O livro agreste

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O L I V RO AG R E S T E


UNIVERSIDADE ESTADUAL

DE

CAMPINAS

Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA

Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO


Abel Barros Baptista

O L I V RO AG R E S T E E N S A I O D E C U R S O D E L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BI B L I OT E C A CE N T R A L D A UN I C A M P

B229L

Baptista, Abel Barros, 1955O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira / Abel Barros Baptista. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005. 1. Candido, Antonio, 1918- 2. Ramos, Graciliano,1892-1953. 3. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. 4. Melo Neto, João Cabral de, 1920-1999. 5. Literatura brasileira – História e crítica. I. Título.

e-ISBN 85-268-1097-9

CDD B869.09

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira – História e crítica

B869.09

Copyright © by Abel Barros Baptista Copyright © 2005 by Editora da UNICAMP Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .........................................................................................................................................

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PRELIMINARES 1 ENSINAR LITERATURA BRASILEIRA EM PORTUGAL ................................... 19 2 O CÂNONE COMO FORMAÇÃO: A TEORIA DA LITERATURA BRASILEIRA DE ANTONIO CANDIDO ......................................................................... 41

O CURSO TÓPICOS, PLANO DAS AULAS E BIBLIOGRAFIA

.......................................................

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O ARGUMENTO 3 O LIVRO AGRESTE (1) .................................................................................................................. 91 4

PRIMEIRA LEITURA: S. BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS ........... 97

5 EXCURSO — A FIGURAÇÃO DO AUTOR: OS DOIS PRIMEIROS CAPÍTULOS DE S. BERNARDO ............................................................. 131

6 O LIVRO AGRESTE (2) ................................................................................................................. 157 7 EXCURSO — UM SONETO DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ......................................................................... 169

8 SEGUNDA LEITURA: A EDUCAÇÃO PELA PEDRA, DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO ............................................................................... 177

9 ORTOPEDIA DO SÍMILE ............................................................................................................ 195 10 FINAL ........................................................................................................................................................... 205


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A p re s e n t a ç ã o

A P R E S E N TA Ç Ã O

Este livro define-se basicamente por três atributos: a) apresenta um curso de literatura brasileira; b) delineado para uma universidade não-brasileira; c) sob a designação “o livro agreste”. Qualquer deles requer esclarecimentos preliminares.

A Em primeiro lugar, então, estas páginas derivam de trabalho universitário em sentido estrito, a saber, pertencem a um tipo de textos produzidos com regularidade dentro da universidade: chamam-se relatórios, destinam-se a um corpo especial de leitores chamado júri, têm finalidades tão injustificadamente variadas como fazer prova de atualização científica, obter novo título ou progredir na carreira, e definem-se, enfim, pela exigência que os suscita: expor e explicar as opções que configuram a disciplina e o programa do curso, desenvolver sumariamente os respectivos conteúdos e até esclarecer os critérios e métodos de avaliação adotados. Há pouca memória pública desses relatórios, que em regra não se divulgam ou surgem muito adaptados; também é freqüente a edição avulsa na forma de artigo, com ou sem rodapé assinalando a origem. Dir-se-ia que os únicos documentos em que os professores esclarecem a concepção e a organização dos respectivos cursos nascem já confinados à circulação interna, como se sujeitos ou ao abrigo de algum tipo de segredo profissional. A conseqüência principal talvez nem 7


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implique prejuízo: se se forma alguma idéia do conhecimento produzido pela universidade através das teses publicadas depois de aprovadas, nenhuma se forma a respeito das aulas, dos cursos, dos seminários, que no entanto constituem parte importante, ia a dizer essencial, do trabalho universitário. Não significa, é claro, que os ditos relatórios ajudem a formar essa idéia por serem reproduções fiéis do que efetivamente se passa nas aulas: ajudam antes na medida em que os professores neles dão conta do que supõem ser o melhor de si mesmos enquanto professores ou, mais modestamente, o que deles se espera. Em qualquer caso, são testemunho, ainda que a contrapelo, com ao menos o interesse de suspender a pressuposição da atividade docente como meio neutro de transmissão de conhecimento, herdado ou produzido. Tratando-se de literatura, tal suspensão ganha ademais efeito crítico, considerando esta anomalia típica: a noção do que seja ensinar literatura não é separável da noção do que seja a mesma literatura, mas aquela não decorre logo desta como conseqüência evidente, e a possibilidade de se contrariarem constitui o maior e o mais provável dos riscos. Um exemplo muito plausível: o curso de literatura em que o professor regularmente insiste na importância decisiva da leitura enquanto, com a mesma regularidade, evita qualquer procedimento de leitura; como será igualmente plausível a dificuldade de reconhecer na insistência estruturante em procedimentos de leitura alguma coisa que ainda se possa chamar ensino. Mas será indispensável guardar a palavra “ensino” para designar o que se faz nas aulas de literatura? Eis o problema, provavelmente malposto; seja como for, porém, esse problema ditou a decisão de transformar neste livro o que foi um desses relatórios. Se o designo por “ensaio de curso”, é decerto devido ao intuito de preservar a característica do relatório: trata-se, com efeito, da exposição de um curso possível — apenas possível, não o curso necessário ou fixo na estrutura curricular — de literatura brasileira. Tal intuito, por sua vez, vem determinado por outro, o de fazer do livro uma proposição sobre o ensino — se se guarda a palavra — da literatura na universidade, não pela discussão do problema em si, mas pela mesma via do testemunho: quer o relatório original quer o livro em que se transformou testemunham uma idéia simples sobre o que nos resta fazer — e é justo fazer — nas aulas de literatura. Em síntese, eis a tal idéia: o profes8


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sor prepara o encontro dos alunos com alguns textos em condições que permitam um trabalho de leitura relativamente liberto da pressão do tempo; por outro lado, compete-lhe escolher os textos e apresentar um argumento sobre eles. E é tudo. Creio que o mais que se possa arrolar — e costuma ser muito — nas competências ou deveres de um professor de literatura, se não for secundário, é errado, ou demagógico, ou impossível. E eis por que duvido da viabilidade de manter a palavra “ensino”. De fato, entre o critério de escolha dos textos e o argumento deverá existir determinação recíproca, o que significa que o professor não escolhe textos a mando da instituição, da tradição ou de algum cânone, a fim de proceder a panoramas de “representativos” ou de transmitir conhecimentos estabelecidos sobre “indispensáveis”: escolhe-os por força de um argumento que por sua vez já inclui o critério de escolha. Mas ao professor não incumbe sequer transmitir esse argumento — incumbe-lhe produzi-lo enquanto ponto de partida da leitura dos alunos e ao mesmo tempo exemplo de leitura concluída. Ora, apresentando um argumento, o professor arrisca-se a que os alunos presumam que é isso que ele ensina, e então o que deveria ser encontro dos alunos com alguns textos redunda em transmissão dos resultados do encontro do professor com alguns textos; em contrapartida, se este for bem-sucedido no esclarecimento da diferença, corre outro risco, este o de deixar os alunos desamparados, praticamente obrigados a distanciarem-se da única coisa que lhes transmitiu. E é esse o risco maior, não haver meio de evitar qualquer dos riscos, e já quase me convenci de que acabam a depender de fatores fora do alcance do professor. Se este, portanto, sempre se expõe ao risco de não ensinar nada, tal não o autoriza a abster-se de procurar ensinar a ler pelo único meio ao seu alcance, que é ele próprio ler — aprender a ler. Escusado sublinhar que o “ensaio de curso” corre no livro os mesmos riscos que o curso propriamente dito. Mas, no caso dos livros, há muito que a palavra “ensino” não se guarda senão como metáfora.

B Em segundo lugar, tudo isto se passa numa universidade não-brasileira. Será talvez o mais decisivo dos três atributos que definem o livro: 9


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exemplo de exterioridade. Na verdade, o termo “exterioridade” é o que melhor corresponde ao projeto, que determina estas leituras, de procurar orientação alternativa para o ensino da literatura brasileira, ou, para dizer logo tudo, de ensaiar a ruptura com o paradigma crítico que domina os estudos literários brasileiros. Como é óbvio, a exterioridade geográfica e institucional, por si só, de nada vale. Ser estrangeiro ou trabalhar no estrangeiro não é garantia de diferença. A exterioridade efetiva e coerente alcança-se conduzindo a relativa liberdade inerente ao exterior geográfico e institucional até ao exame daquilo mesmo que a torna indispensável. É sempre decisiva a interrogação das condições institucionais em que se ensina literatura, sobretudo quando se trata de uma literatura tão marcada pelo problema nacional como é a brasileira: sendo evidente que, fora do Brasil, as condições institucionais diferem o seu tanto das brasileiras, a liberdade de crítica e de ensino implica justamente o exame destas segundas, sob pena de se confundir a literatura brasileira com uma construção determinada por problemas ou necessidades, históricos e localizados, desprovidos de sentido para estudantes e leitores europeus. Acresce, sobretudo, que a literatura brasileira se “exportou” dificilmente separável de um modelo de leitura que a reenvia inexoravelmente à nação brasileira, graças a um laço essencial e reputado antes natural do que histórico. Por isso o cerne da ruptura aqui ensaiada é a desvinculação da literatura da idéia de nacionalidade, e o trabalho crítico que o sustenta encontra-se, no essencial, no ensaio sobre Antonio Candido. Como aí tento mostrar, o movimento modernista e a universidade são os dois principais fatores a marcar a eficácia histórica da teoria da literatura brasileira de Antonio Candido, permitindo-lhe edificar um paradigma crítico, ou seja, uma rede de pressupostos partilháveis, um programa de pesquisa, uma promessa de sucesso nessa pesquisa, e um sentido, a um tempo crítico, cívico e político, a orientá-la. Isso certamente deixou muito pouco espaço para teorias concorrentes e sobretudo para uma prática crítica alternativa, no Brasil e fora dele: o paradigma candidiano persiste o principal programa de aprendizagem dos brasilianistas, ao menos europeus, no campo dos estudos literários. 10


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Neste sentido, em suma, a exterioridade que procuro não se resume a reivindicar, fora do Brasil, liberdade de ensino segundo modelo alternativo: mais radicalmente, só será conseqüente se não se abstiver do propósito de insinuar esse “fora” no próprio “dentro”, reafirmando esta coisa tão simples, mas ignorada ou até negada por séculos de nacionalismo literário: a própria possibilidade de ler a literatura brasileira fora do Brasil obriga a defini-la de acordo com essa outra possibilidade, essencial e constitutiva, que é a de desde sempre se projetar além da referência ao Brasil, livre de determinações conjunturais, livre do dever de representar a identidade nacional, livre, enfim, de qualquer quadro de condições ou de circunstâncias nacionais graduado em fundamento e padrão de legibilidade. Daí que a exterioridade de que falo não tenha conteúdo nacional e muito menos possa reduzir-se, ao menos sem má-fé, a busca de qualquer coisa como um “ponto de vista português” sobre a literatura brasileira. Desde logo, devo sublinhar que já está nela a causa — e o seu aprofundamento será disso conseqüência necessária — do trabalho crítico sobre Machado de Assis que empreendi em livros como A formação do nome e Autobibliografias, 1 o primeiro dos quais se estruturou a partir duma leitura do ensaio “Instinto de nacionalidade”, reclamando não apenas a possibilidade, mas sobretudo a indispensabilidade de ler Machado fora de qualquer relação privilegiada com o Brasil e sem consideração da posição que lhe imputam no processo de “formação” da literatura brasileira. Com efeito, não cabe apenas sublinhar que o seqüestro nacionalista de Machado lhe obscurece a originalidade e lhe diminui a grandeza: as análises que nesses livros propus, mais do que alternativas, resultam polêmicas, aliás foram-no de forma deliberada e persistente, e, dada a importância da obra machadiana, põem necessariamente em causa o seqüestro nacionalista e, mais do que isso, a teoria da literatura brasileira que o legitima.

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A formação do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da U NICAMP , 2003 (ed. portuguesa: Em nome do apelo do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis. Lisboa, 1991 ); Autobibliografias. Campinas: Editora da U NICAMP , 2003 (ed. portuguesa: Lisboa, 1998). 11


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Por outro lado, a idéia de um “ponto de vista português” sobre a literatura brasileira não tem rigorosamente nenhuma sustentação possível. Aproveito, porém, para esclarecer que o fato de o curso que aqui apresento se destinar a uma universidade portuguesa não é característica irrelevante sob vários pontos de vista. A idéia básica, a este respeito, é que a literatura brasileira se ensina na universidade portuguesa sem necessidade de qualquer justificação específica — trata-se de uma literatura escrita na mesma língua — do mesmo passo que exige permanentemente critérios de justificação. Por outras palavras, se sempre se exige alguma resposta à pergunta “por que ensinar literatura brasileira em Portugal?”, a explicitação da própria pergunta toma-se como sintoma de anomalia: não deveria ser preciso perguntar nem deveria ser preciso explicar. Mas é. A história institucional da disciplina na universidade portuguesa — em que abundam os episódios de equívocos, falsos começos, exclusões e reduções — desde logo comprova que o ensino da literatura brasileira nunca foi propriamente entendido como decorrência imediata do ensino da língua e da literatura portuguesa. Privilegia-se formalmente a mesma língua, mas de fato trata-se de uma literatura estrangeira e de ensino, diminuído e progressivamente desvalorizado, de uma literatura estrangeira. Daí a necessidade da pergunta ou das perguntas: como ensinar uma literatura estrangeira escrita na mesma língua? o que o significa o “mesma” na expressão “a mesma língua”? Acresce que a história institucional da disciplina depende da história mais ampla das relações entre as duas literaturas e, em particular, do lugar que nelas desempenha certa noção de literatura brasileira, aquela cujo centro de gravidade persiste o Brasil, ou seja, precisamente a noção que sustenta o paradigma crítico em relação ao qual procuro exterioridade. Para resumir logo tudo, o paradoxo enuncia-se deste modo: portugueses e brasileiros partilham a mesma noção de literatura brasileira, e justamente isso determina que ambas tenham progredido excluindo-se reciprocamente. A apresentação deste argumento é o objeto do primeiro ensaio da parte preliminar do livro: descreve sumariamente os fatos pertinentes da institucionalização universitária da literatura brasileira em Portugal, analisa alguns momentos originais da relação entre as duas literaturas no curso do Romantismo e conclui apresentando critérios orientadores do seu ensino na univer12


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sidade portuguesa. O segundo ensaio preliminar, como disse atrás, discute a teoria da literatura brasileira de Antonio Candido, o que permite analisar o segundo movimento decisivo nas relações entre as duas literaturas, o Modernismo brasileiro. O problema essencial deste ensaio pode descrever-se como a diferença entre a estipulação brasileira dum cânone literário e a estipulação dum cânone literário brasileiro: a deslocação do adjetivo resume, como se verá, todo o sentido da “formação” nos termos de Antonio Candido. Os dois ensaios, na sua articulação, fundamentam o curso através da análise do caráter histórico e dos limites da noção de literatura brasileira fundada pelo Romantismo, tanto no Brasil como em Portugal. O leitor perceberá que não só a perspectiva que adoto não passa pela busca desse “ponto de vista português sobre a literatura brasileira”, como, mais ainda, que tal “ponto de vista português” não poderia ser mais — e não tem sido mais — do que a reprodução do brasileiro. Trata-se, em resumo, de procurar uma justificação para o ensino da literatura brasileira fora do quadro delimitado pela idéia de nacionalidade — brasileira ou portuguesa —, postulando que a posição portuguesa se define, ao mesmo tempo, por ser apenas não-brasileira, isto é, não-nacional, independente dos problemas históricos e atuais do ensino, da história e da crítica brasileira, e uma posição específica, isto é, determinada pela pertença à mesma língua. Daí que o exame dessa pertença, a reiteração da pergunta “o que significa pertencer à mesma língua?”, seja o ponto crucial de ambos os ensaios e, no fundo, de todo o curso.

C Em terceiro lugar, enfim, falaremos do “livro agreste”. O que vem a ser? Em termos breves, a designação visa justificar a leitura articulada de duas obras: S. Bernardo, de Graciliano Ramos, e A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto. São ambos exemplos de “livros agrestes” no primeiro sentido que darei à expressão, isto é, livros orientados para o Nordeste: ou exemplos de uma poética nordestina, se isso faz sentido. E em certo sentido faz sentido, porque se trata de cap13


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tar o lado agreste da terra e da vida nordestina, em termos, de resto, perfeitamente conhecidos e razoavelmente explicitados por ambos os autores. No entanto, este primeiro sentido interessa-me apenas como via de acesso a um outro: o que me permitirá analisar esses dois livros enquanto exemplo do esforço de orientação da construção literária para a realidade anterior e independente da literatura. “Agreste”, mais que metáfora do Nordeste (ou sinédoque do Brasil), é metonímia para “materialista”: o objeto do “livro agreste” seria o que está antes do homem, que ocupa espaço oferecendo-se e resistindo à percepção humana. A pedra, no idioma de João Cabral; ou a terra, no idioma de Graciliano. O lado bruto, material, resistente, hostil da terra e da pedra seriam, então, o primeiro ponto de unidade a articular a leitura dos dois livros. Poder-se-ia perguntar, entretanto, qual a razão da escolha de S. Bernardo, já que A educação pela pedra parece justificarse sem mais. Na verdade, Vidas secas parecia o parceiro óbvio para o livro de João Cabral, ao menos sob a designação genérica escolhida. Mas aí entra o segundo sentido pertinente do “livro agreste”: o da construção literária. Quero dizer que a poética do agreste não consiste afinal em reproduzir ou representar a realidade material agreste hostil do Nordeste, mas em intentar uma construção cujo atributo central seja homólogo da pedra e da terra, isto é, agreste. Não é uma hipálage — não tanto a qualificação do livro por transferência do principal atributo do seu objeto —, mas uma metáfora para nomear uma particularidade de construção literária. O poema epônimo do livro de João Cabral pode oferecer uma primeira indicação no sentido que pretendo. Para já, limito-me a adiantar que procurarei ressaltar um conflito decorrente do fato de nenhum dos autores renunciar nem à orientação para esse exterior agreste que antecede o livro nem à construção específica do livro enquanto livro. Conflito, aliás insanável, porque essa construção implica modelos, vetores práticos, prescrições, retóricas… Daí a escolha de S. Bernardo: porque procede pela apropriação de um modelo com vista a uma construção específica, abrigando em conseqüência uma tensão irresolúvel: a versão nordestina do trágico redunda no abandono do agreste, enquanto a insistência no agreste implica a ruína do trágico. A mesma tensão se lerá no livro de João Cabral, agora centrada na figura decisiva da sua retórica, o símile: o símile, ao mesmo tempo que remete 14


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para as coisas antes da poesia, é ele próprio agreste, quer dizer agora, resistente ou mesmo hostil a essa remissão.

Cabe uma nota final sobre a forma do livro. A estrutura e a redação seguem a do relatório original, mantendo-se invariavelmente a referência às aulas e aos alunos. Eliminei umas poucas particularidades que decorriam de exigências legais, não de escolhas próprias, ou diziam respeito a aspectos particulares da organização curricular da Universidade Nova de Lisboa, onde foi apresentado. Suprimi também várias passagens de caráter mais didático que constituem trivialidades para o leitor brasileiro (mas não para o estudante português). Por outro lado, enxertei, a título de excurso, três ensaios. O primeiro é uma análise dos capítulos iniciais de S. Bernardo, versão abreviada dum ensaio longo publicado na Colóquio/Letras (nos 129-30, jul.-dez., 1993); os outros dois de elaboração contemporânea e solidários do argumento apresentado: uma análise do soneto “Oficina irritada”, de Carlos Drummond de Andrade (publicado na revista Inimigo Rumor, no 13, 2o sem. 2002), e o ensaio “Ortopedia do símile”, escrito para o número da Colóquio/ Letras que homenageou João Cabral (“Paisagem tipográfica”, Colóquio/Letras, nos 157-58, jul.-dez., 2000). Entretanto, houve publicação parcelar de algumas matérias. Parte da primeira seção foi apresentada como comunicação ao III Congresso Português de Literatura Brasileira, em outubro de 2003, e ao Congresso Postscripta Pós-Colonial, na Universidade de Bolonha, em novembro do mesmo ano. Teria publicação, em finais de 2003, no no 4 da revista Terceira Margem, editada por Arnaldo Saraiva na Universidade do Porto. Uma versão da seção respeitante a S. Bernardo apareceu numa obra coletiva organizada por Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi: Formas e mediações do trágico moderno. Uma leitura do Brasil (São Paulo: UNIMARCO, 2004). O ensaio “O cânone como formação”, que não integrava o relatório original, retoma, com algumas alterações de pormenor e alargamento da seção dedicada a João Cabral, o posfácio ao livro de Antonio Candido que organizei em Portugal (O direito à literatura e outros ensaios. Coimbra: Angelus Novus, 2004). 15


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Resta-me dizer que a revisão global se beneficiou muito com uma estada em Campinas, em setembro de 2003, graças a várias conversas com Alcir Pécora, a quem agradeço a leitura meticulosa, as correções precisas e as sugestões enriquecedoras.

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PRELIMINARES


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E n s i n a r l i t e ra t u ra b ra s i l e i ra e m P o r t u g a l

1 E N S I N A R L I T E R AT U R A B R A S I L E I R A E M P O RT U G A L

1 O ensino da literatura brasileira concentra, ou exemplifica, todos os problemas teóricos e críticos do ensino da literatura na universidade. É não só possível como mesmo indispensável, a propósito da literatura brasileira, formular duas perguntas: por que ensinar literatura na universidade? Por que organizar o estudo da literatura segundo o critério da nacionalidade? Isto será o mesmo que dizer que a disciplina permanece afetada por problemas constitutivos, permanentemente obrigada a dobrar-se sobre si mesma, a justificar a legitimidade da sua inclusão no currículo e a debater a finalidade do respectivo ensino. Em regra, os estudantes chegam à disciplina de literatura brasileira sem terem lido qualquer autor brasileiro, muitos deles mesmo incapazes de mencionar sequer um nome de escritor ou título de livro de que tenham ouvido falar. Trata-se de uma falha que, afinal, a própria disciplina irá colmatar. Mais difícil, porém, será resolver o problema associado a essa ignorância, aliás dela solidário. É que, se os mesmos estudantes julgam saber por que razão são obrigados a estudar literatura portuguesa, não têm nenhuma idéia clara sobre o interesse ou a necessidade do estudo da literatura brasileira. Quando interrogados sobre isso, revelam um embaraço que parece significar que a pergunta nunca deveria ter sido feita: como se fosse de resposta óbvia e ao mesmo tempo impossível. E no entanto, a justificação dir-se-ia fácil ou até óbvia: a literatura brasileira seria um complemento da formação acadêmica no campo 19


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específico da língua e da literatura portuguesa. Creio que essa resposta surgiria majoritariamente se a pergunta fosse colocada ao corpo docente das nossas faculdades de letras e ciências humanas. O escasso peso letivo por certo confirma-o; e, por outro lado, a confirmação vem sobretudo de idéia mais vasta e supostamente indispensável: a literatura brasileira seria fruto da portuguesa, autonomizada mas unida pela mesma língua. O principal critério haveria de decorrer, portanto, de qualquer coisa como uma política da língua, pela qual o Estado, através da universidade, cuidaria de preservar os laços entre as formas de expressão em português. Isto, que parece óbvio, induziria uma justificação de ordem neocolonial ou até pós-colonial: o estudo universitário da literatura brasileira decorreria do intuito, antes de mais político e ideológico, de manter um espaço homogêneo dominado pela língua portuguesa, fosse como elogio da colonização, fosse como recuperação, histórica e intelectual, dos restos dela, mas em qualquer caso sempre postulando uma homogeneidade definida pelo predicado “português”. E hoje a literatura brasileira não seria mais do que um resto, passível de recuperação saneadora, mas sempre sobrevivência de um enquadramento político e ideológico ultrapassado. O problema destas generalizações é que são tão atraentes como estéreis. E defrontam-se não poucas vezes com a realidade dos fatos, inconveniente aborrecido, porque obriga ao acréscimo inesperado de argumentação, justamente o que as generalizações intentam dispensar. Desde logo, a história institucional da disciplina parece desmentir por inteiro qualquer intuito de a assimilar a um espaço cultural homogeneamente português. A não ser que tal intuito político reiteradamente defrontasse obstáculos acidentais ou ineficácia contumaz… Se há nessa história uma continuidade, será a do descaso, da indiferença ou do equívoco, de braço dado com os protestos, as reclamações ou reivindicações que apontam, e sempre justamente, claro, que o peso da disciplina nos currículos fica muito aquém da importância efetiva da literatura brasileira.1 A disciplina de literatura brasileira apenas existe enquanto tal a partir de 1957, por efeito da reforma das faculdades de letras introduzida pelo ministro Leite Pinto, que a impôs anual e obrigatória no novo quinto ano da licenciatura em filologia românica e opcional nos cursos de história, geografia e filosofia. A sua antepassada direta, a 20


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