Libertália, por Wagner Uarpêik

Page 1

L ibertรกlia



Wagner Uarpêik

L ibertália PIRATARIA ANARQUISTA & ANARCONINJISMO


Wagner Uarpêik (1985): Libertália: Pirataria Anarquista & Anarconinjismo Imagem da capa e 1ª página: Wayraluna Capa e projeto gráfico: Márcio Simões, Wagner Uarpêik, Wayraluna Coordenação editorial e revisão: Márcio Simões Formato: 13 x 19cm 1ª edição – 2ª tiragem: 50 exemplares

Sol Negro Edições | Natal-RN | Brasil solnegroeditora@blogspot.com.br edsolnegro@hotmail.com 2017


APRESENTAÇÃO por Daniel Liberalino*

Asseado leitor, sou o wingman do nosso autor; você, o alvo. Nada faríamos que você não quisesse. Assim, cuidado. Proponho um amistoso vodu au petit déjeuner. Aplicando à borra de Nescafé nesta xícara as técnicas da nescafeomancia assíria, invocando o telurismo oracular dos espíritos ctônicos da Nestlé Ltda, revelam-me estoutros que vossa tara é a liberdade. Mas não o creio; que é a liberdade, senão a condenação ao fardo de preencher o tempo. Confessemo-lo de vez, vicejante leitora, somos preguiçosos. Deixemos aos verdugos o trabalho sujo de garimpar por nossos interesses. Que decidam eles a mais confortável posição a ser ocupada, por nosso pescoço, na guilhotina do quotidiano. Ou talvez lhe acometa o entusiasmo dos incautos, quiçá uma crise de meia-idade, essa menopausa metafísica em vestes de revolta. Você quer vencer o sistema, taludo soldado interlocutório. O Leviatã cederá humilhado aos argumentos do seu blog. Seu selfie moral arrebanhará moedinhas de Super Mario nas “pandemias comportamentais sob encomenda”. As faixas e hashtags pacifistas comoverão o maquinário até um debacle por esgotamento lacrimal. Sucumbirá o faminto Gargântua ao vosso requinte sub-higienizado de vender miçangas no praião domingueiro, para turistas sexuais, a mais lasciva espécie crustácea, a lagosta de bermuda. * Daniel Liberalino escreveu o livro de contos Corpúsculo num plano (Jovens Escribas, 2012), é formado em Filosofia e reside em Mossoró. |5


Ou quiçá ainda, como Lobstein, o herói do conto em suas mãos, queira você abraçar sua divina covardia, a bênção da sua microscopia reles, seu seráfico mequetrefismo. Somos, confessemo-lo agora e de uma vez, leitor hipócrita, meu irmão, meu símile, tristes insetos. Os ácaros nos suplantaram, tendo ainda a capacidade de induzir a rinite. Mas enquanto altivas lombrigas, função a nós reservada pela história, sonhemos parasitar o cólon dos nefilins. Vencer para que, se podemos surrupiar os espólios do Golias. A derrota é um nicho subexplorado. Ó Davi, entuba vossa pedrinha e vossa coragem, essa variante de homoerotismo helênico. Só os covardes resistem até o findes. Ó Davi, favelado autocongratulatório, chifrado com um instrutor de lambaeróbica. Com um subgerente do Bamerindus, ou ainda o proverbial entrepreneur hipster, que os terá conhecido no TED motivacional, usando microfone de atendente de telemarketing. Davi, que “farejou no ‘anticapitalismo’ uma boa chance de justificar ideologicamente seu fracasso pessoal”. É tarde para reaprender a engatinhar, dirias a Rousseau. E a Marx, talvez: “Para os miseráveis, putas de luxo num hovercraft.” Se nossa competência autoriza o título nobiliárquico de vermes, me diga você. O que quer Wagner, isto já não sei, isto já não sei. Ora, conforme o teor da feijoada, da última DR ou a direção do vento, acordo absolutista tirolês, pornopapista hipnagógico, criptochanchadista pós-siesta, rococó tele-onomástico. Camadas de vivífico desencanto, distribuídas em frases de sniper, encriptam a mensagem. Relevam os graminívoros o que só os criptogramas revelam: num outono de holofotes, a penumbra é a clareza possível. 6|


Ser bom é fácil. O difícil é ser justo. Victor Hugo



D

epois que o pai morreu atropelado, em 1998, a adolescência de Julian Lobstein passou a girar ao redor de livros, bares e protestos. A ascensão no meio subversivo foi rápida: em poucos meses, tornou-se um dos ecoativistas mais conhecidos da Holanda, e em poucos anos, um dos anarquistas mais ativos da Europa. Aos vinte e cinco, o talentoso economista e historiador colecionava mais derrotas que vitórias. Os dilemas se multiplicaram quando os melhores companheiros de luta começaram a desistir da militância, após adquirir filhos, casar, ou começar a trabalhar em empregos mais absorventes que bicos e bolsas estudantis. Sem parceiros à altura, Julian não passava de um sonhador pobre, bêbado e solitário.

|9


Durante essa fase de provações, embora tenha começado a suspeitar que sua revolta tinha, no fundo, mais a ver com sua infância do que com a luta de classes, foi mais divertido culpar o “sistema” do que a si mesmo. Então, convencido de que “o capital, o estado e o patriarcado” eram seus maiores inimigos, nosso cientista prodígio escreveu duas promessas na parede do quarto: inventaria uma maneira eficaz de lutar contra o establishment mundial, e enriqueceria logo e “sem explorar a força de trabalho de ninguém”. Mas o tráfico nunca convenceu Julian: enriquecer às custas de viciados e plantas de poder profanadas era indecente. Começou a pensar em assaltar milionários e clonar cartões de crédito. Quando os planos começaram a amadurecer, o primeiro a saber foi Bonno, o maior “expropriador” de livros de Amsterdã: “Esqueça o Yomango, cara, essa moda universitária de classe mérdia: precisamos de algo mais recompensador! Bons crimes, de verdade! Tenho pensado demais em como o trabalho pode atrapalhar tudo que quero descobrir e fazer, sabe? Continue sendo um bom rapaz, e algum dia lhe falarei sobre os abutres-do-novo-mundo!” Naquele verão, em uma longa e inspiradora viagem pelo litoral nordestino brasileiro, ele definiu melhor suas pretensões criminais, e começou a escrever o que chamou de “Manifesto Anarcopirata”. Por outro lado, as recorrentes divergências de Lobstein com os camaradas anarquistas, e um colossal sentimento de impotência diante das “misérias da civilização”, serviram 10 |


de lenha para uma intensa jornada de estudos em ciências humanas, bélicas, econômicas e detetivescas, em busca de “novos métodos revolucionários”. Esse segundo ciclo de estudos o levou a formular as bases do seu segundo tratado: o “Manifesto Anarconinja”. Com o tempo, os dois manifestos foram coletivamente lapidados, e deram origem à “Irmandade Libertália”. O nome foi uma homenagem à mítica colônia de piratas e marginais que teria existido na ilha de Madagascar, no século XVII. Na festa inaugural, diante dos outros sete amigos e adeptos, Lobstein, o líder fundador, comemorou: “Meus irmãos de guerra e paz!: acabamos de constituir um organismo revolucionário capaz de sangrar o sistema com uma mão, e saboreá-lo com a outra. Nossa pirataria anárquica investirá especialmente em nossas faculdades positivas, festivas, criadoras. Nosso anarconinjismo celebrará sobretudo a destruição, o ataque, o poder do negativo. Com a autodefesa financeira piratária e o contra-ataque político-social anarconinja integrados, honraremos nossa liberdade e nossos descendentes!”. Depois de espionados por alguns anos, e considerados confiáveis e preparados, os raros eleitos para fazer parte de Libertália tinham acesso aos manifestos. Após o juramento no alto de uma montanha, o neófito era finalmente admitido na “nova família”.

| 11


“MANIFESTO ANARCONINJA

Princípios Há muitos séculos, nossa espécie tem sido ultrajada por um mesmo dragão de mil faces: a civilização. Soletremos seus três primeiros nomes neolíticos: sedentarismo, propriedade privada e burocratização. Soletremos seus respectivos sobrenomes históricos: decadência fisiológica, dominação de classes e tirania estatal. Depois do paleolítico, a civilização vai se erguer sobre sacos de grãos, que exigem celeiros, que exigem exércitos, que exigem muralhas, e – como zombou André Leroi-Gourhan – “um escriba para contar os sacos de trigo, fixar os impostos e escrever a história.” Toda civilização é imperialista: nos Andes, na Ásia ou no Mediterrâneo, os grandes impérios, antigos, medievais ou modernos, são apenas os tentáculos mais potentes de um monstro que não parou de crescer, escravizar e colonizar, desde que os primeiros processos de sedentarização agrícola começaram a se espalhar pelo planeta. Os grandes tiranos, a fome, a loucura, a ciência fascista, o capitalismo, a bomba atômica, não são filhos bastardos da catástrofe civilizada: são filhos oficiais, esperáveis, previsíveis. A civilização foi o maior erro da humanidade. Talvez um erro inevitável. Mas um erro imperdoável. Obviamente, somos obrigados a reconhecer que o mundo pós-paleolítico não foi um desastre completo. Sonhar que o paleolítico foi um paraíso, e que é preciso regressar aos 12 |


tacapes, é mais preguiçoso do que presumir que os povos civilizados têm vagado entre o quinto e o sétimo dos infernos. Entretanto, as comodidades e maravilhas criadas pela civilização foram efeitos colaterais do tripé sedentarismo-propriedade-burocracia, não seus propósitos fundadores. A natureza do homem não é má: nossas sociedades têm falhado em engendrar indivíduos saudáveis, livres, satisfeitos. Após estudar os pormenores históricos de vários agrupamentos humanos, entendemos que o fator civilização aparece como elemento decisivo para o fracasso de inúmeras coletividades e individualidades. Sem dúvida, a presença desse fator gera condições contrárias ao melhoramento moral e intelectual da espécie. A civilização ocidental tem violentado a Mãe Terra e os seres humanos mais do que qualquer outro império conhecido foi capaz. Nossos prognósticos físicos e geopolíticos indicam que a escassez da água, as próximas guerras (que provavelmente incluirão ataques nucleares) e as incontáveis catástrofes ambientais ligadas ao aquecimento global e à mudança do eixo planetário, destruirão gradativamente boa parte das cidades e populações terrestres. A vaidosa modernidade tardará aproximadamente quatro séculos para colapsar de vez, não sem bastante dor, miséria e desconsolo, sobretudo para os mais frágeis. Lutamos contra as lógicas e instituições que atualmente mais ameaçam o justo e originário autogoverno dos povos e indivíduos: o jugo colonizador do estado, a influência do poder financeiro nas eleições, as grandes mídias manipula| 13


doras, o grande capital financeiro, a pornofalocracia global, os estamentos latifundiários, a indústria do lixo alimentício, e as mais sinistras e manipuladoras corporações criminais, religiosas, científicas, policiais, farmacêuticas e telemáticas. Desejamos estimular o nascimento e a disseminação de modelos societários descomprometidos com a propriedade privada, o estado e o compulsório sedentarismo biopsíquico dos campos de concentração urbanos. Cada ataque vitorioso enfraquece nossos inimigos e amplia nossa autonomia. Combater essas instituições não implica em almejar a morte das pessoas que as conferem vida. Nossa vontade de destruição não compactua com o terrorismo: matar pessoas é sempre hediondo. Nossa guerra é contra ideias, estruturas e entidades. Entretanto, é impossível afundar empresas, destruir igrejas e sabotar governos sem frustrar seus dependentes, usuários e hospedeiros. Afinal, a Babilônia Ilusionista nos coage não apenas da direita para a esquerda (e vice-versa), e de baixo para cima, mas de dentro para fora. Estratégia Ainda que a existência de Christiania e de certas comunidades indígenas animem nossos sentimentos libertários, não nos permitimos sonhar com o improvável dia em que todo o mundo civilizado decidirá se livrar da ordem global. Nesse sentido, os clássicos ataques públicos e argumentativos contra o sistema padecem da mesma falha estratégica: a história comprova que a argumentação não é a maneira mais sensata de convencer os escravos a se libertarem. Dar o exemplo e 14 |


combater na prática os mecanismos e organizações que escravizam as pessoas, têm se mostrado medidas mais eficientes. Sem embargo, o ataque físico ostensivo contra as instituições nunca foi mais desaconselhável do que hoje, quando o poder e a capilaridade dos novos métodos e tecnologias de controle e repressão não cessam de evoluir. Suspeitemos da boa-fé daqueles que nos convidam a lutar no campo em que o sistema é mais forte: o enfrentamento físico. Na ala dos guerrilheiros de esquerda, os pouquíssimos grupos que chegaram vivos ao século XXI, tiveram que se aliar ao narcotráfico e praticar terrorismo – imoralidades que contrariam os princípios socialistas. Por outro lado, na ala dos manifestantes, a maioria dos grupos Black Blocs, por exemplo, apresentam deficiências organizativas similares às das torcidas de futebol. Naturalmente, hordas assim continuarão a ser neutralizadas por tropas de choque e espiões infiltrados. Estamos cansados de ver a ingenuidade, arrogância, ignorância e romantismo dos ativistas serem ridicularizados e massacrados no altar da grande máquina mundial. Faixas de protesto, molotovs, ocupações, notas de repúdio e greves são armas limpas demais para enfrentar oponentes que não lutam limpo. O núcleo do sistema, que move as principais peças do jogo político-midiático-econômico internacional, não obedece códigos de transparência e regras legais. Ao defender o “terrorismo poético”, as zonas de autonomia temporária e o “ataque oculto às instituições”, Hakim Bey prestou um belo serviço à humanidade. É verdade que | 15


a “feitiçaria” ativista (por exemplo, a praticada inteligentemente pelos zapatistas) ajuda a atingir o adversário sem deixar pistas. Porém, o brilhante apelo poético de Bey soa mais defensivo que ofensivo, mais intimista que político. Aliás, é preciso reconhecer que, de maneira geral, depois dos punks, de Deleuze e dos militantes “pós-modernos”, o que restou do anarquismo tem se consolidado cada vez mais como uma vertente da arte contemporânea. Nos últimos anos, graças aos hackers e cypherpunks politizados, o ativismo social voltou a ser perigoso, imprevisível e global. Embora Wikileaks e Anonymous não sejam propriamente anarquistas, há certa dose de anarquismo em seus métodos e princípios. Tais organizações têm incomodado empresas e governos com mais intensidade do que todas as últimas greves, protestos e festivais artísticos. Intelectualmente visionárias e tecnicamente sofisticadas, essas vanguardas deixam a desejar em outras áreas: Wikileaks teria chegado mais longe se os seus articuladores fossem totalmente anônimos, e estivessem melhor inoculados entre os funcionários das grandes mídias e governos; Anonymous seria ainda mais útil e ameaçador se tivesse uma agenda mais coesa, construtiva e ofensiva – não basta reagir pontualmente: é preciso se antecipar e atacar sistematicamente, tombando e encurralando os alvos certos. A Irmandade Libertália se esforçou para captar as aptidões e fraquezas dos mais diversos ativismos anarquistas e esquerdistas. Só depois, elaboramos nosso próprio estilo de luta. Embora reconheçamos o valor de qualquer ativismo anarquista – que rejeite o assassinato como método –,

16 |


ainda que meramente intelectual, artístico ou anacronista, estamos convencidos de que nossa “associação de egoístas” encontrou uma forma mais eficiente de debilitar ou derrotar nossos oponentes: atacá-los secretamente, explorando seus pontos fracos mais recônditos. Infelizmente, estamos cientes de que a esmagadora maioria dos anarquistas e autonomistas não é capaz de lutar do nosso modo. “Não é sábio esperar que um elefante ataque como uma serpente” – diz o ditado. Somos praticantes do que chamamos de ativismo ninja: lutamos nas sombras. Não agimos assim com a intenção de nos igualar moralmente aos nossos inimigos – não somos assassinos, escravizadores ou torturadores. Agimos assim para derrotá-los. Combater o estado e o capital “à luz do dia” é sinal de pouca inteligência. Não objetivamos ser vistos, reconhecidos ou admirados: objetivamos vencer. “Para enganar seus inimigos, primeiro engane seus amigos”. Quem aprende a atacar à distância, vence a luta sem entrar no ringue. Quem aprende a dispor, contra seu inimigo, um aliado ou outro inimigo, vence a luta sem perder tempo, sangue e energia. A eficácia ofensiva das nossas metas exige que circulemos e nos infiltremos em diversos meios sociais, seja para acompanhá-los, ou para influenciá-los a nosso favor. Fazer parte de movimentos políticos juvenis é uma excelente maneira de obter informações e encontrar pessoas adequadas para nossa confraria. Se não é prudente que nós próprios nos infiltremos, alianças seguras são estabelecidas. Malgrado | 17


atuemos desvinculados de entidades militantes conhecidas, frequentemente podemos ajudá-las a vencer certas batalhas. Por outro lado, nossa autodefesa exige que tenhamos aliados não apenas entre os revolucionários socialistas, nossos aliados naturais. Os grupos mais poderosos e influentes do sistema podem, pontualmente, tornar-se aliados importantes, sem deixar de ser considerados inimigos. Aliás, não esqueçamos que, numa guerra, conhecer os segredos comprometedores dos nossos aliados é um excelente recurso para garantir colaborações e evitar traições. Apoiar um partido político qualquer, ou fornecer informações a um canal de televisão inimigo ou à polícia, só são ações estrategicamente pertinentes à medida que são indispensáveis para atacar inimigos mais importantes. “Jogamos sujo” porque acreditamos que nossa guerra é justa e urgente, e acima de tudo, porque sabemos que enfrentamos adversários significativamente mais poderosos e numerosos que nós. Essa estratégia inclui manipular fatos e pessoas, mas acreditamos que nossas mentiras servem a uma verdade maior: nossa liberdade. Metodologia marcial O primeiro passo da metodologia marcial anarconinja é sempre o mesmo: discernir os inimigos mais perigosos e/ ou convenientes do cenário – num espectro que abarca os supermercados de bairro e as superpotências mundiais –, e a depender das dificuldades identificadas, elegê-los alvos de curto, médio ou longo prazo. 18 |


O segundo passo é mapear: estudamos os fluxos sociais – políticos, midiáticos, econômicos, culturais, psicológicos – e físicos globais – astronômicos, sismológicos e climáticos –, com a finalidade de obter uma cartografia abrangente das fragilidades flagrantes e potenciais de cada alvo – embora cientes de que, em se tratando de arranjos físicos e sociais complexos, os cálculos racionais não são plenamente confiáveis. Regra de ouro: é melhor investir num ataque modesto e seguro, do que num ataque pretensioso e arriscado. Não somos mártires ou kamikazes: a vida e a liberdade são as causas mais preciosas. Terceiro passo: uma vez que nossos “radares” tenham confirmado a pertinência do ataque, procuramos o contexto espaço-temporal mais oportuno para realizá-lo. Se uma instituição inimiga está mais vulnerável do que o normal – seja por crise financeira, gestão incompetente, vigilância precária, escândalo moral, acidente físico, infiltração nossa no quadro de funcionários, etc. –, aproveitamos a oportunidade para atingi-la secretamente, através de: vazamento de informações comprometedoras; bloqueio, desorganização ou destruição de dados cibernéticos; estímulos sistemáticos dirigidos ao fortalecimento dos opositores da entidade em foco; sabotagens técnicas em pontos nevrálgicos; chantagem em nome de algo ou alguém temível; circulação de fatos, virais e notícias falsas; incitamento ao conflito entre funcionários; etc. Os procedimentos conspiratórios mencionados neste manifesto têm sido praticados há séculos por inúmeros militares, | 19


políticos, mafiosos, criminosos, empresários, espiões e membros de sociedades secretas. Alguns desses grupos e indivíduos se tornaram grandes especialistas em vencer sem ser notados e – muito menos! – compreendidos. Portanto, as premissas que regem nossos métodos não foram criadas por nós – Sun Tzu, Maquiavel, Napoleão, Stalin, Al Capone e Hitler as conheciam bem, por exemplo. Nossa missão é aplicar esses princípios marciais de maneira criativa, atualizada, e principalmente, a favor da sagrada liberdade de se autogovernar. Se a civilização nos adoece, destruí-la é curar-se! Irmandade Libertália”

“MANIFESTO ANARCOPIRATA

O totem inspirador Ao meio-dia, nas praias tropicais da América do Sul, veremos pontos negros levitando no infinito celeste. Mestres do ar, essas aves magníficas se aproveitam das horas mais quentes do dia, para pegar carona em correntes ascendentes, planando suavemente durante horas, em largas espirais. Urubu: a “galinha preta” tupi-guarani. Na América, onde nasceu, aprendeu a cumprir o mesmo papel dos abutres e 20 |


hienas: livrar o ambiente de cadáveres, converter a morte em saúde, vida, corpo, combustível de viagem. Linhagem negra e carniceira dos abutres-do-novo-mundo. A civilização ofertou refeições cada vez mais cômodas para o falcão caçador aposentado que há séculos trocou a caça pela carne fácil, migrando e se espalhando junto com as multidões humanas. Em toda a vida do urubu, impera a lei do menor esforço. Apesar da forte inclinação urbana, os urubus raramente se reproduzem perto do cimento. Preferem fixar seus ninhos em regiões de difícil acesso. Podem ficar vários dias sem comer, e voar uma distância de 100 quilômetros, em busca de comida. Vivem em bandos pequenos. No Brasil, com exceção das grandes e inóspitas florestas, o urubu-de-cabeça-preta é o urubu mais comum. Surfando em rotas de calor, ele brinca sobre as dunas e mares do litoral nordestino, gargalhando melhor entre os banquetes solares e poderosos vórtices aéreos da costa potiguar. Satélites da morte perfumados de maresia. Mítica efígie de astúcia, oportunismo e vagabundagem. A história do nosso bando começou com o encontro entre um urubu e um dos nossos primeiros congregados. Enquanto Julian se banhava numa praia potiguar, foi sobrevoado por um enorme urubu-de-cabeça-preta. O rasante da ave passou perto demais para não o inquietar. Os primeiros membros do bando conversaram sobre o fato por alguns dias, e concluíram que a aparição do misterioso pássaro era um sinal de que o espírito do urubu tinha lições a oferecer. Posteriormen| 21


te, os fundadores do clã Libertália tiveram encontros oraculares e sonhos visionários com urubus, e em menos de um ano, adotamos o ilustre coveiro de Gaia como totem. Elogio da anarcopirataria Por que tantas pessoas condenam o capitalismo, mas continuam a acordar cedo para enriquecer seus patrões? “A vida é dura” e não temos escolha? Ou a maioria de nós prefere a maldita segurança dos escravos, ao invés dos nobres perigos da autonomia? Há muitas maneiras de ganhar dinheiro sem explorar nem ser explorado: agricultor autônomo, pequeno empresário, freelancer, artista autônomo, detetive particular, terapeuta autônomo, profissional liberal, ladrão... A última profissão mencionada é, talvez, a mais antiga. Este manifesto é uma homenagem ao que ela tem de melhor. Afinal, em vez de cultivar o mesmo ódio generalista por nossa categoria, as “pessoas de bem” deveriam perceber que existem três tipos de ladrões: o parasita, o circunstancial e o justiceiro. O ladrão comum, o parasita, é o desgraçado que rouba o tempo, a energia e/ou o dinheiro dos outros, porque é ambicioso e preguiçoso demais para trabalhar. O batedor de carteiras é a versão nanica do grande agiota financeiro, político corrupto, ou parasita patronal. O ladrão circunstancial rouba por mero impulso e/ou em contextos tentadores. Não se profissionaliza, e normalmente não evolui na arte. Todos conhecemos alguns exemplares: o 22 |


desempregado que furta biscoitos no supermercado, o funcionário que aceita propina para pagar os remédios da filha, o malandro que abre uma empresa fantasma para tapar uma dívida, a faxineira que vê a carteira do playboy cair e prefere não avisar, etc. “A ocasião faz o ladrão”: repetem os policiais. “Complemente a renda de maneira criativa”: ensinam os economistas. Para finalizar, apresentemos nossa estirpe: o ladrão justiceiro. Arquétipo retratado nos mitos de Goemon, Janosik e Robin Hood, nas pilhagens dos piratas de boa índole, nas mais belas trapaças ciganas, e em todas as rapinas justas. O ladrão justiceiro é o tipo mais raro e admirável de ladrão. Rouba como quem faz justiça, como quem acerta as contas. Não rouba para explorar, mas porque foi explorado. Enfim, ele saqueia conscientemente seus inimigos de classe. “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”: nosso mantra favorito. O crime é parte da nossa coerência política. Somos aceleradores ativos da distribuição clandestina de renda. Desde que os grandes parasitas burgueses venceram e legalizaram o roubo de classe, cada dia significou uma pequena chance de compensação para o lado perdedor. Nossa ocupação não só é um trabalho legítimo: ela é mais digna que os trabalhos escravos disponíveis no mercado. O “trabalho honesto” é desonesto demais para nós. Nossa categoria engloba figuras distintas: o trabalhador que assalta o patrão que não o pagou, o enganador politizado que só aplica golpes em capitalistas milionários, o hacker comunista que chantageia multinacionais, etc. | 23


Todos sabem que os parasitas frequentemente se profissionalizam, quase sempre como políticos e empresários. Mas o mundo parece ter esquecido que os ladrões justiceiros também podem fazê-lo, ao conquistarem talento e experiência suficientes para conseguir subsistir, e até enriquecer com sua honrada profissão. Mas atenção, há dois tipos de ladrões justiceiros: os que roubam usando armas e/ou violência física, e os que prescindem delas. Os primeiros gostam de arriscar a vida e a liberdade (também as alheias), em troca de grandes e imediatas somas de dinheiro. Pense na Sociedade da Guilhotina, em Jean De Boë, no Bando Bonnot, no incrível Palaiokostas (o Macgyver do mundo do crime!), e nas centenas de socialistas que já assaltaram bancos ou sequestraram burgueses. Os segundos se especializaram em formas menos arriscadas e mais divertidas de saquear. Pense em intrincados clubes de sonegadores de impostos e em multiplicadores de criptomoedas movidos por convicções ideológicas. Normalmente, os justiceiros armados obtêm prêmios maiores que os nossos. Mas eles não se divertem mais do que nós – especialmente durante e depois das boas obras. Ora, enquanto todo assaltante armado ou violento ataca o sistema pela porta mais vigiada, e de certa forma pelo lado de fora, nós atacamos o sistema pelas brechas menos vigiadas e pelo lado de dentro. A fim de não ser injustamente confundidos com ladrões comuns, traficantes mesquinhos, gângsteres sacanas ou justi24 |


ceiros armados, batizamos o que fazemos de pirataria urubu: a rapina silenciosa, pacífica e oportunista. Como os urubus, aprendemos a viver das falhas, excedentes e luxos do metabolismo civilizado. Através de nós, o lixo capitalista é reciclado em saúde libertária – e isso continuará sendo mais um poema, até que você viva nossa poesia. Na medida em que um pirata urubuísta estuda detalhadamente as fórmulas mais imprevistas e seguras de pilhar dinheiro, compreende que colocar uma arma na cabeça de alguém, movido pela esperança de deixar de trabalhar por algumas décadas ou pela vida inteira, é a maneira mais arriscada e cruel de tentar se dar bem. Tirar da corte e devolver à sorte: esse é o truque. Pegamos emprestado, estamos sempre fazendo empréstimos, no fim das contas nada é de ninguém e as riquezas devem circular, regressar à fonte primordial – a coletividade. Quando encaramos as coisas por esse ângulo, a mão fica mais leve – vale a pena testar. Bebidas, comidas e dinheiro traduzidos em alegrias e maravilhas: transubstanciação das mercadorias em prazer. A boa e velha alquimia pirata! – Marx nunca a compreenderia. Eles dizem: “Outro roubo!”. Nós dizemos: “Mais um empréstimo!”. Eles dizem: “Que sacanagem!”. Nós dizemos: “Ô coragem!”. Estamos roubando porque o mundo foi roubado de nós! Esse é o jogo, e todas as crianças patifes são inocentes. Como se pode notar, não somos ladrões ordinários. Aos vinte anos, muitos de nós descobríamos como furtar livros e comer nos restaurantes sem pagar. Quando surgiram as ondas Yomango e Bitcoin, tivemos a honra de apresentá-las | 25


em várias cidades. Ali estava a marca que nos acompanha até hoje: o crime ideológico, a delinquência libertária. Nas asas do urubu, aprendemos mais: a vida deve ser gozada com o mínimo de sofrimento possível, e pobreza, trabalho e impostos são castigos odiáveis. “Trabalhar demais faz de Jack um mau rapaz”: o lema de partida. O segundo foi “Deus lhe pague”: uma bela prova de fé lançada aos supermercados europeus. Os ataques piratas na costa da Somália eram dádivas dos tempos. Porém, navios, fuzis e África não eram nosso forte. Preferimos encontrar nossa própria bússola, ampliar nosso arsenal de trapaças, engrossar nosso leque de cartas. Com o passar dos anos, cada urubu rastreou as facilidades do seu próprio ecossistema: truques foram descobertos, testados, aprimorados. Ora-ora, o anticapitalismo é uma péssima desculpa para a falta de amor próprio! Os princípios morais anarquistas não deveriam comprometer nossa máxima felicidade aqui e agora! Se você gosta de ser um rebelde pobre, maltrapilho e desnutrido, você pode até ser um cara durão, mas isso não faz de você alguém mais saudável, coerente e – muito menos – livre. Provavelmente, você não passa de um preguiçoso que farejou no “anticapitalismo” uma boa chance de justificar ideologicamente seu fracasso pessoal. O culto – explícito ou implícito – à pobreza perpetrado pela Igreja dos Mendigos “Revolucionários” é repugnante! Os inimigos agradecem. A grande notícia piratária é: enriquecer não é vergonhoso; vergonhoso é enriquecer às cus26 |


tas da pobreza alheia – “Vergonha é roubar e não poder carregar”: amenizam os brasileiros. Porque o dinheiro não é só a personificação de um sistema que pilhou e destruiu terras, corpos e almas. Neste mundo, dinheiro é liberdade, oportunidades, poder! Queremos bem mais que três refeições diárias, eventos gratuitos e cervejas baratas. Se sua ecoaldeia é contra o dinheiro e consegue subsistir por meio do que produz e permuta com a vizinhança, excelente, meu bom granjeiro! Mas a abundância financeira não deixa de ser desejável para qualquer um de nós, quer plantemos ou compremos nossas cebolas. Afinal, entre as opções de pagamento das companhias aéreas e da padaria da esquina, ainda não existe “escambo”. O que me diz do saboroso pêndulo autonomia alimentícia no campo & pirataria selvagem na cidade, camarada? Que tal squats elegantes, comunidades rurais confortáveis e acesso livre (ou seja: pago) a festas, comodidades, restaurantes, hotéis e países? Por que não? O que mais importa na vida não é onde você nasceu e o que fizeram com você. O capital e a burocracia não controlam tudo, não dão a última palavra, não, não tenha pena de si mesm@, marica! Enquanto estiver viv@, erga a bandeira pirata e saqueie, saqueie, saqueie tudo que puder! Um pequeno saque anarcopirata vale mais que mil panfletos e dez campanhas catequistas de “conscientização” política. No fundo, a pregação ideológica não pretende transformar muita coisa: tudo que os beatos voluntaristas querem é professar a própria fé e masturbar seu sentimento de superioridade. Um ladrão anarquista que presenteia os amigos com | 27


belas notas de 100 e garrafas de Zacapa 23 é mil vezes mais inspirador e ideologicamente convincente que um “revolucionário” desdentado e incapaz de promover banquetes! A pobreza é amiga da mesquinhez, do apego, do capitalismo! A abundância é amiga da generosidade, da fraternidade, do socialismo! Então, o que estamos esperando para ficar ricos sin perder los princípios, cães sarnentos? O próximo prêmio da loteria, algum concurso público, a patética distribuição de renda social-democrata, ou o maldito juízo final comunista? Quando viveremos em comunidades livres e esplêndidas? A resposta dos anarcopiratas é: “O quanto antes!” A resposta dos anarcomendigos é: “Lá tem almoço grátis?” Espiritualizemos o crime! Enobreçamos o roubo! Viva a piratologia, o urubuísmo, a anarcopirataria! Viva o ilusionismo bandoleiro, a vagabundagem ativista, a ladinagem revolucionária! Viva a economia urubu! Conhecemos os cinco livros rubro-negros da magia financeira! Deciframos as oito iniciações à monarquia antitrabalhista! Estudamos cada um dos sessenta e nove sambas da mão invisível! A insurreição individual é um ato criminoso! A insurreição coletiva é um crime perfeito! Que se fodam a parasitagem capitalista e o franciscanismo esquerdista!: queremos a abundância material aqui e agora! Urubucadabra! Iniciação à piratologia libertária Antes do primeiro ano na irmandade, todo neófito deve executar pelo menos oito itens do nosso singelo ABC ini28 |


ciático, elaborado especialmente para leigos, amadores e recém-chegados: 1) Acione processos judiciais lucrativos contra grandes empresas, explorando as brechas legais – preconceito, mau atendimento, produto danificado, etc. 2) Ponha dezenas de baratas numa loja, restaurante ou shopping, filme, e ganhe dinheiro chantageando o dono: “Tenho certeza que o senhor não deseja que essa triste notícia seja veiculada na TV...”. 3) Multiplique seus pães e transforme sua água em vinho, depois que seu cartão de crédito foi supostamente clonado e utilizado por um desconhecido (que tal um amigo de confiança?). 4) Pesquise sobre os dispositivos mecânicos que controlam certos jogos de azar e aprenda a manipulá-los, por exemplo, usando eletromagnetismo ou intervenção telemática. Faça fortuna nos cassinos mais modestos e desprotegidos. 5) Explore os “ângulos cegos” dos contratos de seguros, e prepare um espetáculo convincente. Vamos lá, cafajeste, você pode ir muito além da trapaça vulgar! 6) “Preveja” – ou seja: ataque – a empresa que terá grandes prejuízos em determinado mês ou ano, e baseado nisso, invista na bolsa de valores. 7) Coma de graça ou se torne um cliente VIP em qualquer um dos melhores restaurantes da cidade, país ou mundo: “encontre” um inseto nojento no prato, ou um pedaço de vidro dentro da garrafa de refrigerante (“O que podemos fazer pelo senhor para que o vídeo desse lamentável inciden| 29


te não seja publicado?”). De preferência, sacaneie as empresas distribuidoras (que tal a Boca-Tola?), não os funcionários do restaurante – principalmente os solícitos e gentis, claro. 8) Nas livrarias, lojas e supermercados, exercite pelo menos cinco técnicas ensinadas no Livro Vermelho do Yomango, mas não se esqueça de reforçá-las com o infalível sistema de blindagem Urubu: cultive a famosa “boa aparência”; aposte na fórmula “casal de namorados passeando romanticamente juntos” (nossas estatísticas comprovam: a probabilidade de atrair a desconfiança dos vigilantes é mínima); crie um escândalo distrativo (princípio de incêndio, briga, ataque epilético...), com a finalidade de proteger sua privacidade bandida das câmeras e vigilantes; tenha por perto amigos disfarçados de clientes “desconhecidos” por você (em algum momento você pode precisar de testemunhas para comprovar sua “inocência”, ou apenas de mais braços para lhe salvar de uma surra). Se mesmo assim você for pego, tenha um bom plano B na manga – ainda não preparou sua identidade social de louco? 9) Anonimamente, crie eventos falsos, e claro, desapareça com os pagamentos das entradas. Caso bem planejadas, patifarias do tipo “Conferência com um Grande Homem de Negócios”, “Conheça o grande guru indiano Chupa Kediuva”, “Os segredos do Sucesso Sexual”, e “Festival da Gula Livre”, podem atrair gigantescas legiões de otários e desocupados. Não deixe vestígios digitais, e só aplique o golpe em pequenas cidades e faculdades. 10) Visite locais e eventos burgueses com uma equipe de atores, imitando retardados. “Os Idiotas” de von Trier vão 30 |


lhe ajudar. “Por favor, ajudem nossa instituição para deficientes mentais!”. 11) Com a ajuda de óvnis, mistérios, nudistas, gnomos, uma exótica seita religiosa, ou qualquer bobagem digna de epidemia midiática, inaugure uma nova zona de turismo, e lucre o máximo que puder como principal guia turístico ou especialista na novidade. Conselhos complementares: a) Varie o cardápio de técnicas com frequência: as investigações policiais se alimentam de padrões, e tendem a ignorar as imaginações ladinas mais versáteis e criativas; b) Conheça as leis, argumentos jurídicos e hábitos policiais convenientes à sua atividade profissional; c) Jamais se esqueça: se o crime não serve para melhorar a vida e o coração dos delinquentes, está ajudando o sistema; d) De preferência, comunique-se com os outros membros do clã ao vivo e corpo a corpo; e) Fixe moradia simultânea em várias casas e cidades. Evite apartamentos e condomínios – antros de visibilidade onde qualquer vizinho fofoqueiro ou espião talentoso pode lhe bisbilhotar com facilidade; f) Uma equipe de atores talentosos e bem-treinados garantirá o sucesso da maioria das ações iniciáticas mencionadas; g) O urubês deve ser um idioma aparentemente inofensivo, mas impenetrável para os não iniciados. Irmandade Libertália” | 31


O oitavo aniversário de Libertália foi festejado numa discreta ilha mediterrânea. Satisfeitos com as centenas de ações bem-sucedidas, os vinte e cinco adeptos decidiram praticar “o crime que tatuaria para sempre a pirataria libertária e o anarconinjismo na pele suja e enrugada da história!” (bradou Mogly, o hacker mais experiente da irmandade): levar a rede social Tracebook à falência e, tendo apostado bastante dinheiro nas principais bolsas de valores, lucrar bilhões de dólares com a catástrofe. O plano, batizado de “Tracebookcídio”, não só quebraria a rede, tornaria pública sua verdadeira natureza, pagaria as contas dos membros do clã por várias décadas, e financiaria a construção de ecoaldeias e centros de treinamento libertalianos, como também permitiria que a organização adquirisse uma estrutura logística digna dos melhores serviços secretos, e dessa maneira, pudesse perseguir metas políticas mais ambiciosas: detalhou Wang Jin (a única matemática da congregação), seduzindo a minoria indecisa. Anos depois, quando a confraria já estava bem acomodada no quadro de funcionários da empresa – e também na cama de um dos seus diretores –, a etapa final da operação teve início. Como previsto, a pane eletromagnética sobrevinda de uma tempestade solar ofereceu as condições necessárias para desencriptar sigilosamente o conteúdo de uma reunião privada da diretoria da corporação. 32 |


O documento, divulgado mundo afora, comprovou que além de rastrear, mapear e vender informações íntimas e esmiuçadas dos seus usuários, e estimular deliberadamente o “narcisismo, o isolamento e o comportamento imitativo” deles, Tracebook fazia uso premeditado de um algoritmo que incentivava a propagação de postagens comprometidas com “hábitos, ideias, sentimentos e valores capazes de atrofiar o uso e a evolução do lobo frontal humano.” O assunto liderou os noticiários internacionais durante meses. Protestos e processos judiciais se espalharam pelos cinco continentes. Confirmando a aposta da irmandade, em poucas semanas dezenas de milhões de usuários desativaram seus perfis. Paralelamente, Libertália promoveu uma campanha focada nas pessoas que permaneciam no Tracebook: “Jogue o peixe errado na rede. Entregue seu nome, endereço e corpo; nunca sua alma. Na dosagem que lhe convir, de vez em quando (ou de vez em muito?) curta postagens que você não curte, trabalhe onde você não trabalha, poste fotos antigas como se fossem atuais, opine profundamente sobre o que não sabe, concorde com o que discorda, diga o que não diria, seja amigo dos seus inimigos, vá aonde nunca foi... Ações lúdicas e simples como essas dificultam o constante trabalho de mapeamento geográfico, psicológico, social, político e intelectual perpetrado pelos gulosos robôs. Jamais entregue certas impressões digitais espirituais para estranhos: quanto mais conhecidos, mais controláveis; quanto mais controláveis, mais vulneráveis. Não, não se en| 33


tregue de bandeja, sapiens sapiens: esconda mostrando, eclipse iluminando, escape se entregando; cegue seus caçadores de claridade; erga muralhas invisíveis, transparentes; desapareça ao aparecer.” As massivas debandada e permanência penumbrosa de cidadãos tracebookianos desregularam os mercados negros de biografias, experimentos psicológicos, pornografia clandestina e pandemias comportamentais sob encomenda. Proibida em alguns países, obrigada a pagar multas caras, e tendo perdido a maior parte de sua matéria-prima e milhares de anunciantes e apoiadores, os lucros da “maior rede social do planeta” despencaram tão rapidamente que uma enorme reação em cadeia a arruinou em menos de um ano. Milhões de pessoas deixaram de se masturbar diante das telas. Tradições quase extintas como visitar os amigos, conversar face a face e não revelar a intimidade para desconhecidos voltaram a ser praticadas, embora sem o talento e charme de antigamente. As ecoaldeias e planos libertalianos prosperaram, e o impenetrável grupo se tornou uma das sociedades secretas mais influentes do século. Alegando que o Tracebookcídio lhe havia reduzido os lucros drasticamente, a fazenda de curtidas Backstage aproveitou para fechar as filiais asiáticas. Um dos sub-assalariados dispensados, um indiano com quatro filhos e uma esposa doente, não conseguiu arranjar emprego nos meses seguintes. Incapaz de suportar a mendicância outra vez, o homem teve um surto psicótico, asfixiou os parentes, e se suicidou. 34 |


Apesar do objetivo principal da operação ter sido alcançado, a tragédia da família indiana surpreendeu e abateu Lobstein: as ações da irmandade jamais haviam contribuído para deflagrar algo tão lamentável. Os camaradas mais ferrenhos tentaram aliviar a aflição do líder com fórmulas filosóficas anticulpa, e com a “inelutável” teoria do “bem social maior”. Mas a inédita melancolia de Julian parecia incurável. Ele tirou férias do clã, e viajou para perto de um parque florestal, em busca de paz. Um dia, numa bela tarde de inverno, enquanto caminhava pela floresta, Julian flagrou um lobo atacando um filhote de coelho. Veganamente revoltado com a “covardia” do predador, o primeiro impulso foi atirar para o alto, com a intenção de afugentar o carnívoro. Contudo, enquanto se preparava para atirar, a espingarda explodiu. Desequilibrado, ele caiu com a cabeça em cima de uma pedra redonda, desmaiando. Ao acordar, minutos depois, só queria achar o coelho. O animal estava caído sobre a neve, agonizando: assustado com a explosão da arma, o lobo fugiu antes de completar a mordida que abreviaria o destino da presa. Com certa hesitação, nosso justiceiro ergueu um grande tronco seco, e acabou com o sofrimento do animal moribundo. Naquela noite, subitamente, Lobstein compreendeu que “fazer justiça” era sua maior vaidade.

| 35



Os escritos de Wagner Uarpêik perpassam a filosofia, a literatura e as ciências sociais. É tradutor, revisor, ghostwriter e instrutor de artes marciais. Escreve na Carta Potiguar. Libertália é o primeiro livro assinado pelo natalense. Site: copyrightzone.wixsite.com/wagneruarpeik


Exemplar nº

1ª edição – 2ª tiragem Desta tiragem foram feitos 50 exemplares (numerados de 01 a 50), confeccionados artesanalmente nas Oficinas Gráficas Sol Negro, na primavera de 2017. [1ª edição – 1ª tiragem: 50 exemplares]




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.