O Filósofo Voador

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EDUARDO RASCOV

O

filosOf O vOadOr

S達o Paulo, 2009


Direção Editorial: Liana Maria Salvia Trindade Editor: Reynaldo Damazio Projeto Gráfico: Regina Kashihara Dantas Imagens da capa: Dover Tangará, em fotos de Eduardo Rascov; Roda gigante, de Piotr Ciuchtaj Imagems internas: arquivo Trupe Tangará, Eduardo Rascov e www.sxc.hu End.: Rua Santo Antônio, 446, Cj. 33, Bela Vista São Paulo SP | CEP: 01314-000 Tel.: (11) 6729.0739 Site: www.terceiramargem.com E-mail: contato@terceiramargem.com ISBN: 978-85-7921-019-8 © Terceira Margem Editora 2009 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou armazenada, por quaisquer meios, sem a autorização prévia e por escrito da Editora e do autor. Esse projeto foi realizado com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo – Programa de Ação Cultural – 2008 Apoio: ASFACI – Associação de Famílias e Artistas Circenses

Rascov, Eduardo O filósofo voador / Eduardo Rascov. -- São Paulo : Terceira Margem, 2009. 160 p. ISBN 978-85-7921-019-8 1. Romance brasileiro. I. Título. CDD 869.93 Índice para catálogo sistemático I. Romance : Século 21 : Brasil


a Nina e Mariana

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Margarida Mafra Rascov (1930 - 2002) in memorian

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“Um artista do trapézio – como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens – tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio” Franz Kafka “Primeira Dor” in Um artista da fome (Companhia das Letras)

“Nosso passado inteiro também vela atrás de nosso presente, e é por ser antigo, profundo, rico e pleno que o eu tem uma ação verdadeiramente real. Sua originalidade vem de sua origem.” Gaston Bachelard

“Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora” “Outrora Agora” Fernando Pessoa



Advertência Não estou entre aqueles que acreditam na objetividade jornalística. Esta é uma obra de ficção, embora baseada na memória de fatos verídicos contados por personagens de carne e osso. Este livro não é a biografia de um grande artista, mas a história da busca pela verdade de um habitante das ruas de São Paulo. E pela boa forma de narrá-la.

O autor

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Capítulo 1

Deus é Fiel Conheci o Filósofo na Moira, sentado no canteiro ao lado da entrada do templo da Igreja Renascer. O Filósofo chegara ali guiado apenas pelas pernas. O coco seco de planos. Terra Prometida, não era. Terra fofa, planta nenhuma nascia ali. Pendia a placa Deus é Fiel um pouco acima da cabeça dele. As pessoas lá dentro entoando no órgão elétrico baladas a Deus e o Filósofo sereno na calçada, um rabicho de sorriso nos lábios. Parecia um índio repousando, o Filósofo. Pele cabocla, cabelos negros, grossos, longos e lisos. Dias a fio o observei. Morador de rua, não parecia frágil. Embora não trocasse de roupa nem tomasse banho, não perdia o porte. Que jeans surrado, que camisa puída! Uma dignidade distante vestia seu corpo magro e o protegia. Dava-lhe viço ao rés do chão. Não estava sozinho, o Filósofo. Vivia a seu lado o gorducho Pedro, de ar bonachão e soneca. Enquanto o Filósofo permanecia atento aos passantes, às vezes pescando um para conversar, Pedro dormitava sentado, dobrando o corpanzil meio sem jeito, perfazendo quase 90 graus. Torto. Ninguém jamais viu Pedro deitado, pernas estiradas e a enorme barriga para o alto. Preferia moldar a bunda na pedra, equilibrando-se sonolento no ar. Durante o dia Pedro cochilava em silêncio. À noite, saia revirando os amontoados de lixo produzidos pelos escritórios do bairro de Pinheiros, fuçando nos cata-entulhos das reformas dos sobrados, recolhendo papelões, tecidos, roupas, cobertores, malas velhas, objetos. Como vez por outra era assaltado por um bando de vagabundos, que levavam os troços, Pedro tinha sempre muito trabalho a fazer. Certo dia, ao me ver passar voltando do escritório, o Filósofo disse alto e bom som, em tom de pilhéria: “não posso ver defunto sem

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chorar”. Parei imediatamente embaixo da placa Deus é Fiel. Seria eu o defunto? O Filósofo sorriu cúmplice. “É que a gente passa a vida inteira trocando de problemas”, continuou, algo enigmático, estendendo-me as mãos. Acedi. Nunca havia cumprimentado um homem de rua antes e fiquei pensando se deveria lavar as mãos depois. O que ele estava querendo dizer, quem afinal era o morto-vivo: este homem à minha frente, anônimo e maltrapilho, habitante das extensões livres das calçadas, ou esse sujeito carregado de circunstâncias que sou eu? Se o plano dele era travar o primeiro contato comigo, de maneira favorável, através de uma estudada abordagem, conseguiu. Mas não forçou a barra. Deixou-me ir. Andei mais 100 metros matutando aquelas palavras. Parei diante de um sobrado cuja fachada fora recentemente pintada de laranja. Havia um portão com grades ali. Notei que o cadeado era grosso e abraçava ferros. Abri. Subi os 10 degraus que ladeavam a construção e entrei em minha casa, na Moira. Nos dias seguintes o meu caminho da roça ficou mais interessante. É característica do homem de rua posicionar-se em qualquer lugar, hoje aqui, amanhã ali, adaptando-se com desenvoltura às franjas do território. Melhor chamá-lo de bunda vagante do que de vagabundo. Até então vivia cercado de bundas vagantes, espalhadas nas superfícies, nos desvãos, nas quebradas, que me pediam dinheiro. O Filósofo não saia do lugar. O Filósofo nunca me pedia nada. Conversávamos na ida e na volta do meu trabalho. Um dia me confidenciou temer o sumiço completo dos pobres nas ruas. Haveria uma máquina de triturar gente, como a de moer carne do açougue, que se incumbiria de expulsar os humildes de seus refúgios, deitando-os na sarjeta. O Filósofo jurava que muita gente fazia parte dessa Engrenagem, “de donos de conglomerados comerciais a gerentes de loja, de banqueiros e homens de governo a operários e camelôs, de aplicadores de grandes ou pequenos golpes a padres, pastores e bons samaritanos”. Segundo ele, uma rede de assistência social que incluiria as igrejas se encarregava de fornecer aos desditosos uma gororoba tão pesadona que dava um nó nos intestinos, imobilizando-os pelo resto do dia. Não era possível fugir da Engrenagem. “Com o vento que bate 10


o concreto e a chuva que rasga o ar, o mendigo acaba subsumido nos vãos de viadutos, nas bocas-de-lobo, nas galerias através dos bueiros”. O Filósofo me confessou que um dia planejava abreviar tudo isso, pulando no Rio Pinheiros e nadando até onde der. Aquele homem ao pé da igreja passou a ser para mim um bundapensante, um Filósofo. Era meados do ano de 1999 e aquelas bobagens sobre o milênio dominavam o imaginário. Entendi por que ele ocupara aquele ponto, estrategicamente situado em frente ao templo evangélico. A Engrenagem teria que esperar. Tão cedo, não iriam ter coragem de expulsá-lo dali. Ficava a 70 metros de uma casa católica mantida pelo setor carismático da Igreja, que lhe oferecia a gororoba todo dia de manhã. A fachada pintada de azul, a veneziana da mesma cor e a porta de ferro dessa casa escondia um ambiente mal-iluminado e semi-vazio em seu interior; quem enfiava a cabeça pela porta via algumas cadeiras dispostas, a mesa avulsa, a sala limpa mas sem toque de mulher. Aos fins-de-semana, durante o dia, podia-se ouvir cantorias religiosas na casa. À noite, neste mesmo recinto, grupos de drogados, fumantes, viciados em sexo, consumidores compulsivos e mulheres que amam demais se revezavam ali. Discutiam a vida e se armavam de humildade para dar os 12 passos. Aos sábados e domingos os sem-sem sumiam da casa de apoio católica da Moira, não por que eles queriam, mas porque não lhes era servido nada. Daí sim ficavam sem lenço, sem documento, sem teto, sem comida. A escada de mármore em curva dava acesso ao porão. Durante os dias úteis, era lá que os sem-sem comiam e tomavam banho. Teto baixo, poça d’água, parede descascada. O Filósofo preferia ficar semanas sem tomar banho a se expor naquele lugar. Só se banhava e barbeava quando pintava algum programa diferente. Daí estreava uma muda de roupas nova, capturada da trouxa de doações. Não importava o que fosse, caia-lhe bem – sua atitude era naturalmente nobre. O Filósofo plantara a bunda debaixo da placa Deus é Fiel, no canteiro sem planta ao lado da entrada do templo Renascer em Cristo da rua João Moura, em Pinheiros. Chamou o território de Moira, “a sua Moira”, como se fosse uma mulher. Desde que se estabelecera 11


ali, aos poucos, foi-se transformando numa referência para os semsem que passavam a caminho da Casa de Apoio. Pedro foi o primeiro a descobri-lo. Haviam conversado na fila do rango. Como fazia com todo estranho que insistia em saber suas razões para estar na rua, Pedro contou ao Filósofo que a vida toda trabalhara como marceneiro. Ao falar isso, o Filósofo notou que Pedro inchava-se de orgulho. Nos últimos anos empregara-se na firma do irmão, um cara que tinha dado sorte na vida. Ia numa boa na empresa familiar do mano, embora o salário às vezes atrasasse. Mas de repente algo aconteceu que ele não esperava: o irmão de Pedro deu um golpe na praça, não pagou credores, bancos, fornecedores, impostos e funcionários. E sumiu. Pedro estava preparado para tudo na vida, menos para isso. Deu um nó no intestino e na alma.. Ficou seis meses trabalhando sem receber salários até cair a ficha. Desse jeito, como poderia voltar para Minas e reencontrar a mulher, os filhos, a mãe, os velhos amigos da família? Seria uma humilhação, resmungava. O Filósofo entendeu. Explicou-lhe que aquele episódio o fez parar no tempo, que todos os homens de rua estão parados no tempo, mas que o tempo não pára. O Filósofo fez questão de dizer que compreendia a situação de Pedro e que iria ajudá-lo a voltar para casa com dinheiro. Pedro ficou encantado com o palavreado do Filósofo e resolveu não sair mais de perto dele. Sentia que finalmente encontrara alguém. Um dia Pedro voltou de suas andanças noturnas com um animalzinho no colo. Um filhote de cão de uns três meses. Jogou-o nos braços do Filósofo. “Você gosta do Paulo?”, disse para mim na minha volta da Fundação. Gostei da novidade. O amor incondicional de um cachorro vai fazer bem a eles, pensei. O Filósofo, que raramente abandonava o posto, agora caminhava com passos firmes até a padaria. Com Paulo no colo, o Filósofo pedia leite e miolo de pão para o inocente. Seu pelo fino era bege claro, salpicado de manchas brancas. Como raramente tomava banho, Paulo atingia uma tonalidade um pouco mais escura. O Filósofo gostava de dizer que o animal tem cor de burro quando foge. O vira-lata cresceu rápido e pimpão, o rabo alegre para quase todo mundo. Só rosnava para os catadores de lixo 12


uniformizados, talvez intuindo que eram rivais de seu dono. Tornou-se inseparável de Pedro. O Filósofo, quando contava algum caso, costumava iniciar assim: “Estávamos Pedropaulo e eu aqui sentados embaixo da placa Deus é Fiel quando...” Pedro não era de muitas palavras, mas quase todo dia, na boca da madrugada, acordava o Filósofo para contar a mesma história, de como foi logrado pelo próprio sangue. E Pedro voltava a sentir o alívio da compreensão. Não que eles não discutissem. O Filósofo queria impulsioná-lo para a vida novamente, mas Pedro permanecia patinando. Lá pelas tantas o Filósofo se tornava loquaz, gesticulando com os braços e os pés, numa espécie de dança “para não enferrujar”, como dizia, argumentando que não se deve ter medo da realidade. Mal sabia o Filósofo, mas um dos motivos de Pedro não sair dali era justamente por não querer abandoná-lo. Nos dias em que o Filósofo entregava-se à depressão e perdia a hora da comida por não ter forças nem para caminhar até a Casa de Apoio, era Pedro quem se apressava a descolar uns restos de carne no Paulista Grill da João Moura com Rebouças. Voltava estabanado oferecendo nacos de churrasco para o amigo prostrado. Fazia isso com tanto entusiasmo que o Filósofo não tinha coragem de recusar. E assim outros sem-sem iam sendo tocados pelo Filósofo; havia dias que vários formavam uma roda em torno dele, enquanto esperavam dar a hora da bóia. O Filósofo orientava quando era possível, sugeria, aconselhava. Quando não sabia o que falar, inventava, contava “causos”. A alguns encaminhava para pequenas resoluções da vida prática de um homem de rua. “Você tem que tirar uma cópia da sua identidade, porra, não conhece o Poupatempo da Sé, onde a cidade nasceu?”, dizia para um. “Vá à Santa Casa de Misericórdia da Santa Cecília”, dizia a outro que tossia feito cachorro, “há uns 500 anos ela ajuda gente fodida como você”. Mas principalmente ouvia. Notei que seu círculo de amizades aumentava a cada dia. Agora incluía os que ele chamava de com-com. Um dos que passou a parar ao pé da placa Deus é Fiel era Fernando Mangariello, da Editora Alfa-Omega. Incorrigível comunista de carteirinha, em suas conversas com o Filósofo, 13


Fernando lamentava o fato de a humanidade ter perdido a chance de ser gerida exclusivamente pela razão. “No socialismo, pregava, você não estaria nessas condições”. Dizendo-se socialista, o Filósofo entabulava ruidosa discussão com o velho editor sobre os caminhos da humanidade. — Meu pai gostava da Rússia. Ele era um comunista meio índio ou um índio meio comunista, sei lá. Acreditava que um dia seria possível organizar o mundo. Engraçado que ele era maçom também. O velho nunca ria e estava sempre alerta. Morreu frustrado, coitado. Meu pai e o mundo eram inimigos irreconciliáveis. A vida pesava, ele carregava um fardo enorme nas costas. Dizia que tudo o que a gente fizesse, até as mínimas decisões, era como se toda a humanidade fosse fazer o mesmo. Puta responsa! Não sei se é por causa dele, mas para mim as coisas da vida que vocês chamam de normal não valem muito. Dinheiro, mulher, filho, deus, emprego, casa – tudo isso não troco por uma manhã de sol na calçada da Moira. — Mas o homem não pode viver isolado, ponderou o editor, já querendo arrematar a necessidade de união entre os povos e a solidariedade internacional. — É verdade. Eu, por exemplo, só preciso de quatro amigos, respondeu o Filósofo, olhando-o de viés. Para me levar ao cemitério. Cada um pegando uma alça do caixão. Se houver um quinto, terei que organizar um revezamento, completou rindo melancolicamente. O Filósofo gostava de proferir sentenças solenes, como quem refletira muito antes de falar. Era como se ele tivesse anotado num caderninho mental uma coleção de provérbios, frases feitas e lugares-comuns, os quais usava com pertinácia, revitalizando-os. O Filósofo se definia semi-comunista e quase ateu. Mas nos bate-papos com o pastor da Renascer em Cristo, Deus voltava a ocupar posição central em seu discurso. É que o Filósofo reconhecia a coerência dos argumentos no interior de campos irreconciliáveis. Claro, quando percorria passo a passo idéias em conexão, construía um edifício mental que lhe deixava a alma pacificada. Para puxar a sardinha para o seu lado, o editor comunista deu-lhe uma espécie 14


de biografia política-intelectual de Jacob Bazarian, ex-deputado soviético pela Armênia, imigrado ao Brasil. O pastor deu-lhe a Bíblia. E o Filósofo passava suas tardes a ler, em uma mão a Bíblia e na outra o livro Por uma Sociedade Melhor – Para Onde Marcha a Humanidade, do armênio. — A humanidade marcha na Moira, sussurrou um dia o Filósofo ao me ver passar numa sexta-feira em que saí mais cedo da Fundação. Senta aqui do meu lado, quero mostrar uma coisa. Acomodei-me meio constrangido debaixo da placa Deus é Fiel. Havia limo e musgo no beiral, os humores dos homens que ali moravam, mais as chuvas, gerando formas de vida. O Filósofo puxou sorrateiramente o tal livro e o exibiu como se fosse uma edição clandestina e valiosa. Era a primeira vez que me posicionava no mesmo ponto de vista do homem de rua. Não estava mais virado para ele, nem para as paredes da igreja Renascer. Via a rua de um ângulo novo. Nas calçadas ou pisando o asfalto o fluxo incessante de pessoas, muitas delas familiares para mim. Mas agora as via de um modo estranho, como se eu não mais fizesse parte do mundo delas. O Filósofo foi nomeando-as, classificando-as por categorias: primeiro vinham “os que ficam atrás de escrivaninhas”, depois a “gente que acredita em duende da praça Benedito Calixto”, as “cabeleireiras faladeiras”, as “moças de pernas finas que sonham em ser modelos”, os “estudantes que não me vêm”, os “solitários recolhendo em sacos plásticos o cocô do totó” e, finalmente, os “garotos e garotas sem pai nem mãe que vivem pela rua e à noite dormem na Moira, no abrigo da Igreja Católica”. Ainda permanecia imerso na sensação de estranhamento, quando o Filósofo me interrompeu: — Se eu pudesse, congelava esse momento, dava um “pause” na fita do videocassete. Você não tem vontade às vezes de cristalizar um instante para sempre, como esse que acaba de passar, um pedaço da eternidade? — Acho que o momento escapou-me pelos dedos, respondi sem bem entender o que o Filósofo estava querendo dizer. Sabia de algumas pessoas que tentaram fixar o devir na Moira. Uma delas foi o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que mora por 15


aqui. Ele publicou no jornal O Estado de São Paulo uma bucólica crônica sobre um punhado de fotógrafos amadores que quiseram captar a essência do bairro. As fotos foram expostas nas paredes da padaria CPL. O texto de Brandão falava da sobrevivência de ilhas comunitárias na megalópole e descrevia personagens que se relacionavam em uma pequena parte da rua João Moura – justamente a que o Filósofo escolheu para ser a sua Moira. Eis seu Joaquim, padeiro português da CPL, ao mesmo tempo simpático e desconfiado; eis Wagmar, jornaleiro janota e boa-praça da esquina da rua Artur de Azevedo com a João Moura; eis os velhinhos da minúscula sapataria ao lado da CPL, inebriados não se sabe se pelo amor ou pelo cheiro de cola; eis o pintor alto, barrigudo e calvo – apesar de ostentar longas melenas desgrenhadas emoldurando seus óculos fundo de garrafa – que adora armar o cavalete na calçada do seu ateliê, enquanto dá sentidas chupadas no charuto. O texto foi finalizado descrevendo o encontro do autor com um homem de rua na primeira hora da manhã. O cronista vinha da CPL com um saco de pão recém-assado na mão. O andarilho avança no sentido contrário e, após um suspiro, comenta: “ah, provavelmente esse cheirinho de padaria há milhares de anos sai dos fornos humanos...” Quando lhe é oferecido um pãozinho francês quentinho, o homem delicadamente recusa. De seu nicho existencial, o Filósofo acha que cronistas e pintores não captam a realidade dinâmica. “É necessário ser hóspede da duração para entender o que se passava na Moira”, disse-me. — Cristalizar o instante não é dar um tiro no próprio pé, meu Filósofo. Não estaríamos nos condenando a uma eternidade modorrenta, afinal, tanto o meu presente quanto o seu não deve ser tão bom assim que mereça ser eternizado... — Ora, meu amigo, eu daria qualquer coisa para apreender realmente o instante que acaba de passar. Queria conhecer a verdade das pessoas, da vida, do mundo – a Verdade – nem que fosse apenas por um momento... — É querer muita coisa, Filósofo. Uma vida não basta para tanto. 16


Essa vontade de ver a Verdade nem que seja apenas por um instante motiva desde sempre filósofos e homens santos. O Filósofo me contara que há muito tempo uma mulher inteligentíssima lhe dissera que a leitura dos principais pensadores da humanidade havia provocado nela um efeito amargo, como se ela tivesse tomado uma poção que a deixasse extremamente lúcida e realista, mas irônica e pessimista. Um dia ela lhe escrevera que eram justamente as suas “grandes asas”, como ela chamava a capacidade de sonhar, que dificultavam o andar em terra firme. Com ela o Filósofo aprendera que o passado, o presente e o futuro estão todos unidos e são a mesma coisa. Juntos eles formam um tempo total que pode apenas ser intuído – me perguntei se não é essa iluminação que meu Filósofo procurava pelas ruas de São Paulo. Nesse dia, um homem e uma mulher portando instrumentos musicais se aproximaram, o que imediatamente interrompeu minhas reflexões. Percebi que o Filósofo agitava-se. Do lado direito da Igreja Renascer em Cristo existe um estacionamento com o nome óbvio de Paraki. Ali estacionam seus carros os músicos Sandra Peres e Paulo Tatit, que compõem e cantam para crianças. A dupla montou o estúdio Palavra Cantada no primeiro andar do prédio cujo térreo é ocupado pelos adeptos da Renascer. Circulavam por ali músicos intelectualizados, como Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik. Saindo do estacionamento, Sandra e Paulo tinham que passar por nós se quisessem entrar no Palavra Cantada. Foi então que o Filósofo começou a entoar um acalanto tirado de algum lugar do fundo de sua memória. Sandra e Paulo pararam surpresos com a delicadeza da toada. “Papai cantava ao violão para mim, mas essa composição é da minha irmã”, disse o Filósofo com a voz enternecida de um menino perdido no tempo. Seus olhos vagavam por um, por outro, por mim, pelas pessoas que passavam pela rua, até se fixar numa pomba cinza pousada numa van. “Você pode cantá-la de novo”, pediu Sandra com voz de seda, provavelmente não querendo arrancar aquele pobre coitado do torpor nostálgico em que se encontrava. O Filósofo, agora um tom acima e com mais vivacidade, cantarolou: 17


“Na minha casa tem um relógio Na tua casa tem também Papai me disse que sem relógio Nenhuma casa funciona bem Tic tac, tic tac, tic tac sem parar O relógio marca tudo Hora do almoço e jantar Na minha casa tem um relógio Na tua casa tem também”

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Capítulo 2

Circomundo Como alguém podia viver assim ao deus-dará, largado na sarjeta feito saco de lixo, e ao mesmo tempo manter-se sensível e delicado. Quem era esse homem cujo corpo moldava-se ao duro do concreto, cativo da mais extrema miséria, mas a alma distribuía ouro velho e bom? Até este momento, o Filósofo havia se esquivado das minhas perguntas mais diretas, quando, onde e por quê, não dizia nada do seu passado. Refugiava-se no mistério. Os bundas-vagantes que faziam volume na rua, em torno da minha casa me incomodavam. Havia dias que saia para trabalhar e tinha que pular o corpo de um ou dois deles, que dormiam e amanheciam rente ao meu portão. Em silêncio, espalhados, sei que esperavam a hora de bater o rango oferecido pela igreja. Compunham a paisagem urbana de um elemento mole, que chora, come e defeca. O tijolo, a pedra, o cimento e o piche reclamavam. Não queria rechaçálos nem aceitá-los passivamente. Sofria com a calosidade n’alma que eles me provocavam. Deve ser por isso que me aproximei do Filósofo, queria entendê-los, encontrar uma maneira de lidar com eles. Mas o diabo era que o meu Filósofo apenas emitia enunciados com pareceres sobre assuntos diversos, muitas vezes calcados em ditados e lugares-comuns. “Tem gente que gosta dos olhos, tem gente que gosta da ramela”, dizia. Seus ditames me deliciavam, mas não me satisfaziam.

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— Quem é você, afinal, arriscou a perguntar Sandra Peres, logo depois que o Filósofo cantarolou o acalanto de sua infância. Paulo Tatit olhava enternecido e comentou: — Sua canção me fez lembrar uma das nossas composições, aquela em que uma boneca reclama da sua dona, que cresceu e a abandonou. Sim, quem é você? — Eu sou aquele que não resta a menor dúvida, limitou-se a responder o Filósofo. — Meu Deus, não resta a menor dúvida de quê? perguntei, pegando carona na curiosidade do Palavra Cantada. O Filósofo desconversou novamente: — Eu sou aquele que perdeu tudo, menos a razão. Parecia um jogo para aumentar minha curiosidade. Sandra e Paulo sorriram e, desculpando-se por terem muito que fazer, adentraram o estúdio. Assim que se viu a sós comigo, o Filósofo lançou-me um olhar maroto e me surpreendeu com um pedido e um convite. Sentado no ponto fixo da Moira, embaixo da placa Deus é Fiel, ouvi: — Me tire daqui, por favor. Isso está me pesando demais. A placa Deus é Fiel pode me cair na cabeça a qualquer momento. Vamos conversar em outro lugar. O conteúdo literal de suas palavras que sugeria desespero contradizia o tom de voz, tranquilo e seguro. Como o Filósofo viu que minha cara era de espanto, denunciando paralisia, foi tomando as providências: — Me leve até o Ponto Chic do Largo do Paissandu, que eu lhe conto uma ou duas coisas. Amanhã é sábado. Você me encontrará aqui hoje à noite de banho tomado e de roupa nova. Venha me pegar. Certo. Mas antes voltei para casa. Estava seco de curiosidade. Era a primeira vez que via o Filósofo ser peremptório. Passei o resto da tarde largado em meu catre. Gosto dessa palavra – catre – me faz imaginar a cama pendendo pela parede, suspensa por grossas correntes de ferro. Gosto de me imaginar vivendo numa solitária. Certamente entoar a canção infantil composta por sua irmã o tirou da letargia. À noitinha encontrei o Filósofo de barba escanhoada, conjunto jeans 20


alguns números acima dele, calças, camisa e jaqueta, cabeleira negra escovada para um lado, um par de tênis visivelmente grande. Doações da casa de apoio, no porão da qual ele se banhara finalmente. Que figura, pensei. Notei em sua cara outras mudanças além da limpeza. Normalmente, ao olhar os traços do seu rosto, o côncavo do queixo levava à silhueta dos lábios, que davam no ancho das bochechas. O olhar era então conduzido ao adunco do nariz até ser capturado por íris negras muito vivas, que enxergavam do semi-serrado dos olhos. As fossas nasais abriam e fechavam, produzindo um rumor contínuo. O Filósofo parecia estar sempre pronto para analisar novas questões, que poderiam ser oferecidas a qualquer hora. Para minha surpresa, naquela tarde de sábado, encontrei o Filósofo relaxado, o olhar vago, a comissura da boca abandonada, as fossas nasais em silêncio. Veio ao meu encontro acomodando o corpo à roupa, alongando pernas e braços, não sem tropeçar. Há semanas não abandonava a Moira e passava a maior parte do tempo exatamente no mesmo ponto, embaixo da placa Deus é Fiel. Entrou em meu carro meio sem jeito e se desculpou por bater a porta com força. Estava alheio, deixando-se conduzir pela primeira vez depois de muito tempo. No caminho, o Filósofo olhava as calçadas e construções da Teodoro Sampaio e da Consolação como quem acaba de sair da prisão e revê, não os prédios, árvores e postes de ruas familiares, mas a paisagem interior e o território da alma que pensava perdidos para sempre. Praça Roosevelt, Xavier de Toledo, Av. Rio Branco, rua 7 de Setembro. Quando eu era pequeno, meu pai me levava para passear no centro. Praça da República, Viadutos do Chá, Santa Ifigênia, Vale do Anhangabaú, rua Direita, Sé. Ele dizia: “aprenda os caminhos porque um dia você será office-boy, meu filho”. Teatro Municipal, Av São João, Largo do Paissandu. Chegamos no Ponto Chic e entramos como quem não quer nada, escolhemos a mesa e esperamos o garçom. — Dois baurus e duas coca-colas, fez o Filósofo, resolvendo o assun­to dos comes e bebes e partindo logo para o que interessa. Nem parecia que o homem de rua ali era ele e que, portanto, deveria 21


estar esfomeado, pronto para devorar tudo o que lhe fosse oferecido. Lá fora, o Largo do Paissandu escorria gente. Meninos sem-sem brincavam na mãe negra de bronze que amamentava atrás da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Prostitutas tomavam assento nos bancos de concreto. As luzes e os neons esmaecidos dos letreiros e cartazes do Cine Olido anunciavam um festival de cinco filmes pornôs por apenas cinco reais. No comecinho da São João, um porteiro advertia aos gritos “o show de striptease já vai começar!”. — Olha, o Dengoso... o Filósofo pronunciou para si mesmo como quem reconhece um velho amigo. — O que você disse? — Você está vendo aquele relógio sem ponteiros pendurado lá na parede. Olha bem que você vê escrito nele a palavra “Dengoso”. Pois é, os ponteiros devem ter quebrado de tão velhos, mas o relógio continua lá. E o nome dele também. O velho Dengoso... Obviamente, eu não estava entendendo nada. O Filósofo cada vez mais reflexivo estendeu em volta de si um manto invisível de nostalgia. De que adiantaria interromper tal devaneio, insistindo em perguntas banais, tais como quem é esse Dengoso ou quem é você. O Filósofo entrara em outra esfera. Decidi esperar. Mandei ver no bauru. O pão estava crocante, levava alho e pepino picado, cobrindo tudo uma mistura secreta de queijos derretidos que fazia a fama da casa. A noite acabara de cair e os bebedores de cerveja e de uísque começavam a ocupar seus lugares. Uma mulher de uns cinquenta anos, cabelos grenás esparramados da testa aos ombros, sentou sozinha na mesa ao lado e olhou para mim. Portava uma jaqueta preta de lona brilhante e por debaixo algo que devia ser um vestido azul marinho com uma longa fenda no lado. Um lenço da cor do cabelo ia do pescoço ao dedo mindinho da mão esquerda. Botas e meia-calça azul clara completavam o figurino. Ela voltou a me olhar, primeiro de soslaio, depois frontalmente, e continuou assim por um bom tempo. A boca sorria, revelando restaurações escuras nos dentes. O que essa figura quer comigo? O Filósofo veio salvar-me: 22


— Meu amigo, Dengoso foi um palhaço muito esperto, um dos poucos que conseguiu enriquecer na profissão. Tornou-se dono de circo. Ele costumava vir aqui e ficar exatamente nesta mesa, fechando negócios... Como ele trazia gente famosa para cá, o dono do Ponto Chic escreveu o nome dele no relógio para homenageá-lo. Eu estava no auge... Essas coisas o Filósofo foi me contando como quem dá baforadas num cigarro. Tragava o fumo da memória. Da minha parte, eu me sentia não só aliviado por estar livre da madame grená, mas fascinado, não propriamente com a história, pois ainda não a conhecia, mas com o cenário que o Filósofo escolhera para me contar a sua vida. Ele tossiu e continuou: — Você deve estar se perguntando quem sou eu e por qual motivo estamos aqui. Assenti com a cabeça. — Pois isso não é mistério nem segredo, todo mundo que frequenta o Café dos Artistas, na galeria aqui em frente – e nisso fez um gesto indicando o outro lado da avenida São João – me conhece. Eu sou o Dover Tangará, minha família é das mais conhecidas no mundo do circo, os Tangarás. Você deve ter ouvido falar. Não tinha. Mas ele nem me deu tempo de responder e continuou: — Aprendi a ser trapezista desde criancinha, eu, meus irmãos e meus sobrinhos, éramos conhecidos como os volantes voadores, a maior trupe de trapezistas que o Brasil já conheceu. Você sabe o que é uma família tradicional de circo? Eu não sabia. A palavra “tra-di-cio-nal” saiu-lhe vagarosa e vibrante do peito, como se ela fosse uma senha que imediatamente o recolocasse num universo fechado. Dito isso, o Filósofo soltou um sorriso de travessura, seguido de um longo silêncio. Ele estava sereno agora, o corpo ereto como numa meditação. Feito quem mergulha um balde num poço escuro e profundo e maneja com habilidade o sarilho, puxa a corda e resgata um tesouro esquecido, o Filósofo me oferecia seu passado com a auto-suficiência dos grandes artistas. — Eu não sou apenas um anjo caído, um homem de família tradicional de circo que voava, mas hoje vive no chão. Não. Eu sou 23


muito mais. Eu sou o próprio circo! Minha derrocada começou com a do circo e vice-versa. — Não entendi. — Você nunca ouviu falar do Gran Circus Norte-Americano, um circo moderno estacionado na cidade de Niterói, que apresentava um espetáculo cheio de inovações? — Não, nunca. Sua voz agora saia tonitruante, como a de um locutor daqueles cinejornais de antigamente. Percebi que o Filósofo tinha uma memória fotográfica. Parecia o Repórter Esso. — O Gran Circus Norte-Americano pegou fogo na rua Feliciano Sodré, em 17 de dezembro de 1961, uma ensolarada tarde de domingo. Matou muita gente, mais de 500 pessoas, a maioria criancinhas. Era quase Natal. Tinha 3000 pessoas embaixo da lona quando ela desabou em chamas. Naquele tempo enceravam a cobertura com parafina, para durar mais e não deixar a água penetrar. Foi a maior tragédia circense do mundo – contou mecanicamente, como se tivesse repetido essa história mil vezes. Em seguida, o tom de voz se abrandou: — Eu era pouco mais que um menino, mas meus irmãos compraram a revista O Cruzeiro. Ainda vejo a foto de duas páginas no meio da revista. Nunca mais me esqueci. Não havia corpos queimados ali, nem animais, nem lona, nem artista de circo. Só um punhado de sapatinhos de criança calcinados pelas chamas, depositado sobre cinzas no picadeiro. Entre dois mastros tombados, uma mamadeira. Aquilo me impressionou muito mais. Se fosse hoje, os corpos destruídos das crianças mortas no incêndio estariam nas primeiras páginas e na televisão. — Imagino que essa desgraça tenha abatido bastante a sua família. — E como! A gente pensou em desistir, abandonar a lona. Os circos passaram a ser mal vistos. Uma puta crise. Tinha gente que achava que seria o fim. Mas o circo sempre ressurge das cinzas. — Como pôde acontecer uma coisa dessa? disse, me comportando como um repórter da obviedade. 24


— A revista O Cruzeiro de 6 de janeiro de 1962 trouxe 15 páginas sobre a tragédia. Vi meus irmãos lerem aquilo chorando. Quem primeiro percebeu o fogo foi a trapezista Antonieta Stevanovich. Ela avisou o portô Santiago Grotto, mas Vicente Sanches, o outro volante, já tinha voado com o capuz preto na cabeça. A gente chama esse número de voo da morte. Deu a volta sobre si mesmo e pegou o trapézio. Quando tirou o capuz, já na banquilha, viu-se sozinho nas alturas. Olhando para baixo, percebeu Antonieta na rede fazendo sinais apressados para ele. Antonieta esperou Sanches descer do trapézio para começar a gritar “fogo”. Não morreu nenhum artista do circo. À sua maneira, o Filósofo entrelaçou sua trajetória pessoal à atribulada história do circo brasileiro. O que ele estava querendo me dizer, só depois entendi, é que o artista de circo está marcado a ferro e sangue e condenado a viver sob o signo da tragédia. A tragédia de Niterói abalou a classe circense. Muitos circos fecharam ou tiveram que ser vendidos. Foi o começo da derrocada. O artista circense não podia abandonar a lona de circo, sob pena de fenecer, nem o circo podia vender sua alma tradicional, sob pena de acabar na rua. Sim, entendi a mensagem. O que nem eu nem o Filósofo sabíamos naquele momento, pois só fui pesquisar mais tarde, é que justamente nesse terreno calcinado de Niterói, onde o circo incinerou tanta gente inocente, um homem se instalou logo em seguida e começou a cultivá-lo. Para ele, a tragédia foi como um chamado. A Graça se instaurou no picadeiro da desgraça. Esse homem plantou flores nesse lugar arredondado e o chamou de Circomundo. Morou lá por quatro anos consolando os parentes das vítimas. Depois, saiu a escrever nos muros da cidade as mais belas mensagens de amor que o Rio de Janeiro jamais vira. Ficou conhecido como o Profeta Gentileza. Avançamos a noite conversando naquela mesa de bar. Por fim, no início da madrugada, deixei o Filósofo em seu ponto na Moira, ao relento, e rumei para a minha casa. O trapezista-pensador ficou só na imensidão escura. Pedropaulo dormitava sentado e não acordou. Largado aos pés de Pedro, o cão abanou o rabo sem se mover. À medida que me afastava, tive uma certa dificuldade para ver na penumbra o 25


Filósofo se acomodar no duro do cimento. Batia um friozinho. Ventava. Antes de abrir o cadeado do meu portão, resolvi espairecer andando. O contraste me doía. Por mais despojada que fosse a minha cela, lá pelo menos tinha um catre. Desci a avenida Rebouças, vazia àquela hora. Encontrei um posto de gasolina 24 horas. Apesar da luminosidade excessiva da loja de conveniência, que me provocava náuseas, entrei. Logo de cara achei um caderno universitário de 200 folhas pautadas, depositado entre outras coisas sem importância. Sua capa dura estampava um avião levantando voo ao alvorecer sobre um mapa estilizado. Trazia a inscrição hard cover em amarelo. Não me dizia nada especialmente. Comprei-o e senti um puxão na alma. Ao empurrar a porta de vidro escrito “push”, reparei no imenso caminhão tanque abastecendo o posto. O cheiro de gasolina impregnava o ar. Um simples palito de fósforo riscado sem querer mandaria tudo pelos ares. Sai dali rápido. Tinha muito que fazer. Queria anotar no caderno a história de Dover Tangará. Subi de volta a Rebouças e entrei à esquerda na Moira. Galguei as escadas e abri a porta da minha casa. Não era uma cela o que vi, mas uma sala, dessas que a gente chama de sala-de-estar, com sofá e tudo. Atravessei-a rapidamente e ganhei o quarto. Joguei-me na cama, o colchão nem duro nem mole, o travesseiro firme. Que catre que nada. Até criado-mudo tinha. Abri a gavetinha do criado-mudo (que nome estranho, criado-mudo) e alcancei uma caneta. Me pus a escrever um capítulo exclamação no hard cover.

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Capítulo 3

Hard cover: A história de todos nós Pois então meu Filósofo era um artista que nascera debaixo da lona de circo e vivera quase toda a vida nômade, pulando de cidade em cidade, emocionando, fazendo rir e levando sonhos para crianças e adultos! O que é a vida de um trapezista senão fazer piruetas no ar a custo de muita audácia, habilidade e confiança! E esse artista das alal turas vive hoje na sarjeta! Como decaíra tanto! Desde que o coco nhecera, quanto mais convivíaconvivía mos, quanto mais via ele ali, nana quela situação limite de homem de rua, quanto mais sabia dele, e era tão pouco o que eu sabia dele, mais aguçada ficava em mim a vontade de conhecer sua história. A história concreta de um indivíduo que hoje anda pelas ruas, mas também a história de todos os bundas-vagantes que andam pelas ruas. Em alguma medida, a história de todos nós, pois, o que é o nosso avançar em anos senão uma derrocada, o corpo a reclamar da posição na cama, o mole virando duro, o duro virando mole devagar até já não dominarmos mais a arte da locomoção. Se o espaço nos é retirado, resta-nos o Tempo! É quando lentamente as reminiscências da vida vão substituindo a própria vida, que vemos passar como um filme, na queda final.

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Capítulo 4

Domitilla Quase manhãzinha. Faria calor não fosse a aragem da madrugada. Havia a bruma na Moira, embaixo da placa Deus é Fiel. Envolvido por ela, Pedropaulo permanecia sentado em seu posto, em frente ao Templo Renascer, como se montasse guarda. O discípulo do Filósofo dormitava, balançava o corpanzil, curvava-se, mas não se dobrava. Ele nunca se deitava. O braço esquerdo de Pedro apoiava-se no carrinho de feira transbordante de trecos de andarilho. Uma corda tosca enlaçava Paulo pelo pescoço e o prendia ao carrinho. Escurinho ainda, um ou outro carro passava de farol aceso. Clarões matutinos pintavam atrás dos prédios. Podia até ser bonito, mas não era o horário preferido do Filósofo. O barulho de sacos pretos ou azuis caindo na superfície mole de outros sacos pretos ou azuis anunciavam o começo das atividades dos catadores de lixo clandestinos, que vasculhavam a porcaria para dela retirar o que seria vendido ou reaproveitado. Recolhiam e enfiavam no caminhão papéis, vidros e metais, máquinas de imagem e de som, trituradores de alimentos, aparelhos de lavar e passar, móveis e objetos de madeira, roupas e cobertores. Pedro admirava a habilidade dessa gente de empilhar sacos na carroceria. A mercadoria seria depois cuidadosamente separada no pátio da Cooperativa de Catadores de Papéis, que funcionava perto dali, embaixo do Viaduto Sumaré. Pedro observava com certa inveja. Como fazia invariavelmente toda manhã, cutucou o companheiro que dormia ao lado. — Ó, ó, óia, fez ao Filósofo, apontando o caminhão abarrotado. Dover sentou-se sem hesitar, as pernas ágeis, o tronco em prumo, os olhos alertas. Em seguida, comentou sem disfarçar o desdém:

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— Reviram e catam, reviram e catam. Esses homens parecem ratazanas... Mas, olha quem vem aí, a essa hora da manhã – exclamou, apontando com o dedo. Sou eu mesmo. Excitado pelas revelações da noite anterior, não consegui conciliar o sono. Apoiado no travesseiro, tentei escrever no caderno, mas percebi que me faltavam informações objetivas sobre o meu personagem. E forças. Precisava ansiosamente de um interlocutor, que me ajudasse a entender o que estava acontecendo. Pulei da cama meio sem ar e saí para dar uma volta. A minha idéia era beber um pingado na CPL, mas a padaria ainda estava fechada, o cheiro de pão francês nem impregnava o ar. Havia exagerado um pouco no chope de ontem, no Ponto Chic. A sensação leve de que ia me doer a cabeça, o buraco no estômago vazio, as pernas trôpegas e os sentidos exaltados me diziam: é, cara, é ressaca o que você está sentindo. Nada que uma aspirina, um café forte e um queijo quente não resolvessem. — E aí, Tan-ga-rá ? disse devagarinho, saboreando as sílabas do novo nome do Filósofo que aprendera na noite passada. — Tirando o mal, tudo bem. As coisas nunca estão tão ruins que não possam piorar, não é meu bom Pedropaulo? Comentou ao seu estilo recheado de lugares-comuns. Reconheci o velho Filósofo, que havia submergido diante dos meus olhos durante a conversa no Ponto Chic, na noite anterior, e cedido lugar ao artista de circo incompreendido. — Êee, fez Pedro, emitindo um som nasal fechado. O Filósofo continuou, apontando os catadores que se aproximavam. O cão começou a rosnar: — Vejam esses aí, reviram e catam, reviram e catam, de saco em saco na mão, mas não sabem o que procuram... — Pior que eles só aqueles lixeiros da prefeitura que estão vindo lá – disse, apontando para a avenida Rebouças, ao mesmo tempo em que me sentava ao lado deles, no canteiro embaixo da placa Deus é Fiel. De fato, depois dos catadores informais passaram os profissionais de luva, uniforme e xis luminoso no peito e nas costas. Automatizados, levantavam os sacos pretos ou azuis com as duas 29


mãos e os lançavam no caminhão. Não esperavam surpresas, não abriam os pacotes, não vasculhavam, não procuravam nada, não vacilavam, apenas catavam. O barulho do triturador e o cheiro de imundice que exalava do caminhão afastavam os passantes. — Gosto de te ver acordado assim tão cedo, meu chapa, Deus ajuda quem madruga. Daqui a pouco vêm me visitar umas pessoas que eu faço questão que você conheça. Empertigando-se, Dover proferiu essas palavras com a mesma autoridade de sempre. Apesar das revelações do dia anterior, continuava sendo o meu Filósofo. Fiquei contente em perceber que meu amigo não abandonara as velhas gírias nem as frases feitas. Sem dúvida, continuava o mesmo. De pé, Dover Tangará estirou para o alto os braços, depois se curvou e alongou as pernas. “Bom dia, dia”, saudou a manhã, com as mãos espalmadas para cima, como se esperasse que lhe derramassem benção. Normalmente, quando ouço as frases “faço questão que você conheça fulano” ou “ele tem tudo a ver com você, você vai adorar”, meu impulso é sair correndo. Os caminhos, ou melhor, as encruzilhadas de identificações não são tão previsíveis quanto as pessoas imaginam. Imediatamente penso que a imagem que alguém tem de mim nem de perto corresponde ao que sou, assim como a imagem do outro não corresponde ao que ele é, naturalmente. O mesmo acontece com as indicações de livros, “você tem que ler”, arrisca inutilmente alguém bem intencionado. Nunca sigo a recomendação. Mas desta vez, não. Realmente fiquei curioso em saber quem visitaria na sarjeta aquele anjo decaído. Resolvi esperar sem pressa. O clarão do dia foi pouco a pouco se impondo nos vãos entre os prédios. Me animou. Pedropaulo resolveu dar a primeira volta da manhã. A providência inicial foi soltar o cão. Em seguida, Pedro preparou-se para puxar pelo braço esquerdo o carrinho de feira, coberto por amarrações de caixas de papelão com coisas dentro. Transbordava. Como seus pertences só faziam aumentar a cada passeio, improvisara rodinhas em mais três embrulhos e, com uma cordinha, os amarrara um no outro 30


e por fim no carrinho. O que ia dentro desses embrulhos, ninguém tinha coragem de perguntar. Não sei se para proteção ou só para fins estéticos, abrira duas sombrinhas floridas, acopladas delicadamente no comboio. Para completar, o último vagão puxava uma sequência de vasilhas plásticas de refrigerantes de dois litros transformadas em carrinhos. Pedro deve ter aprendido essa técnica em alguma sessão de terapia ocupacional: por meio de incisões nas garrafas pets, tirou tecos da base e do pescoço do vasilhame. Nesses pontos, encaixou dois eixos em cujas pontas foram fixadas rodas de matéria plástica. Esses carrinhos de criança arrematavam a carruagem. Como o Templo Renascer é um pouco recuado na calçada, Pedro tinha espaço de manobra. Não deixei de admirar sua habilidade em fazer a curva e partir. Deslocavase feito uma locomotiva puxando trem. Livre, Paulo o acompanhou, não sem antes levantar a perna e fazer xixi na composição. Dover olhou para mim e sorriu compreensivo sob a placa Deus é Fiel. Do outro lado da rua, uma sibipiruna frondosa abrigava os pássaros da região, anunciando o dia. Menos as pombas, que ciscavam no chão. Aumentava o fluxo de carros, os faróis agora apagados. Passavam passos de pessoas apressadas. Um “cleque” veio interromper os acontecimentos. É que tentáculos movimentados por um motor agarraram firme uma caçamba e a depositaram na carroceria de um caminhão. Se alguém lá no lixão pensava em recolher alguma coisa de valor dessa caçamba, podia esquecer. Pedropaulo já tinha passado por ali. A retirada da caçamba deixou livre a visão. Os carros estacionados, o meio-fio, que o Filósofo chamava “meio-feio”, os muros das casas, o tapete da calçada, parecia que tudo formava uma passarela para a entrada de novos personagens. Lá vem eles, apontou Dover. — Quem? — Ora, não falei que tinha visitas? Deixa eu lhe apresentar meus amigos. Avistei um homem alto, de andar delicado, como se cuidasse para que os joelhos não fraquejassem diante do tamanho avantajado da 31


barriga e do peso da idade, que devia passar de meio século. O cavanhaque grisalho, os óculos de aro grosso e os olhos claros miudinhos lá dentro sugeriam uma pessoa inteligente. “Uma cabeça no corpo errado”, repeti mentalmente a frase de Dover sobre ele. Conhecia-o da padaria CPL. Toda manhã aquele corpo tomava assento numa das mesas de latão que o português estendia na calçada e a cabeça ficava fitando o nada por pelo menos quinze minutos. “Imagino que estou no meu sítio, em Ibiúna”, disse-me um dia com cara de paisagem. Essa era a primeira vez que eu o via andando, cabeça e corpo, e estranhava as dimensões de suas pernas. Com certeza não eram de um trapezista. Ao lado dele vinha uma mulher de mãos dada a uma criança de uns cinco anos. O Filósofo fez as honras da casa: — Você já deve conhecer o meu amigo “fabricante” de livros, Fernando Mangariello... Ao dizer fabricante, o Filósofo fez com os dedos gestos que indicavam aspas – “é que ele não gosta de ser chamado de “empresário”, me disse entre parênteses, com a mão escondendo a boca. Deu uma piscada e tornou a fazer aspas com o dedo, evidentemente provocando o outro, que se orgulhava de ser editor. Fiquei surpreso em saber que o editor e o Filósofo andavam trocando figurinhas. — E essa moça bonita é a Domitilla, disse-me o Filósofo. Continuando com suas provocações, completou: — Domitilla não tem o que fazer, por isso cismou de estudar a vida dos vagabundos. Dover sabia ser debochado. Era uma arma defensiva dos sem-sem diante do destino grosseiro que lhes coube. A rua lhe dava o direito de falar o que quisesse. — Homens de rua, Dover, corrigiu a moça com ar paciente e maternal. Ela o olhava como um discípulo olha seu mestre, mesmo reconhecendo suas falhas, exageros e jogos de manipulação. — Esse menino eu não conheço, ele não deveria estar na cama a essa hora? Apontou o Filósofo para a criança de mãos dada a Domitilla. — É o Davi, Dover. Você não sabe que eu tenho um filho? Ele queria muito te conhecer, por isso acordamos um pouco mais cedo e viemos de carona com o Fernando. Mas daqui a pouquinho, às sete 32


horas, vou ter que deixar Davi na Escola da Vila, no Butantã, onde ele estuda e passa o dia. Com seu cabelo aloirado e cortado a escovinha, camiseta branca e moleton, o menino só podia mesmo estar indo a uma escola. Por certo sua mãe o queria diligente e disciplinado, pois decidira matriculá-lo de manhã. Fiquei me perguntando se aquela mulher reclamava de acordar cedo, dar o café para a criança, aprontá-la e levá-la à escola todos os dias. — Você é que cuida da educação do menino, Domitilla?, puxei papo. — É. Ficou por minha conta depois que o pai partiu – disse sem esconder um travo de mágoa. Eu gosto da missão, mas falta com quem revezar. — Caprichar na educação é o melhor que você pode fazer por seu filho, comentou o editor com ar professoral. No futuro, ele não só te respeitará como radicalizará tuas opções de vida. Vê se pode, eu, que sempre fui um comunista independente, tenho um filho que se diz neo-anarquista! Observei o ar maroto de Mangariello ao dizer isso. Logo depois entendi a razão. É que ele engatilhava uma frase espirituosa, talvez uma das suas preferidas: — Deixa ele, ainda é jovem, depois aprende. Ser anarquista é como masturbação, pode ser bom, mas é insuficiente. Dito isso, soltou uma risada gostosa que agitou todo o seu corpo a partir da barriga, a ponto de forçá-lo a retroceder um buraco na cinta da calça. Notei que Domitilla gostou da piada. Seus gestos tornaram-se soltos e generosos, ora apoiando-se na mureta que sustentava a mim e ao Filósofo, ora na parede do Templo Renascer. Sua maneira de rir, enfiando os braços entre as coxas, numa curva como que a conferir alguma coisa, me fez reparar no seu vestido azul e amarelo: florido e largo, acabava quinze dedos acima dos joelhos, não combinava com o horário nem com o local, mas a deixava linda. Enquanto eu admirava a beleza algo infantil da moça, com suas quatro trancinhas castanhas caídas sobre a cabeça, os primeiros motoboys singraram velozmente a Moira. “Coitados, como correm 33


perigo, podem cair a qualquer momento”, comentou baixinho Domitilla para seu filho. Davi seguiu-os com olhos vivazes. Fosse ele o piloto e correria ainda mais. Que trabalho devia dar trançar assim os cabelos. O Filósofo interrompeu meus pensamentos e cálculos apenas para ressaltar a bondade de Domitilla, que tinha dó até dos vendedores de mapas das esquinas de São Paulo. — “Quem compra tantos mapas, meu Deus!”, ela costuma me dizer. — E o que você responde, quis saber, mal disfarçando meu interesse por aquela nova personagem. — Ora, explico-lhe que o traçado das avenidas, as preferenciais, a rua contra-mão, a rua fora-de-mão, a rua mão única (por que não rua contra pé, fora-de-pé ou pé único se são os pés que usamos para andar), as ruas sem saída, os itinerários de ônibus, de trens, enfim, a rede paulistana é um desafio que só pode ser enfrentado, mesmo para quem nasceu e se criou aqui, com a ajuda de uma planta. Só nós homens livres das ruas passeamos por essa teia como se fossemos aranhas. Percebi que o Filósofo não se conformava com essa capacidade extrema de Domitilla de se identificar com o outro, com todos os outros: — Mas que menina! Se compadece de tudo e de todos – reclamou o Filósofo, com ciúmes. Ela tem dó de marreteiros, camelôs, perueiros, andarilhos, motoqueiros, vagabundos, esmoleiros, mendigos, putas, menores, neguinhos, travestis, bichas, trombadinhas, desempregados, traficantes, ladrões, assassinos, débeis mentais. Basta estar na rua para lhe abrir o coração. Acho que Domitilla só não gosta de motorista e cachorro de madame. O editor explicou que Domitilla, cujo pai conhecia desde os tempos da militância clandestina, fora criada num condomínio fechado em Cotia, entre paredes e guaritas. O que ela via eram ruas largas e vazias, gramados aparados no tempo certo depois das calçadas, jardins ao lado de piscinas, que deixavam ver bananeiras e orquídeas pendendo das árvores, empregados domésticos uniformizados. Filha de uma psicanalista e de um engenheiro químico ex-dirigente do PC do B, até 34


os dezessete anos Domitilla nunca tinha andado de ônibus nem saído sozinha. Seu pai justificava a vida burguesa de sua filha dizendo que eram tempos bicudos, por isso era preciso um recuo histórico para acumular forças dialéticas. A primeira vez que Domitilla pegou o coletivo, não esperava tantas emoções. Na altura do km 25 da rodovia Raposo Tavares fez com a mão para um ônibus cujo letreiro trazia as palavras “Largo de Pinheiros” e se surpreendeu ao vê-lo parar. Subiu os degraus altos e sentou-se na janelinha. Não perdeu um detalhe da estrada. Adorou sacolejar. No caminho até o Largo de Pinheiros pensava: “finalmente estarei diante daquilo que os professores e meus pais chamam de povo. O povo”. Domitilla tremia ao mesmo tempo de medo e de alegria. Desceu no Largo da Batata e caminhou até a Teodoro Sampaio. Viu profusão de gentes espremidas entre as barracas de ambulantes. As pessoas e seus cheiros e suores, as pessoas e seus cabelos e falas. Churrasquinho na farofa e pinga. Música alta na loja de cd. Venda de lingerie, tops, miniblusas e saínhas. Eletrodomésticos ligados nas calçadas e despertadores acionados nas banquinhas formavam uma estranha sinfonia. Na esquina da Cunha Gago Domitilla percebeu um frêmito percorrendo a sua espinha. Uma espécie de descarga elétrica acendeu alguma coisa em seu interior. Concluiu que deveria entender aquele mundo confuso fora dela. Sentiu vontade de chorar. Como estava em época de vestibular, foi estudar ciências sociais na USP. Tudo corria bem e ela já estaria formada se não tivesse ficado grávida aos 20 anos do professor de ética e filosofia política. Teve que interromper os estudos. Eles bem que tentaram ficar juntos, mas não deu certo. O mestre não tinha paciência nem com o bebê nem com a falta de experiência e ingenuidade de Domitilla. Acabou trocando-a por uma novata do programa de pós-graduação em lógica simbólica do Departamento de Filosofia. Agora que Davi já contava cinco anos, Domitilla podia retornar aos estudos. Como tinha que desenvolver uma pesquisa de fim de curso, resolvera retomar seu antigo interesse pelo devir no asfalto. Embora ainda morasse com os velhos numa fortaleza florida, vigiada 24 horas 35


por monitores de vídeo e seguranças, decidira que seu filho iria acompanhá-la nas pesquisas de campo. Não queria isolá-lo. Não queria repetir o mesmo erro de seus pais. Foi então que se aproximou do velho amigo da família, Fernando Mangariello. Este a pegava pela mão e a levava para desvendar o mundo. Unia os dois um certo gosto pelos pobres: o comunista incorrigível os via como o motor da história; a estudante da USP sonhava em “apreender e desvendar o abismo entre o mesmo (ela) e o inteiramente outro (o povo).” Quando se deparou com o Filósofo sentado na calçada perto da sua casa, Mangariello teve um estalo. Como se deu comigo posteriormente, Mangariello foi atraído pela loquacidade sedutora do Filósofo. É isso, pensou o editor, para Domitilla esse homem será a demonstração viva da minha tese. Até mesmo o mais humilde dos seres pode tomar consciência e se tornar sujeito da sua vida. Tratou de apresentar Domitilla ao homem de rua. Ela passou a visitá-lo regularmente. Anotava em seu caderno os ensinamentos do seu objeto de estudo. Esperava radiografar o homeless contemporâneo por meio do olhar arguto do meu Filósofo. Cada vez mais pessoas passavam apressadas na nossa frente. Final­ mente o cheirinho de pão novo impregnava o ar. Apertamo-nos no beiral de Dover, à sombra. Além dele, o editor Fernando Mangariello, que ocupava uma vaga e meia, e eu. No alto, a placa Deus é Fiel. Domitilla ficou de pé à nossa frente. Davi ia e vinha brincando com o próprio corpo. Não se afastava muito dali, respeitando disciplinadamente os limites da calçada. Às vezes dava cambalhotas, provocando suspiros em Dover. O Filósofo comentou, mais para si do que para mim, que estreara no circo assim, dando cambalhotas em sequência mais ou menos com a mesma idade de Davi. Fazia também parada de mão e atuava em um número levado por dois de seus irmãos mais velhos. Eles, deitados e com as pernas para o alto, “brincavam” com o mascote suspenso por seus pés, arremessando-o para aqui e para lá. Já eram mais de seis da manhã, a luz filtrada entre os prédios incidia diretamente em Domitilla. O tecido estampado e leve do seu vestido solto deixava ver a silhueta acima dos quinze dedos. 36


Domitilla falou animadamente de um episódio da sua pesquisa, quando conversou com não sei quantos homens de rua na tentativa de entender por que nenhum deles gostava de tomar banho. Percebeu que há uma forte pressão social para o lavar-se diariamente. Sabonetes, xampus, colônias, cremes, desodorantes, lavandas, perfumes, todos esses produtos disfarçam e nos afastam dos pobres odores humanos. Um campo de força perfumado separa os homens de casa dos homens de rua. Ficar sem tomar banho é uma decisão radical, concluiu. — E, no entanto, o odor exalado pelos homens de rua é como o daquele romântico gambá francês de um antigo desenho animado, que se apaixona por uma bela e intolerante (ao mal-cheiro) gata – me senti no dever de dizer, para descontrair o ambiente. Enquanto Domitilla e Mangariello riam, Dover continuou observando o menino. — Davi, você sabe o que é uma cama-elástica? – Dover não resistiu. — É igual ao pula-pula do parque? — É parecido, mas na cama-elástica você pula muito mais, dá giros no ar e cai sentado numa boa. Um dia vou te levar ao circo para te ensinar uns truques acrobáticos, acho que você leva jeito para flip flap e rola-rola, que acha? Se a sua mãe deixar, é claro. Falando isso, virou-se curioso para Domitilla, que lhe devolveu um olhar cúmplice. Os olhos da criança brilharam. — Além de trapezista, você sabia que Dover também foi o palhaço Casquinha por anos, contou Domitilla, olhando para mim. Daria tudo para ter visto o palhaço Casquinha em ação. — Circo que não tem um bom palhaço deveria botar o rabo entre as pernas e ir embora. A repetição de palhaço é a alma do Circo. O sorriso do inocente sempre foi nosso melhor pagamento, comentou Dover Tangará, alisando os cabelos de Davi. Gostei de saber que meu filósofo considerava as momices a essência do espetáculo, embora era provável que achasse o voo dos trapezistas o número mais importante. Os sorrisos arrancados por palhaços anônimos em minha primeira infância ainda ecoam em mim. 37


— Bem, o solzinho está esquentando, a conversa está boa, mas a gente tem que ir, avisou Domitilla. E voltando para o menino: — Davi, se despede dos seus novos amigos, tenho que te levar para a escola – ao anunciar sua partida, achei que ela tivesse olhado de soslaio na minha direção, um olhar ao mesmo tempo coquete e infantil. Depois de Capitu, ficou mais difícil entender os recados dos olhos, mas imediatamente me levantei, bati as mãos nas calças a fim de tirar a poeira e pedi licença para seguir com ela e o filho. Se não me engano, pude sentir a cumplicidade do Filósofo, do editor e até de Davi. Mangariello, por exemplo, apressou-se em lembrar que ainda não havia discutido com o homem de rua o importante assunto que o trazia ali àquela hora da manhã. – Por isso, tenho que ficar – lamentou. No caminho, Domitilla fechou-se séria. Timidez? Trocamos passos juntos pela calçada esburacada. Davi fazia cabriolas com as mãos e as pernas à nossa volta. Devia ser algum tipo de provocação à sua mãe que eu não entendia. Só sei que ela de vez em quando dava um chega pra lá no menino. Domitilla estava nervosa. Bom sinal. — Sabe, de um dia para o outro tantas coisas mudaram na minha vida. Conheci nosso amigo aqui mesmo, na minha calçada, e passei a me interessar pelas pessoas que moram na rua. Se elas carregam essa dignidade, não posso mais ignorá-las. Não sei se é uma boa comparação, mas, para mim, o contato com Dover equivale ao seu primeiro passeio de ônibus, entende. — Hum. — Até ontem, antes do meu papo com ele no Ponto Chic do Largo do Paissandu, conhecia apenas o homem de rua que permanecia parado ao lado da igreja Renascer. Um senhor que proferia palavras sábias, provérbios e lugares-comuns nos momentos certos. Por isso o chamava de Filósofo. Não sabia de onde ele vinha, nem porque estava ali. Apesar da sabedoria, me parecia o mais frágil e desamparado dos seres. Você teve a mesma sensação ao conhecê-lo? Disse essas coisas para quebrar o gelo. Poderia continuar falando a manhã toda. Queria que ela sentisse meu bafo. Se Domitillia era 38


uma estudiosa que se identificava apaixonadamente com seu objeto de estudo, nada melhor que jogar no campo dela. Além disso, precisava de alguém para conversar sobre Dover Tangará. — Acho que você é dessas pessoas que considera todo homem de rua um ser desenraizado e com subjetividade fragmentada, não é mesmo? Ufa! Que alívio, Domitilla resolvera falar, mesmo que seja nesse tom teórico. Acho que ela entrou no jogo. — Mas isso é o que ele realmente nunca foi, continuou Domitilla. Você já deve ter notado que subsiste o circo-mundo sustentando sua mente e conferindo sentido à sua vida. Raiz é o que não lhe falta, pois pertence não somente a uma tradicional família de circo, mas à Família do Circo Tradicional, que remonta a gerações... Domitilla explicou-me como se tivesse enfileirando proposições diante de uma banca de doutores. Gostei da forma respeitosa e da sua compreensão do Filósofo. — O que impressiona é que ele resolveu não acionar essa vasta rede, arrisquei. — Sim, mas, ainda assim, Tangará não está desamparado. Veja como ele consegue novos amigos, como um editor, uma pesquisadora e você, ambos interessadíssimos nele. — E por que você está tão interessada nele? — Queria apenas conhecer os mistérios e segredos que o levaram de uma vida gloriosa à sarjeta, e, por meio de seu exemplo, desvendar o mecanismo psico-social que continua a despejar pessoas na rua. Domitilla não conversava, demonstrava. Teria me dado sono não fosse seus gestos e jeito de andar amolecerem o discurso. Com uma mão enfatizava suas idéias e com a outra, acho que sem perceber, ia desmanchando uma das trancinhas. Gostaria de lhe pedir que me ajudasse a registrar a vida de Dover Tangará. Era justamente sobre tudo o que ela falara que havia varado a madrugada pensando. Como entender que alguém com uma vida gloriosa passada no circo pudesse acabar no fluxo das ruas? Como ligar uma ponta à outra? 39


Capítulo 5

Hard cover: Não é um circo normal Dover Tangará surge correndo no picadeiro improvisado. Será um bom começo, Domitilla? Agarra com as mãos a escada de corda, olha para cima, testa-lhe a firmeza com um puxão, bate o pó de serra das sapatilhas e põe-se a galgar os degraus. Manchas verdes e amarelas predominam em seu colant brilhante. A púrpura, o violáceo, o alaranjado, o rosa e estrelas prateadas completam o uniforme colado ao corpo. Omoplatas plenas, pescoço, cabeça e espinha eretas, músculos rijos nos membros superiores e inferiores – é um atleta de 25 anos que está ali. Quem imaginaria que trinta anos depois ele seria o Filósofo da Moira... Sobe. Chega na primeira plataforma e avista o quadrante aéreo fixado nas colunas de sustentação do teto. Estranha. Em um circo de lona normal, os estirantes pendem do mastro principal. Em um circo de lona normal, bastam uma rede e uma língua de segurança de cada lado para Dover sentir-se envolvido no regaço familiar. Mas este não é um circo normal, nem de lona é. O aparelho de trapézio dos Tangarás está montado nas alturas do maior ginásio de esportes do Brasil, libertando lembranças, e com elas, a peste. Infeccionado pela tatuagem que a vida lhe imprimiu, o Filósofo arde de febre na mesa do Ponto Chic. Devo anotar seu delírio? O que faço com esse material borbulhante, que me é despejado a caldeiradas?

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Capítulo 6

Encontro dos corpos gerando vida Deixei Domitilla próximo à Escola da Vila pontualmente às sete da manhã. Davi deu tchau e correu para os braços de uma educadora sorridente. Domitilla e eu fomos para lados diferentes. Era muito cedo. Tomei um táxi. Em casa, sentei-me a escrever o capítulo anterior e o próximo. Minhas notas oscilam e dão piruetas no ar. Na despedida, depois de observar um “toque aqui” de velhos camaradas trocados entre Davi e eu, Domitilla abandonou o tom acadêmico e formal e me ofereceu o grande e apertado abraço brasileiro. Nossos corpos se colaram perfeitamente, não sem antes minhas mãos colaborarem na adesão de nossos ventres. Pediu-me por favor que eu lhe relatasse tudo o que Dover havia me contado na noite anterior. Também estava curioso para saber mais sobre a vivência dela com o Filósofo. Uma boa desculpa para voltarmos a nos encontrar, o que propus imediatamente. Ela aceitou. O que se foi recria-se e assim continua sendo. Marcamos uma ponta para a noite seguinte novamente no centro. “Por que não no Ponto Chic”, sugeriu ela. Sorri internamente: o mesmo lugar tão importante para meu recém amigo em situação de rua tornara-se referência espacial para Domitilla. E para mim. Para o Filósofo, as prostitutas do Largo do Paissandu, os corredores das galerias, as lojinhas, as lanchonetes, os ambulantes compunham um cenário no qual no centro brilhava o Café dos Artistas. Esses elementos também passaram a habitar minha paisagem interior – com a diferença de que no centro era Domitilla quem pulsava. As próximas quarenta horas custaram uma eternidade para passar, mas voltei ao salão do Ponto Chic dominado pelo palhaço Dengoso pela segunda vez em três dias. A vida se intensificava. 41


Davi ficara com a avó. Os com-com bebiam nas mesmas mesas do bar. Bundas-vagantes tomavam assento do lado de fora, espalhados pelo Largo do Paissandu. Já não tinha idade para varar a segunda noite seguida, o álcool cobrava um preço muito alto do meu corpo. Domitilla precisava levantar cedo para arrumar as coisas e levar seu filho à escola. Mesmo assim o nosso primeiro “enfim sós” foi longe. Poderia resumir o que Domitilla e eu conversamos com a seguinte frase: “o encontro dos corpos gera vida e os perigos que ela traz”. Falamos de homens valorosos e as consequências de viverem sob a mais absoluta ética do corpo. Como tomava notas de algumas informações e idéias que me viam enquanto conversávamos, lá pelas tantas, Domitilla me pediu para que lesse em voz alta minhas anotações anteriores. Odeio mostrar o que estou escrevendo, mas estranhamente senti-me à vontade para lhe entregar o texto. Sabia que era um teste para ver até que ponto confiava nela. Sabia também que, caso fizesse o que ela me pedia, sua entrega seria total. Abri o caderno e li alto o seguinte.

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Capítulo 7

Sou um homem voador

Estamos em 1970. Rio de Janeiro. O ano abre-se com o III Festival Mundial do Circo, na Cidade Maravilhosa. Europeus e latino-americanos acabam de apresentar-se no Maracanãzinho lotado. Agora é a vez da representação brasileira. Uma ovação ensurdecedora acompanha a subida da Trupe Tangará aos céus do picadeiro. Liderados por Dover Tanguará, o irmão Durbis e seu sobrinho Carlinhos, lépidos através da escada de cordas, alcançam a banquilha. A plateia assobia, aplaude, entoa loas à pátria e à supremacia brasileira. Aos 39 anos, Durbis é o mais experiente dos três. Está um pouco gordo e vagaroso, é verdade, mas os braços e as pernas permanecem fortes, a mente alerta. É o portô que todo volante pediu a Deus: seguro, tranquilo e dono de um olhar oceânico. De pontacabeça, com as pernas dobradas na barra do trapézio, cabe a ele aparar os longos vôos sobre o nada de seus companheiros. Em todo salto, vidas são depositadas em suas mãos. Durbis sempre agradecia ao divino por nunca mais ter acontecido acidente sério entre os seus. Ele sabia o que pode significar escorrer por entre os dedos um trapezista...

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Carlinhos é a revelação da família. Na flor dos 17 anos, executava algo afoito os números mais arriscados, como o salto triplo, em troca de aventura e glória. Vivia apressado. Dover também cultivava a rapidez e a ousadia, mas mantinha o equilíbrio e a maturidade que se espera de um artista circense em seu apogeu. — Posso? Faz com a cabeça Carlinhos, apontando o trapézio. O menino quer ser o primeiro a balançar sobre a multidão no Maracanãzinho. Magro, moreno, cabelos assentados à brilhantina, o jovem volante raspa com a costa da mão o bigodinho ralo acima dos lábios lisos. Ansiedade. — Mas é claro – consente Dover – vai ser bom para você sentir o clima. Pausa. Inseguro, levantei a cabeça e olhei para Domitilla. Será que ela está achando minhas notas enfadonhas? Não! Ela está é seca de curiosidade. Sim, Domitilla sorvia com as mãos em concha as vicissitudes do homem de rua. Devo dramatizá-las? Continuo. Carlinhos pega na barra do trapézio e, com a ajuda dos tios Dover e Durbis, que ajustam o escalão ainda mais para o alto, eleva-se um pouco acima do nível da banquilha. Com os primeiros movimentos dos volantes, a zoadeira do público cessa instantaneamente. As pessoas prendem a respiração diante do que imaginam que verão: o arrojo de volantes voadores arriscando a própria vida para defender o Brasil. O silêncio toma conta do Maracanãzinho. Carlinhos não vê mais ninguém diante de si, apenas a névoa de glória como num sonho bom. Com um lance de corpo autoconfiante, joga-se pendurado na barra do trapézio. Dover e Durbis apenas olham. Silêncio. Para lá e para cá. Balança mais uma vez, esticando ao máximo as cordas do trapézio. Ao voltar, Carlinhos tem os olhos petrificados... Primeiramente, ele balbucia, a voz custa a sair. Amparado por Durbis, respira fundo e tenta controlar-se. Depois de alguns longos segundos, diz alguma coisa a Dover. A fala soa como que assombrada: — Êta barulho gozado, sô! Como esse nunca vi, não. Ih, sai sentimento ruim. Coisa estranha soprando no ouvido. Nada substitui o baita quando ele fala, a voz se expandindo no ar. Carlinhos foi criado por aí, um pouco em cada canto. Seu sotaque é uma síntese dos falares brasileiros. 44


— Deixa eu ver – responde Dover, já empertigado para lançar-se no vazio – o que deu no meu sobrinho? Parece que acordou de um pesadelo! Ato contínuo, projeta-se no espaço. Durbis permanece lançando olhos de mar calmo. Sentado na barra do trapézio, Dover não percebe nada de anormal no balanço. O trapezista atribui o receio do sobrinho à inexperiência. É a primeira vez que Carlinhos se apresenta num ginásio daquele tamanho, e para piorar, na final do mais importante festival de circo jamais realizado no Brasil. A imprensa, a televisão, o pessoal das rádios, todos estão aqui, imagina Dover, até uma equipe de cinema filma um comercial para o governo sobre segurança e responsabilidade. É natural que o menino se intimide. Dover gosta de Carlinhos. Infla-se de orgulho ao se lembrar que o sobrinho o tinha como mestre — Aumenta a responsabilidade da gente, mas que é bacana, lá isso é – costuma dizer. Ao final do primeiro movimento pendular, Dover larga o corpo e se posta de ponta-cabeça, preso pelas pernas dobradas na altura dos joelhos. Um ou outro na plateia solta um assobio. Só então o volante voador deita olhos no público. São quantos mesmo? Cinquenta mil, haviam dito no rádio. Quanta gente! Sem atinar a razão, vem-lhe à consciência uma frase pescada a esmo nas profundezas do antigamente. É seu pai advertindo os filhos que se iniciavam na arte do trapézio: “o perigo de olhar o abismo é o abismo olhar para você, menino”. Palavras sábias. De quem serão mesmo, perguntara-me o Filósofo no Ponto Chic, sem querer me revelando de onde vinha seu gosto por frases. O velho Tangará, homem severo e disciplinador. Benedito Marques Ribeiro, o pai de Dover, tinha o dom de sacar a frase certa nas horas mais tensas, quando precisava passar uma lição a um desafeto ou dar uma bronca em um dos nove filhos. Assim de cabeça para baixo, com o ânimo renovado, indo de um lado para o outro, feliz da vida por estar talvez no ápice da sua carreira – e remoendo ao mesmo tempo antigas idéias – um pensamento novo atravessou-lhe os olhos: Dover Tangará imagina-se soltando as pernas e largando-se no nada. Em cima daquela multidão. Não que ele queira espatifar-se e morrer. Não é isso. É uma vontade louca de derramar-se no todo, como se transbordasse. Ânsia de transcendência, talvez. Sentimento típico de quem é olhado pelo abismo. Estatelar-se em queda é sensação conhecida de Dover Tangará. Em uma noite de estréia do Circo Orlando Orfei, em Belo Horizonte, em outubro de 1969, 45


ele se livrou da morte por milagre e ganhou a fama de homem-borracha. Fazendo as vezes de mestre de pista, o velho Orlando anunciara entusiasmado para as arquibancadas lotadas “o fascinante número dos Volantes Voadores da Grande Trupe Tangará”. Estava tudo pronto. Ouviu-se o apito e o dobrado forte da overture tocado pela banda do circo. Dover seria o primeiro a saltar para as mãos de Durbis. Vestia naquele dia um fuseau negro combinando com sua pele e cabelos escuros. Olhara a multidão e vira milhares olhando para ele. O que queriam essas malditas pupilas dilatadas? Ao se lançar no vazio, tentou agarrar firme os punhos de Durbis, mas calculara mal o tempo. Podia largar-se na rede, mas, como era estréia, o volante e o portô tentaram desesperadamente segurar na mão um do outro. Entrelaçaram-se e não se largaram até Dover chegar ao limite do balanço. Mas a pressão era maior e Durbis percebera que não seria possível permanecer segurando as mãos do seu irmão. Dover sabia que havia errado, pois batera mão com mão ao invés de alcançar os punhos do portô. Acabou soltando as mãos do irmão e saiu voando de escape até chocar-se contra a testeira lateral. O problema é que as cordas de sustentação dessa rede vertical de proteção não aguentaram. Dover foi se agarrando e se enrolando nela até se estatelar no chão, doze metros abaixo. Caiu enroscado nos fios. Ouviu-se um clamor no circo. Imediatamente, o velho italiano Orfei perguntou em seu português arrastado se estava tudo bem. Sem responder, Dover levantou-se e pôs-se a amarrar a rede novamente. Na banquilha, Durbis e Carlinhos esperavam para reiniciar o número, que prosseguiu normalmente. — Por que sobreviver ao acidente nas cordas do Orfei se o meu irmão, Dândalo, não teve igual sorte – perguntara-me Dover na mesa do bar. Dândalo, o primogênito dos homens entre os nove filhos que vingaram dos Tangarás, morreu quando Dover mal contara 12 anos, por volta de 1956, em um acidente durante um ensaio no trapézio. Era manhã bem cedinho de inverno, chovia, encharcando o terreno em volta do circo na cidade de Itu. Dos traillers ao picadeiro, amassava-se uma lama só. O jeito era aumentar o pó de serralho que cobria o picadeiro. Dover adorava aquelas sessões diárias de ensaio em família, seus irmãos mais velhos voando lá no alto e ele perto da rede treinando parada de mão ou saltando na cama elástica. Seu pai ficava sentado no poleiro apenas observando. Uma vez ou outra gritava com um deles. Foi nesses ensaios matutinos que aprendeu o que é disciplina e concentração, 46


embora o irmão mais velho fosse gozador e adorasse uma sacanagem. Dover ria daquelas piadas sujas, muitas vezes sem entender o que queriam dizer, as partes baixas da mulher dentro da saia eram úmidas, cabeludas e malcheirosas, o cu muito perto da boceta, deduzia do que eles falavam, se calhar ria até mais do que eles, querendo parecer grande, querendo ser como seu irmão mais velho. Dândalo era a alma do circo de seu pai, sempre à frente, participando de quase tudo: dos vôos dos icários à entrada dos palhaços; dos solos de cavaquinho e de banjo do Regional dos Tangarás ao papel principal da combinação encenada na segunda parte do espetáculo... Dândalo era míope, usava uns óculos fundo de garrafa. Talvez por isso, uma de suas especialidades era saltar de olhos vendados. Domitilla, você acredita que até hoje Dândalo aparece ao Dover em sonhos. Ele confirma que a rede estava posta embaixo do trapézio exatamente onde e como ela deveria estar. Não foi erro de ninguém. “Eu é que me distraí e acabei caindo de mal jeito”, confessa Dândalo no sonho. Sim, Dândalo falhou em uma passagem e errou no tempo. Ensaiava sem o pano preto nos olhos. Mais que o goleiro, o trapezista não pode falhar. Ao chocar-se contra a rede, Dândalo soltou um grito como nunca mais Dover deixou de ouvir. Fazia frio e chovia. A mãe deles arrematava uma sobrecasaca vermelha que comporia o novo figurino do mestre de pista. Ao ouvir aquele berro, dona Nenê correu como louca e prostrou-se sobre seu primogênito como se quisesse sugar a dor dele. Gritava: “Por que não sou eu a punida?”. A rede estava lá, escorou a queda de Dândalo, mas não adiantou nada! Dover correu na tentativa inútil de socorrê-lo, chovia, fazia frio, foi como se o circo desabasse na sua cabeça. Dândalo fraturara a espinha. Morreu de complicações no hospital de Sorocaba dois dias depois. Era o mais querido dos nove filhos que vingaram de Dona Nenê, dos 15 concebidos. Tombara aos 33 anos para nunca mais se levantar. Deixou esposa e três rebentos. Era o ídolo de Dover e o norte da família. O desamparo do Filósofo menino era infinito, muito maior do que ele sentiria mais tarde na rua. Foi Dândalo quem ensinou a Dover ginástica básica de solo, acrobacias, e quase tudo o que ele sabia. Talvez por ser o primogênito, Dândalo era o mais querido dos filhos do velho Tangará e o esteio da família. Artista múltiplo, arrancava risos do público com a dupla cômica Dândalo & Cortiça. Comovia ao violão. Era o pioneiro da família na arte e no amor ao trapézio. O desabafo 47


do menino dentro do homem, os mesmos olhos assustados, a cena já tarde da noite numa mesa do Ponto Chic do Largo do Paissandu aguçaram em mim a vontade de entender sua trajetória. Certamente, não foi o fim trágico de Dândalo que enxotou Dover para a rua e o transformou no Filósofo da Moira. O que teria acontecido? Seja qual for a resposta, não resta dúvida de que Dândalo tornou-se uma espécie de pêndulo oscilante na vida do Filósofo, fio condutor do seu destino, às vezes lhe restituindo a glória, outras lhe lançando ao chão. A morte inesperada de Dândalo teve grande repercussão no meio circense. Os seus irmãos quiseram abandonar o trapézio. Foi o Velho Tangará, com seu jeito duro de caboclo que não manifesta alegrias nem tristezas, quem decidiu a questão: — Morreu um, tem mais oito para morrer. Dândalo era a coisa mais importante da minha vida. Mas para a família, o circo não é escolha, é missão. Naquela noite teve espetáculo no Grande Circo Tangarás. Os artistas entraram de luto e pediram um minuto de silêncio antes de começarem os números. Dover mal completara 12 anos quando viveu isso. A perda do irmão mais velho querido e a fala de seu pai tatuaram a alma do menino. Encheu-se de dor e de coragem. Doravante, como um índio traz escrito em seu corpo as leis de sua nação, Dover Tangará traria inscrita dentro de si a eterna lei do circo. Sua carreira artística estava apenas começando. Teria igualmente um destino trágico? No Maracanãzinho, 14 anos depois, o volante Tangará abre os braços e toma impulso, forçando seu corpo até a borda da cúpula, quase encostando no teto. Em seguida, num giro rápido, se posta de pé no trapézio. “Vou mostrar o que é possível fazer com mente, corpo e espaço num tempo delimitado”, pensa, aumentando a velocidade de seus movimentos em busca de um escape perfeito. De repente, solta-se no nada, enquanto o trapézio vem ao seu encontro lentamente. “Sou um homem voador”, grita. E agarra com firmeza a barra do trapézio mais abaixo. A plateia respira aliviada e explode em aplausos. Dover volta à plataforma, onde o esperam os companheiros. Os trapezistas se apegam muito uns aos outros, pois arriscam a vida juntos todos os dias. — Carlinhos, o barulho que você ouviu é só o ruído dos ossos cortando a quietude. Está tudo bem – tranquilizou o sobrinho. 48


Capítulo 8

Jogo Domitilla ouviu tudo em silêncio, compreensiva e visivelmente emocionada, talvez pensando em Davi. Ser mãe é uma felicidade imensa que provoca a antecipação da dor da perda. Medo. O amor de pai ou de mãe é tão intenso que se sofre só em pensar na dor que o filho ainda não teve e talvez nunca terá. Senti-me aliviado por vê-la naquele estado. Significava ao menos que as palavras tinham alguma força e que a história de Dover merecia ser escrita. Aproximei a minha cadeira da dela e conclui a leitura em voz compungida: Não tenho diante de mim apenas um homem de rua amargando a indiferença da sociedade. Não. Vejo em Dover um herói trágico cuja história pode nos purgar. Está claro para mim que a extrema dor tanto pode nos conferir identidade quanto embaralhar as cartas, fazer-nos esquecer as regras e nos impedir de jogar. Espero que essas palavras o ajudem a se transformar, ele que era um artista do ar, em um Filósofo Voador. Fechei o hard cover.

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Capítulo 9

Cemitério de trailers Durmo nu. No máximo, uma camiseta. Os bagos soltos aliviam. O catre coberto por dois lençóis brancos. Travesseiro alto e duro. Um rádio ligado baixinho fora da estação. O chiado mascara um zumbido que no fim do silêncio insiste em zunir no meu ouvido direito. Derramei os olhos pela parede descascada. Emoldurar uns mapas antigos de um calendário velho e colocar ali. Pela luminosidade que invadia as frestas da veneziana, subia a manhã. Consegui me virar de costas. Ufa. Estava tudo no lugar. Dormir um pouco é sempre uma benção. Acordei bem disposto e feliz da vida. Entrei no banho rememorando os fatos dos dois últimos dias e noites. Puxa, a rua estava me oferecendo seus habitantes e as histórias guardadas nas sarjetas. Puxa, a vida estava me oferecendo o Filósofo Voador e Domitilla! Sim, ontem, logo após a leitura das minhas anotações sobre Dover Tangará, Domitilla levantou-se da cadeira e jogou-se em cima de mim. Usava uma malha marrom listada com gola apertada no pescoço que lhe realçava os seios. A calça jeans terminava em boca de sino anos setenta. Pensei que era um rompante romântico, mas não, apenas o longo e generoso abraço brasileiro. Gostei da vista aérea dos seios. Despedia-se. Os cabelos com cachos de anjo. Tinha que ir. Ela foi tocada, não tinha dúvida, mas não sabia se para o bem ou para o mal. Quem vai saber, quem entende as mulheres, quem entende os ouvintes? Saiu espalhafatosa, furando o vão entre a cadeira e a mesa do lado, esbarrando nos objetos, marcando o compasso com o tamanco. Alcancei-a na calçada, a tempo de lhe oferecer uma carona. Esse nosso segundo encontro, no Ponto Chic, tinha rendido uma madrugada de conversa regada a chope. Na volta, já na Praça da República, onde

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havia deixado o carro, ela me pediu para ir andando e não olhar para trás que já me alcançaria. É claro que espiei pelo espelho retrovisor de um veículo estacionado. Domitilla enfiou as mãos dentro da calça e se agachou. Me surpreendi ao perceber que a menina sofisticada da USP fazia xixi ali mesmo, molhando a raiz elevada de uma árvore. Sai do banho com pressa. Precisava anotar tudo no hard cover. Escolhi a amarela, a mais felpuda das minhas toalhas, para me enxugar. Queria do bom e do melhor. Me envolvi na toalha e fui passando-a pelo corpo. Parecia que os poros sorriam. Como sempre fazia, caprichei nas axilas, virilhas e vão dos dedos. Os cabelos, deixei-os molhados. Assim mesmo, pelado e meio úmido, comecei a escrever com o caderno no colo. No Ponto Chic do Largo do Paissandu, surpreendentemente, havia lido em voz alta para Domitilla o que havia escrito no hard cover. Ela ouviu em silêncio, seus olhos é que falavam em alguns pontos da narrativa. Com a imagem dos Tangarás grudadas em nossas mentes, voando livres nos céus do Maracanãzinho, fomos de carro até a casa dela, em um condomínio nos arredores da cidade. Resolvemos nos despedir com o sincero abraço brasileiro e cada um foi para seu lado. Manobrei o carro enquanto ela adentrava pelo portão eletrônico. Não sem antes prometer que a chamaria para o meu próximo encontro com o Filósofo Voador. Estávamos apenas nos conhecendo e, nesses assuntos, o melhor é ir devagar. Era só nosso segundo encontro, mas já abria um janela em meu quarto e transformava os lençóis do meu catre. Não sabia que até uma toalha felpuda poderia me acariciar... A bonança em que me encontrava, imerso em doces lembranças, foi interrompida por palmas. Isso é hora de alguém bater na minha porta! Levantei e enfiei o calção e a camiseta branca. Fui ver quem era meio puto, meio curioso. As coisas começavam a acontecer. E pensar que até conhecer o Filósofo, há algumas semanas, minha vida era uma monotonia só. Sei não, mas desconfio que algo periga transbordar. Abri a porta da sala e ganhei o cimo da escada lateral do sobrado. Ofuscado pela luz da manhã, avistei um homem alto e barrigudo. 51


Andava de um lado para o outro, gesticulava. Parecia esbaforido, alguém que a qualquer momento podia gritar. — Mangaliello, é você, meu bom? — Sou eu mesmo. Descobri umas coisas que você precisa saber – disse o velho comunista, sem explicar como me encontrou. — Já vou abrir o portão. — Não, não precisa. Apenas me acompanhe e não faça perguntas. — Obedeci como um soldado. Voltei ao aposento, troquei o calção pela calça jeans, calcei um par de tênis e o segui. Mangaliello abriu a porta de seu carro, um Niva antigo, importado da Rússia, relíquia da era soviética – como as medalhas de Lenin com foice e martelo, à venda na feirinha da praça Benedito Calixto. A mesura com que executou esse gesto reforçou o ar solene de quem cumpre uma missão inadiável. Mangaliello fez silêncio durante o percurso. Subiu a Rebouças, desceu a Consolação e entrou à direita em direção à Radial Leste. A cidade estava vazia, dava para acelerar. Com as portas dos comércios ainda fechadas, notei os sinais estranhos nas paredes. Não eram mensagens políticas nem xingamentos. Esses arabescos nada mais eram do que comentários sobre as próprias inscrições em espaços públicos. Sinais emaranhados que falavam apenas deles mesmos – é a moda da metalinguagem chegando nas pixações, pensei. Ao avançar pelo complexo de viadutos em semi-círculo que liga o centro à zona leste, Mangaliello rompeu o silêncio: — A vida de um editor não é fácil, meu jovem. As pessoas enviam livros para serem lidos e esperam respostas. Querem publicar. É capaz de você perder um amigo se disser que o trabalho dele é uma bosta. Tanta coisa para eu ler e olha onde eu estou! Essa Domitilla me paga. Tinha que me acordar para essa reunião no fim do mundo! Nem sabia do que ele estava falando, mas gostei de ouvir o nome de Domitilla. Fiz cara de ué. — Você acredita em coincidência, meu jovem? Mesmo não sendo tão “jovem”, aguentei em silêncio a pergunta de Mangaliello. Odeio que me chamem de “meu jovem”, como se essa circunstância, estar jovem, viesse antes de mim e determinasse minha condição no mundo. 52


— Algumas coisas aconteceram que podem apontar um caminho para todos nós. Ao me dizer isso, Mangaliello virou o rosto enorme para o meu lado. Seus pequenos olhos azuis alcançaram os meus e eles estavam dizendo alguma coisa, mas não entendi bem o quê. Naquela hora o fluxo de carros não encontrava obstáculos pela Radial Leste. A zona leste é uma cidade dentro da cidade, tem leis e cultura própria que eu desconheço. Mangaliello parou o Niva em um imenso terreno na Radial. À direita avistei um prédio com um luminoso em cima escrito Sesc Belenzinho. Trailers precisando de reformas, motorhomes caindo aos pedaços, carcaças metálicas, cabines de caminhões separadas das carrocerias, containers e velhos ônibus, aparentemente abandonados, espalhavam-se por ali. “Isso aqui é um cemitério de elefantes de lata”, pensei. Por um caminho sinuoso singrando um matagal, aproximavamse uns cães barulhentos. Lá atrás, avistei uma criança e umas mulheres. Uma delas me provocou um agudo movimento peristáltico. Pela primeira vez a via usando óculos. Achei bom. Escondiam um olhar que me remexia e me deixava inquieto. O rabo-de-cavalo nos cabelos castanhos, a blusa de abotoar cor de creme e a saia de um tecido grosso marrom que ia até o joelho indicavam que Domitilla estava ali para trabalhar. A criança entrelaçada aos cães era o Davi, com a mesma energia pela manhã. As duas mulheres ao lado deles eu desconhecia. — Aquelas são as irmãs Romero, disse-me Mangaliello. São velhas amigas do seu Filósofo, e ao dizer isso, enfatizou a possessivo “seu”, como se o trapezista fosse invenção minha. — Elas têm muito a lhe dizer, completou. As irmãs Romero arrastavam um portunhol franco e nasalado, a voz soando engraçada, saindo pelo nariz, dando vontade de rir. Explicaram que nasceram na barriga do circo e faziam um pouco de tudo na lona: acrobacias de solo, aéreas e na cama-elástica, monociclo, perna-de-pau, contorcionismo, pirotecnia etc. Lecionavam essas técnicas numa escola de circo em Perdizes, depois de terem atravessado quase toda a vida trabalhando nas principais companhias do país. 53


Que importava se eram chilenas, argentinas ou equatorianas? Famílias tradicionais de circo brasileira e latino-americanas deslocam-se constantemente, por cima de fronteiras e bandeiras. O território delas é a lona, única barreira entre o picadeiro e o céu. Essa interação resultou num portunhol circense único, que a ciência linguística ainda não descobriu. — Venga, senior, hasta nuestro trailer. Avançamos até a morada das irmãs, logo na entrada do cemitério de trailers. Uma escada de madeira dava passagem para um tablado montado na porta da caixa retangular de uns seis metros de cumprimento. Subimos os sete degraus. Dei passagem à Domitilla, que agarrou firme a mão de Davi. As Romeros foram em seguida, com destreza. Mangaliello fez sinal para que eu subisse e por último veio ele, galgando os degraus com dificuldade. Ainda bem que não caiu. Os cachorros ficaram embaixo. Dali descortinava-se o lugar, antigo terreno no qual no passado os circos eram montados. Apesar da pressão governamental e da especulação imobiliária, alguns circenses resistiam morando ali. Outros foram expulsos, mas abandonaram seus trecos. Dentro do trailer, o lar das Romero parecia uma casinha de brinquedo. Tudo estava no lugar, a pequena geladeira e seus ímãs decorados, a pequena geladeira e seu pinguim grande, a pequena mesa, as pequenas cadeiras. Panos de pratos bordados, xícaras azuis, amarelas e verdes, conchas, espumadeiras, colheres de mesa – tudo pendia de uns ganchos que saiam de um acanhado armário embutido. Dentro, pratos, pires e copos. Nas paredes, fotos de uma menina equilibrando-se sobre uma bicicleta de uma roda só, com o selim estranhamente alto; e de uma mulher com as mãos agarrando as próprias costas, depois do seu corpo se curvar e passar por baixo das pernas. Comandados por uma das Romero, sentamo-nos. Mangaliello mal coube na cadeirinha. Domitilla puxou Davi ao seu colo. O menino olhava tudo fascinado, ao mesmo tempo que se sentia em casa. Se por acaso aparecessem sete anãozinhos por ali, ele não estranharia. Uma das Romero ficou de pé. Estava curioso em descobrir como Mangaliello e Domitilla tinham chegado a elas. 54


— Meu filho anarquista tem um amigo, Ariel é o nome dele, que está penando para aprender trapézio de voo, disse Mangaliello, preparando o terreno da conversa. Ele é aluno daquele Circo Escola Picadeiro, armado ao pé da Ponte Cidade Jardim, sobre o rio Pinheiros, vocês devem conhecer. É engraçado, ele estuda psicologia na PUC e se interessa por essas coisas. Onde já se viu um psicólogo artista de circo e ainda por cima anarquista? Pois bem, foi Ariel quem me falou das irmãs Romero na semana passada. Teve aulas com elas. As irmãs Romero não só ensinaram técnicas circenses como também contaram um pouco da história do circo. Pedi ao Ariel que conseguisse em sua escola o endereço delas. Achava que elas poderiam ser úteis a vocês. Enquanto acompanhavam essa introdução, as irmãs Romero permaneciam paradas, alertas e concentradas. O olhar vago, em algum ponto do trailer. Pareciam prontas para ouvir o terceiro sinal e entrar no picadeiro. Domitilla adquiriu um ar extremamente sério, o que me orgulhava. Unir seu “objeto de pesquisa” a uma ação social tipo “circo de inclusão” bem que poderia ser um projeto de vida que envolvesse seu filho, Davi, e seu novo amigo Tangará. — Puxa vida, que calor logo cedo! Disse com falsa exclamação, para distrair. Sorri internamente ao me pegar falando do tempo, coisa que detestava. Ato contínuo, quase maquinalmente, uma das Romero ligou o ventilador que pendia do teto. Ora, estávamos num trailer! Tive que me desviar das pás, que giraram inicialmente com preguiça e depois velozmente. Mangaliello fez o mesmo. Quem manda ser alto. Em cima havia também uma caixinha de vidro com uma luz lilás dentro. A luminária, o ventilador, mais as serpentinas coloridas que se agitavam sobre a soleira, à guisa de cortina, formavam um eficiente dispositivo anti-moscas. — Bem, agora que estamos todos ajeitados, gostaria que a senhora Branca contasse pra gente como conheceu o senhor Dover Tangará, pediu Mangaliello. Olhei instintivamente para a mais clara das irmãs. — Si, como no. La gente trabajava no Circo Águias Humanas. Niegra hacia uno número de contorcionismo. Um palhaço empesava no picadeiro 55


carregando una mala, da qual retirava una boneca de borracha. Hacia de tudo com aquela boneca de borracha. Jogava-a para o alto, dobrava suas pernas e braços, pendia para aqui, para acolá. Os gestos del clown eram brutos e inesperados. Amassava-a como se fosse papel e a jogava no cesto. De repente, la bonequita ganhava vida. Era Niegra, mi irmana. Toda la gente acreditava ser de borracha, mas era de carne e osso, por supuesto, mais carne do que osso. Niegra, mi irmana. Los niños se quedavam maravillados. Nos viramos instintivamente para a mais morena das irmãs. Seu corpo parecia normal, mas guardava um modo original de sentar. De joelhos na cadeira, deixava cair seu traseiro até a base do assento; e suas canelas faziam uma curva por fora até encaixar os pés nas coxas. Troquei um olhar divertido com Domitilla. Davi parecia difuso, processando em silêncio os estímulos que aquela amostra grátis da vida íntima circense lhe oferecia. Quanto a Mangaliello, permanecia circunspecto. — Papito empesou a treinar deslocação em mim quando eu era tão chiquita quanto esse niño, disse Niegra, apontando para Davi. Cresci e passei a deslocar partes de mi cuerpo de uma forma que assustava la gente. Diziam que tinham quebrado meus ossos quando chica. Pero no es verdad. Hoy la gente no habla mais “deslocação”, dijem “contorcionismo”. Bueno, lo contorcionismo es una arte milenar de origem indiana. Ela exije solamente mui treino, dedicação, técnica e equilíbrio. Naturalmente, coragem e juventude ajudam. Hoy no me puedo nada. Estoy enferrujada. — É, o tempo passa, mas o que fazia Branca no circo, perguntou Mangaliello, forçado pela curiosidade a abandonar um pouco o ar sério. — Branca, mi hermana, hacia Escada Sete. — Escada sete? fez Davi, que estava entendendo à sua maneira o portunhol. Pelo jeito ele ficou intrigado pela junção da palavra escada ao número sete. — Sí, sí, és un número mui antigo no circo, mi querido. Mi papá se quedava deitado, apoiado num coxim triangular, sustentando unas 56


escaleras em forma de número sete. Bien, yo trepava nelas e hacia demonstrações arriscadas. A idéia era forçar ao máximo o limite de la gente, me entendes? — Si, disse Davi olhando sorrindo para a mãe, pois imitara o jeito de falar de Branca e Niegra. Em seguida, seus olhos brilharam, mas ele fechou levemente o senho: — Você nunca caiu? Perguntou Davi com a voz inconfundível da criança de cinco anos. Os adultos calejados abriram a roda para a passagem da inocência. — Sí, sí, como no. Faz parte da vida da gente de circo, cair e se levantar em seguida. Mas nunca me machuquei seriamente. Dover também vivia no Circo Águias Humanas por essa época, aí pelo final dos anos sessenta e começo dos setenta, começa a contar Niegra, com ar contemplativo. Finalmente alguém vai ao ponto que interessa, pensei. Ele hacia parte da nueva geración da Trupe Tangarás, com su hermano, Décio, e su sobrinho, Carlinhos. Nadie cruzava voando a abóbada de lona como eles, continuou Niegra. A Trupe Tangarás dominava os céus, suas evoluções pareciam pipas a favor do vento, empinados por una gigantesca mano invisible. Haciam números que nunca mais foram repetidos. Se perderam no tiempo... — O que você quis dizer com “nova geração” da Trupe Tangarás, quis saber Domitilla, com ar de pesquisadora da USP. — Ora, não conheces a Família Tangarás? – disse Niegra, olhando firme nos olhos de Domitilla, como a censurá-la. É una de las mas tradicionales do circo brasileiño. Hasta hoy los hijos ou netos dos Tangarás estão espalhados pelas principais empresas do país – só aqui na região de São Paulo, hay Tangará nos circos Spacial, Di Napoli, Stankovich... 57


— El viejo Tangará e a dona Nenê tiveram muitos hijos, continuou Branca. Ela paria feito índia, em silêncio na barriga do circo, amparada somente pelo viejo Tangará. Não confiavam em médicos. Da sua prole extensa, vingaram nueve hijos. São os famosos irmãos Tangarás, que todo mundo de circo conhece. Dirce, Dândalo e Darci formavam a primeira geração da Trupe Tangarás. Décio, Djalma e Dujenir, a segunda; e Durbis, Dover e Dalton, “la nueva geración” da Trupe Tangarás. Eram increíbes! Hacia de tudo. Trapézio, malabarismo, números de equilíbrio. Dalton, por exemplo, é até hoje chamado nos Estados Unidos, onde foi morar, “Dalto, the incledible”, por não cair do rola-rola. — Rola-rola? Que engraçado, divertiu-se Davi, que não deixava escapar nada e deve ter se lembrado que Dover quer lhe ensinar isso. — Dalton consegue se equilibrar numa sequência de sete cilindros, admirou-se com sinceridade Niegra. No alto, sobre uma pequena prancha, ainda sobe num monociclo. Isso nem chinês faz. — Habia um número de força e equilíbrio que envolbia cinco Tangarás hermanos, disse Branca. As irmãs Romeros não conseguiam falar por si própria. No caso delas, não se aplicava a palavra “indivíduo”, pois eram complementares. As pessoas sempre esperavam que elas formassem uma espécie de duo. Continuou: — Los mais viejos, Dândalo, Darci e Djalma se quedavam deitados en lo chão, apoiados em coxins. Los chiquititos Durbis e Dover, o caçula, eram arremessados de uma ponta a outra. Durbis sentava nos pés de Djalma, que dava impulso e o lançava até Darci. Na sequência vinha Dover. E assim sucessivamente até Dândalo, que os aparava pelo traseiros, dava um impulso final e os fazia cair de pé. Repetiam isso rapidamente várias vezes, de tal modo que o público não sabia quem era quem. — A arte vem do berço, teorizou Niegra. Vejam, o velho Tangará, e a dona Nenê eram o Casal Canção; logo, seus filhos, Décio e Dujenir, formaram a dupla infantil Mascotinha e Cabecinha. E assim ia o Re58


gional dos Tangarás por esse mundaréu afora, encantando la gente. Naquele tempo quase ninguém tinha televisão e as pessoas iam mesmo ao circo assistir shows musicais. Até aqui tudo o que as irmãs Romero contaram – com seu intragável sotaque que misturava castelhano, caipira e outros falares do Brasil profundo – não era exatamente novidade para mim. Sabia que a família Tangará era grande e que seus descendentes estavam espalhados pelos principais circos do Brasil. O cuidado com que narravam episódios aparentemente sem importância, porém, e principalmente os olhares furtivos trocados entre elas, indicavam que ainda tinham muito a revelar. Mas estavam receosas. Decidi provocá-las. — Afinal, o que aconteceu com o exímio trapezista Dover Tangará, filho ilustre de uma poderosa família tradicional de circo? É atrás dessa resposta que estamos aqui, não é? – disse, olhando com firmeza para Mangaliello. Como alguém, da glória das alturas, pôde descer tanto a ponto de hoje se arrastar pela sarjeta? A pergunta funcionou como um eletrochoque nas irmãs Romero. Olharam-se pálidas, mas rapidamente se recompuseram. Começaram a exercer o que parecia a antiga habilidade social de enrolar o interlocutor:

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— Sí, sí, como no. Cosas malas aconteceram naquela família, disse Niegra. Habia um chico muy guapo chamado Dândalo... — Sí, sí, el tipo tenia muy talento, continuou Branca. Era o mais velho dos filhos do velho Tangará. Tangia las cordas do banjo como ninguém, fazia entradas de palhaço, exibia-se como trapezista. Era um faz-tudo do circo Tangará. Um dia ele se murió de morte besta, num ensaio de trapézio, não se sabe se causado por cãimbra. Sí, sí, una maldición pesa sobre os Tangarás, como no. — Darci decidiu abandonar o trapézio e foi substituído por Durbis. Dover tornou-se o volante da trupe um pouco depois. O viejo Tangará tentou superar a dor de todos com sua disciplina de ferro, mas não resistiu por muito tempo. Perdeu a motivação e foi desanimando. Até hoje, uns 40 anos depois, la gente de circo lamenta a decisão do velho de fechar o circo dos Tangarás. O que não faz o desgosto por ter pedido o mais querido dos nueve filhos, lamenta Niegra. — Maldição? Fez atenta Domitilla. — Sí, sí, aconteceram muchas cosas malas nessa família. Dona Nenê, mãe de Dândalo, era muy nervosa e às vezes tinha crises de nervos de precisar ir ao sanatório. Não sei se isso passa de madre para hijo, mas vários de seus hijos tienem niervos frágeis tambiem. Ora, continuou Niegra, quem nunca ouviu falar do episódio do Dover Tangará? Mudou a vida dele, coitado. Meu deus, como sofreu e ainda sofre esse homem! A palavra “episódio” foi dita entre aspas, com certeza. Poucos têm na vida um episódio como proposto aqui. Que altera para sempre os rumos dos acontecimentos pessoais. Quem o tem e percebe a tempo, antecipa-se e talvez aprenda umas coisas com ele. Na boca das irmãs Romero a palavra “episódio” soava misteriosa. Era como o nome de um deus mau que não se deve pronunciar. Ou então uma doença pegajosa da qual não queriam nem se lembrar. O fato é que Branca e Niegra conheciam a vida de Dover em detalhes, mas aparentemente não queriam revelá-los. Senti que não devia pressioná-las, sob pena de secar a fonte de informações. Por que elas não desembuchavam logo? Estariam protegendo alguém? Não sabia como prosseguir. Estávamos todos ali transformados em pontos de interrogação vivos, do 60


editor ao pequeno Davi, passando pela atenta Domitilla, que delicadamente tomava notas. Foi ela quem resolveu o impasse: — Branca e Niegra, acredito que o viejo Tangará morreu há muito tempo, certo? — Si, si, há pouco mais de trinta anos, responderam em uníssono as irmãs Romero. — E, me corrijam se estou errada, vocês são bem mais novas que ele... — Sí, sí, como no. Domitilla notou a vaidade em Branca e Niegra e desviou o olhar cúmplice para mim. — Então, como vocês sabem tanto sobre a vida do pai de Dover?, disse Domitilla com o mesmo olhar. Branca e Niegra pareciam aliviadas. Finalmente chegamos ao ponto que lhes era leve. Agora sim poderiam completar o que se propuseram. — Lemos nesses livros, disse Niegra, enquanto Branca levantavase e dava dois passos até um pequeno armário. Retirou três volumes cuidadosamente de lá. Assoprou a poeira das capas. Súbito, ouviu-se o barulho duma pancada forte, como se alguém houvesse tentado matar uma mosca com extrema violência. Era Mangaliello, que, não se contendo diante da possibilidade de por as mãos naqueles livros que ele desconfiava serem raros e preciosos, levantou-se abruptamente e colocou a cabeça na trajetória das pás do ventilador de teto. Mesmo atordoado, suas vistas brilharam ao tocar os volumes. No primeiro deles os olhos de Mangaliello se detiveram na sobreposição de fotos em sépia, sobre a qual vinham impressos no alto da capa o título Sonhos Como Herança e logo abaixo o subtítulo Síndrome da Paixão. No pé da página, o nome da autora, Vic Militello. Os outros dois foram escritos pela mesma pessoa, Dirce Tangará Militello: Terceiro Sinal estampava na capa a foto de uma mulher na contra luz, deixando entrever um sorriso enigmático; e Picadeiro exibia o desenho singelo de um palhaço sentado no beiral do picadeiro, tendo atrás de si detalhes do mastro, do trapézio, da lona... — É por isso que você me pegou em casa tão cedo, Mangariello? — Sim, meu filho anarquista falou qualquer coisa. Seu professor de trapézio comentou a respeito dos escritos da gente de circo, disse 61


Mangariello, pela primeira vez investido da condição de respeitável editor. Percebi que é um costume entre o povo do circo tradicional registrar a própria memória em edições pagas do bolso. Pensei que seria lamentável a vida prodigiosa de tantos artistas do picadeiro ficar sem registro, perderem-se para sempre. Vejo aqui a oportunidade histórica de editar uma coleção dedicada ao circo, reeditando antigas obras e lançando novas, o que vocês acham? — Mãe, mãe, olha! O pedido filial de Davi monopolizou a atenção de todos, que nem responderam a Mangariello. O menino apontava para a porta do trailer que recebia mais um visitante. Na contraluz estava difícil ver, parecia mais uma criança chegando. Nem sei como aquele ambiente reduzido podia receber mais gente. — Mãe, ele tem bigodes! — Sim, ele usa bigodes, disse Domitilla em tom maternal. — Mãe, ele fuma! Como uma criança pode usar bigodes e fumar? Todos sorriram. — Não é criança, meu bem, é só um homem pequeno. — É o nosso amigo anão, o Marmota, explicou Branca. Davi àquela altura tinha pulado do banco e se aproximado do Marmota. Sem cerimônias, olhava diretamente, de perto, como se examinasse. Depois, postou-se ao lado do Marmota e confirmou ser mais alto. Deu de ombros e voltou para o seu banco. O anão ficou o tempo todo parado e sério. — Mãe, ele é um gnomo? Ao ouvir isso os espessos bigodes de Marmota se enfezaram. Pelo jeito, aquele homem minúsculo não tinha muita paciência com crianças. Sem dizer nada, ele se virou e atravessou rispidamente a cortina anti-mosca. Saiu. Todo mundo caiu na risada. Até Davi riu, sem bem saber por quê.

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Capítulo 10

Solavanco Soviético Todos saímos atrás do Marmota. Foi bom deixar o trailer. O ar do cubículo estava viciado. O sol da manhã já ia alto e ofuscava. Senti a brisa e olhei os carros que vinham pela Radial Leste. — Vamos? Fez Mangaliello. Acho que já estava mesmo na hora de ir, pois Domitilla e Davi se apressaram em se aprontar. Pegaram bolsa e bloco de notas no trailer, ajeitaram as roupas e responderam: — Vamos. As irmãs Romero ficaram em silêncio, observando. Elas também estavam cansadas. Por fim, Branca dirigiu algumas palavras a Davi: — Aquel enano foi um gran palhaço, meu filho. El no só és adulto, como já está viejo. Pero, tu um dia se quedará assim también, Davi. Talvez um pouco mais alto, é verdade. Ao dizer isso, Branca riu pelo canto da boca. — Su nombre é Luiz Francisco, continuou Niegra, mas la gente o chama de Marmota, excêntrico Marmota. Marmota fez dupla famosa com Pinguim, um nanico menor ainda que ele, do Circo Nerino. As crianças não o deixavam em paz. Até as mulheres grandes corriam atrás deles. Viviam como nanabos, senhores de si, endinheirados. Mas la vida, mi hijo, prega peças em pessoas de todos os tamanhos. Hoje Marmota não tem para onde ir. Sem aposentadoria, dorme num trailer enferrujado por aí. — Acho que é por isso que ele não gosta mais de crianças, concluiu Davi. As Romeros assentiram com a cabeça. Depois correram até ele e o abraçaram forte. Os abraços foram seguidos por uma troca de olhares bem no fundo dos olhos. Pareciam dois mundos que se encaravam.

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Um deles era antiguíssimo e não pertencia a lugar nenhum. Não se sabia se sua arte estava morrendo ou se transformando. As irmãs Romero sentaram-se nos degraus e ficaram mirando os visitantes partirem. Os cachorros se alvoroçaram, mas nem isto as pertubou. Voltaram à barriga do circo, onde o tempo não passa. — Hasta la vista, dissemos sem acreditar muito no que estávamos dizendo. Elas pronunciaram ainda algumas palavras ao longe, enquanto nos distanciávamos, não deu para entender bem, mas acho que era qualquer coisa sobre um “episódio” na vida de um trapezista descrito em um dos livros. — És sobre el amigo de ustedes, gritaram as irmãs Romero em duo. O jipe pegou a Radial Leste com gosto. Olhei para trás, Domitilla soltava os cabelos. É sempre bom ver uma mulher soltar os cabelos. A brisa entrava pela janela e fazia com que Domitilla quase fechasse os olhos e quase abrisse a boca, num leve sorriso. Soltou o botão de cima da blusa creme para refrescar o pescoço. Estava tranquila, como quem não podia se queixar da vida. Davi ao lado, querendo se recostar, embalado pelo carro. Também não podia me queixar da vida. Por meio do Filósofo Voador, mesmo indiretamente, estava conhecendo o mundo do circo. Por meio do Filósofo Voador, estava conhecendo Domitilla. Olhava-a como um astrofísico olha uma estrela. Vai mirando o telescópio, observando de longe, mas o que ele quer mesmo é chegar lá. Mangaliello voltou a assumir a atitude de chefe de equipe. Dirigia com desenvoltura, os movimentos largos. Parecia ter mais braços e pernas do que o normal, que esticavam conforme a necessidade. Ao trocar de marcha, prolongava o antebraço e subia o cotovelo; ao fazer uma curva, deslizava as mãos sobre o volante, até os dedos se enroscarem. Estava em missão. O Niva é um veículo básico e robusto. Todos os princípios da mecânica e da dinâmica estão satisfeitos. Feito para funcionar e durar. Mas, assim como a União Soviética que o gerou, o jipe Niva não suportou a concorrência capitalista. Mangaliello, no entanto, não abria mão de seu veículo comunista, que ele carinhosamente chamava de Sacha. 64


— Estou louco para analisar os livros que as irmãs Romero passaram pra gente, mas como sou bonzinho deixo vocês lerem primeiro, disse condescendente Mangaliello. O Niva venceu com dignidade a cebola de viadutos que liga o leste ao oeste da cidade. Surfou no mar cinzento, casario ondulante e largado, prédios caindo aos pedaços, pintura velha, pombo urubu. Davi apontou para um prédio colossal que ficava para trás e perguntou o que era aquilo que parecia um castelo. Deu pra ver carroceiros, pedintes, mães e crianças se aglomerando. Domitilla explicou-lhe que na fachada estava escrito Deus é Amor, portanto, deveria ser uma igreja. Domitilla não afirmava nada a Davi, mas ajudava-o a concluir por si mesmo. — Olha, papai Noel veio nos ver passar! gritou Davi, apontando para um boneco de inflar de roupas vermelhas que estava sendo erguido naquele instante por um sistema de roldanas, em frente a uma loja. “Diabos, o Natal tá aí e é inevitável”, pensei. Via réstias de luzinhas penduradas aqui e acolá, mas ainda não tinha me dado conta de como a cidade estava totalmente contagiada pelo vírus natalino, difundido pelas lojas nesta época do ano. Desta feita, era pior, pois a virada do milênio tornava tudo mais urgente, importante e histórico. Enquanto o Niva avançava, agora subindo a Consolação, senti-me, não olhando, mas sendo olhado pelas vitrines, girlandas, sinos, renas, presépios, reis magos e... é verdade... pelo próprio Cristo. Eu que não creio vi nosso senhor caminhando suavemente pela calçada. Envolto em andrajos, tenho certeza que ele me olhou no início da avenida Rebouças, na altura do Hospital das Clínicas, enquanto revirava uns sacos pretos abandonados, talvez decidido a não recorrer ao milagre da multiplicação dos pães. Num gesto longo, Mangaliello engatou a terceira marcha e, com as duas mãos no volante, inclinando o corpo como se estivesse numa moto, dobrou a esquina da Moira. Súbito, pisou no freio, provocando um verdadeiro solavanco soviético no velho Niva. — Deixo vocês aqui. Já está quase na hora do almoço e o pessoal da Alfa & Omega me espera. Dêem uma boa olhada nos livros dos Tangarás e depois a gente conversa. 65


É claro que o velho e bom Mangaliello sabia o que estava fazendo. No caminho eu vinha matutando um jeito de convidar Domitilla a entrar em minha casa sem dar bandeira nem estragar tudo. E o editor me ajudou sem querer querendo. Agora seria muito difícil para ela recusar. Foi Davi quem tomou a iniciativa: — Quer dizer que é aí que você se esconde? — Que é isso, meu filho, onde você aprendeu a falar assim? — Mãe, ouvi na televisão, respondeu Davi, como se estivesse dizendo a coisa mais óbvia do mundo. Ajudei Davi e Domitilla a descerem do Niva. Ergui a cabeça e me deparei com o sobrado laranja. A tranca de ferro estava enlaçada por um cadeado. — Quero convidá-los para entrar, mas tenho vergonha. Sabe como é, casa de solteiro desleixado... É claro que era mentira, estava jogando, mas não sabia se Domitilla percebia. — É ridículo o que você está dizendo. Se até agora a gente está convivendo com homens de rua e de circo sem essa preocupação... Vamos, Davi, vamos conhecer a casa dele, mas sem demorar muito, pois logo é a hora do seu almoço. — Oba! O Filósofo devia estar a uns cem metros dali, postado em seu lugar debaixo da placa Deus é Fiel. Ao lado dele, é provável que Pedro estivesse sentado, tendo ao seus pés a locomotiva de badulaques e Paulo, o cão. Eles vivem numa bolha, estão no mundo, não há divisórias entre eles e o resto, mas, em compensação, delimitam um território que é só deles, cujas paredes não nos é dado ver. O que faria o Filósofo se soubesse que temos em nossas mãos versões escritas da vida de sua família? Davi entrou curioso em minha casa. Observava tudo como se estivesse numa loja escolhendo um brinquedo. Mexia nas coisas. Domitilla fazia o papel de mãe-preocupada-com-a-falta-de-modos-do-filho. Depois, sentou-se no sofá de napa cinza e relaxou. Ofereci a eles um refresco de groselha. Ato contínuo, como se encarnasse uma dona-de-casa atávica, Domitilla demonstrou estar disposta a me ajudar na cozinha. 66


— Nada disso. Fique sentada aí. Vou lhe mostrar uma coisa. Dito isso, fui ao catre buscar o hard cover e o deixei sobre o sofá de napa. Domitilla o reconheceu. Era o mesmo do Ponto Chic. Fique à vontade para anotar o que quiser no caderno. É uma espécie de diário de bordo das nossas andanças com o filósofo das ruas. Voltei para a cozinha a fim de preparar a groselha com leite do Davi. A garrafa de extrato de groselha estava na geladeira; o diabo era arrumar uma vasilha para fazer o refresco e lavar os copos de requeijão. Percebi que não tinha leite em casa (nunca tinha leite em casa). Decidi escapar pela porta da cozinha para comprar um Longa Vida. Lembrei que o Tangará pousava próximo à CPL, a padaria perto da minha casa, e tive dúvidas se queria vê-lo naquele momento. Não queria ninguém se intrometendo no meu encontro com Domitilla e Davi. Mas quem já estava embaixo da placa Deus é Fiel conversando com Dover era o editor. Na certa Mangaliello lhe contara tudo e o Filósofo exigiria os livros da sua família. Continuei caminhando a passos largos, decidido a apenas dar um oi, sem maiores explicações. Para minha surpresa, esticando os braços e balançando as mãos, Dover não me deixou parar. Piscou os olhos e dirigiu para Mangaliello um olhar maroto. Quando voltei para casa com o leite de vaca, Domitilla escrevia no meu caderno como eu próprio havia sugerido meio só por gentileza. Que audácia... mas gostei. Ao me ver, fechou tranquilamente o hard cover sobre as pernas cruzadas e sorriu. Davi fuçava meus livros como se soubesse ler. Senti que deveria agir como se fosse a coisa mais natural do mundo, alguém registrar suas idéias nas mesmas folhas de papel em que registro minha escritura íntima. Não li na hora o que vocês vão ler no próximo capítulo. Por que não? Não foi por medo. Um certo pudor, talvez, me fizesse reservado. Ler as palavras manuscritas por Domitilla em meu próprio caderno podia despertar emoções para as quais eu não me sentia preparado. Devo confessar, era medo sim. Senti um verdadeiro solavanco soviético na alma. Fiquei tenso sem querer, agitado. Pus correndo os sanduíches no fogo e, enquanto esperava ficarem prontos, preenchi o tempo – tudo para evitar ler na frente dela o que escrevera no hard cover – olhando detalhadamente os quadros na parede com Davi. 67


Em frente ao sofá de napa pendiam em volta da vidraça reproduções emolduradas de iluminuras do final da Idade Média e de cartas náuticas do início da Idade Moderna. Davi fixou os olhos em uma imagem retirada de uma folhinha de 1997, oferecida pela empresa Paul & Shark Yachting. Como o quadro estava bem acima da cabeça dele, emprestei um banquinho de pernas altas, desses de balcão de bar. Conforme fui lhe explicando, a cena ilustrava o mês de dezembro do Livre d’heures du duc de Berry, um nobre francês do séc. XV. Era um calendário interessante em relação aos de hoje, uma vez que marcava não um ano, mas um período de 19 anos. Ciclo em que as fases da lua coincidem com os anos solares. Sobre cada página havia um semicirculo no qual foram pintados os signos do zodíaco, com sua divisão em trinta graus. Ou seja, era um calendário solar, lunar e zodiacal ao mesmo tempo. Os artistas desse tempo usavam o óxido vermelho de chumbo como pigmento, que conferia vivacidade surpreendente às cores de suas miniaturas. Não é à-toa que Davi se impressionara: em primeiro plano, um imenso javali, ou animal que o valha, sendo dilacerado por nove cães ferozes. Esses pitbulls da época pertenciam a três caçadores rudes, que atuavam maquinalmente, talvez enfadados de seu metiê. No centro do quadro, um bosque marrom, sem uma folha verde, tornava a ação ainda mais lúgubre. Ao fundo, via-se as torres simétricas de um rico castelo. Por trás, o anil profundo do céu. Domitilla não deve ter entendido porque eu dava tantas explicações para o seu filho. Estava a ponto de me desesperar. O que ela teria escrito no hard cover e principalmente como eu reagiria ao ler seu texto me deixava com medo de ficar afetivamente como o javali descrito acima. Em seguida, Davi voltou sua atenção para um mapa de uma folhinha de 1992, editada pelo Service Publicité d’Air France. Desceu do banquinho e o posicionou melhor. Lá vou eu novamente dizer que a companhia aérea selecionara algumas cartes anciennes de cartógrafos portugueses, holandeses e franceses. Ricamente ilustradas, elas hoje pertencem ao acervo da Collection Bibliothèque Nationale. Era uma carta de 1519 do Atlas de Miller. Nele os cartógrafos portugueses Pedro e Jorge Reinel desenharam, ao longo da costa da “Terra Brasilis”, índios nus cortando 68


e carregando madeira vermelha, em meio a árvores esparsas e troncos decepados. Eles são vigiados por guerreiros de arco e flecha em punho, cocares, manto e saiotes feitos de penas multicoloridas. Os desenhos são toscos e não seguem as leis então em voga da perspectiva central (os índios do fundo são maiores que os paus-brasis). Os acidentes geográficos sim são detalhados. Olhando essa atividade econômica, alguns animais, onça, macaco e aves. Atrás da fauna brasileira, um dragão verde amarelado espreitava, com a bocarra ameaçadora escancarada, da qual se prolongava ereta uma língua vermelha em formato de espinha de peixe. No outro extremo, no mar, um pomposo galeão dourado aproximava-se, com suas velas cruz-maltinas içadas ao vento. O vidro na moldura ao mesmo tempo protegia a imagem e refletia quem a olhasse. Davi via-se ao ver. Talvez ele quisesse continuar olhando os quadros na minha parede, mas de repente ficou inquieto. Encurvava-se e movia-se só da cintura para baixo. Roçava uma perna na outra, punha uma ou duas mãos entre as pernas e apertava, dançando uma estranha coreografia sobre o banquinho de pernas longas. — Davi, não é melhor você ir ao banheiro logo fazer xixi e depois continuar vendo esses trabalhos? – Perguntou Domitilla. Ah, as mães, que sabedoria elas não têm. Seu conhecimento vem do corpo-a-corpo no peito, ou antes disso, das entranhas. Sabe tudo sobre o Davi. Essa constatação me fez relaxar. Fiquei tranqui­lo novamente. O menino foi ao banheiro e quando voltou aliviado disse uma frase enigmática, que mais parecia um axioma homeopático: — O xixi é o remédio da privada. Voltei à cozinha. O lanche estava pronto. Coloquei a bandeja redonda sobre a mesinha retangular em frente ao sofá de napa. Nela, três copos de requeijão cheios de leite com groselha e três sanduíches de queijo branco derretido e mortadela no pão francês, que preparara no forno. Era a única coisa que eu tinha em casa e servi à guisa de almoço. Adoro a expressão “à guisa de”, quase tanto quanto gosto de groselha com leite e sanduíche de queijo minas e mortadela. Ambos me remetem a tempos passados que insistem em se fazerem presentes. Agora já podia ler o que Domitilla escreveu no hard cover: 69


Capítulo 11

Hard cover: o inteiramente outro O mundo dos anões é povoado por nanicos aleijões, homens-troncos grotescos, minorcas espertalhões, pigmeus negros ou albinos e prováveis descendentes de gnomos. Expulsos do convívio social, eles manifestam desde cedo a vocação para o palco. Não existe anão mau ator. Desde sempre ele habita o imaginário das crianças. O papel já está pronto. Quando lhe é chegada a vez, o anão só precisa vestir o personagem. O inteiramente outro atrai e repele ao mesmo tempo. O anão, a mulher barbada, o gigante, o descomunal, o deformado, o alienado encontram um lar no circo. As pessoas se divertem com eles, não tanto por suas aparências ou palhaçadas, mas por sentirem-se felizes por não serem elas a estarem ali, no picadeiro, separadas de todo o resto, os anões, os artistas e os animais. Aceitar o mesmo é fácil. O circo é a primeira instituição social a aceitar o outro. Sem preconceitos e com alegria. Nem a família faz isso. Talvez porque o homem e a mulher circenses estejam habituados a expandir os limites de seu físico e sabem, mais do que ninguém, que o corpo é uma dádiva que pode ser tirada. Dizem que os anões aos sete anos já são adultos, o que não deve ser verdade. Mas é fato que a maioria deles têm barbas e cabelos longos e grisalhos, se cobrem com gorros vermelhos e casacas verdes aveludadas. Em alguns o nariz e as orelhas são proeminentes. Não deve ser verdade que os dedos dos seus pés são unidos por membranas, mas é quase certo que eles portam alguma deficiência, às vezes a ausência de dedos, às vezes os pés virados para trás, feito o curupira das matas brasileiras. Como esses guarda-chuvas que a gente esquece num canto e ninguém sabe para aonde vão, alguém já viu enterro de anão?

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Capítulo 12

O episódio Terminei a leitura em voz alta comovido, não tanto pela originalidade das idéias ou complexidade dos conceitos, mas por certa ingenuidade que perpassa todos os parágrafos. O que ela queria dizer com essas palavras? Pensava assim mesmo? Era como se o texto estivesse contaminado pela visão de mundo espontânea e fantasiosa da infância, apesar da seriedade e do tom ensaístico. Percebi pela primeira vez em minha vida que poderia escrever a quatro mãos, sem me sentir violentado ou obrigado a fazer muitas concessões. É claro que não disse nada disso para Domitilla. Ela também não me parecia interessada em saber minha opinião. Tinha consigo os três livros dos Tangarás e, pela expressão facial, estava chocada com o que lia no Terceiro sinal. — Por favor, leia em voz alta, pedi-lhe. — É um capitulo intitulado A loucura, na página 93, disse-me Domitilla. Dirce Tangará Militello, a irmã mais velha de Dover, conta muito por cima sobre um problema que certo circense, a quem a autora chama apenas de “um trapezista”, enfrentou com a polícia. Não sei se entendi bem, mas ele teria sido preso por assinar um papel no cartório dizendo que um argentino era brasileiro. O tal argentino queria apenas não ter que sair do Brasil para continuar trabalhando em circo aqui. O trapezista pagou pelo falso testemunho. Foi levado à delegacia e só liberado na tarde do segundo dia, horas antes do

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espetáculo daquela noite. Será o Dover? Na hora de se apresentar novamente no circo, veja o que aconteceu: “A sua inexperiência, o seu temor, foram se agigantando, envolvendo a sua estrutura física. Um frio subiu-lhe pela espinha, envolvendo todo o seu corpo. Já não sabia seu nome, escondiase, temendo a tudo e a todos. O trapezista, com a cabeça entre as mãos, com os olhos estalados e o medo estampado no rosto, olhava atônito os trapézios que balançavam no ar. Não ouvia a música... Não via o público... Estava louco”. Será o Dover? Repeti. Será que ele nunca mais trabalhou em trapézio depois disso? Sabia que muitas das pessoas que estão nas ruas têm problemas mentais. Seria esse o caso de Dover Tangará? Não parecia. Sua lucidez, charme e sedução estavam se tornando famosos na Moira. — Achei uma menção direta ao Dover Tangará neste aqui! – disse com entusiasmo Domitilla, segurando Sonhos como esperança nas mãos. O livro da filha de Dirce Tangará Militelo, Vic Militello, que tinha Síndrome da paixão como subtítulo, dava uma versão parecida ao “episódio”, com algumas diferenças. Domitilla pôs-se a ler na página 113: “Quando o trapezista Dover, um dos filhos dos Tangará, volante mais brilhante do seu tempo, por ingenuidade, testemunhou que um casal de artistas estrangeiros já estava no Brasil antes da revolução de 64, não sabia que o que estava alegando não era verdade e a polícia podia provar. Estava pronto para o número quando dois policiais truculentos mostraram as credenciais e o fizeram acompanhá-los só com o tempo de colocar uma capa cobrindo sua malha prateada. Ele mostrou-se apreensivo e olhou para os irmãos, que também mostravam o medo que tomava conta dos artistas de modo geral. Mas foram até a delegacia e esperaram do lado de fora, enquanto Dover prestava esclarecimentos em um interrogatório. Só não bateram nele. Nada de tortura física. Mas o ameaçavam, dizendo o que fariam, caso ele negasse participação em coisas que ele nem sabia do que estavam falando, no jogo de tortura psicológica, um falava ao outro 72


que fosse buscar um instrumento de choque ou as pinças que arrancavam unhas.” — Coitado do Dover, interrompeu Domitilla. Caiu nas mãos dos militares, em plena ditadura. Como deve ter sofrido, disse com a expressão maternal que me enternecia. Mas em seguida sua cara mudou. Agora era a pesquisadora que falava. Quando será que isso aconteceu? Acho que foi no início dos anos 1970, com o endurecimento do regime. — Mas Dover voltou a trabalhar como trapezista, insisti, ou aí também diz que ele nunca mais voou? Domitilla continuou a ler: “Quando Dover se preparava para o número, parecia sempre que estavam chegando de novo para levá-lo e só de pensar no que diziam que fariam, ele tremia e não podia trabalhar. Foi piorando, piorando. Muitos tratamentos e algumas internações depois, nunca mais voou no trapézio.”

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Capítulo 13

Um bar no Bom Retiro Os baixos mal-iluminados do Bom Retiro abandonam-se à noite. O comércio desce as portas, montículos de sacos de lixo pretos ou azuis pontuam a escuridão. Pessoas, nem pensar. Se vir, corre que é risco. E, no entanto, fervilha ali gente sob a luz do sol. Barganham, trocam, trapaceiam. É natural que os humanos queiram apenas viver e não se sintam responsáveis pela humanidade; por isso jogam nas calçadas sem culpa os restos de sua sobrevivência. Quem caminha pelo Bom Retiro à tardinha chuta copos de plástico, pisa em papéis de embrulho, desvia-se de gordas cusparadas. A prefeitura que mande um caminhão pipa dar um jeito na sujeira mais tarde. Homens de mãos grandes dentro de luvas ásperas segurando mangueiras grossas que jorram água em labaredas farão o serviço. Que levem de roldão a porcaria acumulada do dia. Cuidado com os jatos d’água, menino, você que se recolhe mais cedo na rabeira da calçada, enfurnado entre sacos de lixo. Ninguém quer você aí. Eram 22 horas quando nos aproximamos do ponto de encontro, um bar anônimo no Bom Retiro. Preciso dar um nome a esse estabelecimento comercial, pensei, nomeá-lo como Adão no Paraíso nomeou os bichos. Que tal bar Vera Cruz, Domitilla? No outro lado da rua funcionava uma delegacia. À volta, à frente e atrás, só o vazio e o escuro. O bar Vera Cruz sentia-se protegido na zona orbital da delega. O carrão do delegado de polícia e algumas viaturas estacionadas de viés, trepadas na calçada, obstruíam a passagem e deixavam claro quem mandava ali. Um pequeno grupo de homens e mulheres embalava-se ao som da máquina de música que espirra uma luz mortiça de dar dó. Antigamente os bondes para o Bom Retiro vinham apinhados de machos em busca de fêmeas. A região concentrava exemplares

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do sexo feminino desfrutáveis mediante pagamento. Os homens desciam apressados e saltitantes se embrenhavam nas ruelas do bairro. Daí o nome Bom Retiro. No dia anterior à incursão ao Bom Retiro, quando me dirigi à CPL para buscar leite para Davi tomar com groselha em minha casa, percebi que Mangaliello contava ao Filósofo sobre nossa visita às irmãs Romero. Dover Tangará soube então que os segredos de seu passado batiam à porta. Talvez por isso ele concluira ser hora de dar sinal de vida à única pessoa que lhe importava no mundo. Quem seria o encarregado de tal missão, eu descobriria logo. Após ler nos livros da irmã e da sobrinha de Dover as tristes referências ao Filósofo, Domitilla ficou compungida e pediu para ir embora. Ofereci uma carona. Antes de pegar o carro, na entrada do estacionamento Paraki, surgiu Dover para me falar algo sigilosamente: — Nunca te pedi nada, mas agora preciso de um favor: Você liga para o número do celular que vou te passar e diga a quem atender as seguintes palavras “sei onde Dover Tangará se encontra”. — Mas quem devo procurar? — É uma mulher. O nome dela é Sônia. Domitilla entendeu que precisava me deixar fazer o que o Filósofo havia me pedido. Combinamos que qualquer novidade sobre essa tal de Sônia, ela seria a primeira a saber. A minha vontade é dar um jeito de mantê-la perto de mim, mas, no quilômetro 25 da rodovia Raposo Tavares, nos despedimos rapidamente. Davi dormia em seu colo. Voltei à Moira e do meu catre disquei para o número dado por Dover: — Alô, é a Sônia? — Pois não? — Dover Tangará vive nas ruas, disse dispensando as formalidades. Sei onde ele está neste momento. Seguiu-se um longo silêncio do outro lado da linha. Para, então, ouvir as seguintes palavras peremptórias: — Isso não pode continuar assim. Vou buscá-lo. Mas tenho que organizar umas coisas antes. Aguarde um telefonema meu. 75


Sônia Nery é filha de um antigo telepata do Circo Garcia, a última mulher com quem o Filósofo compartilhara o trailer antes de cair na vida livre e sem rumo. No dia seguinte, Sônia ligou logo cedo me convidando para participar duma homenagem ao Filósofo no Bar da Marília naquela mesma noite. Fiquei sem entender. — Avise o Tangará, ordenou-me. Está tudo combinado. Marília Rapunzel vai preparar uma chuleta na tábua e ele poderá tocar violão e cantar como nos velhos tempos. — Quem é Marília Rapunzel?, perguntei. — Na hora você descobre, respondeu risonha, me intimando a comparecer ao encontro. A segurança com que agia, tomava decisões, e o toque de mistério ao proferir as palavras me agradaram. Não poderia faltar. Era a oportunidade de conhecer a mulher de Dover, vê-lo tocando e cantando e saber mais do seu passado. Quem sabe eles não se acertavam e a Moira perdesse seu hóspede libertário. Ato contínuo, fui ter com o Filósofo. Como se já esperasse esse convite, ele respondeu com naturalidade que estaria lá à noite. Não era preciso carona, eu que não me preocupasse, ele sabia o caminho. Naturalmente, dei um jeito de levar Domitilla comigo. Seguir a história de Dover nos unia. Ela havia me contado que seu método de pesquisa era enfiar-se em situações que de algum modo se relacionavam com seu objeto de estudo, ainda vago, e apontar sua câmara mental para tudo o que estava acontecendo. Depois, procurava no copião resultante um fio-de-meada e o retrabalhava até a exaustão. Nessa noite, Domitilla combinou deixar novamente Davi com a avó. No corredor ao lado do balcão do Bar Vera Cruz, indo para o banheiro, havia mesas e cadeiras de material plástico. A matéria e a vida são plásticas. Assim que cheguei, tentando agir com naturalidade, avistei na minha frente o ex-trapezista Dover Tanguará. Fiquei um tempão só olhando, sem saber como agir. Lá estava meu Filósofo em mangas de camisa de seda carmim, fumando um cigarro após o outro e bebendo goles e mais goles de cerveja. Rodeado de pessoas. Assustei-me com a transformação. Não era mais o asceta hindu, que pouco 76


se movimentava e quase não comia debaixo da placa Deus é Fiel. Tinha diante de meus olhos um artista em pleno palco. Talvez não quisesse testemunhas do seu reencontro com Sônia e por isso fora mais cedo a casa dela. Andara a pé de Pinheiros à Vila Prudente. Sei lá que transmutação esse encontro principiara. Sei que Sônia tratava-o como um rei da boêmia à antiga. Com que facilidade ele assumira o papel de uma espécie de Dom Juan da fronteira, caboclo e decadente, mas rodeado de fiéis admiradores. Começava a ficar claro para mim o quanto a queda de Dover Tangará simbolizava a derrocada do circomundo, um certo modo de vida que se tornara anacrônico em face dos novos ventos econômicos e sociais. Dover não queria simplesmente reencontrar a mulher e os amigos. Não. Era preciso que isso fosse feito em grande estilo, como nos bons tempos de circo, em que ele era a estrela. Dover precisou de um movimento pendular vigoroso para sair das ruas. Deixou a sarjeta para voltar à glória. — Sentem aqui, meus amigos, e conheçam com quem passei os melhores anos da minha vida, disse Dover, apontando uma pequena mulher carcomida pelo tempo, mas de olhos vivos e prontos a revelarem segredos. Ao seu lado, outra mulher de físico avantajado e rosto sorridente, emoldurado por cabelos loiros, grandes argolas douradas nas orelhas e voltas de imitação de pérolas no pescoço. Notei os prolongamentos dourados entre os peitos generosos. Contei uma infinidade de anéis. — Quero lhes apresentar Marília Rapunzel, o primeiro grande amor da minha vida – contou Tangará com a simplicidade das novelas, apontando a mulherzinha. Por incrível que pareça, hoje ela está aqui para me render homenagens às instâncias da minha segunda mulher, Sônia Nery, essa aí ao lado de Marília. Como dizem os argentinos, “é pela cagada que se conhece o pato”, completou Dover, soltando um sorriso irônico, no que foi seguido pelas duas mulheres com um inesperado entusiasmo. — Prazer, fiz com as mãos. Domitilla vacilava entre estender a mão ou beijá-las quando se viu agarrada por Sônia num forte abraço. Marília preferiu beijos glaciais. 77


Dover portava um violão bem lustrado e de fina afinação. Dedilhava suas cordas sem pressa, arrancando melodias perdidas na memória, boleros e canções boêmias. Sua voz saia pausada, num andamento lento, mas preciso. Não sabia o título das canções, nem o compositor. Seu estilo agradava as mulheres. Cantava: Meu amigo teu amigo vai-te agora para não te ver sofrer há mulheres que não têm o dom divino de nascerem para o destino de viverem só para um... Sentados em volta de uma mesa de plástico branca, além das duas esposas, ali estava o grupo dos últimos amigos de um velho trapezista que havia trocado as alturas do circo pela sarjeta. Domitilla e eu apenas observávamos. Embora fosse ele o homenageado, era Dover quem homenageava cada um dos presentes por meio da música. Primeiro, apontou seu violão para uma negra triste de nome Arlete que momentos antes contara de um assassinato num hotelzinho puteiro de sua propriedade, na rua Amaral Gurgel; depois se voltou com ar apaixonado para uma delegada de polícia que se juntara a eles e repetia a todo instante “canta Ronda”, “canta Ronda”; lançou em seguida um olhar de desdém para um homem anônimo que declarara estar à procura dos pais, pois tinha sido criado na Febem. Sônia convidara ainda uma amiga loira que evidentemente procurava um namorado e um rapaz com um dragão tatuado no peito, cuja cauda se estendia até o braço esquerdo, fazendo-se passar por malandro. De quebra, Sônia a toda hora dava um petisco a um menino de uns 12 anos, a quem se referia como “o amarra-cachorro de meu pai”. Era um neguinho que se sentira irresistivelmente atraído pelo Circo Garcia na Baixada Santista e resolvera abandonar a família e se integrar ao circomundo. Por fim, alguns curiosos dos outros bares achegavam-se para ouvir a música dor-de-cotovelo na voz rouca de Dover: 78


Meu amigo Me declaro Essa mulher que te beija Te beija pensando em mim. A mulherzinha de metro e meio, longas tranças e que atendia por Marília Rapunzel, fiquei sabendo mais tarde, no passado arriscara-se pilotando uma motocicleta no Globo da Morte. Desde os tempos de seus avós, Bernardo e Hermandina Pereira Pinto, artistas do Circo Nhô Pai, sua família perpetuava a arte do Globo da Morte. Hoje ela apenas toca o Vera Cruz com as filhas de outro casamento, Lidiane e Liliane. O bar defronte à delegacia não é tão bom negócio assim; pode ser seguro, mas afugenta a malandragem e suas extravagâncias, a malandragem e suas polpudas gorjetas. — Conheci esse homem quando ele ainda era um menino de sete anos, contou apontando o Filósofo. Eu tinha 18 e já era casada. Trabalhávamos no mesmo circo. Ao dizer isso, fechou os olhos e meneou a cabeça. Seus gestos eram serenos e concatenados. Uma longa trança marrom ajeitou-se a partir do ombro até o regaço. As mangas arregaçadas da blusa cinza, o jeans, o par de tênis talvez fossem para disfarçar. À medida que narrava seu caso de amor por um menino 11 anos mais jovem, Marília ia assumindo ares transcendentais; era outra pessoa que estava na minha frente, sua carne se transubstanciava na habitante dos circos de tempos imemoriais, pequenina e de longas melenas, pelas quais às vezes se balançava, de boca vermelha de engolir fogo e espada, de pernas e braços firmes de equilibrar-se em cavalos e em homens e se contorcer toda. — Você também nasceu na barriga do circo – Domitilla puxou conversa com Rapunzel. — Puxa, se não, minha filha! Meu pai e minha mãe viveram 62 anos no Circo Garcia. Eu nasci lá, minha primeira filha e minha primeira neta também. Quando Dover era criança, a mãe dele, dona Nenê, fazia sapatilhas para a gente trabalhar. Foi assim que eu o conheci... — E você se apaixonou por ele nessa época? Quis saber Domitilla. 79


— Não, é claro que não, ele era apenas uma criança. Segui minha vida, casei com um homem que não era artista, sai do circo e tive duas filhas. Mas, sabe, não conseguia me adaptar à vida do lado de fora da lona. Acabei me desquitando e ficando com as crianças pequenas. Um dia, percebi que um circo estava sendo armado perto de casa. Estava com saudade do cheiro de pó de serragem. Fui olhar o picadeiro, como faziam as moças daquela época. Logo surgiu a turminha dos Tangarás. Dover se aproximou e me convidou para eu vir ao espetáculo à noite. “Mas quem é você?”, quis saber, pois não o havia reconhecido. “Ora, sou o Dover Tangará”. “Dover! Nossa, te conheci com sete anos”. Ele tinha 19 e eu 30 quando nos reencontramos. Ele já era um artista respeitado no meio. Passei a ir assistir o espetáculo todas as noites para vê-lo voar. Na quarta vez Dover me convidou a pegarmos uma praia em Santos. Me fiz de ofendida mas aceitei. Dali uns dias embarquei com o circo para o Mato Grosso. Deixei uma das minhas filhas com a minha mãe. A outra, levei. Praticamente abandonei tudo para ficar com o meu homem, mas nunca fui aceita pela família dele. Acho que por ser mais velha e desquitada. — Marília é uma menina que eu adoro até hoje. A primeira vez que nós conversamos – relembrou o Filósofo – antes de ter qualquer contato mais íntimo, ela falou para mim: “Dover, eu não posso ter mais filhos. Já tenho duas! Um dia você vai querer ter filhos... “ Mas vivi 15 anos com essa mulher e só não vivemos mais porque ela cansou, quis seguir outros caminhos... Conseguia enxergar o jovem Tangará, trapezista revelação do circo Irmãos Tangará, sentindo o hálito quente daquela mulher madura. O sorriso insinuante nos bastidores e as longas tranças emoldurando o olhar enigmático a transformavam numa espécie de divindade pagã das lonas. Para o menino inocente, cujo universo se resumia ao circomundo, Maríla Rapunzel aparecia irresistível. Dover uniu-se a ela aos 19 anos. Compartilharam a vida e o picadeiro em um lugar após o outro, sem nunca abandonarem a barriga de lona. Ao lado dela, Dover viveria episódios prenhes da história de sua época. 80


Circunspecto e mantendo distância afetivamente segura de Marília Rapunzel, sua ex-primeira mulher, Dover Tangará revelou nunca conseguir abandonar quem quer que seja. Todos ali perceberam que ele estava profundamente tocado. As causas verdadeiras da sua separação de Rapunzel só seriam reveladas mais tarde. O Filósofo Voador havia decidido abandonar a Moira naquele dia, sensível aos apelos de Sônia – a Moira e seus companheiros, a Moira e Pedropaulo. Voltara a se recolher com a ex-segunda mulher, desta feita num galpão nos fundos de uma oficina de manutenção de barcos e de aparelhos de parque de diversão. Wilson Nery, o pai de Sônia, permanecia no Garcia, mas ela tinha abandonado a barriga do circo. Ela que durante tantos anos fez um número com elefantes, agora explorava uma lanchonete em trailer instalado em um parque de diversões, no estacionamento do Central Plaza Shopping, próximo ao fim da Marginal do Tietê, na direção de Diadema. Sônia era a mulher da qual Dover gostava de receber ordens. De tanto dançar no Circo Garcia, acabou apresentando problemas no joelho esquerdo. E era a perna esquerda dela que Dover mais gostava, especialmente quando Sônia pedia uma massagem – o Filósofo então demonstrava suas habilidades manuais com sensibilidade e amor. A pedido de Domitilla, eu poderia narrar neste ponto como Dover e Sônia se conheceram. Deveria então abrir o hard cover e anotar com detalhes a primeira vez do casal. Mas seria a hora certa? “Prefiro adiar”, respondi para mim mesmo. Ou seria melhor contar agora essa parte romântica da história, que ouvi no Bom Retiro? Domitilla que me perdoe, mas não vou contar nada. Essa não é verdadeiramente a vida do Filósofo, em que os fatos se sucedem inapelavelmente, mas uma simulação dela, em que os lances são arranjados e alguns acrescentados para criar um efeito. Essa noite no Vera Cruz, diga-se, serviu principalmente para conhecermos alguns personagens importantes da vida do nosso herói. Revelou-nos especialmente o lado cantor do trapezista. Soube inclusive que ele animou as noites numa cantina italiana dos Jardins chamada Camorra, onde entoava serenatas de mesa em mesa. “Depois da última música bebia tanto na companhia 81


de mulheres que estava me acabando. O médico me proibiu de continuar levando aquela vida”, explicou-me. Devagar, Dover Tangará ia tomando contato consigo mesmo, com a sua história. Cantarolou o resto da noite em seu violão Para ele a vida é bela Hoje ele vive com ela E ela no meu coração Foi nessa toada até nos despedirmos no fundo da madrugada, o Filósofo finalmente indo dormir na cama aquecida da ex-dançarina de circo. Que alívio. Dover finalmente saíra das ruas. Estaria abrigado no galpão dos fundos da oficina, que Sônia transformara num lar acolhedor. Rapunzel e os outros seguiram cada um para o seu lado. Era quase manhãzinha, quando decidimos, Domitilla e eu, tomarmos a saideira e escrever no hard cover sobre o balcão da lanchonete Estadão, aberta 24 horas, no vórtice das ruas Major Diogo e Dona Paulina. Desta vez, Domitilla não tinha pressa nem horário para voltar, pois Davi ficara com a avó. Imaginei o Filósofo dedilhando seu violão sentado numa barra de trapézio, balançando, cantando e ruminando lembranças que se desenrolavam a seus pés num palco-picadeiro. — Não dá uma boa peça de teatro? – perguntei, acariciando com palavras Domitilla. Vamos escrever juntos? Queria envolver Domitilla em projetos conjuntos, tantos e tão vastos que teríamos que passar a totalidade das nossas vidas realizando-os. — Bah, não gostei, ela me respondeu ingenuamente. — Por quê, Domitilla? — Ora, você sabe, se o teatro é a imitação da vida, prefiro a própria vida. Talvez ela tivesse razão. Precisava descobrir se o Filósofo voltara a voar ou não depois do “episódio”. Como ele não falou nada dos livros, nem sobre sua prisão ou loucura, não tocamos no assunto. Também precisava investigar como o Filósofo foi parar na sarjeta e porque ele 82


tinha insistido em ficar no olho da rua até quase agora. Foi Domitilla quem sacou que Dover estava nos oferecendo suas mulheres para contar a história da sua vida. Ao invés da letra morta dos livros da sua irmã e da sobrinha, a vida verdadeira do Filósofo Voador contada pela boca quente de mulheres que o amavam. Soube que Rapunzel passara na Moira antes dessa homenagem a fim de levá-lo para a casa dela, mas o Filósofo não quis sair debaixo da placa Deus é Fiel. De fato, Sônia era a única pessoa no mundo que poderia tirá-lo da rua. Ninguém mais tinha o poder de quebrar sua imobilidade. As andanças pelas calçadas, as noites mal dormidas no chão duro, a comida fria, os bunda-vagantes companheiros de destino, a rejeição dos com-com, a humilhação de se ver expulso ao entrar em estabelecimentos comerciais, o chega pra lá dos seguranças, a atuação dos assistentes sociais e dos benfeitores, tudo isso forma uma espécie de bolha difícil de se romper. Cai-se na rua e vai-se ficando. Mas não o Filósofo Voador. Ele tem Sônia, seu grande amor.

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Capítulo 14

O fedor de fora O rio Tamanduateí não existe mais. Retificaram seu trajeto, eliminaram as curvas sinuosas que lhe conferiam graça. Construíram a ferro, pedra, areia e cimento um fosso no qual escorre a imundice do leste para oeste até o Rio Tietê. Às suas margens, ruínas de colunas de sustentação abandonadas do Fura-Fila inacabado dão-lhe um ar fantasmagórico, restos de uma civilização que nem chegou a realizar-se. Hidrovia natural dos povos que habitavam a região há cinco séculos, através dele os jesuítas chegaram ao ventre de São Paulo. Os expedicionários paulistas partiam em busca de minérios e escravos. Hoje corre ao lado uma auto-estrada ligando o leste ao oeste. Percorremos a avenida do Estado com os vidros do carro totalmente fechados para vedar o fedor de fora. Domitilla aproveita para ler minhas últimas anotações no hard cover. É noite avançada, mas sabemos que lá em nosso destino estarão Dover e Sônia acordados, provavelmente sentados cada um de um lado de uma cama grande e aquecida. Talvez bebam e fumem. Dover corteja sua mulher como se fosse a primeira vez, passa-lhe a conversa, dedilha o violão, lança o olhar de rabicho e canta. Sônia adora. Sabe que a performance do companheiro é enganadora, que os meses da sua ausência não ficarão impunes. Mas ambos estão assombrados pelas lembranças. Ao lado deles, sobre a cômoda e o criado-mudo, souvenires dos lugares pelos quais passaram com o circo, cuias de chimarrão de boca larga do Rio Grande e de boca estreita do Uruguai, bonequinhas de barro cobertas com mantos listrados feitas pelas crianças Karajás da Ilha do Bananal, xícaras com fotos do casal no Cristo Redentor, vaquinhas de barro e vaqueiros de chapéu e flanela, velas coloridas que perfumam o ambiente, badulaques.

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As fotos nas paredes. Sônia de maiô brilhante alçada pela tromba de um elefante. Sônia coreografa os passos simples de meninas de sainha num picadeiro. Dover salta sobre o nada de braços abertos. Sob uma lona decorada com estrelas, Dover é aparado por mãos firmes. Uma tigresa dá de mamar a seus dois filhotes observada com cautela por uma chipanzé. Um urso amarelo dorme. Moro no oeste, assim como Domitilla; Sônia no leste, abrigada em um galpão. A antiga dançarina do Circo Garcia abandonou a vida circense, mas mantem um estilo de vida cigano. Alojou-se provisoriamente no segundo andar de um puxadinho nos fundos de um grande galpão, onde funciona uma oficina para reparos de pequenas embarcações e aparelhos de parque de diversão. Um dos mecânicos que mais entende de engrenagens de roda-gigante, carrossel de cavalinhos, montanha-russa, barca viking etc é justamente o ex-marido de Sônia, de nome Osvaldo. Foi ele quem conseguiu que Sônia ficasse por ali. Ela e Vítor, o filho adolescente que ambos tiveram. Marina, a filha mais velha, saiu de casa para casar. Sônia nasceu sob a lona. Bem apessoado, seu pai, Wilson Nery, era o galã das peças levadas no circo-teatro. O tempo passa rápido para o pessoal de circo. Hoje Sônia toca uma pequena lanchonete montada num trailer, dentro do parque de diversões no qual seu exmarido trabalha. Seu Wilson continua no Circo Garcia. “Vou ser o último a apagar a luz”, costuma dizer. Houve época em que moravam no mesmo sobrado Dover e Sônia, marido e mulher, mais Marília Rapunzel, ex-esposa do trapezista e Osvaldo, ex-marido de Sônia. Era uma proximidade perigosa. Dover e as duas mulheres; Sônia e os seus dois homens. É claro que a convivência de Dover com o ex-homem de Sônia não deu certo. “Ele continua querendo dar uma de marido”, reclamava Dover. Esse foi um dos motivos do Filósofo simplesmente ter decidido um dia sair para comprar cigarro e, literalmente, nunca mais voltar. Nos aposentos de Sônia, encontramos Dover em meia lua recostado no regaço de sua mulher. Menino protegido. Ela o acaricia de leve na cabeça. Sobre a cama ampla, Sônia amarrou panos indianos 85


em quatro pontos no teto, feito um dossel real. Mesmo não viajando mais, a barriga do circo envolve Sônia e Dover. — Vocês não se importam de sentarem ao pé da cama? Fez Sônia, indicando o lugar com o queixo. Alisei a colcha acetinada e me acomodei. Domitilla fez a mesma coisa ao meu lado. Notei que ela vacilava, em sua calça jeans e camiseta branca básicas. O lenço colorido na cabeça cobrindo a testa e o par de tênis bamba complementavam seu jeito de menina. Mas Domitilla parecia constrangida naquela noite, talvez por se sentir profanando um leito de amor. O que poderíamos fazer, no entanto, se praticamente fomos convocados por Dover a visitá-los naquela noite. “Tenho revelações urgentes”, dissera, ainda no bar Vera Cruz. Domitilla e eu queríamos ir embora. Dover já havia bebido muita cerveja, todo mundo havia bebido muita cerveja, mas ele não parava nem de dedilhar o violão nem de cantar. Mesmo assim parecia sóbrio. Disse-me seriamente: — Estejam amanhã à noite na casa da Sônia. Não deixem de ir. Estaremos lá, obedeci. Estava tão envolvido com sua história que se ele me mandasse vestir um cinturão bomba, como aqueles dos palestinos, e o acionar no meio dos inimigos, acho que obedeceria. — Mas você sabe onde Sônia mora, alertou sempre atenta Domitilla. — Isso não é problema. Basta ligar para aquele número que lhe dei – explicou Dover. Deixamos o bar do Bom Retiro e rumamos, Domitilla e eu, para a Lanchonete Estadão, no Viaduto Dona Paulina com Major Diogo, para esperar amanhecer. Sentamos no balcão. Bateu fome. Pedi um sanduíche de pernil e ela uma vitamina mista com aveia. Enquanto esperávamos, puxei o hard cover da bolsa de Domitilla. Havia pedido a ela que guardasse nosso caderno de notas sobre o Filósofo, o que ela fez sem questionar e com prontidão. Era um sinal de intimidade que me deixou esperançoso. Mas Domitilla tinha obrigações com o pequeno Davi e me pediu que a levasse em casa. Com o dia claro, deixei-a no quilômetro 26 da Raposo Tavares meio contrariado por não podermos iniciar uma rotina juntos, como milhões de casais pelo mundo afora, e voltei 86


para a Moira. Domitilla se despediu confirmando que nos veríamos à noite. Não sem antes me pedir, com olhar de súplica: — Mais tarde, me deixa ler o que você escreveu mais no caderno? É claro que deixaria. Aliás, no percurso da Raposo Tavares para a Zona Leste, naquela mesma noite, indo para a casa de Sônia, conforme Dover pediu, ela pôde ler alto a narração do que talvez seja o momento mais glorioso da Trupe Tangará, embora não isento de ironia. O que ela leu está transcrito na íntegra no capítulo seguinte, denominado “Confiança”.

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Capítulo 15

Hard cover: Confiança A trupe Irmãos Tangarás venceu o Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro com uma apresentação audaciosa, com direito a triplo salto mortal e tudo. Deixou para trás europeus do oeste, americanos do norte, argentinos e australianos. Europeus do leste, cubanos, chineses e vietnamitas não foram convidados. Dover Tangará experimentara a sensação de dever cumprido e de amor pátrio correspondido. Na segunda-feira seguinte resolvera voltar a São Paulo, onde Marília Rapunzel o aguardava. Foi na estação ferroviário e comprou um bilhete de trem. O irmão e o sobrinho preferiram o avião. Ele experimentaria o luxo do Expresso Rio-São Paulo. “Chega de voar”, pensou. Não fossem as ondas de pessoas de trajes simples e a profusão de raças que iam e vinham nas plataformas revelar “o artista” estar em São Paulo, poderíamos imaginar Dover desembarcando numa gare européia. As lâmpadas fosforescentes e a luz mercúrio dos corredores e salões de desembarque entristeciam a manhã. Através do pórtico de tijolinhos vermelhos da Estação da Luz, porém, podia-se avistar o Jardim da Luz. Uma claridade suave banhava a calçada larga e a praça, conferindo certa graça às pessoas que se apressavam para o trabalho. Talvez por a luxuosa viagem de trem ter se revelado um lenga-lenga monótono, Dover resolvera espairecer pelo entorno. Gostava da região, plana, de largas avenidas e construções baixas. Deixou sua mala trancada na chapelaria da estação. Nela, poucas mudas de roupa e a malha colante de trapezista.

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Embrulhado em flanela para amortecer os solavancos, Dover trazia também o Troféu Picadeiro da Pátria, que acabara de ganhar. Os Tangarás não ligavam para prédios. Dover aprendera com seu pai que edifício tinha a única função de abrigar pessoas quando elas não pudessem estar a céu aberto ou dentro do circomundo. Gostava é de trailers. Como o caracol, levar a casa nas próprias costas. Caminhando pela Luz, observava as gentes apressadas, como se soubessem para onde ir. Passou por um prédio chamado Pinacoteca e ficou intrigado. Roubou-lhe a atenção um lustre dourado com dezenas de velas, que pendia entre duas colunas robustas, na entrada principal. Como o portão estava aberto, subiu os degraus até ficar exatamente embaixo do lustre. Olhou para cima e saiu logo. E se isso cair na minha cabeça! Ao notar um guarda olhando-o fixamente, Dover fez uma mesura: — Se não lhe incomodo, o que é “Pinacoteca”? Disse com uma inflexão de voz quase familiar e franzindo um lado do rosto. Quis puxar papo com o homem fardado. Dover estava contente por estar ali. Mesmo não sabendo o que se fazia exatamente naquele prédio, desconfiava que ali funcionava algo público, “do povo e para o povo”, como seu pai dizia que deviam ser os governos. Reconhecido por seus pares o maior trapezista do Brasil, Dover Tangará pingava amor à pátria. Sentia-se investido no cargo de representante da nação no picadeiro. Para ele, aquelas simples palavras dirigidas ao guarda eram uma espécie de manifesto de solidariedade entre brasileiros iguais. Se não ficasse chato, abraçaria o moço. — Um museu. — Ah, um museu! E o que é um museu? Disse, afetando ingenuidade. — Ora, é um lugar onde se guarda obras de arte, fez o homem fardado, com cara de que não está gostando nada daquilo. — Pois você sabia que eu também sou artista? Desenho piruetas no ar com o próprio corpo, explicou fazendo um gesto com os braços e a cabeça, enquanto observava a reação do interlocutor. Como ele permanecia impassível, o trapezista continuou falando: — Pena que elas não podem ser fechadas num lugar como esse aí. Cada voo é uma pintura diferente, que sobrevive só no museu da cabeça das pessoas. — Posso lhe ajudar em mais alguma coisa? Cuspiu a seco o guarda. — Acabo de ganhar o Troféu Picadeiro da Pátria, no Rio de Janeiro. É 89


uma pena ter deixado a mala na estação, senão ia lhe mostrar. É banhado a ouro e tem um aparador apoiado no trapézio pelas pernas, os braços esticados para o Brasil. Uma beleza. É uma pena... O trapezista queria apenas uma palavra amiga. Mas eram tempos duros, aqueles. O homem fardado ficou ainda mais hirto. — Ah, já que estou aqui e tenho tempo, desejo visitar esse museu. Quem sabe eu não chame meu próximo circo de Picadeiro Pinacoteca... — Impossível. — Mas por quê? Se o problema é dinheiro, eu tenho dinheiro, olha aqui, quanto custa? — Não é isso, senhor. Aqui não é circo, não. Não entra quem quer a hora que quiser, não senhor. — O senhor está me ofendendo. O senhor sabe com quem está falando? — Ora, meu senhor, não me importa se o senhor é palhaço, domador de leões ou malabarista. Hoje é segunda-feira e, não sei se o senhor sabe, em qualquer parte do mundo, todos os museus e cabeleireiros não abrem às segundas-feiras! Dover quase partiu para a ignorância, mas deixou para lá. Gente de circo é boa de briga. Os rapazes do circo chegam à cidade e as meninas já vão esgueirando os olhos. Não raro, eles têm que defender a honra frente aos homens da localidade. Mas, nesse caso, o guarda estava certo. Sentiuse humilhado. Como não lembrou que os malditos museus não abrem às segundas-feiras se até os circos fecham. Caminhando pela calçada da avenida Tiradentes viu-se defronte a uma pequena igreja cristã armena. Adentrou-a. Rolava um rito bizantino íntimo, só para alguns fiéis. Toda a luminosidade ficou do lado de fora. Algumas velas queimavam próximo aos ícones, conferiam ao ambiente fumos orientais. Virou a cabeça para o alto e notou as figuras dos santos pintadas a têmpera na abóbada. No centro, o Criador esmaecido sobre a pouca luz. Dover não entendia a língua sagrada deles, mas deixou-se embalar pela ladainha e pela fumaça inebriante do pêndulo incensório na mão do padre. Dobrou-se e pediu pelo seu futuro, por seus irmãos Tangarás e por todos os milhares de brasileiros que o aplaudiram no Maracanãzinho. Sentiu um leve roçar no pescoço, como se as tranças de Marília esvoaçassem ao vento e o tocassem. Mesmo distante, das entranhas do circo o olhar de Rapunzel o protegia. 90


Enquanto isso, a fortaleza do outro lado da avenida resplandecia ao sol. Guaritas e torres marcavam a muralha. Lá dentro, homens em formação exercitavam-se a uma só voz de comando. Deviam estar enfileirados, alguns sonolentos. Subiam, desciam, agachavam, espichavam-se. Já fora da igrejinha, Dover firmava os olhos e tentava reconhecer o castelo quando soara repentinamente um cortante alarme elétrico. Tapou as orelhas com as mãos com força em forma de concha. “Esse ruído estridente está estuprando meus tímpanos”, pensou, afastando-se dali. Ainda viu abrir-se o portão e sair em disparada uma viatura com sirene ligada, seguida de uma perua veraneio à paisana. Vinha ao seu encontro um homem em terno e óculos: — Isso é normal? O trapezista perguntou de chofre ao transeunte, que se assustou, mas depois se mostrou simpático. — Quem pode saber... Devem ter ido atrás de alguém... Passo aqui todo dia na hora do almoço e vira e mexe acontece isso: os portões abrem repentinamente e as viaturas saem a toda sabe Deus para quê. Por falar em almoço, vou para casa comer, estou morrendo de fome. Já é meio-dia? — É quase – respondeu Dover olhando para o relógio em seu pulso para em seguida levantar a cabeça e dizer com ar matreiro – mas meu relógio adianta tanto que outro dia fui convidado a um enterro e quando cheguei o morto ainda nem tinha morrido. O homem também sorriu e foi embora. Dover tinha tempo. Sua mulher só chegaria no meio da tarde à Estação da Luz para buscá-lo. Caminhou de volta ao largo do Parque da Luz e atravessou a estação no sentido centro. Deste lado pareceu-lhe outra cidade, prédios altos mal conservados, ruas estreitas e uma profusão de carros. Da Praça da República ao Largo do Paissandu, observou escritórios e repartições, cinemas e lanchonetes, inclusive a Ponto Chic, de sua predileção. Do Viaduto do Chá sobre o Vale do Anhangabaú à Praça do Patriarca, confusão de camelôs, aleijados, pedintes e pobres coitados em geral. Percorreu as ruas XV de Novembro, Direita, Álvares Penteado, da Quitanda e Praça da Sé. Bancos, farmácias homeopáticas e loterias esportivas. Alguém fazia xixi no marco zero. O trapezista resolvera entrar num cinema para fazer hora. Será que ainda tem sessão das duas da tarde? Voltou ao Largo do Paissandu, que gostava especialmente. Pena que seu faquir preferido, Silki, não estava desta feita jejuando em sua redoma de vidro, feito uma branca de neve dos horrores, deitado sobre pregos e com cobras 91


se arrastando sobre ele. Ali ficava o Café dos Artistas, ponto de encontro de gente de circo às segundas-feiras, só que mais tarde. Marcara com Marília Rapunzel às quatro da tarde no Ponto Chic, no rabinho da praça, quando aproveitaria para rever o pessoal do circo. Na sala de projeção nº 1 do Cinema Olido, sentadas em poltronas de couro pintadas de vermelho, algumas pessoas fitavam a tela branca com a luz ainda acessa. Dover sentou à direita da terceira fileira vazia. Dali tinha a sensação de que entrava em diagonal na tela. Quando era criança, seu pai projetava filmes no Grande Circo Tangarás, em cidades que não tinham cinema. Escureceu. Um feixe de luz saiu do buraco lá atrás, construindo a imagem à frente. O filme principiava com crianças acompanhando com a cabeça movimentos no alto. Adultos apreensivos entortavam o pescoço. Close numa mocinha fazendo ooooh. Meninos assobiavam com dois dedos em anel na boca. As lentes iam se abrindo e a câmara lentamente foi passeando pelo público e subindo até o trapézio. O que Dover via era um espetáculo circense e com gente conhecida. Meu deus, não havia dúvida, o que Dover via era a própria Trupe Tangarás. Dover sabia que sua irmã Dirce Tangará Militello havia negociado uma filmagem com uma agência de publicidade, até ganhara um bom dinheiro com isso, mas não imaginava que o filmete de um minuto fosse passar nos cinemas. A filmagem se deu quando o Águias Humanas estava armado na Praça Quinze, no Rio de Janeiro, não muito longe do Paço Imperial. O filme era da Cineciel, do produtor argentino Júlio Heilbron Mendes. Ele havia sido contratado diretamente pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, no início do governo Médici. Dover nunca tinha sido visto com tanta magnitude. Após executar um doble de frente e partir com os braços estirados para o encontro do portô, o movimento entrava em slow motion, até que a imagem se congelava em ambos – volante paralisado a alguns centímetros do forte, as mãos estendidas num afã. Assim, com Dover petrificado ao lado de seu irmão Durbis, toda a tela era preenchida com os seguintes dizeres em letras garrafais: “A segurança depende da confiança que cada um tem em si e nos outros”. Ato contínuo, o movimento voltava e Dover era agarrado com firmeza por Durbis e depositado delicadamente na plataforma de escape. — Olha só, estou na propaganda do governo! Estou nos cinemas! Não acredito. Vou agora mesmo contar à minha Marília. E saiu sem ao menos esperar o início do filme principal. 92


Capítulo 16

Águias Humanas Voltemos ao galpão da Sônia. Apoiando-se nos joelhos e sem usar as mãos, Dover saltou do colo de sua mulher, recostada na cama. Reflexos de um ex-trapezista acionados automaticamente pela memória corporal. É que ele tinha pressa em contar o que lhe saia pela boca. Sabia que estávamos lendo os livros escritos por seus parentes e queria dar a sua versão dos fatos. Mas se expor assim diretamente seria sangrar mais uma vez em praça pública. Teria que ser do seu jeito. Balançar para lá e para cá antes de saltar do trapézio para o nada. A sua história era longa. Após a jornada gloriosa no Maracanãzinho, a Trupe Tangarás embarcou para o Rio Grande do Sul, onde se deu algo que mudaria a vida de Dover. Empertigado na cama, ele parecia ansioso. Seu olhar era de quem teme pela recepção de suas palavras. Sabia que após serem liberadas pela boca, elas ganham vida própria e podem se voltar contra quem as proferiu. Mesmo assim seguiu relatando o que ele também chamava de “o episódio”. A Trupe Tangarás faria uma temporada em Porto Alegre no Circo Águias Humanas, de propriedade de uma respeitável empresária chilena, Dolly Déccia Palácios. Como sempre fazia em cidade grande, sua família alugou uma casa nas proximidades. Morariam

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nela enquanto permanecessem na capital e, posteriormente, nas apresentações em cidades próximas, a usariam como base. Os Tangará eram amigos de todos no circo, que reunia artistas de vários países latino-americanos. Mas eles formavam um corpo à parte, a Trupe Tangará, admirada, respeitada e invejada no meio circense tradicional. Dover ficara bastante amigo de Girabel, um contorcionista argentino que parecia feito de borracha. Dobrava-se sobre suas costas e se enfiava no vão das pernas, a cabeça surgindo pela virilha. Talvez notando essa proximidade, talvez confiando na credulidade ingênua de quem não teve tempo de aprender sobre a malícia das mulheres, ou ainda contando com o proverbial senso de honra dos Tangarás – ou sabe-se lá por qual motivo secreto – dona Dolly, como todos chamavam a proprietária do Grande Circo Águias Humanas, em um intervalo dos ensaios, chamou Dover num canto e pediu um estranho favor: — Dover, mi hijo, tu sabes, meu circo não pode ficar sem Girabel. Ele apresenta um grande número de deslocação e não temos nenhum brasileiro que o substitua. Não posso permitir que Girabel seja obrigado a sair do Brasil, tu sabes. Preciso arrumar as coisas lá no cartório. Por isso, assine aqui, mi hijo, nesse papel... — O que diz esse papel, dona Dolly? — Apenas que Girabel é brasileiro. — Mas dona Dolly, Gira não é brasileiro, é argentino! — É justamente por isso, mi hijo, que preciso de sua ajuda. O visto venceu e ele, como estrangeiro, não pode mais trabalhar aqui. Dona Dolly vivia nas alturas, sempre tão distante. Observava seus artistas imóvel, pousada nalguma elevação. Talvez pensasse em seu filho, o maestro Carlos Piper, que liderava o conjunto musical que acompanhava o cantor Agostinho dos Santos. Antes de se dedicar à música, o filho de dona Dolly tinha sido trapezista, como ela. Aliás, aprendera a arte do trapézio com a mãe, que se arrependia ter deixado a cria abandonar a barriga do circo. Agora, faria qualquer coisa para manter as águias humanas no alto. Às vezes mostrava as garras por debaixo da lona. Não queria que suas aves deixassem o circo e muito menos o Brasil. Dover achou-se no dever de ajudar dona Dolly. 94


No cartório foi-lhe explicado que era perfeitamente legal o que ele ia fazer, testemunhar que Girabel, o argentino de borracha, era brasileiro. Deixou sua assinatura, número de documentos e endereço. Nada tinha a esconder. Não fazia muito tempo que seu pai havia morrido. Se ainda vivesse certamente o aconselharia a não assinar o falso testemunho. Depois da temporada gaúcha, as águias humanas pousaram em Curitiba. Os Tangarás resolveram incrementar os ensaios, pois perceberam que estavam ficando lentos na passagem de mão. Como sempre, alugaram uma casa para servir de base. Foi numa dessas manhãs de treino reforçado que o trapezista voador Dover Tangará, esse que trinta anos depois seria o Filósofo da Moira, fora detido. Nunca entendeu que papel era aquele que lhe deram para assinar, se fora enganado pelos águias humanas, por Girabel, por dona Dolly ou pelos abutres do cartório. Os home chegaram numa rural verde sem identificação. À paisana. Dover trajava camisa e calça, sapatos e um pacote embaixo do braço com o collant e as sapatilhas. Manhãzinha, o trapezista saia de casa na companhia dos irmãos e sobrinho. Todos estavam encolhidos de frio, embora o dia prometesse esquentar. A luz inclinada de maio expunha a verdade dos rostos das pessoas, as marcas nas paredes das casas, os defeitos das calçadas e a profundidade de campo dos paralelepípedos brilhantes que cobriam a rua. Saltaram da viatura fria três homens de terno e gravata. Um deles tinha uma cicatriz no rosto e quando falava, entortava a boca. Foi esse que chegou com uma lista na mão: — Qual dos senhores chama-se Dover Marques Ribeiro? O volante estanhou alguém conhecer seu nome verdadeiro. Todos o chamavam de Dover Tangará, nem ele se lembrava direito do seu nome inteiro. — Sou eu – disse com a inocência de quem arrisca a vida para fazer os outros felizes. — O senhor tem que vir comigo. Vai falar com o chefe, mas é coisa sem importância, volta logo, proferiu peremptório o Boca Torta. — Perfeitamente, respondeu o Filósofo. Quem não deve não teme. Olhou para os seus irmãos, que pareciam compreender em silêncio, entregou-lhes a roupa de treino e foi. Ter nascido em circo 95


ensinou-lhes não só a cultivar a disciplina, mas também reconhecer e obedecer uma voz de comando. Como o Filósofo nunca descobriu os nomes de seus raptores, deu a eles apelidos. No banco duro da Rural, o Polaco não parou de falar. Alto, de cabelos macarrão escorrido, tão fininhos e loiros que se embaraçavam em tufos, contou que estava cansado de prender o cara errado e rezava para que Dover fosse o cara certo. No que talvez fosse uma piada, disse: “É engraçado, torço para o Internacional, quer dizer, sou colorado, mas ganho a vida prendendo vermelho”. Como ninguém riu, tentou outra: “A seleção desta vez emboca o tri, mesmo o Rivelino sendo moça e o Pelé cegueta”. Sem pedir licença para uma confidência, o Polaco confidenciou que a maior dor na sua vida era a filha paraplégica. Em seguida, endureceu a expressão e perguntou: — É verdade que em São Paulo as pessoas chamam as putas de polaca? Sabe, minha mãe é polaca, a minha vó é polaca, a minha família toda é polaca. Os putos vieram da Polônia, seu porra – e riu desbragadamente. O terceiro elemento, mais discreto, era um gordinho que dirigia o carro. Levaram Dover para o DER, Departamento de Estradas de Rodagem do Paraná. Nessa repartição funcionava clandestinamente uma cela e sala de interrogatório. A cela não tinha janelas, as paredes sem pintura e a porta sempre fechada. Um cara só abria o ferrolho para depositar a comida e depois trancava. Silêncio. Tangará é um pássaro que vive em bandos e gosta de cantar. Enquanto entoa, dá um pulinho, às vezes girando sobre um eixo imaginário. Dover foi levado por homens sinistros, primeiro para uma sala de uma repartição pública, por certo desviada de seu uso original, e largado lá por umas horas; depois, homens mal-encarados o pegaram e o levaram para outro prédio, onde também funcionava um lugar secreto de detenção. E daí para um terceiro endereço. Nenhum deles era uma delegacia de fato. Neste último o Filósofo foi interrogado por um sujeito ruivo que se apresentava como delegado. 96


— O senhor assinou um documento testemunhando que esse tal de Mirabel é brasileiro? — Sim, assinei. — Mas o senhor não sabe que ele é argentino, porra? — Fiz pra ajudar um amigo. — Tá certo. Volte para sua cela. Domitilla segurou minha mão, seus dedos longos me apertavam. Estava ansiosa. Domitilla sabia o que ouvia: era a narração de um episódio crucial na vida de Dover Tangará, o homem de rua que se propusera a estudar. E por meio dele conhecer alguma coisa sobre todos os homens de rua. Mas provavelmente ela não imaginava o que fazer com o que ouvia. Um episódio pessoal intenso como só a realidade há de ser não cabe numa demonstração sociológica, nem em um romance, filme, teatro ou qualquer outra reapresentação. Dover permaneceu incomunicável por 48 horas. Ninguém sabia para onde ele tinha sido levado, ninguém sabia por que ele havia sido levado, ninguém sabia como ele estava nem como sairia dessa. Até que a má notícia chegou aos ouvidos de sua irmã mais velha, Dirce Tangará Militello, uma artista de circo que havia abandonado a lona para se dedicar ao teatro. Muito conhecida no meio artístico de São Paulo, ela atuava em peças teatrais, filmes e novelas de televisão. Naquela época justamente Dirce Militello havia sido escolhida diretora da área de circo do Sindicato dos Artistas de São Paulo. Nesta posição ela tinha certo poder de pressão sobre os militares. Ato contínuo, Dirce iniciou uma pequena mobilização de artistas e pessoas influentes do meio artístico de São Paulo para garantir a segurança e libertar seu irmão. No dia seguinte, pegou o primeiro avião e desceu em Curitiba, ter com o delegado de plantão. A notícia da chegada de Dirce Militello a Curitiba logo se espalhou. Dirce nem precisou procurar as autoridades. Em dois dias, Dover foi solto pelos militares, assim sem mais. No pé-na-bunda final, eles disseram: — Não saia da cidade nos próximos quinze dias, nós vamos completar a investigação e você poderá ser chamado para depor a qualquer momento. 97


Capítulo 17

Geopolítica do Imaginário — Eu sou aquele que não resta a menor dúvida, cochichou Dover para Domitilla, não se desculpando pelo que é, mas reconhecendo que não adianta lutar contra o destino. Estávamos nós quatro aconchegados sob o dossel de Sônia. Meus dedos alisavam a colcha acetinada da cama. Os movimentos leves com o fura-bolo e o maior-de-todos procuravam os dedos de Domitilla, que faziam a mesma coisa. Ambos estavam tensos com o relato. Segurei a mão dela para não mais soltar. Ela por sua vez apertou mais uma vez minha mão com força. — Alguém quer uma xícara de chá, vou fazer para mim, avisou Sônia. Mas antes que ela esboçasse movimento, com um leve impulso, Dover se desvencilhou de Sônia e se pôs de pé primeiro: — Não, não. Deixa que eu faço. Tem chá de quê? Perguntou Dover já fuçando no pequeno armário de madeira compensada, chumbado na parede em frente da pia. Sônia havia abandonado o circo, mas sua casa ainda parecia um trailer, tudo muito pequeno e disposto no espaço de maneira prática, pronto para levantar viagem a qualquer momento. — Se tiver, faz um chá de erva-doce para mim – disse Domitilla, surpreendentemente, pois ela era do tipo que nunca aceitava ou pedia nada. Devia estar mesmo tensa. — Tem, sim, Dover. Abra a primeira porta do lado esquerdo desse armário e pegue o saquinho, por favor. — O mesmo para mim, me apressei em pedir, pois assim não precisaria pensar sobre o tema “chás” – escolher às vezes é um saco (uma das vantagens de ter uma parceira, mesmo que imaginária, é deixá-la pensar e decidir uma porção de coisas que a gente não valoriza tanto...).

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Era engraçado observar o Filósofo Voador no papel de quase esposo. Na rua, mesmo em condições precárias, ele se mantinha altivo e senhor da situação, a cabeça erguida, olhando para os lados, no controle. A mente alerta não deixava passar nada. Comentava das manchetes dos jornais aos circunlóquios das pombas ao seu redor. Já em casa com a Sônia, cada músculo, a alma, o coração relaxavam. Era um homem entregue que tinha ali na minha frente, totalmente indefeso e apaixonado. Ou, paixão não é estar passivo diante do objeto desejado que o domina? Tão diferente do esgrimista mental que costumava ver nas ruas. Nós quatro sorvíamos, mudos, o chá de erva-doce. As chávenas estavam pelando. Foi Domitilla quem, paradoxalmente, quebrou o gelo: — Aquilo que sua irmã escreveu no livro é verdade, Dover? — Você quer saber se eu sou louco, não é Domi? Sou aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não como merda nem rasgo dinheiro, viu menina. Mas também não posso esconder que não mais fui o mesmo depois do “episódio”. É como se aqueles homens voltassem a me buscar regularmente, pelo menos uma vez no ano. Daí só me resta o pânico. — Sua sobrinha, Vic Militello, também escreveu sobre você, Dover – continuou Domitilla, resolvida a esclarecer diretamente na fonte algumas dúvidas que não queriam calar em sua mente – no final do livro autobiográfico Sonhos como herança/ Síndrome da paixão, de 1997. Nele, Vic descreve longamente a crise de loucura na qual ela própria mergulhou quando perdeu o pai, Humberto Militello, em 1971. Em seguida, ela diz – e agora vou tentar citar literalmente as palavras dela – “quando você se preparava para o número, parecia sempre que estavam chegando de novo para levá-lo e só de pensar no que diziam que fariam, você tremia e não podia trabalhar. E foi piorando, piorando, e muitos tratamentos, algumas internações e nunca mais voou no trapézio.” Dover recolheu as xícaras de chá, com habilidade pôs uma em cima da outra e as depositou dentro da pequena cuba da pia. Assim recuado tinha um ponto de vista privilegiado da cama em que 99


estávamos recostados. O abajur sobre o criado mudo banhava a cena com uma luz suave. A cozinha estava às escuras. Do breu, as próximas palavras do Filósofo foram difíceis de serem pronunciadas, pois saíam marcadas pela dor. — Não é verdade que nunca mais voei, Domitilla. Estive algumas vezes em tratamento, mas voltei à ativa por muito tempo. Meu último trabalho foi com a trupe que formei a pedido da Marlene Querubim para inaugurar o Circo Spacial. Meus companheiros eram o Farfan e o Tobias. Tem foto que prova isso. Nós três nos olhamos com cumplicidade solidária. Sabíamos que Dover destilava neste momento mágoas profundas, guardadas há anos. Queria se defender, resgatar seu nome e sua história. Domitilla e eu estávamos diante de um homem carimbado como louco por uma comunidade cerrada em si mesma, à qual ele pertencia. Sua partida para as ruas talvez tenha sido uma tentativa de abandoná-la definitivamente, romper com o circo. — Dover, volta aqui pra perto de mim, chamou-o sua última companheira. De alguma forma, o circo dava um jeito de resgatar seu filho. O circo sempre retorna à vida do Filósofo Voador. Sônia era uma mulher gorda, alegre, com argolas e outras bijuterias brilhantes penduradas pelo corpo. A vida tinha lhe lapidado uma inteligência prática e um jeito para negócios. Era uma mulher para ficar junto e ajudar o cara a ser alguma coisa na vida. Uma mulher de cama, mesa e bar. Companheira. Em três pulos, Dover estava novamente lá, aconchegado no regaço de Sônia, que o acarinhava na cabeça com a mão quente da compreensão. O Filósofo revirava-se e debatia-se entre recordações de uma vida misteriosa e as ruas da cidade, entre os tempos de outrora e o espaço do agora. Seu tempo não é apenas biográfico, mas ecoa todas as eras desde que o homem deixou o estado de natureza e começou a brincar e a encenar para se distrair de si mesmo. Também o espaço do Filósofo é uma dimensão interna. Mais do que as ruas de São Paulo, nas quais ele perambula, seu espaço é o labirinto subjetivo no qual ele se perdeu. 100


Ali sobre a cama Domitilla fez um gesto visceral com o corpo todo, que se contorceu até encontrar uma nova posição. Um frêmito instintivo partiu do seu âmago, se expandiu em ondas e se transmitiu aos objetos à sua volta. O dossel, a cama, as fotos, os suvenires pareciam vibrar. Domitilla se preparava para investigar a dolorida intimidade da mais frágil pessoa do mundo, alguém que representava para ela a humanidade em estado puro. Pelo pouco que pude observar de Domitilla, ela acreditava ter diante de si o último homem ingênuo da face da terra. Por isso a sua missão era protegê-lo. — Dover, os livros de seus familiares dizem que você teve um acesso de loucura depois que foi preso pela polícia clandestina da ditadura. Se assim for, posso afirmar que você é a última vítima dos militares, um artista que teve a carreira e a vida arruinada e nunca foi reparado nem recebeu nenhuma indenização. O Estado tem que se responsabilizar pelo que aconteceu a você, Dover. Talvez para não deixar entrar em erupção seu vulcão afetivo, Domitilla reassumira aquele ar teórico de algumas circunstâncias, como uma pesquisadora que se afasta de seu objeto de estudo. Seu comentário pareceu técnico. — Domitilla, você é apenas uma menina, uma das mais inteligentes e lindas que já conheci. A vida ainda vai te ensinar muitas coisas. Uma delas é não acreditar em tudo que lê. Deus foi bom para comigo ao me dar uma amiga como você. Não preciso de muitos amigos, na verdade, só de quatro: um para cada alça do meu caixão. Quando eu morrer e me levarem num caixão até o buraco, quero que você segure na alça da cabeça. Domitilla sorriu sem jeito. Com essa tirada, o Filósofo conseguiu que dessem risada e assim quebrou a tensão no ar. Sônia dormia numa cama turca com gavetas. Não tinha espaldar, mas dava para se recostar na parede. Sônia trouxe Dover para seu regaço. Decidi fazer o mesmo e inseguro depositei vagarosamente minha cabeça no colo de Domitilla, que não a rejeitou. Ficamos os quatro aconchegados no dossel de Sônia. 101


— O meu é pouco, mas é interminável, disse Dover, parecendo feliz com a situação. Éramos quatro prontos para ouvir o terceiro sinal anunciando que o espetáculo vai começar. — Quando se morre, deixa-se tudo o que se tem e leva-se tudo o que se é – disse Dover. Parecia que ele queria nos explicar o mundo e se explicar por meio de provérbios de chapa de caminhão. De repente, o Filósofo decidiu levantar-se e ligar a pequena televisão que se encontrava sobre a cômoda. A luz azul e fria do monitor inundou o ambiente. A propaganda anunciava as ofertas para o último fim de ano do segundo milênio. Domitilla ainda fez várias perguntas ao casal. Se ela fosse jornalista, diria que me admirava com o seu profissionalismo. Depois, permanecemos os quatro em silêncio. Percebi que Domitilla aproveitava a luz mortiça da tv para escrever no hard cover. Ficamos assim um bom tempo, até Domitilla dizer “me leva pra casa” de um jeito irresistível. Mais uma jornada silenciosa até o quilômetro 26 da rodovia Raposo Tavares me aguardava. Na despedida, como das outras vezes, trocamos o longo, apertado e aquecido abraço brasileiro. No caminho de volta, parei no acostamento louco para ler o que ela havia registrado no hard cover:

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Capítulo 18

Hard cover: Reflexões sobre o assombro I É costume se falar que a arte circense, de tão antiga e vasta, não tem fronteiras e se perde no tempo. Isso que sabemos o nome – “circo” – mas que conhecemos tão pouco; isso, circo, tão velho quanto a humanidade e presente em todo o planeta, tem uma característica: sempre esteve encerrado em um universo à parte. É daí que o circo retira sua força e sua fraqueza. Força porque uma manifestação cultural tão própria de qualquer ajuntamento humano – que atravessou a geografia e o relógio até o aqui e o agora – não vai morrer assim tão fácil, apesar de ser lugar comum falar da crise circense. É impossível matar o circo porque é impossível ao homem não achar graça do absurdo da vida, principiando por rir de si mesmo. A vida não é retilínea e é do acaso que interrompe a sequência natural dos acontecimentos que nasce o riso. A vastidão do circo, porém, torna-o frágil. De que universo estamos falando, se são tantos os circos, em tantos lugares e em épocas tão diferentes? A sua vastidão torna-o tão desconhecido e misterioso quanto uma floresta tropical. A gente teme se aproximar. Talvez o principal motivo para acreditar que o circo nunca vai morrer é a capacidade sempre renovada do homem se impressionar. Por mais que a ciência tenha desencantado o mundo, é só atentar para o assombro de uma criança diante das coisas mais simples da vida para o homem recuperar a capacidade de encarar as coisas simples como prodígios potenciais. Um espetáculo circense é bem isso. No fundo, no fundo, é muito simples o que acontece ali, mas quanta coisa é encontrada ali, fantasia colada à vida que ameniza o existir.

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Capítulo 19

Devir Dover Quando o Brasil voltou a adotar o horário de verão nos anos 80, no exato dia da troca, em que recuamos no tempo, estava eu voltando do cinema perto da meia-noite. Tinha ido assistir ao filme “Asas do Desejo”, do alemão Wim Wenders. Era a história de anjos que se apaixonam pelas coisas mais simples e corriqueiras da vida. Imperceptíveis, eles podiam ouvir o pensamento das pessoas. Tudo o que esses seres imortais acabam querendo é deixar a eternidade e viver no Tempo. Desejam ser mortais e experimentar a luxúria humana. Naquela época eu pegava o ônibus na praça da República em direção ao Butantã. Os relógios digitais públicos eram uma novidade. Eles marcavam as horas, a temperatura, davam informações do tempo (nublado, ensolarado, chuvoso...) e alertavam sobre o nível de poluição da cidade. Aquelas máquinas digitais não só marcavam oficialmente as horas como informavam sobre o tempo, a atmosfera, o ambiente e as condições do ar. Nos ponteiros e letras digitais iluminadas isso parecia natural e certo. Quando chegou a meia noite do dia que entrava o horário de verão, obviamente todos os relógios digitais tinham que pular uma hora. Mas houve alguma falha no sistema. Alguns se adaptaram ao novo horário e outros não. Fiquei encantado ao ver certos relógios públicos marcando meia-noite e outros uma hora da manhã. Percebi o quanto a nossa forma de marcar o tempo é apenas convenção humana. Dirigindo o carro da Zona Leste até a Raposo Tavares, onde mora Domitilla, e depois fazendo o caminho de volta, me lembrei da confusa resposta de Dover quando lhe perguntei exatamente quando lhe acontecera “o episódio”. Ele disse mais ou menos o seguinte: “Penso que foi em 1961 ou 62... Ou seria 1963.... Não, foi na data da revolução, ou melhor, depois da revolução, em 1967, por aí... Ou

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será que foi depois de 1970? Me perdoe, mas acho que fiquei com um lapso na inteligência. O circo Águias Humanas foi uma coisa ruim em minha vida... De qualquer jeito, eu não costumo guardar datas. Não é ridícula essa mania de comemorar o ano novo em um mundo que não muda nada?” Chegando em casa, pensei, telefonarei para Marília Rapunzel. Ela era a esposa de Dover Tangará na época dos acontecimentos, teria mais informações para me dar. Havia notado que nem Dover nem Sônia sabiam precisar quando exatamente aconteceram os fatos relatados. Era certo que Dover fora preso em Curitiba pela polícia política, acusado de falsificar no cartório um documento público. Mas essa prisão foi quase clandestina e durou apenas 48 horas. Envolveu um contorcionista argentino e uma circense chilena: teria a ver com a Operação Condor? A intervenção de Dirce Tangará Militello, então diretora do Sindicato dos Artistas de São Paulo, contribuiu para o Filósofo ser solto rapidamente. Dirce conseguira certa projeção na época, não só por sua militância sindical, como também atuando em filmes e novelas. Ela foi a Santinha de “O meu pé de laranja lima”, novela da TV Tupi baseada no romance de José Mauro de Vasconcelos, levada ao ar com grande sucesso justamente no ano de 1970. Seu marido, Humberto Militello, levou por muito tempo o Pavilhão do Chororó, por onde passaram grandes nomes da música popular. Como ator, Humberto era conhecido por suas participações em novelas da TV Excelsior, como a “Grande Viagem” e “Menina das Flores”, e pelo filme “O Corinthiano”, de Mazzaropi, entre outros, todos dos anos 1960. Marília Rapunzel também não ligava para as datas. Tudo o que ela lembrava é que estava feliz com seu marido lindo e mais jovem, quando percebeu que sua vida mudara para sempre. Os circenses em geral perpetuam sua história por tradição oral, uma geração passa à outra tudo o que lhe acontecera, sua arte e seus valores. Não estão muito preocupados com a data. Ora, em um mundo cada vez mais cheio de linguagens e registros em bips, que podem ser manipulados à exaustão, fica patente a delicadeza e fragilidade desse modo tradicional de 105


narrar a vida. Vivendo livres, leves e soltos no devir, alguns circenses se esforçaram em publicar livros por conta própria contando sua história. É uma maneira de fixar em um modo de vida tão fluido, no qual cada montagem e desmontagem do circo renova o ritual de nascimento e morte. Os dois livros de familiares de Dover que falavam do “episódio” não davam data nem detalhes. Dover, muito menos. Marília, idem. Como diziam os navegadores portugueses antigos, “navegar é preciso, viver não é preciso”. Percebi que não me restava alternativa a não ser renunciar à precisão (afinal, não disponho da bússola dos navegantes) e extrair certa poesia do devir ao procurar a verdade sobre o Filósofo. Se não podia checar com Marília Rapunzel as datas dos acontecimentos narrados pelo Filósofo Voador, procuraria outras fontes. Era necessário encontrar seus familiares ou antigos colegas de trabalho, mas parecia que eles queriam distância, tinham desistido do velho trapezista. Naquela mesma semana, consegui o contato de Carlos Tangará Marques, o sobrinho de Dover, e lhe mandei a seguinte mensagem por –email: “Carlinhos, Conheci Dover Tangará, seu tio. Ele vive nas ruas de São Paulo há alguns meses. Maltrapilho, descuidado, dormindo nas calçadas, enfrentando os perigos que a rua oferece. Me interessei pelo relato bruto de sua vida e também por sua imaginação fantasiosa que, por assim dizer, complementa a realidade. Estou escrevendo sobre o que seu tio me diz. Não sei se tudo é verdade. Caberá ao leitor discernir a realidade da imaginação. Peço a sua ajuda para confirmar algumas informações, que lhe mando anexo.” Carlinhos respondeu, também por e-mail: “Quanto ao episódio da prisão, eu tinha na época 17 anos e não sabia direito o que estava acontecendo. O que me lembro é que tudo foi muito rápido e que meu tio ficou detido por dois dias, se não me engano. Pelo que sei, seu livro fica entre a realidade e o romance. Eu gostaria de contar com seu bom senso de checar todos os fatos relatados pelo meu tio, já que a família Tangará, a qual eu me orgulho em 106


pertencer, tem um passado limpo e de muito trabalho dedicado ao circo e à sua história”. No final dos anos 1960, depois de Dover, Carlinhos Tangará era o maior trapezista do Brasil. A memória nunca é objetiva – aliás, nenhuma reconstrução história é, evidentemente. Com razão, Carlinhos estava preocupado em colocar os pingos nos is. Ele continuou: “Não participamos de nenhum festival de circo no Maracanãzinho, e sim fizemos uma temporada com o Circo Orlando Orfei, em 1976, temporada esta que tinha artistas da Alemanha, Holanda, Polônia, Romênia, Itália, sem contar os artistas da América do Sul. Como você vê, parecia um festival, realmente, mas não era. Sem dúvida, foi um dos melhores espetáculos de circo de que participamos com nosso trapézio. Trabalhamos juntos 18 anos. Enquanto foi possível amparálo, não faltamos. E não foram poucos anos, infelizmente. Embora isso só as pessoas que estavam próximas poderiam comprovar, enquanto tivemos condições financeiras, ele teve o melhor tratamento possível. Com a saída dele da trupe de trapézio, acabou da noite para o dia nossa fonte de renda, já que tínhamos trabalhado juntos para a construção do nosso número. “ O alerta de Carlinhos Tangará tem que ser levado em conta. Mas é impossível checar todas as informações relatadas por Dover. Não há registros, as pessoas ou já morreram ou ainda estão em trânsito pelo Brasil afora. Difícil de localizar. De qualquer forma, a interação entre memória e imaginação criadora é a mãe de todas as artes. Resolvi acatar o que Dover me disse. Quando houver outra versão, dou as duas. A leitura do meu hard cover pode se tornar uma divertida brincadeira de quem é quem, ou qual personagem tem referente na realidade ou não. O certo é que, quando saiu da prisão acompanhado de seus familiares, o normalmente eloquente Dover Tangará estava quieto, muito quieto. Seus olhos perderam o viço. No caminho, sua cabeça oscilava de um lado para o outro. De repente, um frêmito percorria seu corpo. O susto vinha de alguém uniformizado que via pelo caminho. Ao avistá-lo, seja um carteiro, gari ou guarda civil, Dover apertava o 107


braço de Dirce. Tinha medo de ser novamente levado pelas autoridades que, desta vez, podiam cumprir o prometido. Mas o show não podia parar. O boca-a-boca funcionava na capital paranaense. Na mesma noite em que Dover foi libertado havia sessão no Circo Águias Humanas, que estava lotado para ver as estripulias dos palhaços, o cai-não-cai dos malabaristas e suas claves chamejantes, a destreza e a alegria infantil das paradas de mão e do rola-rola, a ousadia dos acrobatas, a surpresa dos mágicos, a delicadeza e sensualidade da lira e do arame, o risco de vida dos números com facas, laços e chicotes, a força capilar e o globo da morte. O público estava ali especialmente para ver assombrados os azes voadores do trapézio, as águias humanas que lá no alto, qual ícaros solitários, encantavam o público cá embaixo. Dover Tangará foi instado pela irmã Dircinha a voltar a voar naquela noite mesmo. Ele fez que sim. Vestiu um figurino apertado de helanca com veludo no forro. A trupe escolheu uma roupa colorida, alegre para espantar o mau-olhado. Sapatilha e munhequeira pretas. Como fazia há anos, Dover Tangará passou pó de giz nas mãos. Só que maquinalmente. Alheio. Absorto. Ensimesmado. — Tem certeza que você está preparado para se apresentar esta noite, quis saber o portô da trupe, Durbis Tangará. Por ser mais velho, Durbis sentia-se responsável pelo irmão e o sobrinho. Era ele quem diariamente, nos treinos, conferia se estava tudo certo, a segurança do aparelho, as amarrações da rede. Era um homem de poucas palavras e nenhuma sofisticação intelectual. Quando era adolescente, perdera o irmão Dândalo. E jurara que nunca mais ia deixar isso acontecer na sua família. Dover olhou para cima, na direção do mastro principal de 13 metros e das espias de cabo de aço. Sabia que o Circo Águias Humanas sem eles não merecia o nome que ostentava. Respondeu: — Não venha falar de corda em casa de enforcado. Tá tudo bem. Vou voar esta noite. O trapézio não é para qualquer um. O risco é diário. Talvez a “expectativa do erro” no público seja a razão de seu fascínio. O “agora ou nunca” fundamental faz dos trapezistas verdadeiros semi-deuses. 108


Capítulo 20

Desrazão A primeira internação a gente nunca esquece. E as outras também não. Depois de 15 dias, a polícia liberou Dover Tangará. Ele podia viajar para onde quisesse desde que comparecesse às audiências que seriam marcadas. Deu o endereço da irmã Dircinha, que morava na rua Turiassu, em São Paulo. Tudo bem. As convocações seriam enviadas para lá. Ele seria avisado onde quer que estivesse em sua vida sem parada com o circo. Havia a possibilidade de ser ouvido pelo juiz da cidade mais perto da praça. Era uma coisa que podia ser arrumada. Não precisaria voltar sempre para Curitiba. Pisar em São Paulo não fez bem para Dover Tangará. Seu mutismo e vontade de não fazer nada aumentou. Nada de comida, nada de banho, nada de gosto de viver. Parou de voar no trapézio. Vivia assustado, qualquer um poderia levá-lo de volta para a cadeia, pensava. Certo dia, muito agitado, passou a pronunciar sem parar a palavra “atenção”. “Atenção você aí que está passando na estrada, vá para casa proteger seus filhos que estão indo pegá-los”, dizia aos transeuntes da Turiassu. Postou-se no meio da rua e passou a “dirigir” o trânsito. “Atenção, carros, venham por aqui, atenção, atenção”. Ele diria depois que estava brincando de soldadinho e queria organizar o tráfego. Colocou sua vida em risco. Sua relação com os militares e os elementos fardados da sociedade nunca mais seria a mesma. Diante disso, Dirce Tangará Militello tomou a decisão de seguir as ordens do médico psiquiatra de confiança da família, que examinara o Filósofo. O profissional aconselhou Dirce a deixar seu irmão passar umas férias numa clínica. O tratamento faria bem a ele e logo Dover estaria de volta à vida normal. Era isso pelo menos o que todas as pessoas próximas a ele ansiavam, naturalmente. Seus familiares,

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especialmente, estavam preocupadíssimos. A loucura já visitara antes a família. Dujanir – uma das irmãs mais velhas de Dover que no passado formara com Décio a dupla musical Cabecinha e Mascotinha – foi diagnosticada como esquizofrênica. Dona Nenê, mãe do Filósofo, também sofria de doença mental. Sobre ela escreveu sua neta Vic Militello: “Dona Nenê ia se enterrando num mundo irreal, só dela. Com o tempo, aquilo foi se agravando, ela saía de órbita, era levada para a casa materna, tomava remédios e voltava boa. Em temporadas espaçadas, às vezes semanas, às vezes meses, voltava a cantar”. A desrazão espreitava a família Tangará. O que fazer? — Me levaram para o Hospital João Evangelista, conhecido como “Hoje”, lá nos altos da Cantareira – contou Dover –; o hospício é mantido por uma entidade espírita. Não queria ser internado e resisti até onde eu pude. Deram um sossega leão logo de cara no Filósofo para acalmá-lo. Enfiaram-no numa camisa de força. Como ele ainda resistia, cinco homens o amarraram na cama. Depressão profunda, silêncio enorme e branco – os médicos de branco, os enfermeiros de branco, as paredes brancas, loucura e memória brancas. “Fiquei ali atado e dopado um mês. Via tudo branco. Meus dois pulsos se machucaram. Era remédio em cima de remédio. Devem ter diminuído a medicação aos poucos. Quando acordei e me soltaram, não conseguia andar. Meus membros estavam atrofiados. Tive que me arrastar pelo chão.” Aquele que era há pouco tempo o maior trapezista brasileiro ficou semanas sem poder se alimentar e tomar banho sozinho. Viu coisas que nem consegue relatar. Pessoas transformadas em verdadeiros trapos humanos no meio de suas próprias fezes, só grunhindo e babando como animais enlouquecidos. Era como se alguém mais poderoso que ele apertasse um torniquete instalado em sua mente e achatasse sua fé na humanidade e vontade de viver. E dá-lhe gardenol, dá-lhe lítio, dá-lhe haloperidol. Seu pescoço e cabeça ficaram duros. Dover, como os outros pacientes, eram tomados por espasmos nas costas, a boca ficava torta, atrapalhando comer e conversar. Andava compulsivo quase o dia inteiro, como uma máquina. 110


O Filósofo seguia a rotina dos outros pacientes. De manhã, remédio para acordar. De noite, remédio para dormir. Treino para ir sozinho ao banheiro e tomar banho. Às 18h, janta. Só no “Hoje” Dover foi internado 11 vezes. Ficou descolado, aprendeu a conviver com os médicos, quando melhorava fazia questão de ajudar os enfermeiros. Envolveu-se em várias brigas também, muitas delas apoiando pacientes em suas querelas contra a instituição médica. Deu até para namorar escondido uma interna, que por ele se apaixonou. Dover também foi internado em outros hospitais de São Paulo. A última foi em Belo Horizonte e coincidiu com a segunda visita do Papa João Paulo II ao Brasil, em 1991. Depois disso, Dover se afastou da família e nunca mais conseguiram interná-lo. O Filósofo Voador não perdoou Dirce Militello por ter sido internado tantas vezes. Tem pela memória da irmã mais velha intensa admiração, misturada à mágoa e à revolta. Isso porque ele pouco conviveu com a sua mãe. Se para o público ela era Laudemira, a encantadora cantora do Regional Tangarás, para o mundo do circo ela era a dona Nenê, que teve 15 filhos, dos quais nove vingaram. O que tornou sua vida triste foi o ciúme doentio do velho Tangará. “O ciúme que o músico tinha, tanto da beleza quanto do talento de sua mulher, foi tornando a vida sufocante para ela. Ninguém podia fazer a menor brincadeira, ela só podia rir dentro de casa e se fosse para ele”, diz Vic Militello sobre sua avó na página 26 do livro Sonhos como herança. Suas crises de alienação, quando às vezes tornava-se agressiva, podiam ser interpretadas como uma fuga do controle estrito, rigoroso e excessivo do velho Tangará. Por conta de tudo isso, Laudemira não tinha muito tempo para os mais novos. Ora, Dover é o caçula. Quem o criou como uma autêntica mãe foi, claro, a irmã mais velha, Dirce Tangará. Como a vida dá muitas voltas, dona Nenê morreu nos braços de seu filho mais novo, Dover, na casa de Dircinha na rua Turiassu. Uma das coisas que mais desespera Dover Tangará é Dircinha não estar mais viva. Ela morreu em 1988. Assim ele não pode falar diretamente a ela o que pensa. Atacá-la cara a cara, dando oportunidade 111


de defesa. Sim, Dircinha morreu, não pode se defender. Mas para Dover ela deixou mentiras escritas. O Filósofo sente-se abandonado pela família. Sempre foi mais fácil interná-lo. A ironia é que, segundo Dover, Dirce também morreu em um hospital psiquiátrico, vítima de dose medicamentosa excessiva. Dá para imaginar o que a internação significou para um jovem atleta como Dover Tangará. O Filósofo Voador teve seu corpo e mente dobrados pela força da doença, dos enfermeiros e dos psicotrópicos. E pelos choques elétricos, é claro, muito usados na época. Virou um trapo. Jurou nunca mais entrar num lugar como esse. Mas não adiantou. Depois da primeira internação, que durou três meses, várias outras se sucederam. Era Marília quem sempre ia retirá-lo, quando estava de alta. E pensar que o trapézio é uma arte que exige disciplina, determinação, responsabilidade, companheirismo e coragem. A excelência de cada gesto. Um trapezista transforma o peso em energia. Solto no ar, fazendo um movimento circular ou espiralado, voando de um portô ao outro, sua ondulação se relaciona com o ar e com o chão. A arte do trapézio é uma fatalidade física que organiza o esqueleto e lubrifica o funcionamento dos tendões e ligamentos. Desenvolve força e flexibilidade harmoniosamente. Trata-se da busca impossível da perfeição humana pelo aperfeiçoamento de uma linguagem que tem o corpo, a mente, o tempo e o espaço como seus elementos.

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Capítulo 21

Narrativas A vida nas ruas tem seu código de conduta e de honra. Os mendigos com grau razoável de controle mental estão sempre alertas. Precisam manter uma comunicação direta com seus colegas. Não dá para negar pinga, cigarro ou crack, se um “irmão” quiser. Já a comida é um assunto pessoal. Mata-se por ela. Como o Filósofo sempre dizia, “em rio que tem piranha, jacaré nada de costas”. A preocupação principal de um homem de rua é conseguir alimento para o dia. Nesse sentido, ele assemelha-se ao animal que cisca ou caça o dia inteiro. Mas o homem carrega uma diferença: ele procura uma coisa a mais – pinga, maconha, heroína, crack, cola – que o tire da realidade crua e o leve para o mundo da fantasia, domínio do humano por excelência. A vida não foi mais a mesma debaixo da placa Deus é Fiel depois da saída de Dover Tangará. A Moira perdera seu Filósofo e o gordo Pedro, seu amigo e mentor. Pedro e o cão Paulo formavam um único organismo peludo, o qual o Filósofo denominara Pedropaulo. Pois a banha roliça dessa entidade passou a se deslocar pelas ruas do bairro, depois pela cidade. Senti um vazio na alma ao ir à padaria CPL e não ver o Pança e o Paulo na entrada do estacionamento Paraki. O Filósofo já não estava ali há mais tempo. Vejo Mangariello chegar como faz todo dia para religiosamente comprar leite e pão. Indago ao editor pelo paradeiro de Pedropaulo e ele me diz que um dia avistara a geringonça puxada pelo Sancho avançando para os lados da avenida Rebouças. Imagino a locomotiva de tralhas, devidamente escoltada por Paulo, sendo levada pela calçada, resvalando pelos postes e lixeiras. As pessoas se desviam, mas depois olham para trás, admiradas pela decoração maltrapilha criada por esse artista dos farrapos.

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Naquela primeira conversa no Ponto Chic, o Filósofo me falara da sua preocupação em conseguir algum dinheiro para ajudar Pedro. Queria mandá-lo de volta para Minas, para junto da família. Talvez ele tivesse uma chance de sair da rua. Mas aprendi com Domitilla que isso é muito difícil de acontecer. Quem cruza a fronteira entre uma vida dita normal e a situação de rua dificilmente volta. Ele experimentou uma espécie de liberdade absoluta e perversa – dormir no chão onde quiser e quando sentir cansaço, não dar satisfação a ninguém, ir e vir sem cessar, não ter horários, compromissos e objetos materiais – que dificilmente lhe deixará se enquadrar outra vez. Mesmo que tenha que pagar um alto preço por isso. As últimas semanas de dezembro de 1999 foram de intensa pesquisa. Havia mudado a minha rotina. Continuava indo à Fundação todo dia, mas dedicava minhas noites a escrever o que aprendia sobre circo. Precisava descobrir dados objetivos sobre o Filósofo da Moira. Mangaliello sugeriu publicar um livro reunindo minhas anotações e as de Domitilla sobre o caso. Disse que o universo circense carece de memória e que prestaríamos um serviço à cultura do país. Mas como fazer isso se a narração do Filósofo é fragmentada e fantasiosa, com a objetividade perdida nos fumos do tempo? Qual seria o tom e o fio condutor da história e de que ponto de vista seria contada? Tenho vontade de puxar os cabelos e gritar. Como logo descobri, a resposta estava em Domitilla. Com a cumpli­ cidade que se estabelece entre certas mulheres, ela e Sônia combinaram almoçar juntas pelo menos uma vez por semana. Assim poderiam conversar livremente. Fiquei um pouco enciumado, pois não estaria presente em importantes revelações, mas o que fazer se a idéia era boa? As anotações de Domitilla me seriam úteis. Deixarei com ela o hard cover.

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Capítulo 22

Hard cover: Reflexões sobre o assombro II Ciclos de nascimento e morte acompanham o Circo. Antigamente, a lona que cobria o picadeiro vinha à vida pelas mãos de uma família de artistas. Pelas mãos, literalmente. Para um circo de 30x40 metros, as mulheres do Grande Circo Tangarás costuravam os quatro quartos do tecido por dias a fio. Em seguida, palombavam cordas nas costuras do pano, e rematavam-nas com tirícias. Os homens esticavam as espias de aço através dos moitões e levantavam o mastro de 12 metros. Finalmente, iniciavam uma sequência de amarrações que deixavam o circo em pé e à prova de vendavais. As artes circenses eram parentes das artes náuticas, já se vê pelo linguajar. O artista de circo, como o navegador, respeitava os ventos e dominava os segredos dos nós de marinheiro. Dominava muito mais, desde a exata noção do necessário para provocar o espanto no adulto e o riso na criança até as técnicas de fabricação dos aparelhos circenses (mastaréis, redes, trapézios, camas-elásticas, pernas-de-pau, globos da morte...). Isso em meio a um modo de vida romanticamente desprendido e ingênuo. Era uma alternativa radical à sociedade sofisticada. Essas características atraíram a curiosidade dos modernistas paulistas. Especialmente a intuição e a criatividade do Palhaço Piolin. Oswald e Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo e Yan de Almeida Prado, Di Cavalcanti, Menotti Del Picchia e outros se divertiam com a “arte pura” do palhaço. Em 27 de março de 1929, em um restaurante elegante na Mappin Store, por sugestão de Oswald, esse grupo realizou um ritual antropofágico para “deglutir” o Palhaço Piolin. Queriam nutrir-se do que o circo tem de mais autêntico e popular, e fundar a verdadeira “arte teatral brasileira”. Algum tempo depois, acusados de plagiarem os primitivistas euro-

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peus, e divididos em querelas intelectuais, os modernistas abandonaram Piolin e as artes circenses. Hoje, depois de décadas de decadência, teme-se que esse conhecimento esteja se perdendo. Alguns grupos, autodenominados “famílias tradicionais de circo”, ainda o conservam, mas estão encerrados em si mesmos. São alvos, no entanto, da curiosidade de uma novíssima geração de artistas – trapezistas, pirofagistas, contorcionistas, malabaristas, palhaços, mímicos, sombras, risonhos, mágicos, acrobatas, equilibristas –, gente que não saiu da barriga do circo, mas que se alimenta dos eflúvios da arte circense. Gente que anseia renovar a linguagem que encantou a infância de seus avós. São pessoas que se organizam em pequenos grupos e administram seu próprio espaço artístico fixo, onde pesquisam, treinam, dão oficinas, apresentam-se e recebem convidados. Não vivem sob a lona, nem viajam, mas desenvolvem uma linguagem a partir do circo, incorporando a mise-in-scène teatral e outras influências. À sua maneira, querem ser fiéis ao circo e provocar no público a “expectativa do erro”, o “cai não cai”. Formam um novo circuito, ainda não mapeado.

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Capítulo 23

Veteranos Voadores CPL. Manhãzinha. “Gostaram do que Domitilla escreveu no hard cover do capítulo anterior?” Tinha vontade de fazer essa pergunta aos sonolentos frequentadores da padaria. Naturalmente, me faltava coragem para ler alto às pessoas que tomavam café da manhã sentadas nos bancos do balcão. Provavelmente, elas nem se interessariam em ouvir considerações sobre o passado e o presente circense e me chamariam de louco. No entanto, as palavras escritas queimavam no papel e clamavam por leitores. Domitilla está atrasada. Por telefone combinamos nos encontrar na padaria após deixar Davi na escola. Adorava começar o dia com o grande e forte abraço brasileiro. O movimento na padoca se intensifica a cada instante. Ah, ela chegou. — Ontem, passei quase a tarde inteira com Sônia – Domitilla foi me contando, ao se desvencilhar dos meus braços – Dover tinha saído para catar coisas... — Como assim catar coisas? — É, também estranhei. Sônia disse que ele deu de juntar latinhas para vender. Quer ser o homem da casa descolando algum dinheiro. — O que não faz uma mulher na vida de um homem... Mas me diga o que você quer tomar, Domitilla? — Iogurte natural batido com pouco leite e pouco açúcar e queijo minas derretido no pão de forma. A certeza do que quer e o jeito natural que expõe sua vontade às pessoas é uma das coisas que me atraem em Domitilla. Demorei um tempão para decidir pelo suco de laranja, o pingado e o pão na canoa. Talvez por ter lavado a cabeça à noite, antes de dormir, os cabelos de

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Domitilla se armaram um pouco mais do que o costumeiro. Molas loiras caiam sobre seus ombros e esvoaçavam. A camiseta curta e parte da calça jeans clara estavam cobertas por uma rede de fios trançados que formavam uma blusa longa e estilosa. — Domitilla, lendo o hard cover parece que você já é uma grande especialista em circo. Disse isso olhando bem nos olhos dela, mas provavelmente não deu para ela perceber se minha pegada era um elogio ou um convite. — Ah, que nada. Apenas aprendi uma ou duas coisas sobre a cultura material dos circenses e usei a nomenclatura tradicional. Domitilla me disse isso com um sorriso maroto que desconhecia. Era como se ela não quisesse me deixar pensar “lá vem ela se defender com o seu jeito professoral”. Domitilla sabia a minha reação e brincava com isso. Iniciava sutilmente um jogo de sedução intelectual que me deixava indefeso. — Viu que até os modernistas se meteram nessa história de circo? É sempre bom ter uma pitada de modernismo paulista nos estudos. Eles legitimam tudo o que tocam. — É, mas você enfraqueceu esse princípio ao sugerir que a atitude de valorizar o palhaço nacional é cópia das vanguardas européias... — Sim, é verdade. O que me surpreendeu na minha rápida radiografia do cenário circense atual é o renascimento do interesse pelo circo nas camadas médias da sociedade. Acho que o meu Davi se daria bem aprendendo linguagem circense, o que você acha? Vou procurar uma escola de circo para ele. Era inegável que Domitilla, em pleno balcão de padaria, estava exagerando no academicismo só para me provocar. E conseguia. Uma lasca de pão ficou grudada na minha boca. Ela pegou um guardanapo e sem avisar se aproximou e limpou meus lábios, olhando diretamente para o conjunto olhos, nariz e boca. Daí sorriu insinuante. Era superior em modos e intelectualmente. — Comprei mais três hard cover para você, Domitilla. Quero que anote neles tudo o que Sônia lhe contar ou descobrir sobre o Filósofo Voador. 118


— Tá bom. Vou começar hoje à noite mesmo, depois de colocar Davi para dormir. — E o que você vai escrever? — Ah, Sônia me contou tanta coisa. Você sabia que a Trupe Tangará de Trapézio Volante continuou existindo até o final da década de 1970, quando acabou. Eles estavam no Circo Orlando Orfei. — E o Filósofo nunca mais voou? — Voou, sim. Alguns anos depois, quando Dover completou 40 anos (ele é de 1944), foi convidado por Marlene Olímpia Querubim a montar uma nova trupe. Marlene, que se tornaria a única mulher a criar e gerenciar um grande circo, estava iniciando um projeto inovador, que resultou no hoje consolidado Circo Spacial, conhece? Sim, eu conhecia. Domitilla continuou me explicando como Marlene Querubim começou humildemente, misturando o tradicional a técnicas da linguagem de marketing. Alguns problemas, ela superou com criatividade. Por exemplo, não tinha trapezistas no mercado, estavam todos viajando em outros circos naquele momento. Então ela teve a idéia de chamar o Pelé dos trapézios para montar seu time de trapezistas. Alguns acharam a idéia genial, um ovo de Colombo. Outros, uma loucura. O Pelé dos trapézios estava aposentado, com problemas de saúde, mas quem sabe não poderia voar como nos velhos tempos e ajudar a estruturar um número vigoroso para seu novo circo. No afã de fazer tudo certinho, como tinha aprendido com os tradicionalistas, Marlene Querubim acreditava que um circo sem trapezistas volantes não podia se chamar de circo... Dover Tangará aceitou o desafio. A primeira coisa que fez foi chamar outros dois veteranos, que também haviam parado há pouco – o chileno Xando Farfan e o brasileiro Tobias Silva. Durante meses os três só treinaram. Precisavam recuperar a forma. Aos poucos, voltou a elasticidade necessária para saltos básicos. A habilidade, não haviam perdido. À coragem e vigor, aliaram prudência e sabedoria. O Circo Spacial estreou em 9 de agosto de 1985. Faltavam 14 dias para Dover completar 41 anos. 119


A nova trupe deu conta do recado por mais ou menos um ano. O número foi se aperfeiçoando. Chegaram a fazer o salto no escuro, de olhos vendados. A tradicional arte do trapézio estava devidamente estabelecida no novo circo. Hora de passar o bastão a uma trupe mais jovem, que se espelhava no mestre. Dover nunca mais voou. O número de trapézio volante é um dos pontos fortes do Spacial até hoje.

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Capítulo 24

Hard cover: Doverman Dover Tangará esfrega as mãos com a mistura de talco, breu e pó de magnésio usada pelos trapezistas para pegar e dar aderência. Espana das munhequeiras o excesso de pó branco. Olha Durbis na banquilha. Seu irmão, sereno como sempre, é um portô seguro e experiente. No balanço, seu sobrinho Carlinhos. Foram treinados por Darci, pai de Carlinhos, um dos introdutores da arte do trapézio na família, nos anos 50. Estão prontos para iniciar Trupe Tangará nos bons tempos mais um número no Circo Orlando Orfei, (Dover, Carlinhos e Durbis) que cumpre temporada no Rio de Janeiro. Depois de uma internação de três meses, Dover sente-se bem, apto a voltar ao trabalho. A Trupe Tangará havia sido contratada pelo circo Orlando Orfei. O volante Dover balança no trapézio e voa para as mãos do forte. Seu corpo estava encolhido, com as pernas dobradas e os joelhos encostados no peito. Dá um salto mortal para trás e, num voo planchado, alcança as mãos seguras do portô. Em seguida, Carlinhos se lança em movimento espiralado. Parece um parafuso solto no ar, finalmente pego por Durbis. A coreografia aérea original, exaustivamente treinada sob a orientação de Darci, um dos primeiros filhos do velho Tangará, está apenas começando. Novamente Dover balança para lá e para cá. Apoiado na barriga, dobra seu corpo sobre a base do trapézio. Num impulso vigoroso e rápido joga-se na frente do balanço como se pulasse por uma janela. Sai com os pés na cabeça. Dá um salto mortal. Não satisfeito, dá outro mortal. Durbis, em um movimento sincronizado, lança Carlinhos em direção ao outro balanço. Os dois volantes se

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encontram no ar em alturas diferentes. Dover faz o giro sobre si mesmo acima e Carlinhos gira em parafuso abaixo. Por um instante, é como se o tio sentasse nas costas do sobrinho. Depois, como um passarinho, Dover se estica e pousa delicadamente nas mãos de seu irmão, que balança de ponta cabeça. Durbis o conduz até o balanço que se aproxima. O público que lota a sessão de domingo explode em aplauso. O “double de frente” da trupe Tangará é o mais admirado por outros trapezistas, truque cuja fama correu mundo. Ninguém mais conseguiu repetir. Lá embaixo, na entrada do picadeiro, um homem relaxou o semblante. Sabia que os Tangarás nunca falhavam, mas não conseguia deixar de ficar nervoso ao vê-los arriscar tudo e voar com perfeição. Orlando Orfei vestia uma calça de culote, cinto largo e bota até o joelho. Camisa preta de manga bufante, punho apertado e lantejoulas douradas. Por cima, um summer branco. Era como gostava de se apresentar desde os tempos que viajava pela Europa. Amava dizer que era a quinta geração circense em sua família. Quando jovem, trabalhou como dublê da Cinecittá romana. Como ator, atuou nos filmes I Clows e Amarcord, ambos de Fellini. Aos 48 anos, veio com seu circo excursionar pela América do Sul. Em 1968, entrou no país por São Paulo, que vivia um boom econômico à época. Se apaixonou pelo Brasil e por aqui ficou. Orlando Orfei foi o último dos grandes circenses europeus a se fixar no Brasil. Eles começaram a chegar em meados do século XIX, época que viveu o apogeu desse arranjo artístico. Era do circo clássico. As pessoas viviam segundo o calendário das festas religiosas e a passagem do circo em suas cidades. Fora disso, só a inacessível arte erudita nas capitais – a ópera, as salas de concerto, o balé. Esse panorama começou a mudar com a invenção dos esportes de massa, na passagem do século XIX para o XX, que competiam em estádios mobilizando multidões, e o surgimento de meios técnicos de transmissão de som e de imagens – o rádio, o cinema e a televisão. Orfei por aqui tornou-se uma pièce de resistènce do circo clássico. O italiano estava pronto para entrar na jaula dos leões, mas antes iria fazer sua marca registrada, o espetáculo das águas dançantes. A toda altura da lona, qual Ícaro, Dover Tangará iniciava outro truque. Agora ele estava com os olhos vendados. Ia pular na escuridão para as mãos do portô quando ouviu as primeiras notas sonoras da “Cavalaria Ligeira”. Aquela era a composição de Franz Von Suppë usada por Orlando Orfei nas águas dançantes. Tirou a venda e o que viu o deixou chocado. Sim, o velho empresário de circo 122


Orlando Orfei, um mito entre os circenses, estava desrespeitando seus trapezistas e iniciando seu número enquanto eles ainda estavam no ar! Será que ele não sabia que isso tirava a concentração dos trapezistas podendo lhes causar sérios danos! Enquanto as águas começavam a dançar no picadeiro, seguindo a música, e a lona se enchia de luzes multicoloridas, Dover Tangará saiu de frente novamente de seu trapézio, deu um, deu dois, deu três saltos mortais, mas no terceiro deixou-se levar pela cabeça, que a cada mortal ficava mais pesada, e caiu espalhafatosamente sobre a rede. Pulou dela como um sapo e se dirigiu à lenda viva do circo com o dedo em riste. — Me admira o senhor, há tanto tempo à frente de circos no Brasil e na Europa, não respeitar os seus próprios artistas. Saiba que ter dinheiro não é mérito de nada, porque ele emburrece e cega as pessoas, sim senhor. Me considere fora do seu circo a partir deste momento. Adeus. E nunca mais ofenda um Tangará! Disse isso e foi saindo, seguido de Durbis e Carlinhos, que o apoiaram. Provavelmente, se Orfei falasse no mesmo tom chegariam às vias de fato. Mas a resposta surpreendeu os Tangarás. — Dover, você tem razão. Acho que sem perceber desrespeitei vocês lá em cima. Este diálogo foi mantido no picadeiro, à frente de todos. Em nenhum momento o patrão fez valer seus direitos e obrigou os artistas a voltarem para o trapézio. O espetáculo continuou com outras atrações, até terminar com Orlando Orfei dentro da jaula de leões, exibindo com bom humor e descontração seu domínio sobre as feras. Ao terminar a sessão, mandou chamar seus trapezistas. Dover, Durbis e Carlinhos se apresentaram vestidos com a malha de seu ofício sob roupões coloridos. Nos pés, tamancos. Tinham certeza que iam ser despedidos pelo mais importante empresário de circo do Brasil. Orlando Orfei foi curto e grosso com Dover Tangará. — Quer dizer então que você queria brigar comigo ainda há pouco, me pegar de pau? — Não, que é isso, seu Orlando. O senhor é um homem de circo que a gente respeita. E já disse que não quis atrapalhar o nosso número. — Pois então você vai ficar no meu circo? — Se o senhor quiser, fico. — É claro que quero! Mas saiba de uma coisa: de hoje em diante você não é mais o Dover Tangará. Agora você é o Doverman. 123


Capítulo 25

A falta que nos define Os engravatados e as moças de tailler haviam deixado o balcão da CPL. Tomaram café expresso apressados e certamente já iniciaram o expediente nos escritórios por ali. Os homens de família e as empregadas domésticas que compram pão pela manhã também se foram. Dezembro é um mês quente que desentoca donas de casa, tias e vovós. Elas marcham sérias para lojas, com a missão de não esquecer de ninguém na hora dos presentes. A propaganda bombardeia super-ofertas que aparentemente fazem valer a pena o Natal do Milênio. Em um mundo desencantado, os milenaristas não têm força. Os místicos não tomam mais café. — Vamos à tua casa? Domitilla propôs isso quando íamos saindo da padaria. Gostei da iniciativa. Teríamos quase o dia inteiro pela frente. Domitilla pegou na minha mão e me acompanhou pela calçada. Pisar na Moira assim de mãos dadas sob o sol da manhã era novidade para mim. Até agora a nossa relação tinha sido implícita, feita de subentendidos e cumplicidade silenciosa. Isso mudou. Olhei a fachada laranja. A sacada e a porta balcão mais antigas do que o mundo. Sim, era a minha casa. Tirei o cadeado de ferro, empurrei o portão e subimos os dez degraus até a cozinha. Abri a porta e novamente me surpreendi com a desenvoltura de Domitilla. Dizendo “ai que sede”, ela correu pegar água, abriu a porta da geladeira, alcançou o litro, viu que não tinha copo limpo, lavou um e, ao beber, os goles faziam glup glup na garganta. Um pouco do líquido escorreu pelo canto da boca e avançou pelo pescoço. Assim que terminou, Domitilla se pos a rir sem parar. Depois, se aproximou de mim com gesto e intenção clara.

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Na hora me veio à mente uma das frases do Filósofo – “hoje é o primeiro dia do resto da minha vida” – e, não sei bem por que, decidi recuar. Virei o corpo, ganhei o corredor e já na sala me sentei no sofá, alegando cansaço. Domitilla, que não é boba nem nada, sentiu o movimento. Também se contraiu. Tinha ouvido o Filósofo definir a situação do homem de rua como sendo “cada um por si e deus contra todos”. Percebi que ela se aplica também a mim: vivia apenas por mim; era como se um demiurgo me afastasse de todos: entre eu e o outro, existiria uma força estranha que ocupa espaço e provoca um abismo essencial. Nunca antes havia sentido com tanta força a impossibilidade do encontro. Essa convicção me levava quase ao desespero. Não poderia ter Domitilla, porque Domitilla é a parte de mim que não resolvo. É como se tê-la correspondesse a abraçar a completude – e um ser completo, sabemos, não existe. É a falta que nos define e a procura que nos faz humanos. Domitilla se lançou de corpo e alma no que estava fazendo. Tornou-se amiga do Filósofo e de sua mulher. Entregou seu filho à amizade deles. Quanto a mim, não conseguia me envolver além de certo ponto. A idéia de abrir espaço para Domitilla em minha vida correspondia a idéia de abrir espaço para o Filósofo em minha vida. Se ele é uma pessoa desamparada, abandonado pelo Estado, pelos familiares e amigos antigos, caberia a mim trazê-lo para minha casa e adotálo como a um órfão? Dificilmente. Não só pelas questões materiais e concretas que essa decisão implicaria, mas especialmente porque correria o risco de, ao derramar minha subjetividade sobre este objeto difuso na cidade, acabar compartilhando seu discurso erradio, confusão de afetos e fragmentação psíquica. Conheço minhas fraquezas. O melhor que poderia fazer é uma denúncia contundente da injustiça que lhe roubara a glória e a carreira. Um livro. A partir daí muita coisa poderia ser feita. Por isso era urgente Domitilla tomar nota no hard cover das vicissitudes, dos episódios e do enredo da vida do Filósofo Voador. Não era necessário aqui a exatidão e objetividade jornalísticas. Sabemos que ela não existe. Seria melhor ser fiel em 125


espírito e assim chegar mais perto do que realmente foi a vida de alguém – que de resto permanece inapreensível e impossível de representar. Estou certo que Domitilla concordará – o melhor a fazer é concentrar a ação em um período específico, inspirar-se em suas histórias e narrar com liberdade a caminhada de um dos mais interessantes personagens das ruas de São Paulo.

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Capítulo 26

Dândalo bota ovo

Caçada de Codornas: Dândalo (de óculos) e Darcy ao lado do amigo Juca Soares

Dona Cotinha abriu a janela para a luz do sol entrar no quarto de Mariazinha, como fazia todo dia. Eram sete da manhã. A filha teria uma surpresa na pequena cidade de Ibitinga, interior de São Paulo. Mãe, o que é isso redondo aí em frente de casa? Quis saber a menina esperta para seus quatro anos. É um navio? Não, minha filha, é um circo que chegou ontem na cidade, mas você já estava dormindo. Circo, o que é isso, mamãe? Você vai descobrir hoje à noite, querida, seu pai vai nos levar. Quer ir? Oba, eu vou no circo hoje!, alegrou-se a inocente sem saber bem por quê. De fato, seu Juca Soares levou a pequena Maria de Lourdes e sua irmã mais velha, Maria José, ao circo naquela dia. Era noite de estréia em Ibitinga da temporada de 1954 do Grande Circo Tangarás. A nata da cidade estava ali. A chegada de uma companhia circense mobilizava a sociedade a partir da entrada triunfal, com os artistas vestindo o melhor figurino, as moças mostrando

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laivos de pernas e a bandinha musicalmente enfurecida puxando o cortejo. As paredes baldias da cidade amanheceram forradas com um cartaz que anunciava os “Demônios do Ar, primeiros trapezistas brasileiros a apresentarem os trapézios voadores a toda altura da lona, como no Maior Espetáculo da Terra”, filme americano ambientado num circo sobre um trapezista que tenta um salto arriscado para impressionar sua amada, ela também trapezista, e se dá mal. Maria de Lourdes nunca mais esqueceu o que viu naquela noite. O circo lotado e no picadeiro a dupla de palhaços Farinha Chereta e Décio. Este último era um taciturno “clown branco”, com sua postura fina e gestos largos e harmoniosos, que encarnava a elegância e o princípio da ordem. É claro que tudo o que Farinha Chereta queria era sacanear o almofadinha. Esse jogo entre o que contém e organiza, e para isso reprime, e o princípio de liberdade enxerida e inconsequente do palhaço é que fazia toda a graça do número. No final da repetição, como eram chamadas as entradas de palhaço, Farinha Chereta botava um ovo enorme, depois de um esforço equivalente que só um palhaço pode representar. — Papai, como aquele homem pode botar um ovo? — Não sei, minha filha, é coisa de gente de circo. — Pai, aquele homem botou um ovo de verdade? — Não, Mariazinha, acho que era de mentirinha. Mas a menina encafifou com aquilo, quase ficou doente. Mariazinha tanto fez que seu Juca resolveu voltar ao circo no dia seguinte logo pela manhã para explicar o “problema” para o palhaço. Seu Juca e família moravam próximos ao centro, em frente a um descampado coberto de pedrinhas. Era ali que os circos paravam. Conversou com uns homens na área entre a lona e o estacionamento dos trailers. Os maiores Dirce, Dândalo, Darci e Djalma se exercitavam sobre um grande colchão, e os menores Dujanir, Dalton, Dover, Décio e Durbis brincavam numa cama elástica. Em pé, em posição quase militar, Benedito Marques Ribeiro, pai deles todos, só observava. Ele fazia questão de batizar os filhos com nomes iniciados em “d” pelo simples prazer da aliteração. O velho Tangará tinha aprendido muito quando trabalhou aos 12 anos como aprendiz de um sapateiro italiano comunista. Gostava de organizar o mundo. 128


— Procuro o palhaço Farinha Chereta, disse seu Juca meio sem jeito. Por acaso é um de vocês? Dândalo sorriu. Os irmãos se aproximaram não sem antes olhar para o pai e obterem um sinal de aprovação. O treino era sagrado para os Tangarás. Começavam de manhã bem cedo, exercitando vários números, posições e novos movimentos. À tarde, decidiam quais truques iriam apresentar naquela noite e os treinavam exaustivamente. Na sessão, mais tarde, já sabiam o que fazer. Procuravam sempre surpreender. Depois do espetáculo, o velho Tangará ainda reunia a trupe para, como dizia, “enxugar” o número, aperfeiçoando o que havia sido apresentado. Mas é claro que podiam parar o treino para atender um fã: — Juro que não fui eu, disse Dândalo brincando. Não sou o pai da criança. Seu Juca Soares viu aquele homem franzino, cabeleira lisa e negra, pele morena e nariz e lábio calcasianos. Não reconheceu o palhaço Farinha Chereta do dia anterior.. — Ora essa, é sobre uma criança mesmo que vim falar com vocês... Ao saber que a filha do tal homem estava obstinada em descobrir como um palhaço podia botar ovo, Dândalo resolveu aceitar o convite e ir a caráter na casa da menininha. Literalmente ia botar um ovo diante dela. E assim aconteceu. Mariazinha guarda pelo resto da vida o assombro de ver surgir um palhaço de verdade dando cambalhota pela casa adentro. Farinha Chereta foi logo fazendo uma parada de mão em plena sala de estar. Com a desenvoltura de uma vida de estripulias no picadeiro, Dândalo fez uma mesura e meio de lado, meio agachado, tirou um ovo de dentro de si. Feito uma galinha passou a cacarejar, batendo os braços em forma de asa no corpo e pulando à lacanguru. Para terminar o número, com delicadeza, entregou o ovo enorme para Mariazinha. Só então a criança percebeu que o objeto era de madeira. Tinha um ponto de exclamação pintado nele. Foi assim que nasceu a amizade entre a família de Benedito Marques Ribeiro e a de Juca Soares, que passou a não mais perder os espetáculos do Grande Circo Tangarás, em Ibitinga. Nas folgas Dândalo, Darci e seu Juca iam caçar codornas na região. Dândalo levava o banjo e o cavaquinho, instrumentos nos quais ele era um virtuose, o orgulho do pai maestro. Até a empregada dos Soares de nome Margarida, ficou próxima dos Tangarás. Na 129


temporada de Ibitinga, a mulher de Dândado estava grávida do terceiro filho do casal. Mesmo assim, ela costumava fazer parte da barreira, que é a apresentação dos artistas no início do espetáculo. Mas naquele dia ela se sentiu mal. Não deu outra. Lá foi a loira Margarida no lugar da mulher de Dândalo, como se fosse uma artista de verdade. Desibinidinha, entrou de maiô, como as outras mulheres. O engraçado foi ser reconhecida pela plateia, que explodiu em gritos e aplausos. As filhas do Tangará, Dirce e Dujanir, formavam a dupla de cantoras Loira e Morena. As meninas encantavam crianças, homens e mulheres com sua beleza e os vestidos ondulados em tafetá, tipo chamalote, feitos por dona Nenê, que também costurava todo o figurino do circo. Às segundas-feiras, elas costumavam passar as tardes com dona Cotinha, que pedia para a Loira e a Morena trajarem especialmente o vestido escarlate – “me lembra roupa episcopal”, dizia dona Cotinha – e cantarem “Chalana” e “Beijinho Doce”. Às vezes, esses saraus reuniam vizinhos e o Regional Tangarás inteiro, com o velho Benedito no comando, fazia “Recuerdos de Ypacaray” ali naquela mesma sala onde o palhaço Farinha Chereta botara ovo. O velho Tangará era um empresário de circo rígido e ético. Não havia diferença para ele entre o mais exímio artista e o mais simples amarracachorro. Todos se alimentavam juntos, sentados em roda. Os pagamentos semanais eram justos e nunca atrasavam. Seu Benedito não gostava de animais em circo, tinha dó dos bichinhos, embora naquela temporada tivesse incorporado à sua companhia uma família argentina de índios que incluía um jovem domador, Carlito, cuja atração maior era o “urso gigante da Síria” e um puma. O pai do domador, Charles, era apresentado como um dos homens mais poderosos de todos os tempos. Ele fazia um número de forte. Quatro amarra-cachorros depositavam com dificuldade uma enorme pedra no centro do picadeiro. O forte Charles entrava sem camisa, vestindo 130


Regional Tangarás: Darci, agachado, não identificado, Dândalo (com o violão na mão) e Dujanir

apenas uma calça de couro negra com babados dourados e sapatilha tipo apache. Curvava-se e levantava a pedra pelos dentes. A família ainda apresentava o número do táxi maluco, em que um pequeno veículo motorizado endoidece em pleno picadeiro. Um dos elementos do circo que mais dá despesas é a cobertura. Para economizar, os próprios circenses a costuravam. Geralmente, usavam algodão, pois a lona era cara. Para deixar o tecido impermeável, o circense desenvolveu o “enceramento”, por meio de uma composição que levava querosene, cera de carnaúba, parafina e pigmento de alguma planta da região. Mas as intempéries e as constantes mudanças acabavam por abrir buracos na cobertura do Grande Circo Tangarás. Dona Nenê mandava baixar o pano toda vez que via um feixe de luz rasgando a lona e cobria o furo com estrelas coloridas. Um dia Dândalo comentou com seu Juca a dificuldade que era trocar a cobertura todo ano e como seu pai, orgulhoso, não pedia ajuda para ninguém. Seu Juca Soares estava bem de vida, tinha tudo o que pedira a Deus, terras, esposa carinhosa e prendada e duas filhas saudáveis, lindas e inteligentes. Podia ser generoso. — Vamos comprar uma lona nova; depois o amigo me devolve o investimento. Quando o circo mudou-se para Itápolis, cidade a 20 quilômetros de Ibitinga, e depois para Guariba, um pouco mais longe, seu Juca ia buscar os irmãos Dândalo e Darci em seu Ford importado. A estrada era de terra e, 131


claro, cheia de buracos. Nada que impedisse seu Juca de acelerar seu carrão. O homem ia que ia, correndo pelos campos, cortando fazendas e pastos arretados. Ao lado dele Dândalo parecia lívido. — Ué, mas que cara é essa, amigo? Fez seu Juca. — É que me dá frio na barrica quando o amigo passa correndo pelos buracos. — Ah, essa é boa, nunca vi trapezista ter frio na barriga, disse seu Juca, antes de irromper numa gargalhada das grandes. Indiferente ao medo de Dândalo, seu Juca continuava acelerando seu Ford na estrada de chão que singrava extensas plantações, quando ouviu: — Pio. Fez outra curva e novamente: — Pio. Até que seu Juca olhou para trás e perguntou: — Darci, mas que diabo o amigo está fazendo. — Estou simplesmente piando. — Por quê? — Ora, se houver um acidente, não quero que digam “tadinho, morreu sem dar um pio...” No ano seguinte, o Grande Circo Tangarás viajou para o Mato Grosso. E o idílio das famílias amigas se desfez rapidamente: O pai de Mariazinha, Juca Soares, adoeceu repentinamente e faleceu; ainda guardando luto por seu marido, dona Cotinha recebera uma carta da Loira e da Morena avisando que aconteceu um terrível acidente: Dândalo caiu do trapézio e também morreu. Dândalo, Darci e Djalma eram os “Demônios

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do ar”. Eles introduziram, desenvolveram e aperfeiçoaram a arte do trapézio entre os Tangarás, inspirados no filme O maior espetáculo da terra e nas trupes de trapezistas brasileiros famosas da época, os Farfan e os Temperani. Mas os irmãos também faziam repetições de palhaços, malabarismo, acrobacias, eram atores nas peças de circo-teatro e músicos entre uma apresentação e outra. Com a morte trágica de Dândalo, o Grande Circo Tangarás nunca mais foi o mesmo. Ele que já não vinha bem das pernas, entrou em decadência e dali a alguns anos fechou. Desiludido, o velho Tangará vendeu a lona, as duas mil cadeiras forradas com veludo, o veludo que cobria o chão, as gambiarras da iluminação, os mastros e todos os aparelhos para o Nhô Fio, da dupla sertaneja Nhô Pai e Nhô Fio. Farinha Chereta deixou de fazer estripulias. O cavaquinho e o banjo silenciaram. Mas o Grande Circo Tangarás nunca mais deixou o íntimo de Mariazinha.

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Capítulo 27

Dover Filho Depois que me esquivei de Domitilla, nossa interface não voltou mais a ser a mesma. Poderia dizer “continuamos amigos”, mas seria uma besteira porque nunca fomos amigos de verdade. Talvez fôssemos “futuros amantes” – pessoas naquela fase de descoberta do outro que inconscientemente se deixa levar até transbordar em paixão, quando nada ou ninguém segura o encontro dos corpos. Mas, surpreendentemente, isso se transformou em outra coisa, como se a curiosidade intelectual e a identificação afetiva com os alquebrados nos bastassem por enquanto. Teríamos a vida inteira pela frente para envelhecer juntos se quiséssemos. Por agora o que nos tornamos é “futuros cúmplices”. Domitilla e eu queríamos narrar a história de vida de Dover Tangará fiel em espírito – a única fidelidade em que acreditávamos – e a partir daí refletir sobre diversas questões que nos incomodavam. E dá-lhe hard cover... que brotava indistintamente do fluxo das conversas com Domitilla, que podia ser na minha casa, no Ponto Chic, na Lanchonete Estadão... Após deixar definitivamente o trapézio e se separar de Marília, sua primeira mulher, Dover viveu uma temporada sob os auspícios de sua irmã, Dirce Militello, na casa da rua Turiassu. Ela oferecia proteção e trabalhos ocasionais ao Filósofo, como a produção do jornal Circo Show, editado por ela. Dover fazia as vezes de um elegante contato publicitário. Humberto Militello, marido de Dirce, havia falecido em 1971 e a irmã de Dover casou-se novamente com o dono de um salão de beleza chamado Manuel. Por meio dele, o Filósofo conheceu Isabel, cabeleireira que se tornaria a mãe de seu filho. Isabel amava cortar o cabelo dos clientes, ao mesmo tempo em que se deixava levar pela conversa doce do Filósofo. Depois do último freguês, era Dover quem a levava para casa.

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Um dia Isabel veio com a novidade: — Dover, estou grávida. — Você precisa de alguém que assuma esse filho? — Claro! Digo, não, ele é seu! Você tem que assumi-lo. — Está bom. Então ele é meu. — Como vai se chamar? — Ponha o nome que você quiser... O Filósofo achou que o filho não era dele, mas mesmo assim aceitou assumi-lo. O menino nasceu e a mãe resolveu chamá-lo de Dover Filho. No primeiro ano de vida, Dover Filho teve muitos problemas respiratórios. O Filósofo era um pai presente e constante. Levava ao hospital, nas sessões de inalação e fazia o tamponamento em casa. Quando o menino já passava de um ano, Isabel disse: — Agora você já pode ir, Dover. Ele obedeceu sem vacilar. Durante anos não recebeu notícias de seu filho. E não se importou muito com isso. Aquela era uma história na qual ele caíra de paraquedas. Até que um dia, não faz muito tempo, foi procurado por um jovem de 18 anos que fazia o serviço militar. O conscrito queria estudar educação física na faculdade e sabia tocar violão muito bem. Seu rosto não deixava dúvidas. A mulher não mentira. “O cara é minha cara, caralho!”, comentou Dover pai. Combinei com Domitilla que procuraria o filho do Filósofo. Por meio de Marília, consegui o contato da mãe e marquei um encontro com Dover Filho em um shopping da Zona Leste. Precisava saber por que ele deixava seu pai desamparado. Não é hora dele se encarregar de cuidar da saúde e dar morada ao progenitor, já que ninguém mais da família quer ou tem condições de fazer isso? De fato, Dover Filho é a cara do Filósofo! É inegável a paternidade. Mas Isabel e Dover Filho ficaram na defensiva durante nosso encontro. Para Dover Filho seu pai gosta da situação em que vive. Gosta da rua e nunca vai sair dela. Além disso, é orgulhoso demais para pedir ajuda. O sonho do menino é emigrar para os Estados Unidos e encontrar seu tio – “Dalton, o incrível” – que se apresenta nos cassinos de Las Vegas. Desistiu do pai. Não posso culpá-lo. 135


Capítulo 28

Hard cover: Cisca Era um carro-casa e nele morava o Filósofo Voador. O trailer estava estacionado nos Sem-Terra da Marginal Tietê. Anos 1980. Dover Tangará vivia ali uma vida de secura. O carro-casa foi comprado com as últimas economias dos tempos do Circo Orlando Orfei. Havia nele um fogão de duas bocas, um catre desmontável acoplado à parede. A pia esbranquiçada servia para lavar a louça e as mãos. O minúsculo banheiro tinha privada e chuveiro. O próprio Dover parafusou volutas de metal aqui e ali. Ficou bonitinho. Dover não reclamava de seu carro-casa. Fazia todo sentido morar ali nos Sem-Terra, onde se refugiaram outros circenses aposentados. Eram companheiros de destino. Não mais rodavam por aí oferecendo diversão, mas permaneciam prontos para a partida. E viviam em contato com quem ainda perambulava pelos circos. Esses, ao chegarem na cidade, a primeira coisa que faziam era telefonar aos amigos e parentes estacionados no SemTerra e simplesmente dizer: “Estou na cidade”. Para um cara como Dover Tangará, nômade desde o nascimento, o trailer é como o iglu do esquimó ou a tenda do mongol. Normal. A Trupe Tangarás de trapezistas existiu por 18 anos. Nos anos 1970, Dover Tangará se ausentou diversas vezes por estar perdido em seu labirinto mental. Sentia medo de graça, depressão profunda e paranóia delirante. Nesses períodos ele era internado pela família em hospitais psiquiátricos. Quando se recuperava, voltava a voar. Até que a Trupe Tangarás achou por bem se dissolver. Isso aconteceu em Belo Horizonte, na passagem do Circo Orlando Orfei. Os problemas de saúde, a instabilidade emocional e a idade avançada contribuíram para a decisão do trio. Fim de uma era. Como acontecia com os craques de futebol do passado, quem não os viu voar nunca mais teria a oportunidade. Para nós, restou a nostalgia e a idealização.

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Por essa época, Dover ainda estava casado com Marília Rapunzel. Os cinco primeiros anos do casal foram felizes, mas o episódio da prisão e o surto psicótico do trapezista acabaram com a festa. No interior curvo e metálico do Globo da Morte, Marília pilotava uma moto sem medo. Sabia o que fazer. No circo ela usava os últimos laivos de juventude para se apresentar de maiô brilhante, coberto de lantejoulas, em coreografias simplórias com elefantes, nas acrobacias do chafivari, na barreira. Mas agora Marília não sabia como lidar com aquilo que enlouquecia seu marido. Dover Tangará perdera a autonomia e ela não conseguira tomar a frente do tratamento dele. Ficava recolhida. Quando seu trapezista estava em crise, era a família Tangará que entrava em cena, levava aos médicos e providenciava as internações. Nessas horas, os Tangarás eram poderosos e soberbos. Marília só ressurgia depois de 15 dias para visitar o marido nas clínicas ou então para ir buscá-lo quando estava de alta Fora do circo o casal não durou muito mais tempo. Dover já não formava mais a Trupe Tangará de trapezistas. Carlos e Durbis, cada um foi para um lado. Dover e Marília não se entendiam como antes. Na crise seguinte, Dover entrou em profunda depressão, como das outras vezes. Saiu por aí feito um desmiolado. Só que desta feita ele não tinha para onde voltar depois que melhorasse. Nem trabalho, nem casa. Ficou perambulando pelas ruas. Resolveu desistir de tudo tragicamente: jogou-se embaixo de um pequeno caminhão. O veículo conseguiu parar a tempo, mas uma roda chegou a passar por cima de seu corpo, sem machucá-lo muito. O ocorrido assustou Marília, que se retraiu mais. Para se recuperar, Dover foi passar uma temporada na casa de sua irmã, Dirce Militello, na rua Turiassu. Foi nesse período que ele recebeu um telefonema de Marília que o magoou bastante: ela dizia que não tinha mais condições de viver com ele. Queria a separação. Desde o início, o casal Dover e Marília enfrentara dificuldades dignas das novelas de sucesso da TV Tupi da época. Ao contrário do que muitos podem pensar, o circo é um meio conservador e machista. Talvez mais do que na sociedade à sua volta, a “célula mater” do circo é a família. Levando uma vida itinerante e comunitária – no circo todos trabalham onde moram e seus vizinhos são os próprios colegas de trabalho, com quem viajam – o circense se apega a valores tradicionais – é um microcosmo coeso e hierarquizado, daí sua permanência. 137


Marília era bem mais velha do que Dover – onze anos –, já havia sido casada e tinha duas filhas pequenas quando reencontrou o trapezista. Ela conhecera a primeira geração circense dos Tangarás anos atrás, quando Dândalo era vivo e Dover, uma criança. Marília havia abandonado a barriga do Circo Garcia para viver com o primeiro marido. Mas o cheiro de pó de serragem não havia saído de dentro dela. Separada, viu no reencontro com o agora jovem Tangará a oportunidade de voltar por cima para a vida que nunca devia ter abandonado. Era uma mulher experiente. Ora, não havia o divórcio, o que tornava ilegal a união dos dois. Dover reconhece que só casou com a Marília porque seu pai tinha morrido um pouco antes. Se o velho Tangará estivesse vivo, ele não permitiria que seu menino se metesse nessa história. De qualquer jeito, Marília nunca foi aceita pelo restante da família Tangará. Para complicar, uma das filhas de Marília chamada Lidiane acabou se casando com um dos irmãos de Dover, chamado Dalton. A relação não deu certo e o ex-genro e cunhado de Marília preferiu emigrar sozinho para os cassinos de Las Vegas, nos Estados Unidos. Com o fim de seu casamento, Dover foi morar com sua irmã mais velha, Dirce Militello, na rua Turiassu. Ele a ajudava em diversos afazeres ligados ao jornal publicado por ela sobre o mundo do circo. Dover era uma mistura de contínuo e contato publicitário de sua irmã. Mas Dirce também tinha seus problemas de saúde e não poderia ser a única referência em sua vida. Era melhor Dover se instalar em um tralier nos Sem-Terra. O irônico é que ele foi morar perto de sua ex-mulher, Marília Rapunzel. Até voltaram a ficar amigos. Marília, sempre que pode, não se furta a ajudar seu ex-marido. Com o passar do tempo, a vida nos Sem-Terra vai mudando. Moradores dos trailers se cadastram para receber um apartamento do Cingapura. Dover foi preterido, mas não seus amigos. O bairro ganha uma certa urbanização. O Carrefour se derrama à beira da via marginal do Tietê, ao lado dos SemTerra. O trailer arrumadinho de Dover Tangará torna-se um ponto de referência. Muita gente passa por ali. Entre os novos amigos de Dover Tangará estava um policial federal chamado Nazareno, que gostava de andar pelos Sem-Terra acompanhado de uma bela mulher. Francisca era o nome dela, em seus vestidos de cintura fina tipo anos 1960. Linda, a Francisca. Gostosa, a Francisca. Desejável, 138


a Francisca. Mas ninguém tinha coragem de chegar nela, afinal, ela era mulher de um tira de respeito, negão de quase dois metros que atendia pelo nome piedoso de Nazareno. Um dia veio a notícia que alarmou os moradores dos Sem-Terra. A capa do jornal Diário da Noite rezava: “Policial envolvido no assassinato de executivo japonês é preso”. A foto do negão não deixava dúvidas, era o Nazareno. Usando suas conexões no seio da polícia, ele ficou sabendo que um alto dirigente da fábrica de televisão Semp Toshiba mantinha uma mala cheia de dólares em sua própria casa. Montado em uma moto com chapa fria, Nazareno foi até lá. A moto ele mantinha clandestina para eventualidades como essa. Tocou a campainha e quando o cara apareceu, anunciou o assalto. Como o japonês o encarou, o jeito foi eliminar o problema com dois tiros no vão entre os olhos do oriental. Calmamente, Nazareno pilotou sua moto até a casa que dividia com Francisca, mostrou a mala de dinheiro a ela e jurou: — Cisca, agora a gente vai viver no bem-bom. Que nada. Não passaram 24 horas e Nazareno viu sua casa cercada por diversos agentes federais, muitos amigos deles. No comando da operação, um camarada dele chamado Brancasso. “Estou fudido, alguém me entregou”, teve tempo de dizer. A notícia saiu até no Jornal Nacional. Não deu outra, com a pressão da opinião pública, Nazareno pegou 30 anos no Carandiru. Mas a bela Cisca, de cabelos, cílios, ancas e seios generosos continuou passeando nos Sem-Terra. Agora tinha ao seu lado Brancasso. Pele branca ornada por cabelos negros em mola. Pernas grossas e bem torneadas, sustentando corpo rococó, jeito de olhar direto nos olhos, piscadinha e gesto para afastar a franja, lábios sempre molhados pela ponta da língua inquieta – Cisca era quase um clichê, o que os homens chamavam de boa. Sim, Cisca era boa, muito boa. E não é que a boa da Cisca trocou o Nazareno pelo delegado Brancasso. Todos os homens nos Sem-Terra invejavam a sorte de Brancasso, o tira que herdara a mulher que pisava em suspiros por onde passava. Talvez o único que se mantivesse indiferente ao charme de Cisca era o Filósofo Tangará. Ele não tava nem aí pra mulher bonita. Vivia pousado nas alturas da abóbada circense. De lá observava o fato humano. — Dover, você é o único em quem confio aqui nos Sem-Terra, você sabe disso?, confessou um dia Brancasso. 139


Dover estava sentado nos degraus da armação de madeira que fazia as vezes de varanda do seu trailer. O corrimão improvisado, a pequena escada e o piso tinham sido pintados de um anil desbotado que os amigos chamavam de azul-calcinha. Abriu espaço e acenou com a mão para que o Brancasso subisse. O que esse delegado quer comigo? se perguntou. — Puxa, Brancasso, ninguém me fala isso há muito tempo. Todo mundo acha que estou louco. — Que nada. Mais lúcido que você não existe. É o seguinte. Depois que o meu amigo Nazareno se meteu naquela roubada e está preso, a Cisca não tem mais como pagar o aluguel. Você sabe, não posso levá-la pra casa que daria maior rolo com minha mulher e minhas filhas. Elas não compreendem o que é um homem fisgado por um animal como a Cisca. Eu e o Nazareno sabemos. Mas você, não sei, me parece tão distante, tão superior... — Não... não... já experimentei da fruta... sim... ponderou o Filósofo rasgando um rabicho nos lábios. Mas diga logo o que você quer comigo, Brancasso. — A Cisca, tadinha, não tem pra onde ir. Vou arrumar um lugar para ela ficar, mas vai demorar um pouco. Será que você deixa a minha Cisca ficar em seu trailer por uns dias? — Não tem problema, mande-a vir, eu arrumo outro lugar para dormir. Cisca passou a morar no trailer do Filósofo Voador. Tornaram-se amigos. Dover gastava o dia conversando com Cisca e a noite saia para dormir na boleia de um caminhão estacionado por um circense nos Sem-Terra. O trapezista mais ouvia que conversava. Cisca se abria. Contava sobre a infância difícil e a falta de sorte com homens. Às vezes, o Filósofo usava as vivências na barriga do circo para orientar Cisca sobre questões íntimas e existenciais. A casa-carro do Tangará ficava estacionada olhando para a face norte. O sol inundava a varanda, dando viço ao azul calcinha. Dover Tangará se aproximou naquela manhã para retomar com Cisca uma discussão que deixara sem terminar no dia anterior. — Puxa, Cisca, você está parecendo a miss Brasil! Disparou Dover, estranhando Cisca estar especialmente produzida naquela manhã. O vestido de alcinha revelava ombros simétricos. O tecido azul turquesa drapejava. Uma ingênua fita branca com uma fivela no meio continha a mulher na 140


altura do tecido. Dover viu Cisca trotar em salto alto pela varanda, da porta do trailer à escada. — Aonde é que você vai desse jeito, Cisca? — A lugar nenhum. Vou ficar por aqui mesmo. — Mas, então, não estou entendendo. Por que você se arrumou assim? — Ora, Dover, será que é só você que não percebe. — Como assim? — Todo mundo aqui nos Sem-Terra quer me comer, mas você é o único que me interessa. Só que você não faz nada! — Sabe o que é, menina, eu nunca fui de ir atrás de mulher. Mulher bonita, então, sempre foi sinônimo de problema em minha vida. É claro que reparo em você. Mas o que eu ia fazer, era muita areia para o meu caminhãozinho. E o Brancasso? — Ora, deixa o Brancasso comigo. Vem cá. Dover foi. Pela primeira vez passou a noite em seu próprio trailer, depois que Cisca foi morar lá. Dover sabia cuidar de uma mulher com vagar e parcimônia. As moças do circo eram exigentes. Queriam performance física, emocional e intelectual. Afinal, não era para qualquer um manter um intercurso sexual com uma mulher que de dia fazia acrobacias, dançava sobre elefante, andava na corda bamba... No dia seguinte, Cisca foi até a delegacia de Brancasso. Explicou calmamente, como a coisa mais natural do mundo, que não era para ele ir mais no trailer. Agora ela e o trapezista iriam viver ali. Desde o início Brancasso tinha consciência de que a alegria com Francisca não ia durar muito. Pensou em Nazareno, preso no Pavilhão Nove do Carandiru. Pobre coitado.

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Capítulo 29

Aristóteles — Dover sumiu! — Como assim, Domitilla? Ele não está lá no galpão da Sônia? — Não, saiu de lá para comprar cigarros e não voltou mais. — Não brinca, Domitilla, fala sério. — E eu sou lá de brincar com essas coisas? A gente vai atrás dele pelas ruas e calçadas, não é? — Claro. Que coisa! Acabei de anotar no hard cover meu sonho maluco da noite passada, enquanto esperava você, no qual vestido a caráter o Filósofo Voador arrumava novos companheiros de rua... Estávamos no balcão da CPL, viemos tomar café da manhã. Uma nódoa escura no céu assusta. As bolotas de nuvens formam seres que desconheço. Provavelmente, vai chover. Vejo uma muralha na minha frente. Um muro de cinco metros de altura chamuscado com argamassa cinza ladeia uma portaria. Sobre ele, rolos de fios de arame farpado eletrificados. A portaria é, na verdade, uma torre de vigia, no interior da qual dois elementos manipulam equipamentos eletrônicos de segurança. Um homem mal vestido chega a esse prédio cuja entrada parece um castelo medieval e aperta o interfone: — Pois não?, diz a voz metálica da portaria. — Posso falar com Aristóteles?, pergunta o visitante, gentilmente. — Não tem ninguém com esse nome aqui, não – responde o porteiro –; Aristóteles de quê? — Aristóteles de Estagira, fala o outro com delicadeza. — Não, não, deve ser engano. É melhor o senhor ir embora. — Por quê? Só por que não estou bem vestido? Pois saiba que vou ficar sentado no gramado até Aristóteles aparecer. Dito isso calmamente, o homem

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– que visto de longe parece um bundavagante – sobe o terreno inclinado coberto de grama e recosta-se. Prepara-se para relaxar, quando percebe uma água fria escorrendo sob o seu corpo. O gramado tem um sistema de irrigação embutido que funciona como espanta mendigo. O homem levanta-se rapidamente. Presto mais atenção na figura, que veste uma túnica branca larga. Nos pés, tênis velhos. Reparo o que ele traz nos braços: uma placa verde e amarela com a inscrição “Gentileza Gera Gentileza”. Nossa mãe, o que o Profeta Gentileza está fazendo aqui? Um homem negro se aproxima e toca o mesmo interfone: — Pois não?, diz a voz metálica. — Posso falar com Aristóteles?, pergunta o visitante, que trajava o que parecia ser uma roupa bordada à mão. — Oh, não, outro! Não tem ninguém com esse nome aqui. Por que não pergunta o paradeiro do seu Aristóteles para aquele homem ali de vestido branco. Eles parecem ser amigos. — Por favor, o senhor pode me dizer onde encontro Aristóteles? — Sim, claro, mas antes quero te esclarecer uma coisa: nunca diga “por favor” e sim “por gentileza”. — Combinado. Mas e Aristóteles?, tornou a perguntar. O negro estava coberto por um manto colorido com várias camadas de tecidos e franjas. Nele foram bordados motivos com pedaços mínimos de objetos os mais variados. — Aristóteles já vem. — Ah, obrigado. — Não, nunca diga “obrigado”, diga sempre “agradecido”, tá bom, seu... como é mesmo sua graça? — Arthur. Nossa, será mesmo Arthur Bispo do Rosário, artista louco cuja fama corre o mundo? Durante anos ele teceu e embelezou o “Manto da apresentação”, com o qual queria comparecer perante Deus no Dia do Juízo Final... Mas olha quem vem aí se não é o Filósofo Voador, seguido por Pedropaulo. O primeiro veste um colant branco de trapezista e uma capa bordô. O segundo, pijamas de bolinha. — Aristóteles chegou?, perguntam. — Não, está atrasado, respondeu Bispo do Rosário. 143


— Ele mora neste prédio?, Pedro fez apontando o castelo. — Não, o porteiro disse que não. Deve ser apenas seu ponto de referência. Não estou entendendo nada do que vejo, quando chega um outro homem de túnica branca. Só pode ser Aristóteles. — Aristóteles, até que enfim!, dizem Pedropaulo, Filósofo Voador, Arthur e Gentileza. — Desculpem a demora, mas é uma complicação só andar por aí hoje em dia. Precisei usar o banheiro de um restaurante e foi uma dificuldade lavar a mão. A coisa mais simples do mundo – abrir uma torneira – se tornou complicada: pode ser girando a borboletinha à moda antiga ou apertando um botão; pode ser adivinhando onde passar a mão para interromper um feixe de luz ou pisando em algum lugar no chão. O sabonete é líquido e difícil de sair. E nem bem você começa a lavar, já para de sair água! — Mas foi para dizer isso que você nos chamou aqui, Aristóteles? — Não, claro que não. Senhores, o que tenho a dizer é rápido e importante: as pessoas não nos enxergam; elas vêm apenas a posição social de cada um. Para elas, nós, moradores de rua, somos sombras, seres invisíveis e sem nome. Elas nos tratam como objetos e não como seres humanos — E o que devemos fazer para abandonar a rua? Pergunta Pedro. — Pedro... seu eu soubesse... Em todas as épocas houve pessoas apaixonadas pela rua. Muitas vão morar nela, outras só vão lá passar o dia, como músicos ambulantes, vendedores, leitores da sorte, malandros... mas, hoje, muito mais seres são empurrados para a rua por uma engrenagem social implacável. — A gente vai para a rua aos poucos, quando se dá conta é tarde demais. Eu, por exemplo, primeiro fiquei desempregado por culpa do meu irmão. Comecei a fazer bicos, mas eles foram se tornando raros. Até que não tinha como pagar aluguel e passei a ter apoio de casas de convivência e albergues. De vez em quando, tomava banho na rodoviária por um real. Até que me acostumei a pegar fila pra comida... Pedro não pôde terminar de falar. Foi interrompido por uma pancada de água repentina. Chuva forte. Embaixo da marquise do castelo a trupe não se arriscou a ficar, pois tinha um fosso até ela que rapidamente se enchia d´água. O jeito foi cada um ir pro seu canto. Ainda deu tempo do Filósofo Voador gritar para Aristóteles: 144


— Tem algum conselho para mim? — Não desapareça. Seja coeso e necessário. Domitilla riu. Sônia contou a Domitilla que Dover se incomodara com a chegada de seu ex-marido, Osvaldo, de Curitiba. Como eles têm dois filhos juntos e são amigos até hoje, ela costuma hospedá-lo quando está na cidade. Dover reclama que Osvaldo dá uma de marido, gosta de ser servido no sofá, deixa a cueca para a Sônia lavar, põe roupa para passar... Depois dos primeiros dias idílicos, o reencontro do casal não estava sendo fácil. Dover dormia muito pouco e em horários alternados. De madrugada, pulava da cama e fazia café. Em seguida, acordava Sônia, que se remexia, e começava a falar sem parar. Dover enumerava projetos e planos para o futuro. Estava ansioso. Queria concretizar alguma coisa depois de um período de recolhimento e quietude nas ruas. A mania de juntar coisas só fez aumentar. Na entrada do galpão, que faz as vezes de cozinha, um depósito de latinhas amassadas está na altura do fogão. Dover sempre foi habilidoso com as mãos e, confiando nisso, cata para arrumar máquinas quebradas e objetos diversos, como relógios, guarda-chuvas, brinquedos, bicicleta velha, caixinha de música... A intenção pode ser boa – arrumar esses objetos e oferecê-los como presentes à mulher e aos amigos – mas Sônia não gosta nem um pouquinho do que está vendo. Quando Dover anunciou que ia sair para comprar cigarros – eram as primeiras horas da manhã, quase madrugada de um dia que prometia ser ensolarado – Sônia intuiu que ele poderia não mais voltar. Não seria a primeira vez que fazia isso. Não fez nada para impedi-lo. — Dover costumava dizer que são as mulheres que vão embora de sua vida – me explicou Domitilla. Ele mesmo nunca teria energia afetiva para deixar alguém. São elas que se cansam dele depois de um tempo, pois não deve ser fácil aguentar seu ritmo e suas manias. O que ele faz ao sair é apenas cumprir o desejo delas. Já entre os homens conta com amigos fiéis, como o palhaço Mulambo. 145


Apenas com uma mulher a história foi outra. Francisca. O Filósofo passou uma temporada com a bela Cisca, mas prudentemente manteve a porta do traler aberta. A mulher podia sair e ciscar quando e quanto quisesse. Dover não tinha ciúmes. Na verdade, sua principal preocupação era Nazareno escapar da prisão e aparecer nos SemTerra para reclamar o que era seu. Outro que poderia exigir direitos sucessórios era o policial Brancasso. — Cisca, você precisa ir – disse um dia, pondo fim ao romance – ficar aqui é risco no olho. — Eu sei.

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Capítulo 30

Hard cover: Mulambo O Filósofo Voador perambula pelas ruas, mas volta à tardinha para o Sem-Terra. É assim que ele gasta seus dias. Conversa com Paulinho no Sindicato dos Artistas, na av. São João, fila uns cigarros e passa no Memorial da América Latina – onde tem amigos e gosta de ficar flanando, sentado em um banco, tomando sol. Antes, logo de manhã, ajuda a carregar nas peruas uns fardos do jornal Lance, rodados na gráfica do Estadão. Ganha uns exemplares da publicação, vai até o bar e troca-os por cafezinho e pão com manteiga. Durante o dia, cata latinhas e vende-as no ferro velho. “Sem-Terra” é o nome que o pessoal de circo deu a um terreno onde antigamente circenses sem circo estacionavam seus trailers. Eles conseguiram esse privilégio graças à atuação de Dirce Tangará Militello junto às autoridades. Nos anos 1970 ela era a diretora de circo do Sindicato dos Artistas de São Paulo. Como são nômades urbanos, os próprios circenses apelidaram o local de Acampamento dos Sem-Terra. Após a separação de sua primeira mulher, Marília Rapunzel, e a morte de sua irmã, Dover Tangará morou uns anos lá, instalado em um trailer. O local acabou virando uma área de invasão, com barracos brotando da noite para o dia. Nos anos 1980 Paulo Maluf veio com essa de urbanizar favelas em beira de avenidas. Ora, os Sem-Terra ficam na marginal Tietê, atrás do supermercado Carrefour. O prefeito mandou lá umas assistentes sociais para cadastrar os moradores antigos. Famílias circenses pioneiras

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na ocupação teriam prioridade e garantido o apartamento que Maluf apelidou de Cingapura. Quando bateram na porta do trailer de Dover, ninguém respondeu. Deixaram correspondência oficial da prefeitura e nada. Até que outra pessoa se apresentou como verdadeiro dono daquela vaga e ficou com o apartamento. Dover apareceu um tempo depois. Ele havia sido internado pela família e ficara uma longa temporada longe dos Sem-Terra. Era tarde demais. O Filósofo perdeu o direito de morar legalmente nesse refúgio de circenses aposentados chamado Cingapura Lidiane. Dover é um sem-teto nos Sem-Terra. Finda seus dias por ali. Escolhe para dormir as proximidades do prédio onde mora sua ex-mulher. Marília Rapunzel se cadastrou direitinho, acompanhou todo o processo e ganhou seu apartamento. Dover deita do lado de fora, próximo à janela de Marília. Ela o recobre quando esfria, não sem antes levar para ele um prato de sopa ou arroz e feijão. Marília protege e cuida como pode de seu ex-marido. Sua casa é animada, vive fazendo coisas. No carnaval, trabalha no próprio lar na confecção de fantasias e adereços encomendadas por escolas de samba. Outro amigo que cuida de Dover nos Sem-Terra é Jaime Rodrigues da Silva. Uma vez palhaço, sempre palhaço. Jaime é chamado por todos de Mulambo. O palhaço Mulambo tem um bar mambembe no Cingapura. Um puxadinho de madeira a partir de uma garagem improvisada. Ali é a cozinha e o balcão. Mulambo estendeu seu comércio pelo entorno com mesinhas e cadeiras. Nas sextas e fins de semana, o lugar fica cheio de migrantes e pessoas que deram duro durante o dia, ou então estão desempregadas há tanto tempo que nem mais entram nas estatísticas. Quando Dover chega e puxa uma cadeira, Mulambo logo vai lhe entregando um violão. Gosta de ouvir o amigo dedilhar antigos boleros e soltar a voz. Mulambo vai bem nos negócios, mas fica triste com a cantoria do velho companheiro de circo, que além de trapezista foi também o palhaço Casquinha. As cambotinhas e claques de palhaço ficaram para trás. Mulambo senta num canto e, com ar melancólico, recorda as graças de picadeiro, os trapezistas voadores, a mulher que ele amou, mas o traiu. Antigamente, antes da sessão, quando se maquiava no espelho, Mulambo via diante de si o reflexo grotesco de um homem normal. Sabia que as crianças e os adultos riam não de suas estripulias, mas deles mesmos. Era assim 148


em sua arte. Colarinho enorme sempre subindo, calça folgada caindo e fugindo do seu controle, sapatos gigantes fazendo tropeçar, o palhaço Mulambo expunha a fragilidade humana com graça e afeto. Mulambo sabia como ninguém entrar em contato com os aspectos ridículos e estúpidos das pessoas. No picadeiro atuava sempre ao lado de um palhaço de estirpe, modos mais contidos e elegantes. Os gestos de seu patner arrotavam superioridade e pretensão. Talvez ele se achasse bonito, sábio, poliglota, burguês. Era o que Mulambo precisava para exibir a arte milenar da utilização cômica do corpo no espaço cênico e a improvisação debochada e picardia em singelas esquetes que esculachavam o bacana. Dava um show. Isso foi nos tempos de circo. Mas até hoje, basta Mulambo encontrar um janota que uma coisa no íntimo o empurra e ele se desmancha em irreverência. Dover Tangará carrega o mesmo dom dentro de si. Os dois são grandes amigos. — Quer comer um peixe, Dover? — Sim. — Então, pega esse dinheiro e vai até ali no Carrefour e compra o peixe que você quiser. Os moradores do Cingapura vivem nas costas do supermercado. A separá-los apenas a murada do estacionamento. Eles fizeram um buraco no muro, pelo qual cortam caminho e vão às compras. Dover voltou com o peixe. Anchova. Mulambo o embrulhou no papel alumínio temperado só com sal. Deixou no forno por 40 minutos. Serviu o peixe ao amigo em uma guarnição de brócolis no bafo, acompanhado apenas de arroz. O homem de rua comeu com a delicadeza que a vida não conseguiu lhe tirar. — Me deixa lavar a louça, hoje, Mulambo? — Nada disso, você é meu convidado, Dover Tangará.

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Capítulo 31

Procurar Dover Os artistas de circo não cruzam o picadeiro antes de começar o espetáculo, nem durante a sessão olham pela fenda da cortina. Dá azar. Abandonar a barriga do circo, então, equivale a uma maldição. Tenho que achar Dover Tangará e tirá-lo das ruas. Devolvê-lo para o regaço de sua mulher. Quando ele deixou a sarjeta para morar com Sônia Nery, me veio um grande alívio moral. Era como se todos os outros homens de rua tivessem também encontrado um destino dito normal. Assim de viés me livrei da culpa. Mas agora era difícil aceitar a idéia de que o Filósofo preferia enfrentar as intempéries nuas e cruas no mundo exterior a cumprir regras racionais e viver num lar aquecido. Ainda mais quando soube que ele dissera a Domitilla que planejava se disfarçar de cigano e esquecer essa história de circo para sempre. Destruir sua identidade. Era como se ele estivesse dizendo que a nossa opção era a errada. Dover é o nome de uma cidade inglesa na beira do Canal da Mancha. Foi de lá que os Aliados partiram para libertar a Europa continental das garras nazistas, em 6 de junho de 1944, em uma gigantesca operação que ficou conhecida como “Dia D”. Dover Tangará nasceu em 23 de agosto do mesmo ano, na cidade de Campo Grande, MS. As famosas falésias brancas da Dover inglesa deram origem a uma canção antiga muito popular na Grã Bretanha, “The

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white cliffs of Dover”. Antigamente, alguém que estivesse em Londres e quisesse ir a Paris teria que passar por Dover. De Londres a essa cidade eram duas horas de trem. Em Dover, ela teria que pegar um barco até Calais, na França. Mais 90 minutos na água. E, finalmente, viajar três horas de trem até Paris. Com as esperas, o viajante perdia cerca de um dia de sua vida. Hoje, um trem bala chamado Eurostar faz todo o trajeto Londres/Paris em apenas 2h45min. A viagem é muito mais rápida e muito menos poética. O Filósofo Voador voltou para as ruas e não sei onde encontrá-lo. Nem Domitilla. Percorremos marquises, fachadas e calçadas embaixo de viadutos do centro da cidade. Fomos a abrigos e casas de apoio. Nada. Essas instituições estão situadas em zonas degradadas, os próprios prédios são semi-abandonados. É como se dissessem “aos vagabundos, o resto”. São lugares de disciplina rígida, com horários para entrar e para sair. Ora, tudo o que o homem de rua não consegue é levar uma vida disciplinada. Como eles poderiam se obrigar a dormir com as galinhas? Onde o homem de rua deixaria seus badulaques, muitos dos quais ele protegeu arriscando a vida? Era perda de tempo, Dover Tangará não estaria por aí. Tangará é um pequeno pássaro das matas brasileiras, argentinas e paraguaias com penagem preta, cinza escuro e azul com toques verdes. Chiroxiphia caudata é seu nome científico. Os ingleses o chamam de Blue Manakin. O macho jovem apresenta no alto da cabeça uma plumagem vermelha. Também é conhecido como Dançador, pois, na época de acasalamento, os machos realizam intrincadas coreografias para impressionar as fêmeas. Em qualquer época do ano, o Tangará dá três pulinhos antes de cantar. Tiramos o dia para novas buscas. Como era domingo, Domitilla convidou o pequeno Davi para ajudar. Davi tinha começado a frequentar aulas de circo, já fazia 151


parada de mão e cambotinhas com habilidade. Estava louco para mostrar ao seu amigo de circo de verdade o que aprendera. Domitilla e eu estávamos em compasso de espera. Espera do encontro de si, espera do encontro do outro. Chegamos à Moira. — Olha, mãe, que engraçado aquele cachorro parado no farol vermelho, como as outras pessoas! — Não é o Paulo, aquele cão? — Não dá para ver daqui. Vamos segui-lo. Dover Tangará foi o maior trapezista de sua geração, em uma época em que o artista de circo ocupava um espaço bem maior no imaginário da sociedade. Ele trabalhou em vários circos, entre eles, Grande Circo Tangarás, Águias Humanas, Orlando Orfei, Circo Garcia e Spacial. Um episódio em sua vida, envolvendo a polícia política, nos primeiros anos da década de 1970, abalou sua biografia, modificando-a completamente. Não se recuperou até hoje. Dover Tangará, dos mais altos píncaros da glória, caiu na sarjeta. A decadência e queda progressivas o deixaram sem teto e cama para dormir. A Previdência Social do Estado Brasileiro recusou aposentá-lo por invalidez, em processo apresentado pelo Sated – Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversões do Estado de São Paulo. Vamos atrás do cachorro, que a partir da Rebouças avança em direção à padaria CPL. Passamos embaixo da placa Deus é Fiel e quem estava lá? Paulo chega primeiro, abanando o rabo para Pedro, que vestia uma velha túnica, tingida de vermelho, desbotada. Nas pernas, calças jeans rasgadas. Sua longa barba branca no rosto dialogava com franjas de algodão que caiam do carrinho. Não creio que haja algum garoto no mundo que vacile por instantes e acredite que lhe apareceu o verdadeiro Papai Noel, com seus badulaques encadeados, formando uma locomotiva de presentes. Um circense perdido nas ruas de São Paulo cumprimenta, com mesuras exageradas, o malabarista que nas esquinas distrai do trânsito os motoristas e fatura uns trocados. Em meados dos anos 1960 Dover perdera 152


seu pai, o espartano Benedito Marques Ribeiro. Mais três anos e é a vez de sua mãe, dona Nenê, deixá-lo. Ela morre em seus braços, na temporada do Circo Águias Humanas, em Pelotas, RS. Em 1971, morre Humberto Militello. A mulher e filha dele, Dirce e Vic Militello, ficam muito abaladas. Dover estava emocionalmente desamparado naquele momento. É neste contexto que o Filósofo sofre o primeiro surto psicótico, depois de ser preso injustamente pela polícia política da ditadura. Nos dois dias que permaneceu detido, ouviu frases como “se correr, atiro nas suas costas, ponho um saco na cabeça e jogo você no mar”. Cada frase ameaçadora dita naquelas 48 horas ficou gravada em sua mente – e volta regularmente. — Oi, Pedro, que saudades! – fez Domitilla com sinceridade – por acaso Dover passou por aqui esses dias? — Não, não passou por aqui até agora. Ele vem quando? — Não sabemos, Pedro, se você o vir nos avise. — Não posso. Estou de partida. Sabe, vieram uns caras falar coisas pra gente. — Que coisas? Nunca tinha visto Pedro tagarela assim. Ele parecia ter recuperado certa dignidade perdida. — Eles eram de uma tal de Comunidade dos Sofredores de Rua e se diziam trecheiros. Se entendi, vão dar terra pra gente plantar. — Eles eram do MST? — MS o quê? — MST, Movimento dos Sem-Terra. — Ah, aquele lugar que o Dover sempre vai, os Sem-Terra... — Não, acho que te convidaram para participar de uma organização de homens de rua. Eles querem tornar vocês pequenos proprietários de terra. O que acha? — Não sei, mas vou amanhã mesmo para o Acampamento Irmã Alberta, em Cajamar, perto do famoso “buraco de Cajamar”. Nos anos 1990, Dover se engajou no projeto circo-escola do governo do Estado de São Paulo. Trabalhou seis anos nessa função, a mando da secretária do bem-estar social, Alda Marco Antonio. Ensinava a crianças carentes 153


o beabá das artes circenses. Os alunos que se destacaram e se tornaram circenses ou atletas enchiam o mestre de orgulho. Como a pequena, leve e serelepe Débora, que encarou a profissão de trapezista como poucos e se fez respeitar no meio circense. Na segunda-feira à tardinha fui ao Café dos Artistas, na região do Largo do Paissandu, sem Domitilla. O Filósofo havia me apontado diretamente qual era o bar escolhido pelos artistas circenses. Sentei no balcão e logo fui abordado por um mágico banguela, cujo maior orgulho era sua filha estudar jornalismo. O cara, coitado, “vendia o almoço para comprar a janta”, como diria o Filósofo. Outro que chegou junto foi o palhaço Teleco, cujo bordão famoso, segundo ele, era “no me tire a mierda”. Esse tinha um projeto artístico importantíssimo. Ele não podia me mostrar ali, pois poderia ser copiado. Me convidou para outro bar, mais discreto, mas recusei. Lembrei do conselho do pai de Dover: “Escute mais e fale menos. Deus nos deu duas orelhas e uma só boca”. Quase todos ali tinham um projeto secreto, que temiam ser roubado. As pessoas no Café dos Artistas conheciam Dover, mas não o viam há tempos. Há um Tangará em quase todos os circos brasileiros. Família respeitada, essa do velho comunista Benedito Tangará e seus nove filhos. Sabe como é, comunista tem suas manias: o velho Tangará deu nomes começando com a letra “d” a todos os seus filhos. Dândalo, o mais velho, deu a vida à arte circense, quando caiu do trapézio e morreu. Dalton virou equilibrista. Décio e Durbis, trapezistas. E assim foi. Nos anos 1950, o velho Tangará praticamente só precisava de seus filhos para levar com punho de aço o Grande Circo Tangarás. Família tradicional de circo, mas também de teatro, de cinema, de televisão: Dirce Militello, a mais velha das mulheres, rompeu o pano de 154


roda e aventurou-se no mundo fora do circo. Deu certo. Tornou-se atriz de televisão, teatro e cinema. E defendeu sua classe como diretora de circo do Sindicato dos Artistas. Uma de suas ações foi criar o Prêmio Picadeiro, o mais importante do meio circense. Sua filha, Vic Militello, esbanja talento nos palcos e nas telas. Alguns nomes de rua nas quais nunca fomos são familiares desde sempre e não sabemos por quê. Habitam a nossa cabeça, fazem parte do nosso mapa mental. A rua fulano de tal existe e está em algum lugar na cidade. Temos com ela uma relação ambígua de proximidade e distância. É íntima, pois sempre esteve aí; é estranha, pois nunca estivemos nela. A avenida Brigadeiro Galvão é um desses lugares para mim. Quando Vic Militello me telefonou, dizendo que estava morando em São Paulo, nessa rua, a sensação foi de familiaridade. A atriz, filha de Dirce Militello, se tornou conhecida do grande público ao fazer a hilária Daquinha, na novela “Estúpido Cupido”, de Mário Prata, produzida pela Rede Globo em 1976. Mas a sobrinha de Dover já vinha de extensa, intensa e premiada carreira teatral. No cinema, também participou de filmes importantes, como o “Rei da Noite”, que Hector Babenco fez em 1975. — Minha rua fica na Barra Funda. Venha me ver, preciso falar contigo. Não sei até hoje como Vic Militello descobriu meu telefone, mas ela me esperava em uma loja de “antiguidades & artesanato”, situada na Brigadeiro Galvão, que ela chamou de Estúdio Acervo das Artes. Domitilla não pôde vir comigo. O salão estava repleto de objetos que fizeram parte de cenários e figurinos de montagens teatrais das quais ela participou. Seu projeto era expor e vender seu acervo acumulado durante mais de 50 anos de carreira artística. Bijuterias, chales, roupas, quadros, sapatos, bolsas e uma infinidade de coisas podiam ser vistas em um rápido passar de olhos. Na sobreloja, a intenção era abrir para outros artistas consagrados exporem objetos relacionados, de uma maneira ou outra, a sua vida profissional. À loja de 155


Vic Militello caberia emitir certificados atestando que tal leque, por exemplo, foi usado por Regina Duarte na peça... Tem Tangará nos Estados Unidos, “Dalton, the incledible”, mestre do rola-rola. Tem Tangará até nas mil e uma noites da Arábia Saudita: Décio acompanha sua filha, que casou com um árabe... Tem um Tangará solto pelas ruas de São Paulo. Este Tangará não está protegido pela barriga do circo, não dorme em trailer, não cheira pó de serragem. Não, este Tangará vive a realidade crua das ruas, enfrenta as intempéries do asfalto. Parece que esse Tangará foi esquecido pela tradicional família de circo que o gerou. Mas uma coisa é certa: ele não perde a nobreza, nem o rabicho irônico na ponta dos lábios. Quem o conhece imediatamente é seduzido por suas reflexões cintilantes, que podem ser sobre o circo, os homens de rua, a vida. Tanto é que ele ganhou o apelido de Filósofo Voador, aceito com naturalidade, não sem antes fazer pilhéria dele mesmo: ”Filósofo significa louco em grego”. E por que Filósofo Voador? Ora, porque ele foi um dos maiores trapezistas brasileiros de todos os tempos, Dover Tangará. Nos anos 1960, ao lado de seu irmão, Durbis, e de seu sobrinho, Carlinhos, Dover Tangará criou evoluções de trapézio que nunca mais foram repetidas depois dele. Sim, lá nas alturas, voando para as mãos seguras do aparador, o volante Dover Tangará arriscava a vida todos os dias. Dover Tangará, caçula do velho Tangará, menino ainda, durante um ensaio, viu seu irmão Dândalo morrer por não ter dado sorte num voo de trapézio e cair de mau jeito na rede de segurança. Vic Militello não sabia onde encontrar Dover Tangará e não podia fazer muito para ajudá-lo. Mas, atriz de teatro experiente, que já enfrentou os grandes textos, definiu melhor do que ninguém o espírito do hard cover: — O que você está escrevendo nada mais é do que o registro dessa procura apaixonada por Dover Tangará. Note, eu disse procura e não encontro. Talvez por isso, Dover Tangará tenha desenvolvido uma ética muito própria – a ética do corpo. A ética do corpo consiste basicamente no seguinte: não 156


preciso de mais nada para viver a não ser o meu próprio corpo. Talvez por isso Dover Tangará tenha sido tão generoso com todos os que o cercavam durante o seu período de glória e hoje, hoje ele não tem nada. Só o seu próprio corpo. Talvez devido à idade, aos problemas de saúde, à incompreensão, o fato é que Dover Tangará não pode mais voar. Mas como é difícil descer do trapézio! Como é difícil se adaptar ao rés do chão! Lembra o Albatroz, cujos últimos quatro versos do poema de Baudelaire parecem ter sido escritos sob encomenda: “O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impedem-no de andar.”

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Sumário 7 9 19 27 28 40 41 43 49 50 63 70 71 74 84 88 93 98 103 104 109 113 115 117 121 124 127 134 136 142 147 150

Advertência Deus é Fiel Circomundo Hard cover: A história de todos nós Domitilla Hard cover: Não é um circo normal Encontro dos corpos gerando vida Sou um homem voador Jogo Cemitério de trailers Solavanco Soviético Hard cover: o inteiramente outro O episódio Um bar no Bom Retiro O fedor de fora Hard cover: Confiança Águias Humanas Geopolítica do Imaginário Hard cover: Reflexões sobre o assombro I Devir Dover Desrazão Narrativas Hard cover: Reflexões sobre o assombro II Veteranos Voadores Hard cover: Doverman A falta que nos define Dândalo bota ovo Dover Filho Hard cover: Cisca Aristóteles Hard cover: Mulambo Procurar Dover 159


Este livro foi composto em Latin e impresso em papel Chamois Fine e Cart達o Supremo pela Yangraf para a Terceira Margem Editora, em julho de 2009.


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