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Sobre esquisitos e Histórias

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Outubro Rosa

Outubro Rosa

Era um novo tipo de fi cção. Uma coisa esquisita, a que ninguém dava a mínima. Em nada parecida com as narrativas da moda. “Como eram as histórias da moda?” Você me pergunta. Pois bem. A grosso modo, tratavam-se de sagas de seres que de alguma forma nasceram especiais, simples assim. Esses seres, geralmente rodeados de trouxas, ralé inferior, só alcançavam a plenitude ao cumprir com o papel que lhes fora atribuído desde o começo dos tempos. Em geral representavam toda uma classe de seres superiores, sejam eles uma nação, o próprio Olimpo ou algo nesse sentido. Se o herói tinha sucesso, todos tinham sucesso com ele. Se ele fracassava, todos fracassavam também. Até que um certo bando de esquisitos – que fi cava cada vez maior e mais difícil de ignorar, diga-se de passagem – começou a se perguntar se não havia um modo melhor de contar histórias. Eles ousaram questionar a real vontade do herói em cumprir seu destino. E muito mais. Ele não pensa por si mesmo? Ele é mesmo tão especial assim? As coisas são assim na vida real? Então começaram a prestar mais atenção àquele novo tipo de fi cção de que falei lá em cima. Curiosamente, esse tipo tratava de gente comum, como eu e você. Gente que vai ao banheiro, que compra pão na padaria, que trabalha, limpa a casa, come e dá risada, gente com nome e sobrenome. Esse tipo de gente não tinha o peso de uma nação nas costas – não, eles eram comuns. E para piorar a situação eles nasceram com uma maldição, ao invés de um dom especial. A maldição de serem falhos, egoístas, mesquinhos, pecadores. Entretanto, eles tinham total responsabilidade pelo que viriam a ser no futuro.

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Nada de palavras mágicas, desculpas esfarrapadas ou a nobre zona de conforto daquele que pensava estar em pé. A saída era uma só: entregar toda a sua alma, corpo e intelecto na missão que traria redenção ao seu estado original decaído. Esse era o “novo herói”.

Indigno da própria redenção. Sem glamour, sem status, apenas a verdade nua e crua.

Aí está um tipo interessante de narrativa, concorda?

Ao invés de se preocupar com questões distantes e abstratas, a nova fi cção se preocupava com questões particulares e ao mesmo tempo comuns a todos nós. E, para isso, se utilizavam de páginas e páginas de prosa acessível, ao contrário da poesia em grego ou latim que só alcançavam os mais ricos.

Você já deve ter imaginado de qual época eu estou falando.

Sim, era o século XVIII, a época em que surgia o Romance, a narrativa mais popular nos dias de hoje. Quando eu paro para pensar no quanto o romance, que hoje é tão popular, já foi ignorado, menosprezado e difamado pelos detentores da cultura naquele tempo, eu quase não acredito na força que ele teve (e

“A fi cção cristã não pode ser vista como uma missão pequena, destinada a uns poucos religiosos que não querem se misturar.”

tem) apesar dos anos, culturas e idiomas. Hoje aqueles esquisitos, que não eram nem plebeus e nem nobres, são chamados de burguesia. A classe que dominou o mundo moderno. Outra coisa que me chama muito a atenção é a importância que uma certa noção de alma teve para essa nova narrativa. Por mais que se tente negar, é de cristianismo que estamos falando aqui. Nós nascemos pecadores e precisamos de redenção. Nós não podemos salvar uma nação inteira: cada um passa pela porta estreita sozinho. Nós não somos melhores que ninguém e qualquer um que diga o contrário mente e faz um desserviço às próximas gerações de leitores. Nós, cristãos, mudamos a história da literatura ao escrever e exigir formas de entretenimento mais condizentes com a realidade. Tivemos um peso monstruoso na cultura dominante do séc. XVIII. Por causa da nova noção de alma individual presente no romance realista mudaram-se a economia, a ciência e, claro, as artes. Nós, guiados por Deus, fi zemos isso. Não podemos esquecer ou deixar que nos dissuadam do nosso peso na cultura ocidental. O romance é cristão e ponto fi nal. “Nós não podemos salvar uma nação inteira: cada um passa pela porta estreita sozinho.

É claro que, com o passar dos anos e das ideologias, o romance saiu dos seus trilhos originais. Com o advento das guerras mundiais, muitos de nós abandonaram a fé e perderam a sua noção de propósito no mundo. Hoje em dia, muitos acreditam que Deus é uma ideia tão distante da realidade que não se veem mais como

“Nós, cristãos, mudamos a história da literatura ao escrever e exigir formas de entretenimento mais condizentes com a realidade.

crentes. Muitos escritores continuam produzindo obras maravilhosas, mas que são verdadeiros pedidos de socorro, com uma beleza triste e requintada. Um grito no escuro.

E o que nós fi zemos? Muitos se uniram à beleza do abismo que os olhava de volta. Outros, com tanto medo quanto eles, se trancaram em mausoléus desprovidos de arte. Entretanto, alguns poucos tomaram uma atitude diferente.

E agora, com meu coração queimando, digo que a batalha cultural não está perdida.

Desde os anos 1980, com Janette Oke e Frank Peretti, a fi cção engatinha de volta ao seu estado original. O estrago foi grande, e o percurso a ser percorrido é maior ainda. Os escritores cristãos precisam reaprender a se expressar de forma artística, e os leitores precisam reaprender a dialogar com a cultura do seu tempo.

A fi cção cristã não pode ser vista como uma missão pequena, destinada a uns poucos religiosos que não querem se misturar. Não se trata disso. A fi cção cristã é a redenção do romance, o retorno ao seu propósito original, a saber, o retrato realista da alma humana e da sua possível redenção.

E para uma missão assim tão importante, é imprescindível que haja leitores engajados. Se queremos ouvir a nossa voz nos debates mais importantes da humanidade, se queremos que nos levem a sério, precisamos dar suporte aos nossos escritores. Seja comprando um livro, falando dele nas redes sociais, mandando uma mensagem de apoio a um escritor, tudo que venha a somar é mais do que bem-vindo. Cada um de nós tem nas mãos um dom e nós devemos usá-lo para a glória de Deus.

Nós, cristãos, já mudamos a história da literatura uma vez. E estamos prestes a fazer isso de novo. Eu conto com você?

Bianca B. Fauro

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