Terras devolutas e latifĂşndio
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Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Fernando Ferreira Costa
Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo José Roberto Zan – Marcelo Knobel Sedi Hirano – Yaro Burian Junior
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terras devolutas e latifúndio efeitos da lei de
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ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Si38t
Silva, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850 / Ligia Maria Osorio Silva. – 2a ed. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2008. 1. Latifúndio – Brasil – História. 2. Propriedade rural – Brasil – Condições rurais. I. Título.
e-isbn 978-85-268-1131-7
cdd 333.320981 Índices para catálogo sistemático:
1. Latifúndio – Brasil – História 2. Propriedade rural – Brasil – Condições rurais
333.320981 333.320981
Copyright © by Ligia Maria Osorio Silva Copyright © 2008 by Editora da Unicamp
1 a edição, 1996 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
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Para Miriam e Eduardo
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Agradecimentos A versão inicial deste livro foi uma tese de doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em . A a edição, de , esgotou-se há muito tempo. Sou reconhecida ao professor Paulo Franchetti pelo apoio a esta a edição, bem como à equipe da Editora da Unicamp, por seu atento e rigoroso trabalho de revisão. Agradeço ao meu orientador, o saudoso professor Octavio Ianni, e aos professores e amigos da Universidade de Campinas Wilma Peres Costa, Fernando Novais, Sergio Silva e João Quartim de Moraes pelas sugestões e correções que fizeram à primeira versão deste trabalho.
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Sumário
Prefácio à 2 a edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 primeira parte
sesmarias e posses I II III IV V
O estatuto do solo colonial ....................................................................................... 25 O sesmarialismo .................................................................................................................................... 41 O fim das sesmarias .......................................................................................................................... 63 O predomínio da posse .................................................................................................................. 87 O primeiro projeto de lei de terras .................................................................................... 105 segunda parte
a lei de terras VI
1850 ........................................................................................................................................................................ 127
A estratégia Saquarema .............................................................................................................. 139 VIII A lei ....................................................................................................................................................................... 153 IX O regulamento......................................................................................................................................... 181 X A prática ................................................................................................................................................................ 203 XI As grandes mudanças .................................................................................................................... 231 VII
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terceira parte
a terra da república O Governo Provisório e a Constituinte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 XIII A lei de 1850 nos estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265 XIV O coronelismo e a luta pela terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275 XV A apropriação territorial no estado de São Paulo . . . . . . . . 303 XVI As políticas federais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319 XVII Os serviços de terras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329 XVIII O usucapião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343 XII
CONCLUSÃO
A “questão da terra” e a formação da sociedade nacional . . . . . 355
fontes e bibliografia Fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385
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Prefácio à a edição
Há anos, escrevi um comentário sobre este livro na revista do Instituto de Estudos Avançados da USP. Pareceu-me então que o mérito principal deste minucioso trabalho consistia na comprovação, por meio do estudo de um caso concreto, da incapacidade de a classe dominante brasileira institucionalizar a aquisição e a transmissão da propriedade da terra no país. Mesmo ciente da necessidade dessa institucionalização para legitimar o seu próprio poder, diante da iminência da abolição da escravatura, essa classe não conseguiu fazê-lo. Na pauta desde , a aprovação da lei foi procrastinada por quase anos e, quando finalmente foi impossível deixar de enfrentar o assunto, o projeto inicial perambulou sete anos pelos corredores da Casa, para transformar-se em lei somente em . Contudo, quatro anos foram necessários para ser regulamentada, com a agravante de que, na regulamentação, o Executivo incluiu dispositivos destinados a facilitar a burla, tanto pelos grandes senhores rurais, na sua permanente fome de terras novas, como por uma nova categoria de especuladores fundiários — os grileiros. Com isso, em vez de regular, o estatuto jurídico da terra contribuiu para instaurar o caos fundiário que até hoje perdura na realidade agrária do país. Qualquer planejamento de ação admi-
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nistrativa em relação ao meio rural, inclusive em relação à reforma agrária, sempre colide com uma base institucional difusa e instável e com um conhecimento objetivo da situação agrária que não passa de aproximação grosseira da situação real do campo. Passados anos, a tese que Ligia Osorio defende no livro está absolutamente confirmada pelos fatos. Nem a eleição de um presidente de origem popular, que fez sua carreira política prometendo a reforma agrária, foi capaz de vencer a barreira do conservadorismo. A esse respeito, posso dar meu testemunho pessoal quanto aos obstáculos surgidos nos diversos escalões do governo para frustrar a elaboração de um plano de reforma agrária que representasse, de fato, uma alteração na estrutura fundiária do país. Qualquer proposta que pudesse molestar os grandes proprietários de terra, cuja bancada de deputados federais é essencial para garantir a maioria do governo no Congresso, era imediatamente rejeitada. No final de uma grande disputa, em que a equipe encarregada de formular o plano se enfrentou mais com o Ministério da Reforma Agrária e com os burocratas da administração pública do que com os próprios latifundiários, o projeto foi engavetado. O Programa de Reforma Agrária aprovado, embora conservando esse nome, transformou-se, na verdade, em um programa de assentamentos rurais, executado em ritmo lento e insuficiente sequer para solucionar o problema das famílias sem terra, que — enganadas pela promessa de ter o seu chão —, assim que o novo governo teve início, acamparam em massa à beira das estradas e em terras improdutivas. O método usado atualmente para burlar a norma constitucional que estabelece o compromisso do Estado brasileiro com a reforma agrária é o mesmo retratado por Ligia Osorio em relação à Lei de Terras de : “a lei acata-se, mas não se cumpre”.
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O aspecto trágico dessa triste história é que, nestes últimos anos, a investida do capital estrangeiro pelo controle de terras brasileiras cresceu substancialmente, em decorrência da política de estímulo à produção em alta escala de álcool combustível, soja e madeira. Novamente a falta de institucionalização da propriedade fundiária, apontada claramente por Ligia, servirá para que os poderosos se apossem das terras que ainda estiverem em mãos de pequenos agricultores, posseiros, quilombolas e indígenas. Basta que elas estejam em áreas de interesse do grande agronegócio. O livro de Ligia Osorio focaliza, na verdade, o mais sério problema do mundo rural brasileiro: a insegurança da propriedade da terra. No entanto, seu alcance extrapola a dimensão propriamente fundiária para dissecar, com um bisturi afiado, a natureza da classe dominante e do processo político brasileiro. O que ela demonstra cabalmente é que o tipo de sociedade que a Colônia nos legou — o qual até agora não conseguimos superar — impede a institucionalização do Estado de direito. Com efeito, uma enorme população de “sujeitos monetários sem dinheiro”, dependente dos favores dos poderosos, cria o paradoxo de uma sociedade em que o conflito de terras é permanente, mas não alcança a dimensão e a dinâmica de uma luta social revolucionária. No campesinato brasileiro a porcentagem de famílias de condição camponesa, para quem a propriedade da terra constitui uma reivindicação básica, é muito pequena em relação à multidão das populações de origem nos ex-escravos e homens livres pobres do período colonial, para as quais a propriedade da terra não tem a mesma significação. Essa imensa massa de destituídos não foi capaz até hoje de transformar os conflitos fundiários localizados — em que se envolve diariamente, ao longo de toda a história do país — num projeto global de exploração da terra, seja por uma economia ba-
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seada na propriedade familiar camponesa, seja por uma economia baseada na propriedade coletiva da terra. Sem pressão coletiva, torna-se fácil para a burguesia canalizar recursos para atenuar, mediante favores do Estado, a grave situação social que a concentração da propriedade da terra provoca no meio rural. Essa alternativa é bem menos custosa para a burguesia do que a reforma agrária. Por ela optou a plutocracia que nos governa e nisso teve grande êxito. Programas assistenciais, como o Bolsa Família, que são percebidos pela massa rural como “favores”, concessões que precisam ser retribuídas, nos termos da mesma cultura herdada da Colônia, com outros “favores”. A “cultura do favor”, dominante nas relações entre os “homens livres pobres” e a classe dominante ainda vigora plenamente no Brasil do século XXI. O que este excelente livro de Ligia Osorio deixa claro é que, enquanto essa “cultura do favor” não for superada, será impossível institucionalizar não apenas a aquisição e propriedade da terra, mas todo e qualquer aspecto da vida brasileira que possa ameaçar o poder e os privilégios da classe dominante. Seu livro explica o casuísmo prevalecente em todas as relações do Estado com seus cidadãos e, constitui, sem dúvida, uma contribuição importante para o conhecimento da nossa realidade. Plínio de Arruda Sampaio
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Introdução
Em meados do século XIX, o Estado imperial elaborou a primeira legislação agrária de longo alcance da nossa história, que ficou conhecida como a Lei de Terras de . Essa intervenção do Estado na “questão da terra” veio no bojo das grandes transformações que nesse período começaram a propelir a sociedade brasileira, ainda escravista e arcaica, nos rumos da modernidade. A Lei de Terras visava promover o ordenamento jurídico da propriedade da terra que a situação confusa herdada do período colonial tornava indispensável. Embora a relevância de uma lei que objetiva regularizar a situação jurídica dos proprietários de terras seja patente, no caso brasileiro seu significado assume ainda maior importância. Isso porque, em inúmeras análises sociológicas, aos proprietários de terras é atribuído um papel destacado na organização social e política do Estado imperial e republicano. Uma das interpretações mais difundidas a propósito do “agrarismo” da sociedade brasileira, e que conta, entre seus adeptos, Nestor Duarte e Sérgio Buarque de Holanda,1 caracteriza o pro Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, ; Nestor Duarte, A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, ; Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, a ed. São Paulo:
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cesso de formação e fortalecimento do Estado como uma luta constante deste contra as forças dissolventes e centrífugas, existentes no organismo social, representadas pelo extenso poder dos proprietários de terras. A presença de forças centrífugas na sociedade, expressa no “privatismo”, teria constituído um dos obstáculos ao pleno desenvolvimento do poder público do Estado. As explicações para a ocorrência de tal fenômeno vão buscar na forma originária da ocupação territorial as suas raízes. Para os representantes dessa corrente, a ocupação do solo ocorreu primordialmente por meio da iniciativa privada. A bandeira, forma típica da ocupação do interior, era uma empresa privada, dirigida para os fins e no interesse da propriedade privada. A administração colonial e posteriormente o Império sempre contaram com o concurso dos proprietários privados para a manutenção da ordem social e para a defesa da integridade territorial. Com a quebra dos vínculos coloniais, o “privatismo” continuou a existir como uma espécie de freio ao desenvolvimento do Estado nacional. Existem naturalmente distinções entre os autores a propósito do peso efetivo atribuído aos proprietários de terras nos diferentes momentos desse processo. Em alguns casos, aponta-se uma continuidade nas diversas fases — Colônia, Império e República; em outros, vê-se um processo de ruptura na emergência de uma ordem política estreitamente vinculada aos interesses do café, na Primeira República. Para outros ainda, haveria um equilíbrio de forças na Primeira República, em que o coronelismo representaria um compromisso entre a força estatal crescente e o poder privado dos proprietários de terras em declínio.2 Alfa-Omega, . Selecionamos esses autores dentro da extensa bibliografia que trata da importância dos proprietários de terra na formação social brasileira porque neles se apresenta de modo bastante destacado a oposição entre o “público” e o “privado”. Para a continuidade ver, por exemplo, Nestor Duarte, A ordem privada... A ruptura representada pela emergência da fração cafeeira no controle do aparelho de Estado está destacada em Raymundo Faoro, Os donos do poder — Formação do patronato político
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Outro veio interpretativo, de inspiração marxista, bem representado por Nelson Werneck Sodré,3 não situa a contradição da sociedade brasileira entre os interesses públicos e os interesses privados. O Estado agiria como instrumento da execução da política definida pelos interesses da classe dos proprietários de terras. A Independência, feita com um mínimo de alterações internas em conseqüência da participação destacada dos proprietários de terras, deixou intocada a base social sobre a qual se assentara a sociedade colonial — o escravismo. Por volta de , a classe dos proprietários de terra já havia conseguido estruturar um aparelho de Estado que exercia o poder sobre todo o país, embora de forma desigual nas diferentes regiões. As mudanças importantes que sacudiram a sociedade brasileira na segunda metade do século XIX cindiram politicamente a classe dos proprietários de terra em duas frações. Uma fração, em movimento ascendente, ligada à exportação, que começou a desligar-se da escravidão, e a outra, em declínio, alijada da exportação, aferrada ao trabalho escravo ou à servidão. Tendo em vista essa divisão, que implicava interesses divergentes em relação à política econômica que deveria seguir o Estado imperial, o comportamento da classe dos proprietários de terra perdeu a homogeneidade e abriu-se espaço para a ressonância das reivindicações das classes médias que faziam sua entrada no cenário. Uma vez proclamada a República, porém, recompôs-se a unidade da classe dos proprietários de terras, tendo em vista a dependência na qual os setores arcaicos se encontravam em relação ao Estado, dominado principalmente pela fração ligada ao café, e os aliados de ocasião (as classes médias e o Exército) foram devidamente afastados do centro do poder. brasileiro, vols, a ed. São Paulo: Edusp, . Aparece também em Sérgio Buarque de Holanda (org.), História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, , t. II — O Brasil monárquico, vol. — Do Império à República, p. . O compromisso coronelista está em Victor Nunes Leal, Coronelismo... Formação histórica do Brasil, a ed. São Paulo: Brasiliense, .
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Essas breves considerações nos permitem afirmar que as relações entre os proprietários de terras e o Estado constituem um aspecto fundamental para a compreensão da dinâmica da sociedade brasileira. Quer se veja a questão pelo prisma da contradição entre o poder público, exercido pelo Estado, e o poder privado, exercido pelos proprietários de terras, quer pelo prisma da instrumentalização do Estado pelos proprietários de terra, permanece válida a relevância do tema. Por outro lado, trata-se também de um fato amplamente estabelecido, a predominância da grande propriedade na estrutura agrária brasileira.4 A imagem dos proprietários de terra cuja importância na vida política e social brasileira acabou de ser destacada está associada à grande propriedade voltada para a agricultura de exportação. A alta concentração da propriedade da terra é um fator em torno do qual evoluiu a “questão da terra” e que atravessa todos os períodos da nossa história. A contribuição que pretendemos dar, neste trabalho, situa-se num campo pouco explorado pelos analistas da “questão da terra” e das relações entre proprietários de terras e Estado. Trata-se da história da apropriação territorial. Procuramos estudar neste trabalho momentos decisivos do processo de constituição da moderna propriedade territorial, que foram, por outro lado, parte essencial do processo de formação da classe de proprietários de terra. Uma das características da constituição da propriedade da terra no Brasil é que a propriedade territorial se constituiu fundamentalmente a partir do patrimônio público.5 Nosso trabalho Dados bastante preciosos sobre a questão estão em Manuel Diegues Jr., População e propriedade da terra no Brasil. Washington, D.C.: União Panamericana, SecretariaGeral da OEA, . Para um ponto de vista analítico, ver Caio Prado Jr., A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, , e A revolução brasileira, a ed. São Paulo: Brasiliense, . Conforme está registrado nos manuais de direito agrário. Ver, por exemplo, Altir de Souza Maia, Curso de direito agrário. Brasília: Fundação Petrônio Portella, , no — Discriminação de terras, pp. -.
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procura estabelecer as condições nas quais se deu esse processo de passagem das terras públicas para o domínio privado. Desde logo advertimos, portanto, que o objeto deste trabalho não são os proprietários de terra, mas sim o espaço de relacionamento entre os proprietários de terra e o Estado, espaço estabelecido pela legislação que normalizava o processo de aquisição de domínio sobre as terras e que, portanto, formou o arcabouço jurídico dentro do qual se constituiu a moderna propriedade territorial. Foi a partir desse enfoque que procuramos analisar a Lei de Terras de . Tradicionalmente, a lei de tem sido vista como um ato complementar à Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico negreiro e lançou no horizonte a perspectiva do fim do escravismo. Essa possibilidade relançou a polêmica sobre as possibilidades de substituição da mão-de-obra escrava. Em nosso entender essa interpretação da lei é perfeitamente válida e pretendemos incorporá-la também na nossa análise. Queremos, entretanto, resgatar outra dimensão da lei que tem sido desprezada, de um modo geral, e que consistia na sua intenção de demarcar as terras devolutas e normalizar o acesso à terra por parte dos particulares daquela data em diante. Intervir na questão da terra e da mão-de-obra, tal como pretendeu o Estado imperial por meio da adoção da Lei de Terras, só foi possível devido às alterações que se produziram na vida social e política do Império em torno de . A Lei de Terras esteve vinculada, portanto, também ao processo de consolidação do Estado nacional. Procurando ordenar uma situação de grande confusão que existia no Brasil em matéria de títulos de propriedade, a lei estabeleceu um novo espaço de relacionamento entre os proprietários de terras e o Estado, que foi evoluindo durante a segunda metade do século XIX, com desdobramentos na Primeira República. Por isso, o período abarcado pelo nosso traba-
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lho estende-se até . Como a lei operava a transição do ordenamento jurídico do tempo colonial para a forma moderna da propriedade, começamos o nosso estudo pela situação da apropriação territorial no período anterior a , para estabelecer as condições às quais a Lei de Terras pretendia aplicar-se. Tendo em vista o objetivo central deste trabalho, focamos nossa pesquisa na legislação sobre terras e na sua aplicação ao longo das diversas fases por que passou o ordenamento jurídico da propriedade territorial.6 Para a época colonial, a legislação elaborada sobre a questão da terra encontra-se basicamente nas Ordenações do Reino. Nos regimentos dos governadores-gerais, nas cartas forais dos donatários e nas cartas de doações de sesmarias, encontramos as normas gerais estabelecidas pelas Ordenações especificadas para casos mais concretos. A partir principalmente do século XVIII, aumenta muito o número de avisos que alteram as condições das doações. Muitos destes estão nos aditamentos às Ordenações. Nos Fragmentos de uma memória sobre as sesmarias da Bahia, encontrase um comentário valioso a propósito das relações nem sempre tranqüilas entre sesmeiros e posseiros, as autoridades coloniais e a legislação elaborada para conciliá-los. Para a aplicação da legislação, foram muito úteis os trabalhos O sistema sesmarial no Brasil, de José da Costa Porto, e História territorial do Brasil, de Felisberto Freire. Este último, previsto para abarcar o país inteiro, infelizmente não passou do primeiro volume, dedicado à Bahia, Espírito Santo e Sergipe. Como subsídio para a análise da legislação de terras do Império, que naturalmente está centrada na lei de , utilizamos uma compilação, elaborada por Machado de Assis (funcionário do Serviço de Terras e Colonização) para o Ministério da Agri Ver indicações bibliográficas completas no final.
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