Revista Literária Upbooks Outubro 2020

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Sobre Esquisitos E Histórias

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ra um novo tipo de ficção. Uma coisa esquisita, a que ninguém dava a mínima. Em nada parecida com as narrativas da moda. “Como eram as histórias da moda?” Você me pergunta. Pois bem. A grosso modo, tratavam-se de sagas de seres que de alguma forma nasceram especiais, simples assim. Esses seres, geralmente rodeados de trouxas, ralé inferior, só alcançavam a plenitude ao cumprir com o papel que lhes fora atribuído desde o começo dos tempos. Em geral representavam toda uma classe de seres superiores, sejam eles uma nação, o próprio Olimpo ou algo nesse sentido. Se o herói tinha sucesso, todos tinham sucesso com ele. Se ele fracassava, todos fracassavam também. Até que um certo bando de esquisitos – que ficava cada vez maior e mais difícil de ignorar, diga-se de passagem – começou a se perguntar se não havia um modo melhor de contar histórias. Eles ousaram questionar a real vontade do herói em cumprir seu destino. E muito mais. Ele não pensa por si mesmo? Ele é mesmo tão especial assim? As coisas são assim na vida real? Então começaram a prestar mais atenção àquele novo tipo de ficção de que falei lá em cima. Curiosamente, esse tipo tratava de gente comum, como eu e você. Gente que vai ao

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banheiro, que compra pão na padaria, que trabalha, limpa a casa, come e dá risada, gente com nome e sobrenome. Esse tipo de gente não tinha o peso de uma nação nas costas – não, eles eram comuns. E para piorar a situação eles nasceram com uma maldição, ao invés de um dom especial. A maldição de serem falhos, egoístas, mesquinhos, pecadores. Entretanto, eles tinham total responsabilidade pelo que viriam a ser no futuro. Nada de palavras mágicas, desculpas esfarrapadas ou a nobre zona de conforto daquele que pensava estar em pé. A saída era uma só: entregar toda a sua alma, corpo e intelecto na missão que traria redenção ao seu estado original decaído. Esse era o “novo herói”. Indigno da própria redenção. Sem glamour, sem status, apenas a verdade nua e crua. Aí está um tipo interessante de narrativa, concorda? Ao invés de se preocupar com questões distantes e abstratas, a nova ficção se preocupava com questões particulares e ao mesmo tempo comuns a todos nós. E, para isso, se utilizavam de páginas e páginas de prosa acessível, ao contrário da poesia em grego ou latim que só alcançavam os mais ricos. Você já deve ter imaginado de qual época eu estou falando. Sim, era o século XVIII, a época em que surgia o Romance, a narrativa mais popular nos dias de hoje. Quando eu paro para pensar no quanto o romance, que hoje é tão popular, já foi ignorado, menosprezado e difamado pelos detentores da cultura naquele tempo, eu quase não acredito na força que ele teve (e

A ficção cristã não pode ser vista como uma missão pequena, destinada a uns poucos religiosos que não querem se misturar.”


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