do que as normalmente consideradas necessárias por seus defensores e, com maior razão, seus críticos. Inversamente, as proposições da teoria monetária keynesiana são bem menos gerais do que as da Teoria geral […] e do que apresentações posteriores nos levariam a acreditar. Mas isso de modo algum diminuiu a importância da teoria keynesiana do desemprego para a formulação de uma política viável de pleno emprego 5.

O sucesso imediato da Teoria geral nos anos 1930 pode ser atribuído à sua pertinência. Quando ela apareceu, o mundo, e muito especialmente os Estados Unidos, estava no sétimo ano de uma grande depressão. Nas crônicas contemporâneas essa grande depressão havia sido desencadeada pela quebra de Wall Street de 1929 e reforçada por uma série de

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outras crises e traumas financeiros. O clímax foi a quebra do sistema bancário norte-americano na primavera de 1933, no momento em que Franklin Roosevelt sucedia Herbert Hoover na presidência dos EUA. Nos anos de angústia entre 1929 e o surgimento da Teoria geral, os economistas acadêmicos ortodoxos dominantes pouco tinham a oferecer em matéria de sugestões politicamente palatáveis para uma política pública atuante. Os economistas ortodoxos acreditavam nas propriedades de autocorreção do mecanismo de mercado. Assim, a ortodoxia dominante afirmava que a recuperação ocorreria no momento certo, a menos que a situação fosse agravada por uma política inadequada, que incluía a intervenção fiscal. No início dos anos 1930, havia economistas que, apesar de ortodoxos em sua teoria, ofereciam aconselhamento distante do convencional para as políticas públicas. Até o final dos anos 1920, quando a Inglaterra enfrentava um desemprego crônico, Keynes não foi nada ortodoxo em suas recomendações de política: apoiou Lloyd George na eleição geral de 1929, defendendo obras públicas financiadas por dívida para amenizar o desem­ prego. Entretanto, sua análise dos efeitos das obras públicas era confusa. É um excelente exemplo de recomendação adequada de política sem uma boa base teórica consistente6. Durante a era da Grande Depressão nos Estados Unidos, o mais im­ portante grupo de economistas acadêmicos que oferecia recomen­dações distantes da norma estava centrado na Universidade de Chicago. No pior período da Grande Depressão, esses economistas defendiam o que hoje seria chamado de política monetária e fiscal expansionista. Entretanto, sua posição de política não estava integrada a uma formulação teórica do processo capitalista que explicasse como os fenômenos que essa política deveria corrigir resultavam de características do sistema. Nos escritos do economista mais persuasivo desse grupo, Henry L. Simons, de Chicago7, as falhas na economia americana que haviam leva­ do à Grande Depressão eram vistas como decorrência principalmente de fragi­lidades institucionais no sistema bancário e erros humanos das au­toridades, mais do que de características sistêmicas, essenciais de uma eco­nomia capitalista. Como, depois do evento de uma quebra ou uma crise, sempre é possível atribuir o que não deu certo a algum erro humano ou falha institucional, a posição de Simons é essencialmente irrefutável. Em consequência da natureza tradicional do modelo teórico do

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qual partia a argumentação de Simons e embora voltadas na direção apropriada do ponto de vista da posterior teoria keynesiana, suas recomendações de política não eram conclusões derivadas de uma formu­lação analítica sistemática e integrada. Simons e outros como ele eram guiados a políticas apropriadas mais por sua intuição e observações perceptivas do que por sua teoria econômica. Sem uma base analítica, à perspectiva de Simons faltava poder de previsão, e os argumentos apresentados a favor dessas prescrições de política não eram persuasivos. Simons, por assim dizer, estava lidando com os sintomas, e não com as causas das então aparentemente óbvias falhas do capitalismo. Embora Franklin Roosevelt fosse um ativista que desejava fazer algo para reativar a economia, a primeira falange de consultores econômicos que levou para Washington a fim de servir como intelectuais da casa foi in­ca­paz de oferecer-lhe recomendações sérias e sistemáticas a respeito do que fazer. Sob sua influência, Roosevelt empreendeu uma política de ajus­tar o preço do ouro em dólar num esforço para levantar os preços — es­pecialmente os preços agrícolas. Somente dois ou três anos depois é que consultores mais jovens e inicialmente menos influentes em Washington começaram a defender, mesmo antes do aparecimento da Teoria geral, o uso de poderes fiscais para expandir a economia. Entretanto, essa recomendação só veio a afetar a política no segundo man­ dato de Roosevelt; antes da Segunda Guerra Mundial, os preconceitos dominantes contra gastos e déficits jamais foram superados. Devido aos objetivos inconsistentes de política no primeiro mandato de Roosevelt, a economia, após uma recuperação inicial em 1932-1933, estava mais deprimida do que estaria diante de políticas expansionistas consistentes. Dado o trauma financeiro de 1929-1933, que assegurava por mais algum tempo a prevalência dos padrões de gastos privados estagnantes e lentos, o período 1933-1939 foi de consistentes políticas “expansionistas,” ao mesmo tempo necessárias e de grande sucesso8. A principal alternativa aos economistas tradicionais eram os mar­xis­ tas. O sentimento marxista era forte entre os estudantes universitários e os recém-formados de Cambridge, Inglaterra, base intelectual de ­Keynes; afinal de contas, a Teoria geral foi escrita durante os “vermelhos anos 30”. Os marxistas ortodoxos interpretaram a Grande Depressão como uma confirmação da validade da ideia de que o capitalismo é inerentemente instável. Assim, nos piores dias da depressão, a corrente princi­pal de

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