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MANIFESTO AMBIENTAL O Novo Código de Obras e Edificações da Cidade de São Paulo (COE): Onde foi parar o desempenho das edificações? Um Manifesto em prol da Qualidade Ambiental
Texto organizado por Joana Carla Soares Gonçalves e Eduardo Pizarro
são paulo, 2017
Qual a contribuição do novo COE à qualidade ambiental da cidade? Croqui de Eduardo Pimentel Pizarro.
Junto com o Plano Diretor Estratégico (PDE), aprovado em 31 de julho de 2014 e a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), aprovada em 22 de março de 2016, o Código de Obras e Edificações (COE) complementa a sequência dos três principais instrumentos urbanísticos que definem as regras de forma e ocupação do ambiente construído e a consequente qualidade do espaço público e privado. O propósito de um código de obras é direcionar de forma legal todo e qualquer projeto de edificação na cidade, além de orientar procedimentos administrativos para a legalização de uma obra. A partir dessa definição, pode-se assumir que essa diretriz legal define os aspectos fundamentais de desempenho, qualidade, e segurança de uma edificação. Pois será que é isso que acontece no caso de São Paulo? Em 10 de julho desse ano entrou em vigor a última versão do COE (Lei 16.642). Os autores do novo código afirmam que um dos principais avanços em relação à sua versão anterior é uma maior simplificação das regras. Isso se deve, principalmente, à criação da opção do Projeto Simplificado, em que o arquiteto responsável não precisa mais submeter o projeto completo em versão impressa. Ao contrário disso, projetos passam a ser submetidos a um processo de Legalização Eletrônica, com aprovação condicionada à avaliação de um check-list eletrônico. Por outro lado, a nova redação desta lei exclui qualquer referência às especificações espaciais e construtivas que primam pelo conforto ambiental no interior das edificações, passando essas referências para as Normas Técnicas. Essa
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medida não seria um problema se as Normas Brasileiras primassem de fato pela boa qualidade ambiental, sendo essa, porém, uma afirmação questionável. Enquanto na versão anterior da Lei se estabelecia uma série de regras para o tamanho mínimo das aberturas para ventilação e iluminação natural, na nova versão é responsabilidade legal e única do arquiteto autor do projeto que o mesmo esteja em conformidade com as normas técnicas vigentes no território nacional, e o responsável técnico pela obra, por sua vez, deverá realizar a construção de acordo com o projeto aprovado, o que parece lógico. O COE vigente da cidade de São Paulo não menciona nenhuma vez a palavra “conforto” e a única existência da palavra “desempenho” não está relacionada à qualidade ambiental. A mudança nas diretrizes de desempenho, qualidade e segurança para a aprovação de novos projetos é certamente um fator de significativo impacto do novo COE na cidade que vamos construir ao longo das próximas décadas. Como declarado por seus autores, é objetivo do novo COE regulamentar a influência das edificações no ambiente urbano, sem que se trate diretamente do que acontece dentro das mesmas. Para quem já tentou aprovar um projeto simples na Prefeitura de São Paulo de acordo com a versão anterior do COE, não restam dúvidas de que a grande maioria das diretrizes de desempenho ambiental, incluindo afastamentos, tamanhos de abertura, dimensionamento mínimo de espaços internos e outros parâmetros, além de complicadas, parecia arbitrária.
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Sendo assim, se por um lado não olhar para dentro das edificações também simplifica e agiliza a aprovação de projetos, por outro lado fica a pergunta: quem protege os compradores e usuários das edificações, garantindo o mínimo de desempenho, qualidade, durabilidade e segurança? No que tange exclusivamente à qualidade ambiental, pontos que devem ser garantidos no interior das edificações são: conforto térmico no verão e no inverno, ventilação natural para salubridade e higiene dos ambientes, bom aproveitamento da luz natural, acesso ao sol, conforto acústico e conforto ergonômico, incluindo o estabelecimento de áreas mínimas para o desempenho das funções às quais a edificação se destina. Parece lógico que os profissionais de projeto, apoiados em Normas Técnicas, sejam responsabilizados pelo produto que entregam. Um benefício imediato da referência às Normas Técnicas é que aqueles arquitetos interessados na aprovação de projetos e que não as conhecem, supostamente terão que buscar o entendimento de seus conteúdos. Esse fato pode contribuir para alguma melhora na qualidade dos projetos. No entanto, essa melhora não significa garantia de desempenho, pois há muito a ser questionado sobre as diretrizes das Normas Técnicas dentro do contexto do desempenho ambiental das edificações. Apesar das deficiências das Normas Técnicas não serem responsabilidade de nenhuma Prefeitura, essas se tornam um problema do COE e, consequentemente, dos usuários das edificações, na medida em que as mesmas são adotadas
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integralmente, sem um conhecimento técnico crítico. Extrapolando as questões de desempenho ambiental e entrando no tema da energia, a captação da energia solar nas edificações continua extremamente restrita, sendo mantida a mesma exigência do antigo COE, extraída da Lei Nº 14.459, de 3 de julho de 2007, que coloca como obrigatório o aproveitamento da energia solar para o aquecimento de água para residências a partir de 3 banheiros. É evidente que a abrangência dessa lei na cidade de São Paulo é ínfima. Parte do escopo é sobre o impacto do edifício na cidade, mas não se fala claramente em Impacto de Vizinhança de nenhum tipo. Sobre esse tema, devemos considerar tanto o impacto de um edifício no seu entorno, como o do ambiente construído no ambiente do pedestre. Dentre os vários tipos de impacto ambiental de vizinhança no meio urbano estão: ofuscamento criado pelas fachadas de vidro espelhado, sombreamento excessivo de áreas externas e edifícios vizinhos, assim como o bloqueio da ventilação urbana provocados pela combinação de orientação, altura e distância entre edifícios, dentre outros. Recuos ou não recuos? O novo COE reformulou a maneira de se calcular os recuos obrigatórios. Na nova Lei, as áreas de maior verticalização terão suas edificações mais próximas umas das outras. Edifícios terão recuos menores a partir do 8o andar chegando a ter metade do recuo antigo a partir do 12o andar. Isso altera significativamente o desempenho ambiental interno, diminuindo drasticamente o potencial da iluminação natural nos espaços internos. No que tange os recuos frontais, esse quesito ficou inteiramente a cargo da LPUOS
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- Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, podendo ser inteiramente eliminados. Se por um lado as fórmulas da lei anterior para a determinação dos afastamentos eram complexas e, muito provavelmente arbitrárias, por outro, a simplificação em um modelo único em que se referenciam a possibilidade de aeração e insolação do edifício, apesar de melhorarem o entendimento e o processo de aprovação, continuam aparentando arbitrariedade e, mais preocupante, não deixam claro qual o impacto de tais regras no desempenho ambiental dos edifícios. Portanto, é importante enfatizar que o problema da qualidade ambiental no ambiente construído continua no novo COE, uma vez que não há critérios claros de desempenho, atrelados às exigências de recuos ou à permissão de eliminálos. Sobre o papel dos recuos na qualidade ambiental da cidade, a Prefeitura nem define o que é qualidade (para então se determinar as regras para os recuos), nem tampouco cobra dos projetistas que demonstrem a importância ou a irrelevância dos recuos em cada projeto submetido à aprovação. Impacto de Vizinhança e Recuos são duas questões interconectadas, uma vez que o espaço entre os edifícios serve aos dois lados do problema, como visto na lógica do Código de Obras e Edificações de São Paulo de 1929, intitulado Código Arthur Saboya. Nele existiam diretrizes mínimas de insolação e ventilação de ambientes de longa permanência, com referência ao período de inverno, exigências essas que levaram ao projeto de edifícios altos com pátios internos de
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dimensões variadas. Como resultado dessa lei, as edificações construídas nas décadas de 30 e 40 foram pensadas para serem beneficiadas por um número mínimo de horas de insolação, ao mesmo tempo em que muitas delas são dotadas de ventilação natural cruzada. Vale destacar que o acesso ao sol em dias frios e o uso da ventilação cruzada nos dias mais quentes, previstos na legislação de 1929, são estratégias de projeto fundamentais para o conforto térmico em ambientes internos no clima de São Paulo, válidas para os dias de hoje, mas que foram retiradas das leis e das práticas do mercado ao longo da segunda metade do século 20, ou seja, à medida que a cidade cresceu, perdemos qualidade ambiental no interior das edificações. Além de agilizar a aprovação de projetos, a Prefeitura deveria considerar a recuperação da qualidade ambiental das edificações e o aproveitamento do seu potencial energético. Uma evidência da falta de consideração com o desempenho ambiental dos edifícios é a total omissão do poder público com a crescente demanda energética de edifícios comerciais para o controle das condições térmicas e lumínicas, sendo esse indubitavelmente um grave problema do setor de edificações na cidade de São Paulo, iniciado nos anos 70. Isso se deve, principalmente, à extrema inadequação dos projetos arquitetônicos das torres envidraçadas, seladas e de lajes cada vez maiores, com as condições climáticas locais. Não há nada no COE nem nas Normas Técnicas Brasileiras que contribuam para a melhoria do desempenho ambiental e energético desses
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edifícios. Indo mais além, do ponto de vista do desempenho ambiental e energético, as edificações precisam ser pensadas e preparadas para um futuro de mudanças climáticas, o que significa verões mais quentes e invernos mais frios. Os custos ambientais, econômicos e sociais dessa falta de visão vão ser inevitavelmente altos. Previsões realizadas pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), com base nos dados do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), apontam para a possibilidade de um aumento de 1 a 6oC nas temperaturas do ar em São Paulo se comparada às médias registradas no final do século 20 e às previstas para 2100. Frente a essa realidade, a falta de sombreamento, ventilação e inércia térmica adequados conjuntamente, incorrerão em um aumento significativo na demanda pelo condicionamento de ar para resfriamento dos espaços internos dos edifícios nos períodos quentes do ano, enquanto a falta de acesso ao sol causará um aumento do desconforto por frio e da demanda pelo aquecimento artificial. Nas cidades européias, a preocupação com o futuro de mudanças climáticas trouxe metas de emissões de CO2 associadas ao consumo energético das edificações, presentes em normas e certificações, ao lado das exigências de desempenho e conforto ambiental. Não abordar propriamente a qualidade ambiental interna das edificações em uma lei como o Código de Obras e Edificações (COE), cuja validade será por tempo ainda indeterminado, é uma omissão grave das autoridades públicas. A melhoria
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da qualidade e do desempenho ambiental e energético do ambiente construído na cidade de São Paulo passa por um despertar das autoridades públicas e do mercado associado ao setor das edificações, para um olhar técnico mais crítico sobre o tema. A valorização da profissão do arquiteto e dos conhecimentos específicos de desempenho, ambiente e energia, necessários para o projeto e construção de edifícios adequados ambientalmente, está no centro desse processo de amadurecimento da sociedade e cidadania. Ao lado da simplificação dos processos de aprovação e enquanto nossas Normas Técnicas não são aprimoradas, se faz urgente o estudo detalhado dessas normas e também de referencias internacionais pela Prefeitura de São Paulo, para a construção de uma consciência crítica sobre o tema do desempenho ambiental de edificações de uma formal geral. Certamente, um código cheio de regras e números tiraria do arquiteto a tarefa de pensar e criar bons espaços. Ao contrário disso, prover o setor das edificações com Normas de desempenho ambiental e energético, onde são apresentados metas e indicadores objetivos, ao invés daquelas prescritivas, em que são especificados tamanhos de janela, pé-direito, recuos e outras medidas traria possibilidades criativas e eficazes para o projeto de edificações de qualidade ambiental, sem amarrá-lo a soluções generalizadas de janelas mínimas e recuos arbitrários. Paralelamente, é imprescindível o investimento do Poder Público na constituição de equipes de profissionais tecnicamente preparados para a avaliação do desempenho
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ambiental de projetos, em especial daqueles de grande porte, onde os riscos dos impactos de vizinhança ultrapassam os limites do entorno imediato. Enquanto nada disso for feito, a aprovação de projetos de edificações não passará de um processo burocráticoadministrativo, desconectado da real qualidade ambiental da cidade e suas edificações. Mas de forma resumida, o que dizem as Normas Técnicas? No Brasil, são três os tipos principais de Normas Técnicas: ABNT, ANVISA e Corpo de Bombeiros, que em alguns casos se sobrepõem e se contradizem, como, por exemplo, a NBR 152203 Desempenho térmico de edificações – Parte 3. Zoneamento bioclimático brasileiro e diretrizes construtivas para habitações unifamiliares de interesse social e a NBR 15575 – Desempenho térmico em edificações. Baseadas no mesmo zoneamento bioclimático, ambas apresentam diretrizes diferentes para o desempenho térmico das edificações destinadas ao uso habitacional. Além disso, edifícios residenciais e de escritório são tratados pelas Normas Brasileiras, mas o mesmo não acontece com outras funções como: novos comércios, indústria, hospital, escola e mercado popular. Também não podemos ignorar o fato de que existem diretrizes e regras nas nossas Normas Técnicas que são essencialmente problemáticas. Para os ambientes de trabalho, a única referência que menciona conforto térmico é a Norma de Ar Condicionado NBR 6401 - Instalações centrais de ar-condicionado para
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conforto: Parâmetros básicos de projeto, que considera uma separação entre meio externo e interno, partindo do princípio que o conforto térmico do usuário é objetivo do sistema de condicionamento de ar e não do projeto arquitetônico do edifício, abordagem essa que deveria ser questionada pelas autoridades públicas, projetistas de edificações em geral, proprietários e usuários. Outro exemplo é o zoneamento climático brasileiro, apresentado na norma NBR 15220, que divide o país em oito zonas e agrupa cidades para a recomendação de estratégias de projeto. Nesse contexto, a cidade São Paulo é colocada no mesmo grupo que Florianópolis e Porto Alegre, ou seja, supostamente, as soluções de projeto para um bom desempenho térmico de uma edificação residencial são as mesmas nas três cidades. Ao contrário disso, as diferenças significativas entre os períodos de calor e de frio nessas três cidades deveriam indicar diferentes diretrizes no que se refere ao sombreamento das fachadas, controle da ventilação e da infiltração de ar, grau de isolamento térmico e outros aspectos do projeto. A Norma de Iluminação, ABNT NBR ISO/CIE 8995-1: 2013 é outro exemplo para ser mencionado, uma vez que não faz distinção entre a contribuição da luz natural e da artificial, desconsiderando assim o valor de práticas projetuais em prol da eficiência energética das edificações e de uma qualidade ambiental melhor em função do aproveitamento da luz natural. Outro ponto problemático dessa norma são os elevados valores de iluminância recomendados para situações como a de ambientes de trabalho (ao contrário do que se vê na boa prática
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internacional), versus valores surpreendentemente baixos para outras situações, como cozinhas e outros ambientes residenciais. Parece que a norma brasileira serve para chancelar o que mercado vem produzindo na prática corrente, independente do que é confortável e recomendável. No caso da qualidade acústica ambiental, a NBR 15575: 2013, Edificações habitacionais – Desempenho abrange uma série de tópicos de desempenho acústico de edificações, entre eles: isolamento de ruídos aéreo e de impacto, de pisos, vedações verticais internas e externas, coberturas e fachadas. O estabelecimento do desempenho é definido através de requisitos, critérios e métodos de avaliação que permitem mensurar o seu cumprimento e que podem ser desde a realização de ensaios laboratoriais ou ensaios em campo, inspeções em protótipos ou em campo, até simulações ou análise de projetos. Valores mínimos, intermediários e superiores são estabelecidos para os diferentes requisitos. Apesar de ser um avanço na questão do desempenho acústico no Brasil, a norma NBR 15575 é bastante atrasada em relação aos países europeus. Os valores estabelecidos na norma brasileira são muito inferiores aos de outros países. Outro ponto deficiente da Norma 15575 é que a norma referese apenas a edificações habitacionais, não havendo nenhuma norma nacional que abranja desempenho acústico em outros tipos de edificações. Para dificultar ainda mais seu uso, por tratar de conhecimentos bastante específicos, a avaliação do desempenho não pode ser realizada por qualquer profissional. A norma recomenda que a avaliação seja realizada por “instituições
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de ensino ou pesquisa, laboratórios especializados, empresas de tecnologia, equipes multiprofissionais ou profissionais de reconhecida capacidade técnica”, sem especificar claramente qual a formação ou especialização desses profissionais. Isto pode ser um problema, pois é complicado garantir a confiabilidade dos resultados dessas medições. Com relação à acessibilidade, o novo COE inclui disposições a fim de assegurá-la tanto nas edificações novas como nas existentes. Quando viável técnica e economicamente, as edificações existentes públicas, de uso coletivo ou de habitação multifamiliar devem ser adaptadas, sendo emitido um “Certificado de Acessibilidade” para a edificação que se adequar. No caso de requalificação de edificações, que se aplica a edifícios anteriores a 1992, há a possibilidade de se realizar a chamada “adaptação razoável”, ou seja, “modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido”. Seria importante uma maior aclaração do termo “adaptação razoável”, de forma que a análise de uma adaptação de um edifício existente seja mais objetiva.
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A cidade pensada em mĂşltiplas escalas, dentro e fora, urbanĂstica, social e ambientalmente. Croqui de Eduardo Pimentel Pizarro.
Monica Dolce, Denise Duarte, Antônio Gil, Joana Carla Soares Gonçalves, Aparecida Bou Ghosn, Monica Marcondes, Marcelo Mello, Leonardo Marques Monteiro, Roberta Kronka Mulfarth, Eduardo Pizarro, Paula Lelis Rabelo, Paulo Sérgio Scarazzato, Luciana Schwandner, Alessandra Rodriques Prata Shimomura, Paula Shinzato, Priscila Stark, Fernanda Panontin Tsuda, Ranny Nascimento Michalski Xavier. Pesquisadores do LABAUT, Laboratório de Conforto Ambiental, Eficiência Energética e Ergonomia das Edificações, do Departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAUUSP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Rua do Lago, 876, Cidade Universitária. CEP: 05508-080, São Paulo-SP. croquis e diagramação: Eduardo Pimentel Pizarro São Paulo, 2017
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