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Vivemos num mundo doente

Apalavra que melhor define o momento atual é hipocrisia! Pelo dicionário significa: característica do que é hipócrita; falsidade, dissimulação; ato ou efeito de fingir, de dissimular os verdadeiros sentimentos, intenções; fingimento, falsidade.

Em sua raiz grega, tem os significados de interpretar usando máscara, atuar, representar um papel teatral.

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Uma observação atenta permite verificar a dualidade de valores, interpretações, pensamentos, sentimentos e atitudes, ainda que partam do mesmo fato, distorcido no seu entendimento e propagação ao sabor do momento, desde que com benefício, pela manobra de dissimulação, em favor de quem a faz.

A sociedade (e seus vários co-sistemas como governo, iniciativa privada e terceiro setor) está doente, o ser humano está doente.

Falando em gregos, aquele que é por eles considerado o pai da medicina – Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), procurava explicação das doenças no mundo que os cercava e não nos caprichos dos deuses, ensinando que o médico deve observar cuidadosamente o doente e registrar os sintomas da doença. Organizou uma norma que mostrava como o doente poderia ser curado, pois dizia que o poder da cura está nas mãos do doente, e não nas mãos do médico ou dos deuses.

Mas, o que seria uma sociedade saudável, um ser humano saudável?

A hipocrisia, a doença de nosso tempo como um todo, fica clara com dois exemplos vividos por duas pessoas comuns, no sentido que não são nobres nem da alta hierarquia às quais pertencem: Tom Moore, morto recentemente aos 100 anos de idade, vítima da Covid-19, capitão inglês veterano da II Guerra, que arrecadou milhões para o Sistema de Saúde britânico (público); e o padre Júlio Lancelotti quebrando pedras, colocadas pela prefeitura, para proibir o uso como abrigo, do local, por moradores de rua, com uma marreta em São Paulo (reportagem no El País online em 21/02/21).

Um ancião, herói de guerra, de quem se espera sentar-se, ler um livro, tomar um chá com acompanhamentos, mas, algo mexia dentro de si impelindo-o a ser útil, a ser exemplo, a ensinar com suas voltas ao redor do jardim que, entre viver e vegetar, existe grande diferença!

“...vivemos na sociedade do comodismo, do consumismo, da transformação do ser humano em coisa. Da invisibilização do sofrimento de quem não se encaixa em algum sistema, só percebido enquanto útil na manutenção do sistema.”

Impossível não fazer um paralelo com Simeão, idoso, esperando a consolação de Israel, a quem por sua fidelidade foi prometido não descansar sem antes ver o Ungido do SENHOR! (Lc. 2.25-38). Quando

sabemos o que esperar e viver, nada nos limita!

Tom Moore soube, como poucos, usar as mídias sociais para ser luz entre os seus, irradiando mundo afora, permitindo que a intimidade de muitos corações fosse revelada (trazendo a lume a necessidade de um sistema público de saúde que garanta o direito à vida e à saúde básica).

Com o padre Júlio não é diferente, benquisto em sua comunidade, podia permanecer entre suas paredes paroquiais, mas não entende que essa seja sua missão como cristão.

Como conseguem ser exemplos comportamentais desejáveis a todos?

Posicionamento frente aos desafios da vida e ação! Defesa da vida, independentemente da origem social ou da situação econômica, partilha da vida, no seu mais amplo significado, com risco da própria vida! Não oferece ao seu Criador algo que não lhe tenha custo (II Sm. 24.18-24).

A contrario sensu, vivemos na sociedade do comodismo, do consumismo, da transformação do ser humano em coisa. Da invisibilização do sofrimento de quem não se encaixa em algum sistema, só percebido enquanto útil na manutenção do sistema.

Um exemplo claro do que quero dizer vem dos próprios moradores de rua com os quais o padre Júlio convive, como gosta de frisar.

O governo e a mídia pintam o morador de rua como um problema estranho ao sistema, que provê a todos condições igualitárias para a busca e satisfação de suas necessidades básicas (sendo irônico).

O morador de rua, como ouvi do pastor Mateus Feliciano, com profunda experiência de convívio com essa comunidade, sendo ele integrante do movimento Seara Urbana, indagado em palestra, deixou claro que o motivo da

Para quem dá pouco valor a símbolos, saiba que até o séc. XIX o judaísmo caminhava para uma profunda crise de identidade, judeus espalhados por praticamente todas as nações do mundo, o hebraico como idioma praticamente morto, substituído pelo iídiche (uma fusão de alemão

existência do fenômeno conhecido por nós como “moradores de rua”, está na sociedade em que vivemos, não no indivíduo que se autoexcluiu! Passamos como pessoas, e mesmo como sistema de civilização, por uma forte crise existencial.

No Direito, na Educação, na Economia o foco é a transformação do cidadão em mero consumidor.

Na sociedade do consumismo, o próprio ser humano é a mercadoria final, já que cada vez mais é despido de seus direitos básicos, transformado de empregado em empreendedor, em pessoa jurídica individual, a ficção da ficção!

Tema árido e sem graça, talvez, mas Jesus em João 3.12 diz: “Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes, como crereis, se vos falar das celestiais?”.

Imaginar ser a crise existencial algo de somenos importância nos coloca no caminho para os céus, atrás de publicanos e meretrizes (Mt. 21.31).

Identidade em crise ou crise existencial são momentos e episódios marcados por dúvidas e incertezas sobre a própria razão de existir, de viver ou de deixar-se morrer. Mesmo comunidades inteiras podem ser acometidas por crises de identidade. arcaico do séc. IX, línguas eslavas e vestígios de românicas, usando alfabeto hebraico abjad).

As autoridades sionistas decidiram estabelecer o uso do kipá, fornecendo um forte elemento de unidade e identidade cultural ao grupo.

Outro exemplo da força do uso de símbolos para fixação de uma ideia, ou identidade nacional regional ou marca de pertencimento, encontramos no uso da famosa bombacha gaúcha, com no mínimo duas origens curiosas: vendidas a preço baixo na década de 1860 posto ser espólio de guerra na Crimeia (repassado em pagamento ao comerciante que as revendeu no Sul); ou chegada aos pampas gaúchos com imigrantes da região de Maragateria, norte da Espanha, e mesmo lá na Espanha chegou por mãos de mouros árabes invasores! Quem diria, símbolos genuínos desses grupos étnicos, introduzidos compulsoriamente.

Mesmo divergências entre significados dos símbolos geraram verdadeiros massacres, como o que ocorreu na baía de Guanabara com o primeiro grupo de protestantes na América, que, após divergirem sobre consubstanciação e transubstanciação, resolveram suas diferenças religiosas, se

“Jesus jamais separou a preocupação social da preocupação espiritual, a Bíblia não separa espírito, corpo e alma, ao contrário, ela os afirma entrelaçados muito além da percepção humana. O amor do Criador, revelado em Jesus é apto para discernir esse entrelaçamento (Hb. 4.12).”

extinguindo mutuamente, assim acabou o sonho da colonização francesa no Brasil.

Jesus jamais separou a preocupação social da preocupação espiritual, a Bíblia não separa espírito, corpo e alma, ao contrário, ela os afirma entrelaçados muito além da percepção humana. O amor do Criador revelado em Jesus é apto para discernir esse entrelaçamento (Hb. 4.12).

É esse amor revelado no respeito e no cuidado que, sendo fruto genuíno cristão, mostra quem realmente somos, pela sua existência ou ausência em nós (Lc. 6.4). Se não nos matamos por símbolos, tampouco ignoramos seus efeitos em nossas vidas!

Fujamos dos maus exemplos, evitando repeti-los por atos, ações, omissões e palavras como no discurso de Caim: Sou eu guardador do meu irmão? (Gn. 4.9).

Essa transformação do ser humano em coisa, objeto, animal irracional desprovido dos direitos que nos julgamos merecedores, vem de longe e continua ativa. Meu comodismo em chamar a pizza, entregue pelo motoboy, na minha casa, após o culto, com um custo muito superior à minha oferta financeira, diz mais sobre minha fé cristã, que meu louvor profissional ou minha homilética impecável.

O hindu Ghandi aprendeu mais sobre Cristo que qualquer pregador do século XX, a ponto de abandonar o tecido inglês e usar o tecido sari indiano produzido por ele mesmo, gerando condições de subsistência a milhões de trabalhadores. Literalmente, viveu e deu exemplo de tudo o que ensinou, mudou o rumo de um contingente humano igual ao número da população cristã mundial!

Não pensamos nos reflexos de nossos pensamentos expressados em sentimentos e ações! Essa forma de viver e agir nos afasta do alvo, da vida que há em Deus.

São Paulo ensinava:

“E digo isto, e testifico no Senhor, para que não andeis mais como

andam também os outros

gentios, na vaidade da sua mente. Entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração” (Ef. 4.17-18).

Para crente que vem citar direita e esquerda, tenho indicado o diálogo entre o ETERNO e Jonas (Jn. 4.11).

Há incompatibilidade entre vida cristã e a alienação mental, o dogmatismo rançoso; Jesus recomendou cuidado! Não se contaminem com o fermento dos fariseus e dos saduceus (Mt. 16.6).

Mesmo Hipócrates tem um alerta válido hoje para os cristãos e a sociedade como um todo: a doença não vem para matar,

mas para desviar o doente de sua conduta que o está levando em direção

contrária ao curso natural da vida, a saber: a loucura ou a morte.

Assim fez a jumenta com Balaão ao prensálo, queria desviá-lo da espada flamejante (Nm. 22-27-34).

Pedro Henrique da Cunha, Sócio-diretor da Upbooks.

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