kluge
Universidade Estadual de Campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca
Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Yaro Burian Junior
Coleção Meio de Cultura Comissão Executiva Marcelo Knobel (Presidente) Andréa Guerra – Peter Schulz Sandra Murriello – Yurij Castelfranchi Conselho Consultivo João Schmidt – Luiz Davidovich – Miguel Nicolelis – Marcelo Gleiser Iván Izquierdo – Luisa Massarani – Sergio Pena – Antonio C. Pavão – Marcelo Leite Carlos Henrique de Brito Cruz – Carlos Nobre – José Antônio Brum – Carlos Vogt Leopoldo de Meis – Mauricio Tuffani – Alberto Passos Guimarães Mônica Teixeira – Ildeu C. Moreira
kluge a construção desordenada da mente humana
gary marcus
Tradução
Roberta Gregoli
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação
M334k
Marcus, Gary. Kluge: a construção desordenada da mente humana / Gary Marcus; tradução: Roberta Gregoli. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010. 1. Mente. 2. Memória. 3. Evolução. 4. Neurociência. 5. Psicologia. 6. Racionalidade. I. Gregoli, Roberta. II. Título.
isbn 978-85-268-0909-3
cdd 128.2 153.12 575.0162 612.8 150 121
Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4. 5. 6.
Mente Memória Evolução Neurociência Psicologia Racionalidade
128.2 153.12 575.0162 612.8 150 121
Título original: Kluge: The Haphazard Construction of the Human Mind
Copyright © by Gary Marcus Copyright © 2010 by Editora da Unicamp
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
meio de cultura Nosso cotidiano é permeado de ciência e tecnologia. Mas o que é ciência? Como é feita? Quem a faz? E a tecnologia? A coleção Meio de Cultura traz textos que, em linguagem acessível a todos (e às vezes divertida), apresentam os caminhos e os descaminhos da ciência e da tecnologia. Neles encontramos histórias de sucessos e fracassos, contradições e embates, enigmas e polêmicas da ciência e da tecnologia na sociedade — uma bússola para explorar a cultura científica até as fronteiras do saber.
agradecimentos
Amanda Cook, editora das editoras, é um gênio visionário que muitas vezes me deixou com aquele tipo de alegria que os atores devem sentir ao trabalhar com uma grande diretora. Amanda me ajudou a conceber este livro e me guiou em três revisões exigentes. Como se isso já não bastasse, também recebi conselhos editoriais fantásticos de Neil Belton, meu editor no Reino Unido, de Don Lamm, metade da equipe que me colocou em contato com Amanda e Neil no princípio de tudo, e de minha esposa, Athena, que, quando se trata de edição, é uma amadora com habilidade de profissional. É difícil imaginar outro autor tão cercado de sabedoria editorial. A sabedoria conceptual veio de uma série de amigos e colegas. Zach Woods, Yaacov Trope, Hugh Rabagliati, Athena Vouloumanos, Rachel Howard, Iris Berent, Ezequiel Morsella, Cedric Boeckx, Deanna Kuhn, Erica Roedder, Ian Tattersall, e dois grupos de alunos da NYU generosamente leram e comentaram o manuscrito completo, enquanto Meehan Crist,
Andrew Gerngross, Joshua Greene, George Hadjipavlou, Jon Jost, Steve Pinker e meu pai, Phil Marcus, fizeram comentários pungentes em capítulos individuais. Também agradeço a Scott Atran, Noam Chomsky, Randy Gallistel, Paul Glimcher, Larry Maloney e Massimo Piatelli-Palmarini por tão úteis discussões. Várias pessoas, algumas que nunca conheci, me ajudaram a responder inúmeras perguntas envolvendo desde a sintática do esperanto até a evolução dos olhos dos animais e o ciclo do carbono nas plantas; entre essas pessoas estão Don Harlow, Lawrence Getzler, Tyler Volk, Todd Gureckis, Mike Landy e Dan Nilsson; minhas desculpas àqueles que não agradeci. A culpa é toda da minha memória. Christy Fletcher e Don Lamm são a dupla dinâmica que me ajudou a vender este livro e a me colocar em contato com Amanda Cook e Neil Belton; eles sempre me ofereceram muito apoio, energia e envolvimento, e são tudo que um agente (ou um par de agentes) deveria ser. Finalmente, gostaria de agradecer à minha família — especialmente a Athena, à minha mãe, ao meu pai, a Linda, Julie, Peg, Esther, Ted e Ben e à família da minha esposa, Nick, Vickie e os Georges — por seu entusiasmo e apoio irrestrito. Escrever pode ser uma tarefa árdua, mas com tantas pessoas talentosas e amorosas atrás de mim, é sempre um prazer.
sumário
remanescentes da história ....................................................................................... memória ........................................................................................................................................................ crença ............................................................................................................................................................. escolha .................................................................................................................................................... língua .......................................................................................................................................................... prazer .......................................................................................................................................................... tudo desmorona........................................................................................................................ sabedoria verdadeira ....................................................................................................
informações adicionais ....................................................................................................... bibliografia ............................................................................................................................................... índice remissivo...................................................................................................................................
remanescentes da história
Diz-se que o homem é um animal racional. Ao longo de toda a minha vida busquei provas que pudessem sustentar essa afirmação. Bertrand Russell
São os seres humanos “nobres na razão” e “infinitos nas faculdades” como consta nas famosas linhas de William Shakespeare? Perfeitos, “à imagem de Deus”, como alguns estudiosos bíblicos afirmam? Dificilmente. Se a humanidade fosse produto de um designer inteligente e compassivo, nossos pensamentos seriam racionais, nossa lógica, impecável. Nossa memória seria robusta, nossas recordações, confiáveis. Nossas frases seriam claras, nossas palavras, precisas; as línguas, regulares e sistemáticas, e não carregadas de verbos irregulares (canta-cantou, toca-tocou, entretanto traz-trouxe) e outras inconsistências estranhas. Como o especialista em língua inglesa Richard Lederer observou, haveria ham [presunto] em hambúrguer, egg [ovo] em
Kluge
eggplant [berinjela]. Falantes de inglês estacionariam [park] em parkways [alamedas] e dirigiriam [drive] em driveways [garagens], e não o contrário. No entanto, nós, humanos, somos a única espécie inteligente o suficiente para planejar o futuro de maneira sistemática — ainda que estúpidos o suficiente para descartar nossos planos mais cuidadosamente elaborados em favor de gratificações a curto prazo. (“Eu disse que estava de dieta? Hum, mas musse com três camadas de chocolate é minha sobremesa favorita... Talvez eu comece minha dieta amanhã.”) Nós atravessamos a cidade, felizes da vida, para economizar num micro-ondas de , mas nos recusamos a percorrer a mesma distância para economizar exatamente os mesmos numa TV de tela plana de .. Mal conseguimos distinguir entre um silogismo válido, tal como Todos os seres humanos são mortais; Sócrates é um ser humano; logo, Sócrates é mortal, e seu correspondente falacioso, Todas as coisas vivas precisam de água; rosas precisam de água; logo, rosas são coisas vivas (que parece correto até que se substitua rosas por baterias de carro). Se eu disser que “Todo marinheiro ama uma garota”, não há como saber se me refiro a uma garota em específico (Betty Sue, por exemplo) ou se quero dizer “cada qual com a sua”. E é melhor nem entrarmos na questão do testemunho ocular, que é baseado na premissa absurda de que nós, humanos, somos capazes de nos lembrar com precisão, anos mais tarde, de detalhes a respeito de um breve acidente ou crime testemunhado, quando a maioria das pessoas tem dificuldade em reter uma lista com uma dúzia de palavras por mais de meia hora. Minha intenção não é sugerir que o design da mente humana seja um destroço total, mas, se eu fosse um político, colocaria da seguinte forma: “alguns equívocos foram come
Remanescentes da história
tidos”. O objetivo deste livro é explicar quais equívocos foram cometidos — e por quê.
Onde Shakespeare viu razão infinita, eu enxergo outra coisa: o que os engenheiros chamam de kluge1. Kluge é uma solução desajeitada e deselegante — ainda que surpreendentemente eficaz — para um problema. Considere, por exemplo, o que aconteceu em abril de quando os filtros de CO do já ameaçado módulo lunar Apollo começaram a falhar. Não havia maneira de enviar um filtro substituto até a tripulação — o ônibus espacial ainda não havia sido inventado —, nem de trazer a cápsula para a Terra em tempo hábil. Sem o filtro, a tripulação estaria condenada à morte. O engenheiro de controle da missão, Ed Smylie, alertou sua equipe a respeito da situação e disse, com efeito: “É isso que temos disponível na cápsula espacial: deem um jeito”. Felizmente, a tripulação de terra foi capaz de vencer o desafio, remendando rapidamente um filtro rudimentar a partir de sacolas plásticas, uma caixa de papelão, fita adesiva e uma meia. As vidas de três astronautas foram salvas. Como um deles, Jim Lovell, relembrou mais tarde: “A engenhoca não era bonita, mas funcionava”. Nem todos os kluges salvam vidas. Engenheiros por vezes os concebem como passatempo, só para mostrar que algo é possível de ser feito — um computador feito de peças Tinkertoys, por exemplo — ou simplesmente porque eles têm preguiça de fazer algo do jeito certo. Outros montam kluges por uma mistura de desespero e engenho, como a personagem de TV
1
Em português, as expressões mais próximas seriam “quebra-galho” ou “gambiarra”. (N. da T.)
Kluge
MacGyver, que, precisando escapar rapidamente, improvisou um par de sapatos a partir de fita adesiva e tapetes de borracha. Alguns kluges são criados por pura diversão, como Wallace e Gromit com seu alarme/cafeteira/cama retrátil sob ativação; ou o “apontador simplificado” de Rube Goldberg (uma pipa ligada a uma corda levanta uma porta que libera mariposas, o que culmina na abertura de uma gaiola que liberta um pica-pau para roer o entorno do grafite de um lápis). No entanto, os sapatos de MacGyver e os apontadores de Rube Goldberg não são nada quando comparados com possivelmente o mais fantástico de todos os kluges: a mente humana — um excêntrico e magnífico produto do processo inteiramente cego que é a evolução.
A origem e mesmo a ortografia da palavra kluge estão em aberto. Alguns a escrevem com d (kludge), que tem a virtude de parecer tão desajeitada quanto as soluções que denota, mas a desvantagem de sugerir uma pronúncia equivocada. (Pronunciada corretamente, a palavra kluge rima com huge, não com sludge.)2 Alguns acreditam que ela provém do escocês antigo cludgie, que significa “banheiro externo”, mas a maioria acredita que sua origem está na palavra alemã Kluge, cujo significado é “engenhoso”. No The Hacker’s Dictionary of Computer Jargon consta que ela remonta, pelo menos, a , numa referência ao “alimentador de papel Kluge [marca]”, descrito como “um adjunto para prensas tipográficas mecânicas”.
2 Pode-se dizer que a ortografia klooge (rimando com stooge) capturaria ainda melhor a pronúncia, mas não pretendo forçar ao mundo uma terceira ortografia.
Remanescentes da história
O alimentador Kluge foi desenvolvido antes de existirem motores elétricos pequenos e baratos ou a engenharia de controle; ele dependia de um sistema perversamente complexo de cames, esteiras e ligações, tanto para alimentar como para sincronizar todas as suas operações a partir de um eixo de transmissão motivo. Como seria de esperar, ele era temperamental, sujeito a constantes avarias e infernalmente difícil de consertar — mas oh, tão engenhoso!
Praticamente todos concordam que o termo se popularizou em fevereiro de , num artigo intitulado “How to Design a Kludge”. O artigo foi escrito, ironicamente, por um pioneiro da computação chamado Jackson Granholm, que definiu kluge como “uma série disfuncional de partes que mal se encaixam, formando um todo lastimoso”. Granholm observou ainda que “a construção de um Kludge [...] não é trabalho para amadores. Há uma certa finesse, indefinível e masoquista, contida na construção do Kludge. O profissional consegue identificá-lo imediatamente, enquanto o amador pode à primeira vista presumir que ‘é assim que os computadores são’”. O mundo da engenharia está cheio de kluges. Considere, por exemplo, os limpadores de para-brisa a vácuo, comuns na maioria dos carros até o início dos anos . Os limpadores de para-brisa modernos, como a maioria dos dispositivos nos carros, são alimentados por eletricidade. Porém antigamente os carros rodavam a volts, em vez de , gerando energia que mal era suficiente para as velas de ignição, e certamente insuficiente para regalias tais como limpadores de para-brisa. Foi então que alguns engenheiros perspicazes montaram um kluge que provia aos limpadores de para-brisa sucção proveniente do motor em lugar da eletricidade. O único problema era que a in
Kluge
tensidade da sucção gerada pelo motor variava de acordo com seu funcionamento. Quanto mais se acelerasse, menos vácuo seria produzido. Isso quer dizer que se você subisse a serra com o seu Buick Riviera ou acelerasse muito, os limpadores funcionariam devagar “quase parando” ou parariam de vez. Azar do vovô num dia de chuva nas montanhas. O que é realmente surpreendente — em retrospecto — é que a maioria das pessoas provavelmente nem se dava conta da possibilidade de uma solução melhor. E isso, creio eu, é uma ótima metáfora para a nossa aceitação diária das idiossincrasias da mente humana. A mente é sem dúvida impressionante, muito melhor do que qualquer alternativa existente. Mas ela não deixa de ser imperfeita, muitas vezes de maneiras que nós mal percebemos. Na maioria das vezes, simplesmente aceitamos nossas falhas — como nossos ataques emocionais, nossa memória medíocre e nossa vulnerabilidade a preconceitos — como sendo o padrão. É exatamente por isso que reconhecer um kluge, e entender como ele poderia ser aperfeiçoado, por vezes exige criatividade. A melhor ciência, tal como a melhor engenharia, muitas vezes vem do entendimento não somente de como as coisas são, mas de como elas poderiam ter sido. Se engenheiros constroem kluges para economizar tempo ou dinheiro, por que a natureza os constrói? A evolução não é engenhosa nem mesquinha. Não há dinheiro envolvido, não há prospecto, e se levar bilhões de anos, quem vai reclamar? No entanto, um estudo cuidadoso da biologia revela kluges e mais kluges. A coluna vertebral humana, por exemplo, é uma péssima solução para o problema de sustentar o peso de uma criatura ereta sob duas pernas. Faria muito mais sentido distribuir nosso peso entre quatro colunas iguais que se cruzassem diagonalmente. Em vez disso, todo nosso peso é suportado por
Remanescentes da história
um único pilar, o que resulta em enorme tensão sobre a coluna vertebral. Conseguimos sobreviver eretos (liberando, assim, as nossas mãos), mas à custa de inúmeras pessoas agonizando com dores nas costas. Estamos presos nessa solução minimamente adequada não porque seja a melhor maneira de sustentar o peso de um bípede, mas porque a estrutura da coluna vertebral evoluiu daquela de criaturas de quatro patas, e porque ficar em pé precariamente (para criaturas como nós, que usam ferramentas) é melhor do que não ficar em pé. Da mesma forma, a parte do olho humano sensível à luz (a retina) está instalada virada para trás, de frente para a nuca (em vez de para o rosto). Como resultado, um monte de coisas entram no caminho da retina, inclusive uma série de fios, o que nos deixa com dois pontos cegos, um em cada olho. Outro exemplo famoso de kluge evolutivo é um detalhe um tanto íntimo da anatomia masculina. O ducto que liga o testículo à uretra (o deferente) é muito mais longo do que o necessário: ele vem de trás para frente, faz um loop e um giro de graus de volta ao pênis. Um designer parcimonioso, que tivesse o intuito de preservar o material (ou de garantir a eficácia de sua entrega), teria conectado o testículo diretamente ao pênis através de um canal curto. É apenas porque a biologia constrói com base no que veio antes que o sistema é estabelecido de maneira tão desordenada. Nas palavras de um cientista, “o corpo [humano] é um pacote de imperfeições, com [...] protuberâncias inúteis acima das narinas, dentes que apodrecem e terceiros molares propensos a problemas, pés doloridos [...], coluna facilmente suscetível a lesões e pele macia e pelada, sujeita a cortes, mordidas e, para muitos, queimaduras. Somos corredores medíocres e temos mais ou menos um terço da força de chimpanzés menores do que nós”.
Kluge
A essa litania de imperfeições especificamente humanas podemos acrescentar ainda dezenas de outras que são vastamente compartilhadas por todo o reino animal, como, por exemplo, o sistema bizantino segundo o qual as cadeias de DNA são separadas antes de se replicarem (um processo crucial para que uma célula se transforme em duas). Uma molécula de polimerase do DNA exerce sua função de maneira perfeitamente direta enquanto a outra vai e volta, aos arrancos, de um jeito que levaria qualquer engenheiro racional à loucura. A natureza está propensa a criar kluges porque ela “não se importa” se seus produtos são perfeitos ou elegantes. Se algo funciona, é disseminado. Se não funciona, se extingue. Os genes que levam a resultados bem-sucedidos tendem a se perpetuar; genes que produzem criaturas que não se adaptam tendem a desaparecer; todo o resto é história. Adequação, e não beleza, é o que está em jogo.
Ninguém faria objeções a isso com relação ao corpo, mas por algum motivo, quando o assunto é a mente, muitas pessoas se mostram relutantes. Tudo bem, minha coluna é um kluge, talvez minha retina também, mas a minha mente? Aceitar que nosso corpo é imperfeito é uma coisa, aceitar o mesmo sobre a nossa mente é outra completamente diferente. De fato, há uma longa tradição em pensar o contrário. Aristóteles via o ser humano como “o animal racional”, e economistas desde John Stuart Mill e Adam Smith supõem que as pessoas tomam decisões baseadas em interesses próprios, preferindo, sempre que possível, comprar em baixa e vender em alta, maximizando, assim, sua “utilidade”.
Remanescentes da história
Ao longo da década passada, vários acadêmicos começaram a defender a tese de que os humanos raciocinam de maneira “bayesiana”3, que é matematicamente ótima. Um periódico acadêmico de prestígio recentemente devotou uma edição inteira a essa possibilidade, contando com a participação de um trio de cientistas proeminentes do MIT, da UCLA e University College London. Eles defendiam que “parece cada vez mais plausível que a cognição humana seja explicável em termos probabilísticos racionais [...] em domínios fundamentais, a cognição humana aproxima-se de um nível ótimo de performance”. A noção de otimalidade é também tema recorrente na área cada vez mais popular da psicologia evolutiva. Por exemplo, John Tooby e Leda Cosmides, os cofundadores da área, escreveram que, “porque a seleção natural é um processo escalador, que tende a escolher os melhores dos vários designs que surgem, e devido ao imenso número de alternativas que surgem ao longo da vasta extensão do tempo evolucionário, a seleção natural tende a gerar o acúmulo de designs funcionais insuperavelmente bem projetados”. Nessa mesma linha, Steven Pinker defende que “as partes da mente responsáveis pela visão são de fato bem projetadas, e não há motivo para pensar que tal qualidade se vá deteriorando à medida que as informações sejam transmitidas para as faculdades que interpretam o que vemos e agem sobre isso”.
3 O termo “bayesiano” deriva de um teorema matemático específico oriundo do trabalho do Reverendo Thomas Bayes (1702-1761), ainda que o próprio Bayes nunca tenha proposto tal teorema como um modelo para o raciocínio humano. Grosso modo, o teorema determina que a probabilidade de um evento é proporcional ao produto da probabilidade de tal evento e sua probabilidade anterior. Para uma introdução clara (embora um tanto técnica), acesse <http:// en.wikipedia.org/wiki/Bayesian_statistics>.
Kluge
Este livro apresentará uma visão bastante diferente. Embora nenhum acadêmico sensato duvide que a seleção natural pode produzir designs funcionais insuperavelmente bem projetados, também está claro que tal qualidade não é de forma alguma garantida. Defenderei, contrariamente à maioria dos economistas bayesianos e psicólogos evolutivos, que a mente humana é, tanto quanto o corpo, um kluge. E, se isso é verdade, o próprio entendimento a respeito de nós mesmos — da natureza humana — tem de ser repensado.
Na extensa literatura da psicologia evolutiva, conheço apenas alguns poucos aspectos da mente humana que foram atribuídos a genuínos acidentes. Embora a maioria dos psicólogos evolutivos reconheça a possibilidade de evolução subótima em teoria, na prática, quando discutem os erros humanos, quase sempre é com o objetivo de explicar por que algo aparentemente não adaptativo acaba por se tornar bem projetado. Vejamos, por exemplo, o infanticídio. Ninguém defende que o infanticídio seja moralmente justificável, então por que ele acontece? Sob a perspectiva evolucionária, o infanticídio não é apenas imoral, mas sobretudo intrigante. Se existimos essencialmente como transmissores visando à propagação de nossos genes (como defende Richard Dawkins), por que um pai ou uma mãe assassinaria seu filho ou sua filha? Martin Daly e Margo Wilson defendem que, sob a perspectiva genética, o infanticídio faz sentido somente num número muito limitado de circunstâncias: quando o pai ou a mãe não tem laço consanguíneo com a criança (padrasto ou madrasta, por exemplo); quando o pai está em dúvida quanto à paternidade; ou quando a mãe não está em condições de cuidar da criança, mas tem a