superstição

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universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori de Decca

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superstição crenças na era da ciência

robert l. park

Tradução

Beth Honorato


ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação P219s

Park, Robert L. Superstição: crenças na era da ciência / Robert L. Park; tradução: Beth Honorato. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2011.

1. Superstição. 2. Religião e ciência. 3. Evolução humana – Aspectos religiosos. I. Honorato, Beth. II. Título. cdd 398.41 215 291 isbn 978-85-268-0922-2 Índices para catálogo sistemático:

1. Superstição 2. Religião e ciência 3. Evolução humana – Aspectos religiosos

398.41 215 291

Título original: Superstition: Belief in the Age of Science Copyright © 2008 by Robert L. Park Copyright © 2011 by Editora da Unicamp

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meio de cultura Nosso cotidiano é permeado de ciência e tecnologia. Mas o que é ciência? Como é feita? Quem a faz? E a tecnologia? A coleção Meio de Cultura traz textos que, em linguagem acessível a todos (e às vezes divertida), apresentam os caminhos e os descaminhos da ciência e da tecnologia. Neles encontramos histórias de sucessos e fracassos, contradições e embates, enigmas e polêmicas da ciência e da tecnologia na sociedade — uma bússola para explorar a cultura científica até as fronteiras do saber.



sumário

introdução — lições que uma árvore pode ensinar................. 9 1

um prêmio maior........................................................................................................................13

2

o segredo da vida....................................................................................................................43

3

o milagre de colúmbia. ..................................................................................................87

4

entregando a alma a deus.................................................................................. 119

5

o exército mudo.................................................................................................................... 139

6

o deus tsunami........................................................................................................................... 153

7

a nova era......................................................................................................................................... 169

8

a lápide de schrödinger. ........................................................................................ 187

9

o pato-da-barbária........................................................................................................... 205

10 o veado-galheiro................................................................................................................ 231 11 a lei moral....................................................................................................................................... 267 12 a última borboleta.......................................................................................................... 287 bibliografia................................................................................................................................................ 307



introdução

lições que uma árvore pode ensinar

Quase um ano já havia passado desde o dia em que a árvore des­ pencara, mas não era difícil perceber. As raízes de um imenso carvalho-vermelho, de aproximadamente 90 centímetros de diâ­ metro, haviam apontado para fora da terra fofa em uma ravina escarpada após uma semana de chuva pesada. A árvore tocara o chão com tamanho impacto que seu tronco espesso se partiu em dois. Uma de suas extremidades ainda apontava para baixo da escarpa, quase tocando a margem da trilha. O ­restante fora cortado e retirado para desobstruir a passagem. Imaginei que, se voltasse e visse a árvore, isso poderia despertar-me alguma recordação daquele dia, mas não havia nada ali. Apenas uma árvore caída no chão, como todas as outras árvores que lenta­ mente apodrecem no solo da floresta. Os médicos me deram sinal verde para começar a praticar jogging, mas correr naquela trilha parecia um tanto mais difícil do que na esteira do Centro Nacional de Reabilitação. Estava ainda meio ofegante quando dois senhores idosos passaram


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por mim, descendo ritmadamente a trilha. Quando me viram ali em pé, olhando para a árvore no chão, interromperam a caminhada. “Você sabia”, perguntou um deles, “que essa árvore caiu em cima de um sujeito?” “Sim”, respondi, “eu sei. Esse sujeito era eu.” Eles ficaram boquiabertos. “Não ficamos sabendo o que ocorreu com o senhor ­depois”, afirmou o outro, com a voz trêmula e os olhos lacrimejantes. “Tenho rezado pelo senhor todas as noites desde então.” Pela primeira vez me encontrava com alguém que teste­ munhara o acidente naquele dia. David O’Conner e Shaun Mc­ Carty são padres católicos. Ex-integrantes do corpo docente de um seminário próximo, eles costumavam encontrar-se pratica­ mente todos os dias para caminhar por aquela trilha tranquila, ao lado da Northwest Branch, vertente que um dia serviu a um moinho, tanto para se exercitar quanto para compartilhar da companhia um do outro. Dois anos antes, na tarde de domingo em que a árvore caiu, eles estavam justamente em uma de suas caminhadas. Eles não foram os primeiros a me encontrar; um imigran­ te ilegal de El Salvador já havia chamado o serviço de emergên­ cia pelo celular. Não sabendo qual era a gravidade dos meus ferimentos, os três temiam tentar remover-me sozinhos. Outras pessoas passaram por ali e pararam. Porém, não querendo en­ volver-se, partiram depressa. O homem com o celular telefonou novamente para o serviço de emergência para ver por que a equipe de resgate ainda não havia chegado. A ambulância, ao que parece, teria conseguido chegar apenas ao prédio histórico Adelphi Mill. A árvore estava ainda a uns 800 metros de distân­ cia do prédio. Não vendo nenhum sinal de vida no moinho, a equipe de resgate imaginou que talvez tivesse sido trote e vol­ 10


Introdução

tou para a estação de bombeiros. Quando receberam o segundo telefonema, voltaram depressa, seguindo a pé mais adentro da trilha. Tenho apenas uma leve lembrança de ter visto alguém tomar notas e caminhar ao lado da maca, enquanto a equipe me levava até o moinho, onde se encontrava a ambulância. Pas­ sei meu nome e telefone residencial, mas daí em diante fiquei inconsciente. Antes de a equipe de resgate chegar, David O’Conner e Shaun McCarty fizeram o que os padres sabem fazer — adminis­ traram-me a extrema-unção. Se tivesse sido alguns anos antes, o máximo que alguém poderia fazer seria rezar. Mesmo o celu­ lar que o imigrante salvadorenho utilizou para chamar o ser­ viço de emergência era uma tecnologia ainda muito recente naquela época. O maior risco era contrair uma infecção gene­ ralizada, provocada pelas bactérias do solo que penetraram a cavidade corporal por meio das inúmeras fraturas expostas que eu havia sofrido. Só consegui reagir com doses maciças de um antibiótico recém-desenvolvido, injetadas diariamente na veia cava superior por meio de um cateter em uma das veias do ­braço. O Centro Hospitalar de Washington utilizou um avan­ çado aparelho de imagiologia médica para conduzir o cateter até o coração. Eu não estaria contando esta história se não fos­ sem os recentes avanços médicos e tecnológicos. Parados ao lado do carvalho-vermelho caído no chão, con­ versamos sobre as lembranças daquele dia. Os padres me con­vi­ daram para acompanhá-los no restante da caminhada. Nos me­ ses e anos que se seguiram, encontrar-me-ia com David e Shaun algumas vezes ao longo da semana para caminhar com eles ao lado desse córrego que corta a floresta. Sou cientista e professor de física em uma importante uni­ versidade pública. Sou também marido, avô, veterano da ­Guerra 11


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da Coreia e ateu. Já nos meus avançados 70 anos de idade e agradecido por ainda estar vivo, vejo-me então desenvolvendo uma amizade com dois padres católicos irlandeses-america­ nos aposentados. Afora minha compaixão pela condição hu­ mana, parecíamos ter pouco em comum. Havíamos seguido caminhos bastante distintos, e acabamos por adquirir crenças em grande medida distintas. Essas crenças nos renderam muitas conversas. Minhas conversas com esses dois homens de fé sensatos e gentis deram início ao processo intelectual que, com o passar do tempo, me levou a escrever este livro. Convido-o então a caminhar conosco por essa trilha arborizada, à margem do cór­ rego do moinho, para falarmos de crença.

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capítulo 1

um prêmio maior

em que encontramos cientistas de fé

Ao sair da limusine, Charles Townes teria hesitado por um ins­ tante se seus olhos, ainda argutos aos 89 anos de idade, tivessem entrevisto a tremulação característica das asas de uma borbo­ leta. Depois de anos e anos coletando borboletas, os olhos e o cérebro ficam treinados a reconhecer esse movimento incon­ fundível no emaranhado de imagens transportadas pelo nervo óptico — e Townes havia coletado borboletas desde menino, na Carolina do Sul. Era início de primavera em Londres. Portanto, não seria de surpreender se uma Antíope (Nymphalis antiopa) procurasse pouso na face oeste do Palácio de Buckingham, onde pudesse se aquecer ao sol da tarde. As borboletas geram muito pouco calor interno para voar. Elas passam tempo to­ mando sol, com as asas abertas, para coletar o calor necessário para voar. Normalmente, a primeira borboleta grande a ser vista na primavera, a Nymphalis antiopa, mexe com o coração de qual­ quer lepidopterologista. É um sinal para mantermos a rede à 13


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mão para o caso de avistarmos um bom espécime. Chamada de mourning cloak (manto de luto) na América do Norte, por sua semelhança com o tradicional manto vestido nos funerais, as asas escuras da Nymphalis antiopa são torneadas de cor de marfim. Os guias de campo a relacionam entre as borboletas “negras”. Porém, se vistas bem de perto, à luz do sol, as asas escuras têm um intenso marrom-avermelhado e uma fileira de pequeninos pontos azuis ao lado do contorno em marfim. Quando menino, Charles sonhava tornar-se entomologis­ ta quando crescesse, para coletar todas as borboletas que hou­ vesse no mundo. Seu pai era advogado, mas sua família vivia em um sítio na fronteira de Greenville, na Carolina do Sul. Quando terminava seus afazeres, Charles não raro ficava pe­ rambulando por bosques e campos com uma rede de borbole­ tas no ombro. Entretanto, quando já estava a caminho da facul­ dade, lembra-se Charles, concluiu que Henry, seu irmão mais velho, fazia isso tão melhor do que ele, que pensou em fazer alguma outra coisa. Henry de fato se tornou um respeitado en­ tomologista, ao passo que Charles se voltou para a física e aca­ bou por inventar o dispositivo maser , que, por sua vez, levou à descoberta do laser. Embora ainda colete borboletas por pra­ zer, o professor Townes, ainda um dos cientistas mais estima­ dos do mundo, não estava no Palácio de Buckingham para co­ letar borboletas, mas para receber oficialmente o Prêmio Templeton das mãos do duque de Edimburgo. O Prêmio Tem­ pleton para o Progresso na Pesquisa ou em Descobertas sobre Realidades Espirituais é o maior prêmio financeiro anual con­ cedido a um indivíduo por sua realização intelectual. Microwave amplification by simulated emission of radiation (amplificação de micro-ondas por emissão simulada de radiação). (N. da T.)

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Um prêmio maior

Realidades espirituais O valor monetário do prêmio, hoje de aproximadamente 1,5 milhão de dólares, é reajustado anualmente para que sempre seja superior ao do Prêmio Nobel. De acordo com a Fundação John Templeton, isso reflete a convicção de Sir John Templeton de que a pesquisa dirigida a realidades espirituais poderia tra­ zer benefícios ainda maiores para a humanidade do que a pes­ quisa dirigida à tecnologia. Reflete também sua convicção de que o dinheiro faz as coisas acontecerem. Isso certamente funcionou no caso de Templeton. Fre­ quentemente descrito como homem modesto, não obstante sua surpreendente riqueza, ele pôde-se dar o luxo de ser humilde. Tornou-se milionário ao abrir caminho para a utilização de fundos mútuos internacionais. Proveniente de uma família de classe média da cidade de Winchester, Kentucky, no cinturão bíblico dos Estados Unidos, seus pais, presbiterianos devotos, enfatizaram nele as virtudes da parcimônia e da compaixão. Ele aprendeu ambas as lições tão bem que em 1968 renunciou à cidadania americana e mudou-se para as Bahamas, tornandose cidadão britânico para evitar o sistema tributário americano. Foi condecorado cavaleiro pela rainha em 1987 por suas filan­ tropias. Sir John Templeton ainda reside nas Bahamas e, obvia­ mente, continua não pagando nenhum imposto para os Esta­ dos Unidos.

Relatório da minoria Townes, provavelmente o cientista mais reconhecido de nossos tempos, compartilhou o Prêmio Nobel de 1964 por descobertas 15


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fundamentais na eletrônica quântica, que culminaram no de­ senvolvimento do dispositivo maser e do laser — invenções que tiveram um enorme impacto sobre a ciência e a socie­dade. Ele foi agraciado com a Medalha Nacional da Ciência pelo pre­ sidente Ronald Reagan em 1982 e colheu inúmeros outros prêmios e distinções. Nascido e criado em uma devota família batista, em uma cidade do cinturão bíblico em nada diferente da cidade natal de Templeton, Townes, tal como Templeton, manteve sua de­ voção por toda a vida e ainda hoje começa e termina o dia com uma oração. Formado em Furman, uma faculdade batista local, ­Townes desde o princípio sentia uma queda pela ciência. Contudo, como a quantidade e a qualidade da ciência oferecida em Fur­ man eram insuficientes, bacharelou-se em línguas modernas e foi estudar na Duke, para tirar o mestrado em física. Nessa uni­ versidade, sua extraordinária competência em física foi reco­ nhecida, e ele foi então estimulado a prosseguir os estudos e fazer o doutorado no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), onde teve de aturar certa quantidade de provocações motivadas por suas crenças religiosas, não apenas de seus co­ legas, mas de William Smythe, seu orientador de doutorado. Em uma entrevista a Tim Radford, do The Guardian, 65 anos mais tarde, ele se recorda de ter sido repreendido por Smythe: “Charlie, não se pode ter certeza de que Jesus era filho de Deus”. Townes ficou ressentido com isso — e ainda hoje se ressente. Alguns anos depois, a essa altura membro do corpo do­ cente da Universidade de Colúmbia, Townes juntou-se ao Gru­ po de Homens da famosa Igreja Riverside, em Nova York. Visto que, invariavelmente, poucos cientistas costumam frequentar a igreja, pediram-lhe para falar ao grupo sobre seus pontos de 16


Um prêmio maior

vista. “Convergência entre ciência e religião”, esse foi o título que ele deu à sua fala. O editor da Think, publicada pela IBM, ouviu a palestra e gostou tanto que a publicou na edição de abril de 1966 da revista. O editor do MIT Alumni Journal, um não cientista tal como o editor da Think, também gostou tanto que a reimprimiu. Contudo, embora esses editores tenham gos­ tado, não se pode dizer o mesmo quanto a vários leitores cien­ tistas, e isso arrancou reclamações de cientistas e proeminentes ex-alunos do Instituto de Tec­nologia de Massachusetts (Mas­ sachusetts Institute of Technology — MIT). Meio século depois, na entrevista coletiva à imprensa do Prêmio Templeton, Tow­ nes recordou-se dessas ofensas: “Isso refletia um ponto de vista comum entre vários cientistas da época de que não se pode ser cientista e ao mesmo tempo ter inclinação religiosa”. A palestra “Convergência entre ciência e religião” foi cita­ da pelos jurados na premiação do Templeton. Eles citaram uma frase apenas: “A compreensão da ordem do universo e a com­ preensão do propósito do universo não são a mesma coisa, mas também não estão tão apartadas uma da outra”. A antipatia não esmoreceu. Aliás, com a ascensão do ter­ rorismo inspirado pela religião e o fundamentalismo religioso anticiência ao redor do mundo, a antipatia contra a religião, entre os cientistas, endureceu e transformou-se em confronto direto. Por volta de 2006, toda semana havia pelo menos um título de livro antirreligião na lista de best-sellers de não ficção do New York Times. Há um mundo de distância entre ambas. A ciência e a reli­ gião estão em caminhos divergentes, e distanciam-se cada vez mais à medida que o conhecimento se expande. A maioria dos cien­tistas religiosos separa conscientemente a vida, fiando-se, de um lado, no raciocínio científico e, de outro, na revelação. 17


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Townes parece dividir sua vida da mesma forma, mas sem ter muita consciência disso. No âmbito da ciência, ele aplica a ló­ gica e a razão com grande influência. Porém, no âmbito da reli­ gião, desde que a Sagrada Escritura ofereça as respostas, ele acaba por redefinir as palavras para que ambos os pontos de vista sobre o universo passem a impressão de que se estão con­ ciliando. Além disso, seu ponto de vista, “o propósito do universo”, é um tanto assustador. “Propósito” invoca imagens de fanatis­ mo. Uma vez que as pessoas se convencem de que foram postas na Terra para servir como instrumento em algum plano divino, parece não haver limite para as monstruosidades que elas estão dispostas a cometer para executar esse plano. Em seu formidá­ vel Dreams of a final theory [Sonhos de uma teoria final], Steven Weinberg, outro físico laureado com o Nobel e ateu declarado, expressou uma opinião bastante distinta: “Quanto mais o uni­ verso parece compreensível, mais ele parece não ter sentido”. Muitos não cientistas criticaram Weinberg por essa frase; entretanto, os cientistas geralmente consideram essa existência despropositada uma libertação maravilhosa — somos livres para estabelecer nossas próprias metas e enfrentar quaisquer barreiras intelectuais, sem precisarmos estar atentos a nenhu­ ma placa de “não ultrapasse”. Os seres humanos são livres para decidir em que tipo de mundo querem viver, e a ciência nos concedeu os instrumentos para iniciar a empreitada de cons­ trução desse mundo. O naturalismo é uma doutrina para a qual as leis científicas são a única maneira de explicar o mundo. Ao entrarmos no terceiro milênio, o naturalismo tornou-se a filo­ sofia dominante dos cientistas. Mas essa não é a filosofia de Charles Townes.

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Um prêmio maior

O cientista de fé “Muitas pessoas não se dão conta de que a ciência, em essência, envolve fé”, disse Townes na coletiva de imprensa do Prêmio Templeton. Townes já havia defendido esse ponto de vista mui­ tas outras vezes. Quanto a questões sobre a física do laser, eu seria, de bom grado, condescendente com Townes, mas esta­ mos lidando com uma questão do idioma inglês. Nesse aspecto, precisamos acatar os dicionários. Townes está confundindo dois significados bastante distintos da palavra “fé” (faith). O Concise Oxford English dictionary que mantenho sobre a mesa apresenta a seguinte definição: “fé [faith] subst. 1. confiança ou convicção absoluta. 2. sólida crença religiosa, baseada em con­ vicções espirituais, e não em provas”. Alguns dicionários decompõem os significados em varia­ ções mais sutis, mas esses dois me bastam para defender minha ideia: os cientistas empregam a palavra “fé” para expressar sua confiança em que as leis da natureza prevalecerão, a começar pela lei de causa e efeito. A “fé” empregada pela religião encerra a crença em um poder superior que faz as coisas acontecerem independentemente de uma causa física. Essa é a definição de superstição. Portanto, os dois significados de “fé” não são ape­ nas diferentes, mas opostos exatos. A ciência é condicional: quando surgem evidências expe­ rimentais mais apropriadas, os cientistas reveem sua visão do universo para enquadrar os fatos. Nossas percepções podemnos enganar, como quando vemos uma miragem no deserto. Um cientista diria que uma forma de evitar ser iludido por uma miragem é compreender as leis da óptica, por meio das quais é possível inventar instrumentos que nos possibilitam ver mais claramente, talvez através de uma lente polarizada. Grande 19


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­ arte da labuta da ciência é refinar os métodos de observação p para evitar enganos, inclusive o autoengano. A natureza é o único árbitro. A religião, em contraposição, pode pedir a seus fiéis para que neguem a evidência dada por seus próprios sen­ tidos se ela divergir da Sagrada Escritura. É difícil imaginar que uma pessoa tão meticulosa quanto Townes por várias vezes pôde ter confundido esses dois significados de fé sem consultar o dicionário. No entanto, o cientista que existe em Townes evidente­ mente é predominante. Ele situa a teoria de seleção natural de Darwin acima do Gênesis enquanto explicação para a origem dos seres humanos. Embora ele possa considerar-se batista, re­ zar duas vezes por dia e frequentar a igreja todos os domingos, na pele de cientista ele reconhece que os autores da Bíblia não tinham como compreender as implicações científicas de suas palavras. Para fazer com que a Bíblia se harmonize com as con­ clusões científicas, Townes a interpreta metaforicamente, como fazem quase todos os cientistas religiosos. Contudo, os batistas do Sul que não são cientistas tendem a interpretar a Bíblia mui­ to ao pé da letra. Townes não foi o primeiro físico a receber o Prêmio Tem­ pleton. Antes de 2001, entretanto, esse prêmio era chamado simplesmente de Prêmio Templeton para o Progresso da Reli­ gião, e os ganhadores eram em sua maioria celebridades do mundo religioso, a começar por Madre Teresa, em 1973. Como era de esperar, o evangelista Billy Graham foi um dos vencedo­ res, recebendo o prêmio em 1982. Até mesmo Charles Colson, que se tornou célebre por sua condenação no escândalo de Wa­ tergate, recebeu o prêmio em 1993 como fundador de uma pas­ toral carcerária denominada Prison Fellowship. O primeiro físico verdadeiro a ganhar o prêmio foi Paul Davies, em 1995. 20


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