Santos Locais: cartografia das devoções no Rio Grande do Norte

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Santos Locais

cartografia das devoções no Rio Grande do Norte

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Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Reitor Pedro Fernandes Ribeiro Neto Vice-Reitor Fátima Raquel Rosado Morais Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas Jocelânia Marinho Maia de Oliveira Chefe da Editora Universitária – EDUERN Anairam de Medeiros e Silva Conselho Editorial das Edições UERN Emanoel Márcio Nunes Isabela Pinheiro Cavalcante Lima Diego Nathan do Nascimento Souza Jean Henrique Costa José Cezinaldo Rocha Bessa José Elesbão de Almeida Ellany Gurgel Cosme do Nascimento Wellignton Vieira Mendes Capa, ilustração e diagramação: Katrícia da Silva Leal Revisão: Andrea Regina Fernandes Linhares

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IRENE VAN DEN BERG

Santos Locais

cartografia das devoções no Rio Grande do Norte

Prefácio Luiz Assunção

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A Luiz Assunção, amigo e eterno pai acadêmico, que me mostrou, pelo exemplo e pela formação, o que é fazer antropologia com o povo e em campo. A Canindé, Helena e Alice, que literalmente me acompanharam nas veredas dos santos e que me apoiaram em cada palavra escrita.

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Prefácio

“Santos Locais: cartografia das devoções no Rio Grande do Norte”, de Irene van den Berg, é fruto de um intenso processo de trabalho acadêmico vivido pela autora enquanto integrante do Grupo de Estudos sobre Culturas Populares e aluna do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mais precisamente, quando, em suas iniciais buscas bibliográficas para conhecimento do campo temático, encontra-se com as pesquisas de Veríssimo de Melo, estudioso das culturas populares e professor de antropologia da UFRN. Este encontro, somado a tantos outros que viriam a se tornar referências no seu percurso acadêmico, conforma um campo de estudo impresso em seu trabalho final de tese sobre o tema das devoções populares, continuado em posteriores ações acadêmicas e institucionais de ensino, pesquisa e extensão na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Os estudos sobre as tradições culturais potiguares escritos por Veríssimo de Melo, assim como tantos outros deixados por igualmente importantes pesquisadores, são referências empíricas e históricas fundamentais para compreender os processos contemporâneos do mundo da cultura e, portanto, dos fenômenos da religião e das relações estabelecidas por mulheres e homens com o sagrado. Para além de um encontro com o passado e com o presente conceitual, o trabalho se destaca pelo enfoque teórico ao olhar as devoções populares como concepções e práticas religiosas, mais especificamente, como fenômeno religioso inserido no universo do catolicismo. Essa opção – ressalta-se, concepção conceitual para olhar o fenômeno – leva a autora a pensá-lo enquanto processo dinâmico, histórico, contextualizado, permeado por conflitos, tensões, disputas e, destacando-se, o papel religioso de mulheres e de homens na manutenção e na continuidade desse processo em que os “cultos se constroem e reconstroem diariamente”, como afirma a autora. Assim, em Santos Locais, Irene van den Berg procura elaborar uma cartografia das devoções populares, seus espaços e cultos, localizados em diferentes regiões do território potiguar. Nessa perspectiva, não é demais destacar que o mapeamento vem acompanhado de reflexões sobre aspectos históricos e a dinâmica desses espaços e santos locais. Munida de um repertório conceitual relativo à literatura especializada, de estratégias

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de pesquisa em antropologia e alimentada por informações importantes, fruto do diálogo mantido com diferentes agentes do sagrado. A autora percorre espaços religiosos e convida o leitor a pensar sobre as tessituras do sagrado e os mistérios da fé, traduzidos em questões como os espaços e a multiplicidade de cultos, a significativa presença dos agentes religiosos, as festas e as múltiplas atividades do calendário e práticas do cotidiano religioso, na busca para “compreender os processos e estratégias simbólicas que dão sentidos às devoções”. A pesquisa, como indicada acima, toma a cartografia como estratégia que vai tecendo o processo de construção dos dados disponíveis, abarcando o levantamento das fontes bibliográficas, as entrevistas com os diferentes atores, a observação e o registro etnográfico. A cartografia incorpora fundamentalmente as diversas narrativas e os sentidos elaborados pelos principais personagens que vivenciam o cotidiano dos espaços sagrados mapeados. O tema abordado e a publicação do presente livro são significativos e relevantes para o campo antropológico e histórico, “pelo fato de ser necessário conhecer as expressões religiosas mapeadas”, a dinâmica que perpassa esse universo religioso e, inclusive, o esquecimento de suas memórias. Concomitantemente, o estudo possibilita ao leitor pensar questões mais amplas sobre religião e instituição religiosa. A pesquisa e as reflexões agora publicadas no presente livro tornam-se acessíveis aos interesses de discentes e de docentes que se dedicam a essa área de conhecimento e, sobretudo, espera-se que ela chegue a um público mais amplo, como os especialistas do sagrado e aqueles que visitam os santos e seus espaços devocionais. Luiz Assunção Professor do Departamento de Antropologia – UFRN Coordenador do Grupo de Estudos Culturas Populares

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Apresentação, 9

Sumário

01.Introdução, 13 02.Mitologias mínimas: relatos de campo e notas etnográficas, 19 03.O diacrítico dos santos locais: a morte, 71 04. Considerações finais, 79

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Apresentação

Este ensaio é uma fração do texto produzido para a qualificação e tese de doutorado1 que defendi no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2010, sob orientação do professor Luiz Carvalho de Assunção. O inventário dos santos aqui apresentado foi construído especialmente para a qualificação e tornou-se apêndice na tese, uma vez que o trabalho final se deteve a explorar, de forma exclusiva, a devoção às Meninas da Covinhas, em Rodolfo Fernandes. A pesquisa se estendeu de 2005 a 2010 e, como apresento no desenrolar do ensaio, muitos dos santos vão sendo descobertos e explorados a partir de encontros fortuitos, em conversas e em publicações. Na genealogia da pesquisa, posso dizer que sua semente foi plantada nos últimos dias da graduação, quando eu e alguns colegas discutíamos com a professora Tânia Freitas seus interesses e descobertas em torno das devoções aos bandidos santos potiguares, que se tornaram tema de pesquisa dela no doutorado2. Na proposição do meu projeto de doutorado, retornei ao tema dos santos não-canônicos, em uma conversa com o professor Luiz Assunção. Resgatando fichas e anotações, cuidadosamente arquivadas, Luiz me apresentou Zé Leão a partir de notas retiradas de uma publicação de Veríssimo de Melo. Em seguida, dois casos foram integrados à discussão original e disso surgiu o projeto de pesquisa para o doutoramento. Durante a pesquisa, encontrei outros santos e, principalmente, outras pessoas que falavam deles. Mas, de todos os lugares e de todas as conversas que tive, nenhum foi tão importante quanto as Covinhas e ninguém foi tão emblemático quanto Seu Bento. Foi ele quem me apresentou in loco o santuário e sua história. Foi também ele quem me mostrou, em sua engenhosidade, como se constrói e fomenta uma devoção popular. Homem forte, de hábitos simples e de natureza incansável, Raimundo Honório Cavalcante (Bento Honório) se destacou como uma liderança na política local, mas, foi o projeto de promover as Meninas das Covinhas e o seu milagre quem o transformou em um mito no oeste potiguar. 1 SILVA, Irene. Covinhas: práticas, conflitos e mudanças em um santuário popular. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2010. 2 FREITAS, Eliane. Memória, cultos funerários e canonizações populares em dois cemitérios no Rio Grande do Norte. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. 2006.

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Como autêntico sertanejo, construiu a vida a partir da agricultura e da criação de animais. Com pouca ou nenhuma instrução, Bento Honório desafiou a Igreja, construindo com seus esforços e o de pessoas simples das comunidades próximas, um templo, um galpão, uma festa e, como ele costumava dizer, uma romaria. Como apresentei na tese, sua agência como articulador das Covinhas imprimiu ao lugar uma dinâmica que deu vida ao mito, ao mesmo tempo que o colocou em movimento. Após o tempo de pesquisa, não mais voltei a Rodolfo Fernandes, mas acompanhei seus desdobramentos pelas notícias e mídias veiculadas pela internet, como a controvérsia de 20113, a mudança na condução das missas de padres da Igreja Católica Romana para os sacerdotes da Igreja Católica Apostólica da Reconciliação4, o falecimento de Seu Bento, em 24 de maio de 20165 e seu sepultamento nas Covinhas. Vi também a história das Covinhas ser retratada em produção audiovisual6, ser encenada no teatro7, ser noticiada em matérias para jornais da região8 e ser materializada em souvenirs9, além de receber reconhecimento público como atrativo ”O dia 12 de outubro é marcado em nosso país pelas expressões e manifestações de devoção à Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Por ser também o dia dedicado às crianças, em nossa diocese, mais particularmente no município de Rodolfo Fernandes, acontece toda uma manifestação religiosa em torno do lugar chamado ‘Covinhas’. No ano de 2011, na capela do referido local, foi celebrada missa pelo vigário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores e depois outra celebração aconteceu presidida por um padre não católico. Sendo assim, por respeito à fé do nosso povo e tendo consultado o clero da nossa Diocese, definimos que as celebrações do dia 12 de outubro ou em qualquer outra data não podem acontecer na ‘Capela das Covinhas’ e sim na Igreja de São José. Os padres católicos só poderão celebrar na referida capela com autorização expressa do Bispo da Diocese de Santa Luzia de Mossoró.” Nota de Dom Mariano Manzana. 21/09/2012. Disponível em: http://igrejacatolicasfo. blogspot.com/2012/ 4 Notícia disponível em: https://igrejadareconciliacaoicare.blogspot.com/2012/10/santa-missa-nas-meninas-das-covinhas-em.html. 5 https://mossorohoje.com.br/noticias/8034-conheca-a-historia-de-bento-das-covinhas-de-roldofo-fernandes 6 DOOLAN, Catarina. Covinhas: uma história de fé. Documentário. UFRN. 2009. 15min. Disponível em: https://vimeo.com/8978135. O trabalho foi lançado numa sala de cinema em Natal e depois participou de festivais de audiovisual, conquistando premiação regional. 7 Espetáculo As meninas das Covinhas. Grupo 12 Encena. Escola Estadual 12 de Outubro. Direção Linda Sousa. XIV FESTUERN. Teatro Dix-Huit Rosado. Mossoró. 16/09/2019. 8 TV IRACEMA. Covinhas: uma história de fé. Vídeo no Facebook. 30 de janeiro de 2020. Disponível em: https://m.facebook.com/TVIracemaCE/videos/995745327479447/. 9 TV IRACEMA. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/TVIracemaCE/videos/o-nordeste-tem-muitas-historias-de-retirantes-conhe%C3%A7a-a-hist%C3%B3ria-das-duas-crian%C3%A7/336727430728399/. 3

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do município10. Se as Covinhas foram centrais no desenvolvimento da tese, a descoberta de tantos outros santos locais, espraiados pelas margens das cidades, grandes e pequenas, ou de áreas rurais, fez-me perceber o quanto a religiosidade popular é viva e se mantém criando e recriando sentidos em contextos subalternos. Alguns santos se sustentam, se reinventam, enquanto outros perecem, mas muitos se mantêm com suas cruzes, cheias de pedras e fitas marcando o lugar simbólico de uma morte que fala por muitos. Após a construção da tese, tive a oportunidade de identificar outros lugares e personagens11, bem como de orientar trabalhos de pesquisa12 que não aparecem no texto da cartografia. Optei por preservar o texto que produzi originalmente na pesquisa, entendendo-o como um produto que se define dentro de um contexto investigativo com feições próprias. Em relação ao texto, finalmente ele ganha vida, em 2021, nos formatos de publicação física e eletrônica, financiadas com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, executada pela Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte. O ensaio foi aprovado no edital de fomento a publicações de livros, na categoria Prêmio Veríssimo de Melo – Ensaio ou coletânea de artigos sobre cultura. Nessas condições, considero o livro duplamente agraciado. De um lado, por alcançar os recursos financeiros, fundamentais para a materialização da publicação, de outro, por ser chancelado pelo selo de um grande mestre, pesquisador e etnógrafo potiguar. Foi por meio dos registros de Veríssimo de Mello que o projeto da pesquisa se iniciou. Foi por algumas de suas pistas que o trabalho caminhou. E é, novamente, por intermédio dele que os resultados se materializam em palavras e imagens, chegando às escolas, às universidades, aos centros de cultura e ao público em geral. PREFEITURA DE RODOLFO FERNANDES. Meninas da Covinhas. 2017. Disponível em: https://rodolfofernandes.rn.gov.br/informa.php?id=174. 11 Memorial do vaqueiro João Maria, Assentamento Barbará, Taipu-RN. (@memorialvaqueirojoaomaria) 12 NASCIMENTO, Lourdes. Capela da Cruz da Cabocla: um estudo de caso sobre uma devoção popular. Natal: Monografia de graduação em Ciências da Religião. UERN. 2010. e SILVA, Pâmela. Morte, fitas e fé: morte trágica infantil e a construção da devoção popular. Natal: Monografia de graduação em Ciências da Religião. UERN. 2010. 10

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01. Introdução

Por anos relegados a uma condição marginal, os cultos populares de abrangência local permaneceram alheios aos olhares sistemáticos dos pesquisadores sociais. Quando muito, tornaram-se objeto de curiosidade de algum folclorista ou curioso da cultura e história locais, a quem se devem os escassos registros, por vezes apenas uma nota, em cujo teor é possível estabelecer uma relação de continuidade do passado com os dias atuais. O tema deste livro, portanto, são os santos locais, personagens para quem se destinam cultos específicos e que cristalizam relações de afinidade e ligação com aspectos da história, geografia e cultura das comunidades/regiões onde se localizam. Este trabalho se insere na lacuna dos estudos sobre religiosidade popular no Rio Grande do Norte, buscando mapear algumas dessas manifestações e recuperar, através de registros, as narrativas e as práticas devocionais, a memória e os sentidos de alguns dos cultos que se dirigem a santos locais e se distribuem por diferentes pontos do Estado. O objetivo é registrar a recorrência do fenômeno, no tempo e no espaço, promovendo o diálogo entre aspectos que unem e que separam os respectivos cultos, de forma que seja possível compreender os processos e as estratégias simbólicas que dão sentido às devoções e concorrem para a elaboração de uma plausibilidade nativa. São aqui considerados santos locais os vultos populares promovidos à condição de milagreiros, os quais se projetam a partir de um episódio de intensa disjunção acompanhada de morte, cuja repercussão se processa sob as formas de mobilização social e reconhecimento público dos referidos personagens como entidades espirituais portadoras de potências especiais. Os personagens-santos que enredam as narrativas populares diferem quanto à idade, ao sexo e ao contexto de suas mortes, mas todos se localizam numa unidade de classe: são pobres e, portanto, marginais. As histórias/biografias que alimentam os mitos locais se cruzam em alguns aspectos da mesma forma como os processos de assunção popular são similares, contudo, eles não são intercambiáveis. O elemento diacrítico de cada um desses santos é justo o caráter local que eles assumem, articulando no enredo da narrativa e nas práticas devocionais sentidos que se enraízam na geografia, na memória e nas concepções dos grupos partilhantes 12


dos respectivos cultos. Em relação ao culto desses personagens, a sua abrangência, circunscrita que está a um raio dimensional geograficamente próximo, torna-os também cultos locais, pois a lógica de promoção/projeção do culto não os desprende do seu lugar sagrado. Com isso, apesar de as ações e as potencialidades do santo poderem ser propaladas para além do seu lugar de culto, o local que abriga sua origem permanece como o ponto de referência em torno do qual gravita a devoção. O resultado disso é que os santos locais não se projetam numa perspectiva universalizante, tal como os santos canônicos, mas se enraízam no polo oposto, de interligação com uma identidade autóctone, posto que sua razão de ser está vinculada ao contexto que os enseja. Portanto, sem o seu lugar e a sua história esses santos não existem. Dada a natureza do objeto pesquisado foram construídas diferentes estratégias que permitiram a construção de uma cartografia1. Assim, as bases da pesquisa foram fortemente estabelecidas em trabalho de campo e no mapeamento de registros em fontes secundárias. A exemplo de uma cartografia dos santos locais na Argentina2, é de interesse desta pesquisa apresentar as narrativas mínimas dos eventos inventariados, de sorte a demonstrar a distribuição e a incidência do fenômeno, e ao mesmo tempo oferecer pistas para explorações etnográficas posteriores como noutros trabalhos dessa natureza3. Em relação ao trabalho de campo e às notas etnográficas, a realização da pesquisa e a coleta de dados aconteceram no período de 2005 a 2009, a partir de diferentes incursões pela região metropolitana de Natal, Sertão central, Oeste e Seridó Potiguar. Durante esse período, foram realizadas entrevistas, mas, principalmente, conversas informais, as quais, pelo despojamento da 1 Conforme Paul Zumthor, em La medida del mundo (1994), a cartografia é um artifício de representação que se pauta em pressupostos, determinações e interesses que implica em um sistema semiótico complexo, pois iconiza o espaço, mas a partir de referências, quais sejam percepções, ideias, mitos etc. Além do que, inevitavelmente, na medida em que busca dominar o indefinido, impondo-lhe uma trama de leitura, o exercício cartográfico termina por revelar as marcas de la personalidade de su autor. Assim, o ofício cartográfico enquanto uma empresa imbuída de escolhas que fazem parte das intenções de quem a constrói, bem como também sofre as determinações de seu contexto. Por fim, na medida em que o mapa não é idêntico ao que representa, com frequência, ele manifesta apenas uma parte da realidade. 2 COLUCCIO, F. Cultos y canonizaciones populares de Argentina. Buenos Aires: Ediciones del Sol.1994 3 BENJAMIN, R. Devoções populares não canônicas na américa latina: uma proposta de pesquisa. Revista internacional de Folkcomunicación. 2001. pp. 41-47.

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cerimônia, permitiram aos interlocutores se sentirem mais livres e menos receosos em falar. Por essa estratégia, eles se mostravam mais autênticos, sem se preocupar em medir o alcance de suas declarações. Participam também da análise informações interceptadas em conversas, discursos e entrevistas, nas cerimônias e em seus preparativos, nas práticas rituais e nos elementos congêneres nele integrados – ofertas, presentes e ex-votos -, nos registros escritos - cartas e bilhetes - depositados pelos devotos, nos usos do espaço e seus determinantes, e, por último, nas relações sociais e de sociabilidade que se desenvolvem em torno dos santos, dos cultos e de seus frequentadores. Do ponto de vista do levantamento de dados, a pesquisa aconteceu pelo menos em três frentes: em conversas com sujeitos privilegiados (qualquer pessoa que tivesse informações mesmo que mínimas), em fontes documentais secundárias (textos, trabalhos acadêmicos, artigos jornalísticos, informações de internet) e em visitas in loco. Ao realizar esses trajetos, foi possível perceber que, em alguns cultos, as informações afluíam melhor, do ponto de vista da coleta de dados. Foi possível identificar datas e personagens centrais, estabelecer um cronograma de visitas e atividades dirigidas à pesquisa de campo, encontrar informações que se cruzavam com os dados do campo etc. Noutros, a empresa foi menos promissora, dadas as dificuldades em cerzir as narrativas orais que se encontravam puídas pelo tempo da memória. Isso porque existiam situações em que os cultos já estavam em ocaso e as memórias sociais experimentam os sintomas da senilidade, comum nos momentos em que o distanciamento entre gerações promove uma ruptura com os valores e as tradições. A dificuldade também se apresentou em razão da pluralidade de cultos e da distância espacial e temporal que marcam seus territórios e suas festas. À risca, em relação ao espaço, existe uma multiplicidade de cultos distribuídos por todas as regiões do Estado, quiçá todos os municípios ou mesmo comunidades. Por isso, ao final do trabalho, optei por afirmar que produzi notas cartográficas inventariadas ao longo do percurso investigativo, mas que certamente compõem apenas uma fração de tantas que estão dispersas numa realidade mais ampla no estado. Em relação ao tempo, a miríade de festas e de atividades que cercam as devoções também atesta um calendário intenso, de modo a poder encontrar desde práticas cotidianas que se sucedem, tal como o passar dos dias ordinários, até grandes eventos que mobilizam as comunidades em torno de datas especiais de14


dicadas aos oragos. Como as datas festivas se entrecruzam com os acontecimentos sistematizados nas narrativas que dão sentido aos cultos, as festas dirigidas a cada santo tem seus calendários próprios. Para uns, é a suposta data da “morte” do personagem santificado que demarca a culminância da devoção, em outros casos, como não houve o registro preciso da data ou em razão de outras disposições particulares que definem cada culto, o auge dele é promovido em datas comemorativas do calendário oficial que guardam algum tipo de aproximação com o orago (por exemplo, dia de finados, dia das crianças, dia do santo canônico com o qual se associa etc.). Há também casos em que não há data alguma alusiva ao santo, desenvolvendo-se a devoção sem marcadores temporais que o situam num tempo festivo. Cada caso guarda particularidades enraizadas em disposições contextualizadas da mesma forma como entre os cultos existem relações que permitem construir pontes analíticas a partir da comparação. Os cultos se pulverizam nos contextos locais e se constroem/(re)constroem diariamente, de forma a fomentar um processo contínuo de vida e morte dos santos e sua piedade4. A dinâmica desse universo se enraíza, portanto, na relativa fragilidade que envolve a construção desses personagens. A precariedade dos suportes sociais sobre os quais se assenta a devoção obriga os devotos a um constante processo de reelaboração do culto, sob pena de vê-lo perecer com a mesma celeridade com que foi produzido. Independente da envergadura, haja vista que alguns conseguiram se projetar mais que outros, os cultos populares são criados à sombra de um milagre original, este também precário, que se consorcia a outros tantos e de cujo fomento depende a própria continuidade da devoção. Assim, para permanecer vivo, o culto necessita de um enraizamento no imaginário social, convertendo-se em mito e consolidando-se por meio de ritos, ambos, demandando a partilha de significados ativos dentro do grupo onde a devoção se desenvolve. A dinâmica dos cultos, contudo, não se restringe aos processos de continuidade ou declínio, pois a despeito das expectativas de uma racionalidade exclusivista, o mito continua a florescer nas culturas e nos grupos sociais modernos. A dinâmica dessas devoções continua vívida, embora algumas possam ter SÁEZ, O. C. Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da Unicamp. 1996. 4

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entrado em ocaso, outras se apresentam em gestação embrionária. Provavelmente, algumas dessas irão se projetar na história, expandir-se-ão, incrementando o culto e alargando a fileira de devotos, de sorte que permanecerão ativas quando retroalimentadas, já outras terão uma vida efêmera, sendo rapidamente olvidadas. O fato de esses cultos permanecerem como práticas locais pouco ou nada documentadas, alguns inclusive de tão pequenos quase poderiam figurar na condição de “cultos domésticos”, não fosse seu caráter comunitário, colabora incrivelmente para que, mesmo mediante o maior esforço, não seja possível cobrir inteiramente o universo espacial de todo território potiguar. Via de regra, os cultos aqui analisados são resultado de encontros intencionais, mas também fortuitos. Assim, tal como alguns “milagrosamente” chegaram ao nosso conhecimento, outros tantos não “cruzaram” o nosso percurso, mas certamente estão vivos ou mortos nas esquinas das cidades ou veredas do sertão. Mediante todas as limitações apresentadas, a produção desse trabalho se justifica pelo fato de ser necessário conhecer as expressões da religiosidade popular aqui mapeadas, as quais permanecem frequentemente esmaecidas ou desconectadas. Ajunta-se a isso, o fato de a dinâmica das devoções produzir, com a passagem do tempo, marcas que se inscrevem na criação, na alteração ou na supressão dos cultos, por conseguinte, o esforço em compreender táticas e disposições em torno da piedade implica num exercício interpretativo muito interessante, propiciador de interpretações acerca das dinâmicas culturais. Por fim, os processos de mudança no campo dos valores e das crenças projetam uma progressiva perda das referências desses cultos, do que decorre o esmaecimento de suas memórias. Tendo em vista esse acontecimento, a pesquisa e sua publicação materializam uma forma de registro e salvaguarda dessas devoções, afinal, elas cristalizam expressões importantes do patrimônio imaterial potiguar.

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02. Mitologias mínimas: relatos de campo e notas etnográficas

O primeiro dos santos locais de que tive notícia5, ainda no ano de 2004, chegou-me por uma situação doméstica. Por causa de uma atividade de capacitação, minha mãe passou alguns dias no município de Rodolfo Fernandes – RN, na extrema divisa com o estado vizinho do Ceará. No fim da tarde que antecedeu seu retorno para Natal, um táxi a levou para uma rápida visita a uma capela num ermo da comunidade. Era um pouco distante e o acesso se fazia por caminhos estreitos, sem pavimentação, dentro de uma propriedade privada. Chegando lá, uma capela branca, ladeada de uma construção inacabada, abrigava uns poucos bancos, muitas imagens de santos, além de fotografias e objetos diversos, principalmente, ex-votos. No centro da capela, um monumento, em forma de cova, acolhia muitos daqueles objetos, mas, principalmente, fomentava a história do lugar. Não gozando de outra companhia, o motorista encarregou-se de fornecer uma versão dos fatos. Conforme a econômica narrativa do condutor, ali teriam morrido duas crianças de fome e sede, as quais passaram a obrar milagres e graças. Assim, em razão desse poder, as pessoas para lá passaram a acorrer em busca de curas e de resolução de seus problemas. Uma das imagens mais impressionantes do relato da visita foi o fato de que as pessoas deixavam no túmulo mamadeiras com mingau ou leite, além de chupetas e alguns brinquedos, especialmente, bonecas. Além disso, minha mãe contou que anualmente era realizada uma grande festa em homenagem às crianças santas no dia 12 de outubro, data que no calendário brasileiro é dedicada às crianças e à padroeira católica nacional, Nossa Senhora de Aparecida. Retive as informações, além do convite empolgado de minha mãe para irmos um dia conhecer a festa das Meninas das Covinhas, na capela das Covinhas, como eram conhecidas respectivamente as personagens e seu lugar. Passado um certo tempo, quando discutia com o professor Luiz Assunção o encaminhamento de um projeto para o

Esse foi o primeiro que tive notícias como pesquisadora propriamente, pois já tinha conhecimento da pesquisa da professora Tânia Freitas acerca das devoções a Baracho e Jararaca e tinha feito uma breve visita a Cruz da Cabocla. Retorno aos três personagens na narrativa mais adiante 5

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doutorado, ele me apresentou outro personagem, o qual associei imediatamente às Covinhas. A ligação não se deveu ao enredo que circunda o personagem, mas pelo culto popular que aparentava desenvolver-se sob bases equivalentes: alguém que não é santo oficial, mas que as pessoas rendem um culto particular. Encontrava-me, então, com Zé Leão, personagem mítico sediado no município de Florânia, na região do Seridó. Não custou muito, na própria conversa, um terceiro personagem emergiu, através da referência a uma nota de jornal6, na qual estava referenciado o culto a um garoto no cume de uma serra do sertão central. Encontrava, por fim, o Menino José, em Lages. O enredo das Covinhas, informado pelo motorista, era o de duas meninas que haviam morrido tragicamente de fome e sede. Já Zé Leão era um agricultor que teria desafiado autoridades locais, interpondo questões que atingiam interesses de poderosos, resultando disso sua morte trágica, com crueldade. A narrativa do Menino José retrata uma criança que, ao acompanhar um rebanho de cabras e cabritos, perdeu-se nos rincões da Serra do Feiticeiro. Seu corpo foi encontrado três dias depois em avançado estado de putrefação. Nos três casos, são erigidos monumentos em memória dos mortos. Zé Leão e o Menino José logo em seguida ao desfecho de suas mortes, nas Covinhas isso irá demorar pelo menos cem anos para acontecer. Na primeira viagem para encontrar cara-a-cara os cultos que referenciam o estudo, viajei a Rodolfo Fernandes e não custou encontrar a propriedade do Sr. Raimundo Honório, conhecido na comunidade como Seu Bento ou ainda Bento Honório. A capela, sediada na Fazenda Sossego, se avista de longe como um pequeno ponto alvo em meio à paisagem desértica da caatinga, mas seu acesso é um tanto difícil e implica em cruzar toda a quinta, uma vez que ela se situa tanto no extremo da propriedade, quanto na divisa com o Ceará. Eu não conhecia Seu Bento. Ao chegar à sua casa, como bom anfitrião, ele se dispôs a nos acompanhar ao santuário. No caminho, ele nos introduz no contexto que enreda a emergência do culto e só então começa a se revelar sua importância como figura capital para tudo o que se desenrolará em torno da devoção. Ele contava, intercalando silêncios, suspiros e algumas lágrimas, que aquela capela fora por ele construída, mas com ajuGRILLO, M. Serra do feiticeiro: sertão de magias. Tribuna do Norte. Disponível em: www. tribunadonorte.com.br/anteriores/000618/cid2.html. 12/12/2004. 6

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das e donativos de populares, em agradecimento a uma grande graça alcançada ainda no ano de 1980. A história das meninas, contudo, seria bem anterior, datada da grande seca de 1877, quando as duas crianças acompanhavam seus pais e um grupo de retirantes, em trânsito para o porto de Macau-RN. Na passagem, as crianças pereceram e a memória de suas mortes permaneceu viva, em particular por meio das histórias que Mãe Cândida, avó de Seu Bento, contava para os netos. Ainda no relato, Seu Bento afirma que a história sempre era rememorada quando eram avistados clarões nas imediações de onde hoje se situa a capela. À época, ele justificava, inexistia qualquer forma de iluminação elétrica na região, bem como não havia famílias residentes no lugar, as quais, porventura, pudessem utilizar-se de candeeiros, fogueiras etc. Os clarões, portanto, não tinham para ele uma explicação objetiva e somente seriam elucidados a partir dos referentes míticos que se manifestaram naquele espaço. Logo após a breve introdução acerca das crianças, Seu Bento nos apresenta o relato do milagre, ponto culminante e revelador da identidade taumatúrgica das meninas. A versão que ele sempre apresenta pode ser reproduzida no texto que compõem um pequeno panfleto, confeccionado e comercializado pelo próprio Bento com o objetivo de divulgar a história das Covinhas. Esse impresso começou a circular entre os frequentadores do culto na festa, no ano de 2007, quando era vendido pelo módico preço de dois Reais. Na fala do próprio Bento, ele teria feito o livrinho no intuito de contar a história das Covinhas, já que as pessoas o cobravam a esse respeito. O texto oferece uma pequena introdução e fechamento, no intuito de situar o leitor quanto às personagens iniciais, o espaço e a festa, contudo, detém-se em maior parte a narrar os acontecimentos em torno do milagre inicial: No dia 24 de agosto de 1980 senti uma dor muito forte, quando mexia em uma cerca da fazenda. Cheguei em casa muito mal, a ponto de desmaiar. Era uma quarta-feira. A família decidiu que eu deveria ir para Mossoró no outro dia. Estava tão mal que fiquei mesmo em Itaú, cidade vizinha, de onde retornei no sábado. No domingo, as dores pioraram. Nesta noite eu estava sentado numa cadeira do quar19


to, pouca luz, quando tive a primeira visão das meninas. Elas estavam em pé, na porta. No dia seguinte fui internado no Hospital Almeida Castro, em Mossoró. Recebi soro e medicamentos, passei o maior sufoco, o maior sofrimento. Por sugestão de vários médicos, entre eles o ex-deputado Laíre Rosado, fui transferido para o Hospital Geral de Fortaleza, que estava sem vagas. Fiquei então no Hospital Fernando Távora. Exames, medicamentos, banhos e ninguém sabia ainda o que eu tinha. O Dr. Fausto falou que poderia ser hepatite. Mandou tirar sangue e não era. Dr. Célio mandou bater um raio-x, e nada. Pediram então uma Junta Médica. O Dr. Afonso chegou a me desenganar, mas a decisão foi o isolamento, pois poderia ser uma doença contagiosa, talvez de rato ou outro animal. Fui então para o Hospital Geral para um isolamento de 10 dias. Sentia muita dor e paralisia no corpo todo, a ponto de não conseguir dormir. Se morresse o corpo ficaria para estudos. No primeiro dia, fiz uma cirurgia onde botaram um aparelho na minha barriga para que eu recebesse dois soros simultaneamente. Nesta noite faltou energia. Nos poucos segundos antes do gerador ser ligado, tive a segunda visão das meninas. Foi quando fiz uma promessa. Uma amostra de meu sangue foi mandada para o Rio de Janeiro, o resultado viria com quatro dias. Durante este período não podia beber água, só soro. Ouvi dos enfermeiros que até as roupas de cama eram queimadas. Não 20


podia receber visitas de ninguém. No quarto dia, quando amanhecia, uma senhora e duas meninas entraram no quarto. Eu ainda estava bastante sonolento, mas lembro muito bem quando a mulher pediu a uma das meninas uma válvula para retirar o aparelho de soro que estava ligado ao meu umbigo. Ainda hoje vejo a mão da menina entregando esta válvula. Retiraram toda a aparelhagem e fizeram o curativo. Quando Dr. Célio chegou perguntou quem havia retirado o aparelho e feito o curativo. Respondi que tinha sido uma senhora de branco e duas meninas. Ele logo pensou que eu estava delirando, mas quando procurou saber na equipe como aquilo havia ocorrido, e porque no prontuário não havia nada, ninguém soube dar a resposta. Foi quando contei para Dr. Célio sobre minhas visões. Em meio a perplexidade dos médicos, chegaram os exames com resultado negativo. Mandaram refazer. Mais quatro dias sem água, e agora recebendo soro pelo braço. Novamente resultados negativos. Na noite do 10º dia no isolamento, tive uma nova visão. Vi o local das covinhas com todos os detalhes: uma árvore caída e uma pequena lagoa marcaram aquela visão. E ouvi uma voz dizendo: “Com os poderes de Deus, o Sr. está curado”. No outro dia convocaram uma junta médica com 20 médicos. Não podiam atestar qualquer doença devido todos os exames darem negativo. Decidiram por minha permanência por mais dez dias no hospital. Depois teria que fazer exames regulares em 15, 30, 60 e 21


120 dias após a alta do hospital. Nenhum remédio foi recomendado.” Bento Honório

Essa narrativa inicial é a precursora de muitas outras que se produzem à posterior, quando o culto se enraíza no lugar em torno de suas personagens e com um tempo que as caracteriza. A exemplo do primeiro milagre, outros tantos vão se somar de modo a corroborar discursivamente a santidade e o poder das meninas, além do natural processo que acompanha a piedade popular na qual esses acontecimentos são representados por meio dos registros materiais da graça: os ex-votos. Embora vários milagres sejam sempre recuperados nas rodas de conversa entre os frequentadores, a narrativa de seu Bento é privilegiada. Por isso, ela é recorrentemente acionada como recurso explicativo e de plausibilidade no qual se justificam tanto a emergência do culto (a construção do santuário como necessidade de retribuir a cura), quanto a natureza taumatúrgica que ontologicamente se vincula às crianças. Essa centralidade se produz, porém, numa via dupla: por um lado, Seu Bento e sua história se projetam como exemplares, e o próprio Bento tem imensa parcela de responsabilidade nisso, uma vez que capitaliza sua imagem perante o público; enquanto, no sentido inverso, os populares reconhecem na figura de Bento um ícone do milagre e do santuário. O espaço do santuário conta com uma infraestrutura precária, embora ao longo do tempo em que a pesquisa se desenvolveu foi possível perceber algumas mudanças, provavelmente, reflexo da própria expansão do culto. Quando visitei o lugar em 2005 encontrei uma capela, que permaneceu inalterada até a festa de 2008, um cruzeiro e um galpão já construídos, porém sem acabamento. No ano seguinte, no período da festa, uma grande caixa d’água havia sido instalada ao lado da capela, uma vez que o santuário ainda não contava com qualquer tipo de abastecimento d’água. Nos períodos de festa, Seu Bento encarregava-se de transportar água em carroças até a capela ou contratava um trabalhador que o fizesse. Com a caixa d’água era possível apenas disponibilizar um volume maior do líquido, mas o abastecimento se dava sob as mesmas técnicas. No ano subsequente, o protótipo de uma estrutura maior estava de pé. O novo edifício tinha como objetivo substituir as palhoças que abrigavam os fiéis durante a celebração da missa, 22


mas no relato do próprio Bento, não fora possível concluí-la em tempo para a festa. Em 2008, a estrutura permanecia inacabada, porém, já contava com o telhado. Nesse complexo, dois pequenos banheiros individuais, um para cada sexo, permaneciam de forma acanhada ao lado do galpão e não contavam com a mais elementar condição higiênica para seu funcionamento. Não havia água, nem tranca na porta, aliás quase não havia porta, tampouco, qualquer responsável que zelasse pela limpeza de um equipamento que em dias de festa é tão ou mais concorrido que o interior da capela. É oportuno destacar que a frequência ao santuário no dia 12 de outubro é sempre contabilizada na cifra dos milhares. E, embora alguns fatores contribuíram para que alguns anos fossem mais prósperos em público, enquanto outros gozassem de uma menor participação, os frequentadores eram sempre muito diversificados em relação à sua procedência geográfica, mas muito similares quanto à sua condição social. Muito há para se dizer sobre as relações e os episódios que foram registrados na frequência às Covinhas, pois ao passo que esse cenário se apresentou extremamente rico, também convida a pensar muitas questões. Em virtude disso, esse se tornou um campo etnográfico privilegiado, de modo que, depois da visita inicial, o trabalho de campo se realizou por três anos seguidos (2006, 2007 e 2008) na grande festa do dia 12 de outubro, além de ter realizado uma quarta visita para entrevista e coleta de dados. Para o objetivo desse trabalho vou limitar a exposição apenas a essas informações, porque elas bastam para compor o cenário da cartografia, contudo, toda a pesquisa detalhada pode ser conhecida no trabalho de doutorado defendido e em parte já publicado7. Com isso, fica apresentado o primeiro santo local, que na verdade é um duplo: as Meninas das Covinhas. Ainda na mesma viagem de 2005, visitei a cidade de Florânia em busca de Zé Leão. Encontrei uma capela abandonada, entregue aos morcegos e marimbondos, localizada a alguns quilômetros do perímetro urbano. Era uma construção pequena, caiada, com detalhes azuis e um indicativo na fachada: Capela da cruz de Zé Leão. Na parte externa, um cruzeiro com pedras e rosários se projetava à frente da capela, seguido de um altar em alvenaria que mais parecia servir como queimador de velas, 7 SILVA, Irene de Araújo van den Berg. Visão das covinhas: etnografia de um santuário popular. In: ASSUNÇÃO, Luiz. Um barco: experiências etnográficas e diálogos com as culturas populares. Natal: EDUFRN, 2012.

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considerando a significativa quantidade de parafina derretida por toda parte. No interior da ermida, no centro, uma suave elevação em alvenaria apoiava uma cruz também em cimento, fazendo lembrar uma sepultura, supostamente, demarcando aquele que teria sido o lugar onde Zé Leão fora brutalmente assassinado. Na visita, não encontrei qualquer popular que pudesse me contar uma versão do martírio, pois como a capela fica isolada da cidade, só é possível encontrar alguém por lá quando se está pagando uma promessa ou realizando alguma forma de culto. O dia e a hora da visita, certamente, não eram os mais propícios para esse encontro. Contudo, independentemente de qualquer contato mais substancial, a história que me moveu até Florânia foi aquela registrada por Veríssimo de Melo8, precursor que identifico como o primeiro a se interessar pela história de Zé Leão. Em seu trabalho, ele assim relata a narrativa de Zé Leão: Esse Zé Leão – narrou-nos o Sr. Sebastião Laércio de Menezes, zelador da capela – em 1877 desentendeu-se com outro agricultor do município, José Porfírio, por questões de terra. Este último então premeditou crime bárbaro, assassinando José Leão no local onde está hoje a devoção, sendo esquartejado – dizem uns – ou queimado vivo – dizem outros. Corre na tradição ainda que o crime teria ficado impune, ou porque o criminoso fugiu ou porque a justiça da época não se interessou em elucidar o fato delituoso. Dizem ainda que José Porfírio foi apenas o assassino, enquanto o mandante teria sido um figurão do município. Muitos anos depois, José Porfírio reaparece na cidade e é visto, diariamente, à tarde, rezando, ajoelhado, pela alma do homem que ele próprio assassinara! As mulheres e beatas passaram também a imitar o homem que rezava MELO, V. d. Folclore Brasileiro: Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Funarte. 1977.

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pela alma de Zé Leão e daí aos milagres foi um passo. Nascera a devoção. No começo havia apenas um cruzeiro. A capela veio depois, com o fim de guardar os “milagres” que eram depositados e acender velas também em pagamento de promessa. Gente de todo Nordeste tem ido a Florânia pagar promessa a Zé Leão9. Na síntese esboçada por Veríssimo de Melo estão dispostos os principais elementos que circulam na memória do martírio de Zé Leão: a motivação do crime e seus mandantes, a crueldade no assassinato, daí o martírio, e, principalmente, a prova da santidade e do milagre, atestadas pelo próprio assassino que retorna para se persignar. A partir dessa tríade, uma constelação de narrativas se produz interceptando representações, mas também repercussões no imaginário e no cotidiano da comunidade local, uma vez que a truculência do episódio valeu durante muito tempo para a imagem de Florânia e de seus habitantes o título popular da Terra do Mata e Queima. Independente da elucidação dos fatos que envolvem o episódio da morte de Zé Leão, o evidente desdobramento mítico, através da emergência do culto, propiciou a reprodução ativa de sua memória. Com isso, mesmo transcorridos mais de 100 anos da suposta tragédia, a narrativa do martírio de Zé Leão rendeu-lhe a construção da capela que acolhe seus devotos e milagres. A história do culto, porém, não se dá sem percalços10. Sua trajetória acompanha os desenvolvimentos sociais da comunidade, sobretudo, aqueles que se ligam aos valores e às dinâmicas religiosas. Nesse sentido, talvez seja esclarecedor apresentar outro dado de Florânia, que embora fosse desconhecido até minha chegada à cidade, ofereceu-se enquanto novo campo de interesse. Falo a partir de agora da Santa Menina, outra personagem icônica da religiosidade local, e para a qual se dirigem atenções especiais à custa do obscurecimento parcial de Zé Leão. Na mesma visita a Florânia, de longe eu avistava um monte, em cujo cume visualizava uma construção alva com a arquitetura de Ibid, p.40 PALHARES, D., & OLIVEIRA, J. C. A Terra do Mata e Queima: histórias e mito sobre o martírio de Zé Leão. Caicó: UFRN-CERES-Monorafia de História. 2004.

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uma capela cristã. Mesmo distanciando-me em direção à capela do outro mártir, a curiosidade pelo monte me convidava a explorá-lo. Movida por esse sentimento, fui visitar o Monte das Graças, como é conhecido o santuário. A princípio, nada parecia fugir da tradição, pois como é prática frequente no catolicismo, muitos centros de peregrinação são construídos em montanhas ou lugares de difícil acesso, cuja escolha se faz mediante algum episódio hierofânico e as adversidades legitimam práticas de piedade reiteradas em diversos exercícios penitenciais. Na chegada ao topo, de pronto me deparo com duas capelas: uma grande, que abrigava a imagem de Nossa Senhora das Graças, padroeira do local, e, ao lado desta, uma construção menor, que guardava os milagres, materializados em ex-votos de diversos tipos, além de fotografias e cartas. No fundo, ao centro, uma imagem em gesso, protegida por uma cúpula de vidro, representava uma criança do sexo feminino, de braços estendidos, vestindo trajes em tons azul e rosa claro. Saltava aos olhos imediatamente a semelhança que as imagens – da padroeira e da criança - apresentavam, sobretudo, pela equivalência na postura e nas vestes, que acompanham as mesmas tonalidades. Outro elemento capital da aura mística do lugar era um pequeno tronco de umburana, abraçado de fitas de cetim coloridas, que ainda permanecia enraizado, porém, sem vida, no interior da capela. Ao fundo, na parede, uma fotografia emoldurada registrava a exuberância anterior do vegetal. A condição da pretérita árvore é indicativa do uso indiscriminado que os frequentadores do local fizeram de suas folhas e cascas, entendendo-as como veículo taumatúrgico. O marco espacial, contudo, mantém-se como importante elemento da semântica do lugar. No Monte, encontrei um frei, que temporariamente residia no local por força da ação de sua congregação para quem fora atribuído o zelo do santuário. Foi ele quem me forneceu as primeiras informações sobre a Santa Menina, apresentando os argumentos do discurso institucional em contraponto à narrativa popular que fomenta uma interpretação distinta e potencialmente perigosa para os interesses eclesiásticos. Contudo, só mais adiante vou perceber que esse descompasso na leitura do espaço sagrado, paradoxalmente, funciona como campo no qual se ativam as disputas discursivas em torno da legitimidade dos cultos (se o monte é de Nossa Senhora das Graças ou de Santa Menina, por exemplo), ao mesmo tempo em que opera oferecendo os elementos que são reelaborados e redimensionados na dinâmica que 26


marca ambas as devoções. A narrativa que deu origem ao mito da Santa Menina traz em seu enredo a paisagem do monte e da umburana como cenário. No cume da montanha teria sido encontrado um “corpo santo” de uma criança do sexo feminino. Na legenda popular, o corpo santo11 se caracteriza pela incorruptibilidade do cadáver e essa evidência é indício da natureza santa de seu portador. Amiúde, as narrativas que retratam a descoberta de corpos santos são acompanhadas de outro fenômeno extraordinário e indicativo: um característico odor de rosas exalado pelo corpo e que normalmente precipita o encontro dos restos mortais. Notadamente, no caso da Santa Menina, ambos os sinais são ressaltados e se consorciam a um terceiro, no caso, a enigmática figura de um religioso que teria encontrado o corpo após ter sonhado com sua exata localização. A quimera trouxera de terras longínquas o frade - talvez mesmo de Roma12, mas a mesma sorte que o trouxe, o levou, porém, desta vez, carregando consigo o valioso corpo por ele exumado no alto da serra. São muitas as variantes da narrativa, revelando, como em todos os demais casos aqui retratados, o caráter processual e dinâmico que marca a memória e as formas de lembrar relacionadas aos personagens cuja condição é ontologicamente precária. Em boa parte das narrativas os personagens não apresentam qualquer forma de vínculo estável com a comunidade que posteriormente abriga seu culto. Assim, no caso de Zé Leão, por exemplo, em todas as versões ele transita desde um forasteiro que adquire terras nas cercanias da localidade até à condição de mercador, comercializando ouro advindo do Ceará13. Em relação à Santa Menina, tal como as Meninas das Covinhas, ela é um personagem em trânsito, acompanhando um grupo de retirantes que busca paragens mais favoráveis. Noutras versões essa criança O corpo santo é o simétrico oposto do corpo seco, cuja definição é assim registrada por Cascudo: “corpo mumificado que a terra rejeita em razão de atitudes ou condutas amorais em vida. O corpo seco caracteriza-se por seu estado ressequido sem sinais de corrupção da terra. Entretanto, este fato denuncia que houve pecado sem perdão divino. (...) O corpo seco participa de lógica inversa [ao corpo santo]. Tendo sido rejeitado por Deus e pelo Diabo, é imputado à deambulação perpétua e constantemente usa do expediente de assombrar os vivos. O corpo seco, assim, evidencia que a alma está penando e, portanto, requerendo preces pela sua finda sentença, seja o castigo ou o prêmio.” (CASCUDO, 1976) 12 SILVA JUNIOR, O. F. (Re)construção imaginária do território: uma análise da formação identitária da Serra de Santana. Natal: UFRN-CCHLA-PPGE. 2005. 13 PALHARES, D., & OLIVEIRA, J. C. A Terra do Mata e Queima: histórias e mito sobre o martírio de Zé Leão. Caicó: UFRN-CERES-Monografia de História. 2004. 11

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é uma vítima de maus tratos de sua família ou pode ser objeto indefeso de violência sexual. Em todas as situações, no entanto, esses personagens são pessoas sem vínculo social definido, de modo que o próprio nome que as batiza dá azo a especulações e elaborações diversas14. O encontro com o Menino José, no alto da Serra do Feiticeiro, aconteceu no ano de 2008. A demora em descortinar seu culto e sua capela deveu-se em boa medida ao fato de que o acesso a esse local era extremamente difícil. Por inúmeras vezes tentei estabelecer um contato prévio, quando transitava na BR 304 que margeia a entrada do santuário, contudo, estando a capela localizada em uma propriedade privada deparei-me frequentemente com um imenso cadeado e nenhuma informação. Como afirmo que os encontros deste trabalho são sobremaneira fortuitos, um dia tive a sorte de encontrar o morador da fazenda na iminência de adentrar na propriedade. O acaso, então, garantiu minha visita. Dias depois, no alvorecer da manhã subi a serra, amparada pelo “guia” que outrora encontrei na estrada. A escalada é longa e o caminho estreito e irregular, a chuva daquele dia, também ajudou a dificultar a subida. A ermida foi construída no meio da serra, tendo em seu entorno pouco espaço sobre o qual seja possível permanecer, a não ser os poucos metros que circundam a própria capela, além disso, todo o terreno em volta é muito irregular. A capela é rústica e tem à sua frente um cruzeiro de madeira que se eleva a partir de um ponto mais baixo em relação ao piso do templo. No interior da construção, uma cruz está firmada e exposta no centro, ao fundo. O obelisco é encoberto por fitas de cetim coloridas, imagens de santos em gesso, restos de velas queimadas, além de alguns ex-votos que se acumulam numa pilha ao seu lado. Estão lá muitas fotografias desbotadas, peças em madeira, gesso e tecido, exames médicos, caixas de medicamentos e muitos cachos de cabelo. Na parede do fundo, uma dúzia de pequenos quadros se dividem entre imagens de santos e fotografias de populares. Numa das laterais, penduradas na parede está um par de muletas, no lado oposto, algo similar a um varal serve de No ano de 2008, ouvi de uma frequentadora nas Covinhas que em sonho ela tinha recebido a visita das meninas e embora nunca tivesse estado no santuário, todas as formas do espaço já lhe tinham sido reveladas durante o sonho. Não bastasse mostrar a capela, as meninas lhe haviam revelado seus nomes próprios, mas com ela fizeram um pacto de não os revelar. Nesse acordo, estaria selado o pacto de uma graça. A mulher reafirmava, então, veementemente na soleira do altar: “eu sei o nome delas, mas esse segredo eu levo comigo”.

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suporte para acomodar algumas peças de roupas. É possível perceber que algumas fazem parte do vestiário ordinário, são calças, camisetas, bonés etc., outras remetem a um voto cuja penitência se articula com o intercessor, amiúde são hábitos marrons, à moda franciscana, ou azul claro, em homenagem a Nossa Senhora. O enredo que articula o culto e a devoção neste local é apresentado na narrativa que relata o caso de uma criança muito pequena, talvez com uns cinco anos de idade, do sexo masculino, que se perdera na montanha no ano de 1903: era o menino José Alexandrino. Os depoimentos dão sempre conta do acontecimento como fruto de uma fatalidade. A criança teria se perdido da mãe após acompanhar um grupo de cabritos que subiu a serra. Desesperados, os pais e a comunidade mobilizaram-se para encontrá-lo, entretanto, já transcorridos cerca de três dias apenas o corpo em avançado estado de putrefação foi localizado. No exato local da tragédia uma cruz foi firmada, a exemplo do que frequentemente na tradição cristã se realiza como prática de demarcação de sepultura ou morte violenta. Posteriormente, uma capela e um cruzeiro encerraram o complexo espaço sagrado, ambos, porém, foram construídos mais abaixo que o local onde o corpo foi encontrado. Como a descoberta do corpo deu-se num dia 03 de maio, o espaço passou a ser conhecido como capela da Divina Santa Cruz, embora o orago que mobilize as romarias seja mesmo o Menino José. Outro personagem distribuído geograficamente próximo ao Menino José é Maria Romana. Com ela surge na pesquisa uma modalidade particular de santo local marcada pelas condições de sua morte. A devoção a esse personagem se realiza no município de Ipanguaçu e foi uma colega professora quem me forneceu as primeiras notícias deste culto. No ano de 2007, realizei uma visita in loco, na qual registrei alguns depoimentos sobre a biotanatografia de Maria Romana. Em sua fala, Dona Maria da Conceição, moradora domiciliada vizinho à pequena capela forneceu algumas das informações do enredo mítico: Quando aconteceu isso com ela, ela estava grávida do primeiro filho. Então o motivo [do crime] foi ciúmes que ele teve dela. Ele era barbeiro e quando chegou em casa, certamente, achou que ela não estava... certamente ele achou que estava sendo traído por 29


ela, mas que isso não existia, porque ela era uma senhora muito boa. Ninguém aqui deu mal informação dela. Ninguém deu mal informação dela. E então ele fez isso. Ele bebia. Estava ébrio. Levou ela, saiu dali e saiu com ela abraçada. Quando chegou ali, no pé de juazeiro ele degolou ela. Conta-se que desde então o pé de juazeiro deixou de frutificar15. O crime bárbaro que chocou a pequena comunidade no ano de 1927 se notabilizou pela dissimulação do criminoso, cuja ação não era legítima, uma vez que a esposa assassinada era socialmente reconhecida como uma mulher virtuosa. Tão atroz foi a morte que o cenário onde se desenrolou o crime transmutou-se em hierofania: o frondoso juazeiro, até então próspero, nunca mais frutificou. A partir dos sinais sagrados manifestos no crime e na natureza, o repertório popular ressignificou seus desdobramentos, fazendo emergir a figura de uma intercessora local. Alguns anos depois o bairro onde está situada a pequena capela, antes chamado Morro, é rebatizado com o título de Maria Romana. A pequena capela conta com a colaboração dos moradores da área que cuidam do zelo do espaço, porém, os moradores locais registram episódios em que pessoas de origens diversas se deslocam até lá para agradecer por graças alcançadas. Desse modo, serviços como reparos e pinturas são frequentemente financiados por patronos externos. Pelo caráter diminuto do local, é possível acomodar pouquíssimas pessoas no interior da capela, contudo, quando se realizam celebrações maiores como novenas e reza de terços, o espaço do entorno é palco dessas atividades. Não havia informações sobre celebrações institucionais no lugar, reservando-se o espaço para as práticas da piedade popular. Na categoria em que está albergada Maria Romana encontrei outro caso similar que se processa em período histórico contemporâneo daquele. A descoberta dessa personagem se deu através de informações preliminares indicadas pelo professor e historiador José Cândido Cavalcante. Por meio delas, cheguei ao escritor João Bosco Queiroz Fernandes, que à época acabara de Maria da Conceição, entrevista. 2007.

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lançar publicação16 na qual narra os episódios em torno da vida, morte e assunção popular de Mártir Francisca. Marta Francisca, forma derivada pela qual também é conhecida por alguns no vulgo, é mais uma personagem do conjunto de santos locais que tem piedade localizada no município de Tenente Ananias-RN. Na memória local, Francisca é relembrada como uma jovem extremamente virtuosa e devota, que acumula a candura da castidade e a inocência juvenil. No relato de seu martírio, num final de tarde, ela saiu para colher jerimum, num roçado de sua família que era próximo de casa. Lá encontrou um primo que talvez já lhe viesse fazendo galanteios há certo tempo, mas que nessa tarde insistiu demasiadamente em seduzi-la. Frustrado em suas intenções pelas reiteradas negativas de Francisca, João Olinto desfechou-lhe golpes de machado e depois de matá-la, jogou seu corpo num poço que ficava nas imediações do lugar onde o crime ocorreu. Premeditadamente, talvez buscando eximir-se da culpa, ele dispôs sobre o corpo uma estaca para assegurar sua completa submersão. Em seguida, o assassino se integrou aos grupos da comunidade destacados para realizar as buscas pela moça. Passados três dias do homicídio, sua culpa é descoberta e o matador vai a julgamento, sendo condenado à prisão. Sua pena foi leve e ele permaneceu apenas três anos recluso. Entretanto, conforme Fernandes, sua consciência o atormentou para o resto de seus dias. De acordo com as circunstâncias da morte da virgem, em pouco tempo começam a aparecer os primeiros sinais de sua santidade, tais como o odor de flores bastante ativo que emanava da cova da garota, além dos dois rachões em forma de cruz na sepultura. O próprio assassino afirmou ter experimentado um encontro onírico com a virgem mártir e nesse ela assegurou ter-lhe perdoado o mal causado. Cumulado com outros discursos que corroboram a santidade da virgem mártir, os populares começam a lhe atribuir milagres e a frequência tanto ao local onde morrera como ao cemitério onde fora sepultada se multiplicou. Contudo, mesmo com o vulto que o culto paulatinamente assume, primeiro com a cruz, depois com uma pequena ermida e em seguida com a construção da capela, é apenas no ano de 1991 que ele ganhou feições mais organizadas. Atribuindo a conquista de um milagre graças à interFERNANDES, J. B. Mártir Francisca: a virgem de nossos tempos. Mossoró: GL Gráfica e Editora. 2008

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cessão de Mártir Francisca, o monsenhor Manoel Fernandes de Vieira e o médico Antônio Mousinho Fernandes transladaram os restos mortais da virgem garota do cemitério de Alexandria-RN para a capela construída em sua homenagem, na cidade de Tenente Ananias. Para lá, passaram a se destinar pessoas das mais diversas origens, buscando conforto espiritual, mas principalmente pretendendo alcançar milagres. Outro caso envolvendo um personagem feminino pôde ser recuperado por meio da literatura que registra esses episódios populares. A referência inicial foi encontrada em Superstição no Brasil17, na seção intitulada O povo faz seu santo: “em Angicos, no Rio Grande do Norte, resiste a Santa Damasinha. Damásia Francisca Pereira, morta em 1843 pelo marido, Francisco Lopes. Durante o enterro, os sinos da Matriz dobraram sem que ninguém lhes tocassem”. Devido a brevidade da nota, Cascudo pouco nos informa acerca das circunstâncias da morte, apenas deixa subentendido o casual culto à Santa Damasinha. Embora tenha sido pequeno o esforço de minha parte em procurar informações contemporâneas sobre o culto, alguns conterrâneos de Angicos que consultei desconheciam essa personalidade. Casualmente, quando um dia realizava levantamento bibliográfico encontrei novas informações complementares à nota inicial. Contam os antigos que Damásia Francisca Pereira, mulher de Francisco Lopes, parente próximo da família fundadora de Angicos, vivia em perfeita calma na pobreza honrada de seu lar. Essas duas existências, conjugadas eternamente pelo matrimônio, pareciam ter sido predestinadas, uma à outra, pelas doçuras de uma vida feliz, entre os lazeres da criação e momentos de repouso. Um dia, porém, tudo muda. O marido nega à esposa fiel e dedicada os carinhos costumeiros, passando a tratá-la com grosseria inaudita. Damasinha, alma privilegiada de mulher, boa filha, boa amiga, e que sacrificara CASCUDO, L. d. Superstição no Brasil. São Paulo; Belo Horizonte: Editora Universidade de São Paulo; Itatiaia. 1985. p.377.

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o tempo da mocidade às esperanças de um casamento venturoso, compreende a transformação radical, mas, mesmo assim, sofre com paciência e resignação. Uma palavra de sua boca não pronuncia. Um gesto de arrependimento e tortura íntima nunca lhe escapou. Cada hora que passa, mais Francisco Lopes se revela indelicado e estranho. Em 1843, realizava-se na vila a festa da padroeira. Toda a população católica acorria ao templo, recitando as suas preces de salvação e de fé. Francisco Lopes convida a esposa para assistirem os festejos do santo patriarca. Chegando em Angicos, tomam parte nas cerimônias religiosas, como todos os anos.(...) Voltou o casal para o sítio “Santa Cruz”, onde ficava a casa de sua residência, hoje de Luís Rodrigues. No caminho, Damásia compreende que o desenlace se aproxima. O marido, momento a momento, ferreteia-a com a ponta do punhal. E não se enganou... Logo ao chegarem, Francisco Lopes manda-a deitar-se na mesa da sala de jantar. A vítima obedece sem relutância. E ali mesmo, fria e barbaramente, a arma assassina degola a mulher heróica. Cercando o cadáver com dois sírios bruxuleantes, o tresloucado Lopes vai à casa do seu compadre João Filipe da Trindade, figura de saliência na vida municipal, e comunica-lhe sorrindo, o fato hediondo. Abriu-se inquérito, que ainda hoje existe no cartório de Angicos. Francisco Lopes confirmou o assassínio em palavras desconexas. 33


A morte de Damasinha ecoou dolorosamente. As suas virtudes foram revividas por todos os que a conheceram. A mesa do seu sacrifício e uma pedra que se alteava do ladrilho irregular, ficaram indelevelmente manchadas pelo sangue inocente. E, diz a lenda, quando o cadáver, acompanhado por grande multidão, chegou à Favela, arrabalde da vila de onde esta se desenhava lindamente, os sinos dobraram sem que ninguém lhes tocasse... Francisco Lopes, tendo recebido um jato de sangue no peito, viu transformar-se quase que numa única chaga, e, louco, terminou os seus dias miseravelmente. Ainda hoje, entre o tímido fanatismo do nosso povo, existe quem levante os olhos para o céu, numa oração fervorosa à Santa Damasinha18.

Os casos de Damasinha e Maria Romana se inserem no universo popular ligados ao ciclo dos cultos femininos que evocam ora imagens da extrema candura, como no caso de ambas, ou seu simétrico oposto, como nos casos das mulheres sediciosas. Em pesquisa realizada no Rio Grande do Sul19, são apresentadas as devoções dedicadas às santas prostitutas, três personagens que têm em comum nas narrativas de suas biografias o estereótipo de mulheres de vida livre. Outro trabalho20 se ocupa de um caso semelhante no cemitério público de Campinas-SP. As três Marias21, do Rio Grande do Sul, e Jandira, de São Paulo, têm em comum o fato de, na construção discursiva da plausibilidade dos seus cultos, aparecer reiteradas vezes a bondade como uma marca em suas existências. Aliás, é nessa equação entre vida e morte que a alquimia da plausibilidade se projeta, sobretudo, nos casos SARAIVA, G. Lendas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia. 1984. p.30-31. FAGUNDES, A. A. As santas prostitutas: um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro. 2003. 20 SÁEZ, O. C. Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da Unicamp. 1996 21 Maria do Carmo, Maria Isabel e Maria da Conceição. Fagundes, op.cit. 18 19

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em que há o duplo. Nesses casos, a ambiguidade é característica tácita. Considerando essa perspectiva da equivocidade no campo religioso local, o culto a personagens bandidos também figura, numa lógica masculina, porém, tão ambígua quanto a feminina. Freitas22 mapeia as disposições rituais e as produções narrativas que enredam o culto popular aos bandidos-santos: Baracho, em Natal, e Jararaca, em Mossoró, ambos fomentados em cemitérios. Jararaca ficou registrado na memória local de Mossoró após a investida dos cangaceiros chefiados por Lampião, grupo do qual ele fazia parte. Durante o ataque, os cangaceiros foram recebidos à bala por uma força armada organizada por homens da cidade e cujo célebre feito foi resistir heroicamente à investida. A resistência foi tamanha que os cangaceiros, conhecidos pelo destemor, foram obrigados a recuar. Aquele que se tornou um dos principais marcos da história local mossoroense teve ainda como resultado a captura de um dos líderes do bando. Jararaca, tendo sido ferido à bala, foi abandonado pelo grupo durante a debandada. Depois de preso e torturado pela polícia, a narrativa popular retrata que o cangaceiro teria sido enterrado vivo numa cova no cemitério São Sebastião. Nalguns relatos, esse episódio é capitalizado com a imagem do cangaceiro cavando sua própria sepultura. Outro personagem do hagiário popular potiguar é João Baracho, o ladrão que se celebrizou no cenário natalense nos anos de 1959-1962 como o “matador de motoristas” e que gozou de repercussão pública ocupando tanto a mídia, como o imaginário local do período. Os fatos que levaram à acusação de Baracho como autor de furtos e homicídios, que à época inquietavam a cidade, além da produção e do investimento em sua imagem, tanto por parte da polícia quanto da mídia, fizeram do suposto ladrão um vulto público temido e admirado. As circunstâncias que o enquadram no estereótipo do grande bandido, além da multiplicação de discursos sobre o personagem e suas façanhas, garantiram a equivocidade de interpretações para os acontecimentos e as ações em torno de sua vida e morte. Como registra Freitas23, tendo assumido o assassinato de um motorista, mesmo sob condições questionáveis, a assinatura da confissão fez recair-lhe imediatamente a suspeição em relação FREITAS, E. T. Memória, cultos funerários e canonizações populares em dois cemitérios no Rio Grande do Norte Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. 2006. 23 Ibid 22

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à autoria de homicídios similares anteriores. A esse episódio se somam uma série de outros (fugas e capturas) que, construídos ou potencializados pela mídia e polícia, projetaram Baracho enquanto o responsável por uma série de crimes na capital. Com efeito, quando as acusações que pesam sobre Baracho se cruzam com os depoimentos de seus vizinhos e convivas, elas se distinguem substancialmente, tanto que ninguém jamais confirmou a versão da polícia de que ele era um ladrão. Da condição incerta entre o homem Baracho e o personagem público que é construído, emerge uma última imagem que o marca profundamente no imaginário local. Após ser preso pela polícia, no ano de 1961, ele consegue fugir da prisão serrando as grades de sua cela. Na fuga, desesperado, buscando evadir-se dos algozes, ele pede água numa residência e o líquido lhe é negado. Em seguida, é alvejado por vários tiros e morre com sede. No imaginário popular essa cena se replica através dos discursos, mas também das práticas que posteriormente se vinculam ao seu culto. No âmbito dos discursos, são carreadas as imagens do sofrimento, cuja elaboração se processa no juízo em que morrer com sede ou ser-lhe negada a água é um ato de desumanidade, mesmo que fosse em relação a um bandido. No plano das práticas, a água se precipita ritualmente enquanto oferenda central que participa da economia da devoção. Assim, os frequentadores de seu túmulo costumam deixar garrafas com água na cova ou “energizá-la”, com o contato, para em seguida fazer os usos mais diversos. Cabe ainda fazer um último comentário acerca dos bandidos santos tomando por base as elaborações póstumas acerca dos personagens, uma vez que são elas as responsáveis pela precária, porém necessária formulação de plausibilidade do culto. Se por um lado, quando vivos, os personagens são capitalizados bandidos, com fortes investimentos midiáticos e mesmo de circulação oral pública, por outro, quando visitados em suas tumbas nos cemitérios, são frequentemente reinterpretados e mesmo redimensionados enquanto benfeitores sociais. Aquilo que Freitas24 chama de Robin Wood dos pobres. Tanto Jararaca quanto Baracho, independentemente de seus crimes e feitos atrozes, podem ser relidos através do discurso da reparação quando distribuem aos pobres o que roubavam. Nesse sentido, equações similares se produzem nos processos de canonização das prostitutas ou mulheres Ibid

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de vida livre, como é o caso das personagens gaúchas. Elas também, apesar de seu estilo de vida, preocupavam-se com os pobres e eram sempre boas com eles. O território da santidade, portanto, se produz aqui numa complexa relação que envolve a conjugação de opostos: o bem e o mal. Se no caso dos bandidos santos a condição polarizada está evidente e salta aos olhos enquanto paradigma paradoxal, noutras situações esse sentimento só emerge numa instância secundária, pois exige especulações menos proeminentes. Essa reflexão inicial respalda a experiência com outra personalidade beatífica em solo natalense: a Cabocla. Em 2004, realizei uma primeira visita ao templo, localizado no bairro de Felipe Camarão, sem quaisquer fins definidos ou que estivessem para além da curiosidade antropológica. Quando o projeto de uma cartografia se delineou, compreendi, a necessidade de fazê-la constar ao lado das demais devoções que apresentava na pesquisa. Em linhas gerais, o que está retratado na narrativa mítica que enreda o culto é o episódio onde uma índia - cabocla - desgarrada de seu grupo e acompanhada de duas crianças, morreu naquele local enquanto buscava alimentos. As versões variam, mas, vale reter que desse episódio trágico teriam sido fincadas três cruzes para demarcar o local da tragédia. Consta também na memória local que, com o passar do tempo, as pessoas costumavam solicitar a intercessão da Cabocla como mediadora para questões de ordens diversas. Sendo atendidos em seus pedidos, esses populares começaram a depositar os votos em agradecimento aos milagres alcançados. Não tardou, ao cruzeiro foi acrescida uma ermida e, anos depois, ambos seriam fundidos numa única edificação mais ampla, a capela da Cruz da Cabocla. No caso desse culto é interessante perceber que sua emergência e dinâmica se ligam diretamente com os processos de desenvolvimento do bairro onde se localiza, pois alguns indícios apontam que a Cruz da Cabocla é provavelmente um dos primeiros marcos religiosos da comunidade de Felipe Camarão. Embora essa hipótese seja forte, existe uma tensão liminar que faz estremecidas as relações entre um culto de natureza popular e os valores institucionais. Isso se apresenta no investimento em um personagem canônico como estratégia de obscurecer o culto ao personagem híbrido, de forma que, a Cabocla não apenas disputa o espaço físico, mas também simbólico com Santa Luzia na capela. As relações de tensão com o universo institucional não 37


são, todavia, prerrogativas exclusivas da Cabocla. Na verdade, em praticamente todos os cultos até então listados as formas de diálogo entre Igreja e povo costumam mobilizar interpretações dissonantes ao passo que também geram disposições distintas. Embora o plano do conflito esteja em evidência, pois as falas acusatórias sempre emergem nos discursos, as relações de cooptação são um dado inequívoco. Basta ver que Mártir Francisca, numa manobra eclesiástica, foi associada ao especular canônico Santa Maria Goretti, enquanto a presença mística da Santa Menina foi costurada e emaranhada à de Nossa Senhora das Graças. Esses impulsos associativos, nem sempre partem do interesse institucional. Por vezes, a conjunção é processualmente estabelecida na piedade popular com os nexos que fazem ligar o santo local às personalidades canônicas. Resgatadas as informações que emergem em um misto de dados etnográficos e informações de pesquisas em diversas fontes, passo agora à apresentação dos últimos santos que recupero exclusivamente através de notas pinçadas em trabalhos acadêmicos e em artigos jornalísticos. Como apresentei na introdução, essas notas nos servem enquanto dado cartográfico, com o objetivo de revelar uma disposição das ocorrências na geografia do Estado, contudo, elas não serão alvo de discussão mais sistemática. No trabalho de Veríssimo de Melo25 estão arroladas algumas devoções presentes naquilo que ele indica como cruzes e cruzeiros, ou ainda, capelas. Embora muitas delas não possam evidentemente ser distinguidas em forma do que aqui estamos chamando santos locais, para não haver qualquer perda significativa disponho na tabela todas aquelas que possam apresentar indícios do que estamos tratando: Quadro 1 - Relação das devoções que podem ser indicativas de culto a santos locais, produzida por Veríssimo de Melo Município Angicos (Vila de Fernando Pedroza) Areia Branca Arês Campo Redondo Canguaretama

Devoção Capela de São Joaquim Capela de São Francisco das Chagas Santa Coluna Cruzeiro dos Freires Capela de Cunhaú 38


Carnaúba dos Dantas Carnaubais Coronel Ezequiel Cruzeta Florânia Japi Lages Lages Pintadas Natal Natal Passagem Patu Santo Antônio São Bento do Trairi São João do Sabugi São José do Campestre São José de Mipibú São José de Mipibú São Pedro Tenente Ananias

Monte do Galo Cruzeiro em Porto do Mangue Cruzeiro no Sítio Papagaio Cruzeiro das Almas Capela da Cruz de José Leão Cruzeiro Capela da Santa Cruz Cruzeiro milagroso Pe. João Maria Santa Cruz da Bica Capela na comunidade Seixo Serra do Lima Pe. José Luiz da Cerveira Cruzeiro no Sítio Serrote Cruzeiro na Serra do Sabugi Cruzeiro do Outeiro da Cruz de Pedra Santa Cruz de Gervásio Cruzeiro na propriedade Morgado Santa Cruz do Monte Mártir Francisca

Embora muitas das devoções listadas por Veríssimo de Melo se localizem apenas como formas de piedade popular motivadas e fomentadas por iniciativas locais que podem não refletir a realidade sobre a qual estamos nos atendo, é importante ressaltar dois dados: tanto a presença quanto a ausência de alguns cultos sobre os quais nos ocupamos nas notas etnográficas listadas em nossa pesquisa. Isso revela a intensa dinâmica dessas devoções. Assim, vale perguntar por que é que Veríssimo dá conta de uma devoção em Tenente Ananias, distante muitos quilômetros de sua sede de pesquisa, mas não indica quaisquer vestígios da Cabocla que está abaixo de seus olhos, em Natal? Também, porque ele omite algumas importantes devoções que já existiam estruturadas com capelas na época de seu levantamento ou pelo menos eram exploradas no imaginário popular, como é o caso da Santa Menina ou mesmo das Covinhas. O que acontece nessas situações de forma que esses cultos não aparecem listados nos mapeamentos feitos pelo etnógrafo potiguar? Ainda um importante dado aparece nos registros de Ve39


ríssimo de Melo, é a devoção a Gervásio em São José de Mipibú. Embora ela aparente ser mais uma dentro de um universo extremamente diversificado, algumas informações preliminares levam a crer num aspecto distintivo desta em relação às demais. A história de Gervásio, dentre as mapeadas, é a única no Rio Grande do Norte que se liga ao ciclo da escravidão, não encontrando registro ou indício de qualquer outra dessa natureza nesta cartografia. Pelas exíguas informações a respeito, Gervásio seria ou um escravo ou um feitor que se implicaria num episódio de conflito com um oponente em razão de ter mandado/resistido a uma jornada de trabalho em dia impróprio, um domingo ou dia santo talvez. Desse incidente, Gervásio morre e sua cruz passa a ser considerada milagrosa. De fato, as informações coletadas eram titubeantes, mas há indícios de que essa narrativa seja exemplar de uma realidade histórica que não se apagou da memória e cultura locais. Encerro esta seção das mitologias mínimas apresentando as demais devoções que mapeei através de registros em fontes secundárias. Com isso, logo adiante ofereço o produto da cartografia na forma de um mapa das ocorrências inventariadas. E se os resultados da cartografia podem ser aqui ditos encerrados, a exploração etnográfica, propriamente, segue em um movimento constante de descobertas a partir de encontros fortuitos que, tal como durante a pesquisa, vira e mexe nos aparecem a partir de encontros pessoais e, mais recentemente, por meio da internet e das redes sociais.

Quadro 2 - Relação de devoções espaços de culto registradas em fontes secundárias 40


Município

Santo/ Local Sagrado

Joana Turuba Carnaúba (Vila de dos Dantas Fernando Pedroza)26

Cova da Nega27 Carnaúba dos Dantas Cemitério do Riacho Fundo28

Circustâncias Vítima de catapora ou bexiga verdadeira, Joana Turuba foi privada do convívio social, vivendo no isolamento até seus últimos suspiros. Quando morreu também não lhe foi permitido o sepultamento no cemitério, em razão do temor de contágio. Posteriormente, no local de seu sepultamento são registrados episódios onde sentia-se um forte odor de rosas. Sem demora, moradores locais passam a fazer pedidos e promessas e disso decorre a construção de uma capela dedicada à Santa Rita de Cássia, personagem que acompanhava Turuba em seu isolamento. Nesse local estão guardados os restos mortais de uma escrava pertencente à casa-grande de José da Anunciação Dantas, criador de gado que viveu na região, no século XIX. Duas versões existem para a morte, numa a escrava teria morrido numa epidemia de cólera, enquanto noutra, mais recorrente na tradição oral, o fazendeiro teria matado-a por pura maldade. Local onde estão enterradas as vítimas da cóle� ra morbus que residiam naquelas imediações. Os restos mortais encontram-se cobertos por pedras e cercados por uma antiga parede de alvenaria. Há um fluxo de moradores para realizar e pagar promessas.

DANTAS, M. I. Do monte à rua: cenas da festa de Nossa Senhora das Vitórias Dissertação de Mestrado. Natal: UFRN/CCHLA/PGCS. 2002. 27 Ibid 28 Ibid 26

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Cemitério Carnaúba das Cruzes dos Dantas Redondo 29

Cova do menino30 Carnaúba dos Dantas

Nele encontram-se sete sepulturas, cobertas com pedaços de rocha, com sete cruzes, pertencentes todos à uma mesma família, da qual apenas uma pessoa sobreviveu. Todos morreram vítimas de bexiga e são reconhecidos no imaginário dos moradores locais como mártires. Considerado sagrado pela comunidade, o santuário recebe peregrinos da região que buscam resolver, por intermédio dessas almas milagrosas e abandonadas, problemas materiais e espirituais, oferecendo como dádivas, peregrinações rezas, velas e cruzes de madeira ou de gesso, que contêm o nome do pedinte e que são depositadas junto às sepulturas. As promessas são pagas com sete peregrinações consecutivas, às sextas-feiras, acendendo sete velas a cada dia. Contam que um dia um homem assassinou um menino sem qualquer motivação aparente. No local, plantou-se uma cruz na qual se depositam pedras e se realizam rezas para a alma da criança. São pedidas graças e intercessões no lugar.

Teria sido escravo do Alferes Manoel Avelino Dantas, criador de gado da região, no século XIX. Um certo dia, quando ele cavalgava em Cova do alta velocidade numa besta brava, ao pastorear Negro o gado do fazendeiro, sofreu um acidente, que Maurício31 resultou no estrangulamento e degola, a partir dos galhos de uma catingueira - árvore nativa. Ele foi enterrado no local e depois de alguns anos o lugar passou a ser considerado sagrado.

Ibid Ibid 31 Ibid 29 30

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Zé Nicácio sofria de um retardo mental e um dia, quando estava numa bodega da comunidade, fizeram uma mistura de “cachaça, creolina e raspa de unha”, oferecendo para ele tomar com o objetivo de matá-lo. Mesmo resistindo, obrigaram-no a tomar todo o líquido. Além da bebida, que aos poucos foi fazendo efeito, esZé Lagoa Nova Nicácio 32 pancaram-no e pisotearam seu corpo. Depois de enterrado, passado certo tempo, o corpo foi exumado, quando constatou-se tratar de um corpo santo, portanto, sujeito que a morte transformou em divindade. Nos relatos ainda aparece a imagem de desconhecidos que teriam vindo buscar o tal corpo santo, levando-o para Roma. Existia no lugar um bravo vaqueiro, honesto e trabalhador. Um dia, vagando pelas matas à procura de animais, sofreu uma queda, que o impossibilitou de andar, daí definhou até a morte. Depois de percebida sua ausência, outros vaqueiros saíram em sua busca, identifiAlma de cando o local de sua morte devido um forte Cerro Corá Vaqueiro 33 e agradável cheiro que seu corpo exalava. Ao encontrarem o corpo, viram que ele não tinha qualquer traço de decomposição. A alma do vaqueiro resistiu na memória local como intercessora milagrosa, embora, pelo que o texto indica, não há qualquer indício de marco ou capela que registre sua morte.

SILVA JUNIOR, O. F. (Re)construção imaginária do território: uma análise da formação identitária da Serra de Santana. Natal: UFRN-CCHLA-PPGE. 2005. 33 Ibid 32

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Ao dirigir-se à casa de uma pessoa da comunidade para buscar o leite, Maria de Lourdes, ainda uma menina de 9 anos, teve seu trajeto interrompido quando foi atropelada por um caminhão que transportava algodão para uma empresa de beneficiamento da cidade. A forma trágica como o acidente se deu, esfacelando a cabeça da criança, chocou a população e entre discursos que iam desde a simples especulação até o relato de sonhos e presságios, emergiu a imagem da criança enquanto santa. Não demora, o local de sua morte passa a ser reconhecido como lugar sagrado, enquanto a criança assume poderes taumatúrgicos, demonstrados com o acendimento de velas e a deposição de Jardim do Menina da ex-votos. Ao dirigir-se à casa de uma pessoa Seridó Cruz34 da comunidade para buscar o leite, Maria de Lourdes, ainda uma menina de 9 anos, teve seu trajeto interrompido quando foi atropelada por um caminhão que transportava algodão para uma empresa de beneficiamento da cidade. A forma trágica como o acidente se deu, esfacelando a cabeça da criança, chocou a população e entre discursos que iam desde a simples especulação até o relato de sonhos e presságios, emergiu a imagem da criança enquanto santa. Não demora, o local de sua morte passa a ser reconhecido como lugar sagrado, enquanto a criança assume poderes taumatúrgicos, demonstrados com o acendimento de velas e a deposição de ex-votos.

SILVA, A. C., & AZEVEDO, I. N. A menina da cruz: culturas populares e práticas do crer no município de Jardim do Seridó. Caicó: UFRN-CERES-História. 2004.

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No ano de 1912, o jovem José Lucas, com 15 anos, tinha recentemente conquistado um trabalho como carregador no transporte de sal em uma empresa local; Ele foi atropelado pelo mesmo trole no qual trabalhava. Tendo saltado anteriormente à parada final do veículo, ele escorregou tendo sua cabeça esmagada. O crime chocou a comunidade local e a família erigiu em homenagem ao garoto uma cruz. Devido uma promessa feita por um popular, a cruz foi CanguareJosé tama Lucas35 substituída. Um dia, na casa dos pais do garoto, o primeiro obelisco começou a exalar um forte cheiro de flor de laranjeira. Logo identificada a procedência do odor, acendeu-se uma vela. Ao ter cessada a chama, a família percebeu que tinha sustado o perfume. A partir do episódio, a população começou a reconhecer José Lucas como personagem milagroso. Posteriormente, a cruz foi substituída por uma capela que abriga novenas, catequese e orações. Crime bárbaro que ocupou o noticiário local em abril de 1999, a menina Maranne foi vítima de abuso sexual e tortura pelo maníaco da bicicleta, como ficou conhecido seu assassino. No local onde foi encontrado o corpo, um maExtremoz Maranne36 tagal à beira da estrada de Genipabú, foi erguida uma ermida com uma cruz em homenagem à menina. Em seguida, as pessoas iniciaram diversas formas de piedade popular no local, como orações, acendimento de velas e deposição de ex-votos.

DINI, M. Fé cega: um novo santo em Canguaretama. Diário de Natal, 30/07/2000). pp. 17-20. 36 PIMENTEL, E. “Alminhas” homenageiam mortos nas estradas, tradição portuguesa. Tribuna do Norte, 20/05/2001. p. 6. 35

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Natal

Caicó

Até mais ou menos 1908, no cruzamento da avenida Presidente Quaresma com a rua Fonseca e Silva, no Alecrim, local denominado “Alto da Bandeira”, havia um simples madeiro tosco, cinforme, fincado na elevação do terreCruz do no. Toda a gente, no despovoado Alecrim, coAmaro37 nhecia esse sinal que denuncia assassinato ou morte por acidente. Sabiam todos seu nome e sua história muito simples apaixonou os velhos natalenses de outrora. Era a “Cruz de Amaro”. Foi um crime bárbaro, motivado por ameaça e contou com requintes de crueldade. Na ainda Vila do Príncipe, nos idos de 1842, Ana Freire de Brito, considerada uma santa já em vida, foi traiçoeiramente assassinada por um grupo de escravos a mando de seu senhor e esposo da vítima, Francisco Galdino. Registrou-se que o fazendeiro já caído de amores por outra mulher, de Campina Grande, premeditou o crime tentando casar-se com a outra. Não era a primeira vez que ele tentara o episódio, anteAna Freire riormente já havia feito sucessivas tentativas de de Brito38 envenenamento e tendo-as frustradas, maquinou o bestial assassinato do cônjuge. Os escravos confessaram o atentado, relatando ter asfixiado Ana Freire. A eles foi imputada a pena de morte, enquanto o mandante, temporariamente preso, conseguiu fugir e nunca mais se soube notícias precisas de seu paradeiro. Vale destacar, que esse episódio envolveu a primeira e única execução de pena de morte no interior da Província.

CASCUDO, L. d. O livro das velhas figuras: pesquisas e lembranças na História do Rio Grande do Norte (Vol. 1). Natal: Instituto Histórico e Geográfico do RN. 1974. 38 CASCUDO, L. d. Flor de Romances trágicos. Rio de Janeiro: Cátedra. 1982. 37

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Figura 1. Capela da Covinhas, série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 2. Cruzeiro das Covinhas, série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 3. Seu Bento (Raimundo Honório Cavalcante), série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 4. Panfleto das Covinhas, digitalizado, 2005.

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Figura 5. Cova e altar, série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 6. Retrato falado das meninas (tela encomendada por Seu Bento), série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 7. Meninas revisitadas, tela doada por romeiro, série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 8. Milagres(ex�votos), série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva. Figura 09. Mamadeiras(ex�votos), série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 10. Dia de festa, série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 11. Capela da cruz de Zé Leão, série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 12. Cruz de Zé Leão, série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 13. Monte das Graças, série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 14. Santa Menina ou Nossa Senhora Menina (escultura), série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 15. Memória da umburana (quadro com fotografia), série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 16. Troco da umburana, série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 17. Sala dos milagres, série Florânia, Florânia (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 18. Capela do Menino Zé ou Divina Santa Cruz, série Serra do Feiticeiro, Lajes (RN), 2008. Foto de Canindé Silva.

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Figura 19. Cruz, milagres e velas, série Serra do Feiticeiro, Lajes (RN), 2008. Foto de Canindé Silva.

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Figura 20. Pedras no caminho, série Serra do Feiticeiro, Lajes (RN), 2008. Foto de Canindé Silva.

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Figura 21. Capela de Maria Romana, série Maria Romana, Ipanguaçu (RN), 2007. Foto de Canindé Silva.

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Figura 22. Altar, série Maria Romana, Ipanguaçu (RN), 2007. Foto de Canindé Silva.

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Figura 23. Desbravar a serra (Irene van den Berg), série Serra do Feiticeiro, Lajes (RN), 2008. Foto de Canindé Silva.

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Figura 24. Pesquisa de campo (Irene van den Berg), série Covinhas, Rodolfo Fernandes (RN), 2005. Foto de Canindé Silva.

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Figura 25. O fotógrafo assistente (Francisco Canindé da Silva), série Serra do Feiticeiro, Lajes (RN), 2008. Foto de Irene van den Berg.

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03. O diacrítico dos santos locais: a morte

Embora situados em locais, tempos e condições distintas, todos os cultos dedicados aos santos locais têm em comum o fato de, em suas narrativas de origem, ser apresentado um evento trágico. Esse é, portanto, o elemento que define os personagens-santos inventariados: a morte. O episódio marca a condição de santidade do orago e culmina com as potências que o revestem de poderes taumatúrgicos. Nesse sentido, as situações-limite são objeto por excelência das narrativas, em cujo enredo os detalhes de violência, crueldade e/ou sofrimento reforçam a condição de beatitude dos personagens. Aliás, é apenas pela condição extraordinária de sua morte que é possível passar de uma situação indiferenciada em vida para a de um morto muito especial39. Disso, já ensaiamos mais uma das respostas às questões que nos moveram inicialmente: os mortos especiais não são mortos ordinários e é esse fato que os distingue. Assim, o que faz os santos locais personalidades excepcionais não é a princípio a vida, posto que são “indiferenciados”, mas é o momento da morte que revela sua distinção. Do momento da morte ao reconhecimento das qualidades que os atestam “promotores de milagres”, os mortos especiais vão experimentar um certo intervalo temporal e alguns caminhos distintos, entretanto, todos são reconhecidos em suas “ações” numa franca associação com o modelo de mediador cristão. Muito embora os mortos especiais acumulem as marcas distintivas que os relacionam ao martírio, o santo popular é muito mais reconhecido pela condição de seus poderes e suas faculdades que mesmo por ter a outorga de uma insígnia. Assim, serão raros os casos em que um santo local, nos discursos dos seus próprios de-

BROWN, P. Le culte des saints. 1984.

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votos40, aparecerá como o vocativo “santo”41. O que está em jogo não é a patente, mais associada aos cultos institucionalizados, e sim a eficácia que se ratifica em razão do caráter milagreiro, intercessor ou protetor do orago. Nesse movimento, não é pelo fato de ser santo que o morto opera milagres, antes a equação popular se resolve no sentido inverso: é pelo fato de curar, de pressagiar, de interceder, de promover graças que o orago é santificado, sem com isso precisar ser chamado “santo”. Esta condição está, portanto, implícita. Na verdade, os mortos especiais aqui chamados santos locais são assim definidos mais por sujeitos exteriores, que propriamente por seus devotos. Esses preferem defini-los como “milagreiros”. Inevitavelmente, entre os qualificativos atribuídos a esses personagens a santidade vai figurar apenas como um designativo que se equivale a tantos outros – forte, poderoso, protetor, mediador etc. Essa postura revela o artifício popular no qual o reconhecimento da condição exemplar e taumatúrgica está dissociado de uma estrutura institucional, a qual dispõe critérios formais para atestar a legitimidade dos oragos. Em oposição aos lugares “definitivos” dos santos oficiais, a religiosidade popular joga com seu caráter de inacabamento, permitindo aos personagens que ela fomenta uma atualização na qual eles são reinventados constantemente. Não obstante, reconhecendo a limitação que a nomenclatura oferece, em relação à definição destes personagens no universo onde são produzidos, recorro ao designativo “santo” por entendê-lo como categoria genérica que possibilita reunir os diferentes casos analisados e que se alinha com a terminologia sob a qual tradicionalmente se sedimentou a produção acadêmica a respeito da temática. Além disso, a expressão não é de todo forçada, pois espelha atributos pelos quais os personagens são reconhecidos em seus respectivos contextos, pois os personagens milagreiros são equivalentes, em suas funções, ao que se atribui aos santos institucionalmente. No trabalho de Freitas (2006) ela indica que no processo de pesquisa nos cemitérios era muito comum que os frequentadores do culto se furtassem a assumir publicamente o reconhecimento da santidade dos bandidos-santos. Antes, eles preferiam atribuir ao anonimato a condição em questão, com frases prontas tal como dizem que é santo. Com essa saída, era possível isentar-se de qualquer responsabilidade a respeito da definição do que realmente seriam Baracho ou Jararaca. 41 De todos os casos pesquisados apenas o da Santa Menina de Florânia tem essa insígnia acionada como revela seu cognome e subliminarmente Mártir Francisca, pois opera linguisticamente com o veículo da santidade. 40

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Em suas biografias, os santos locais são sujeitos comuns que, quando muito, espelham personagens ordinários das realidades nas quais se situam, acumulando ao longo de suas trajetórias terrenas valores situados numa lógica social que oscila entre positividade e negatividade. Em geral, são os acontecimentos em torno de sua morte que permitem elevá-los ao estatuto de santos, condição alçada pelo fato de eles protagonizarem um evento trágico. Assim, o curso da existência terrena interrompido violentamente confere ao falecido um status diferenciado. Essa distinção se constrói tanto no imaginário quanto nos discursos sociais que mobilizam valores de uma “economia da vida e da morte” a qual confere papéis, tempos e espaços especialmente alocados para cada sujeito social. A morte, enquanto fenômeno complexo, envolvendo aspectos diversos no âmbito da cultura, da sociedade e do tempo histórico em que se situa, é um marcador que define atitudes, representações e produção de discursos. Não por acaso, a morte e o morrer passaram a ser tema de interesse recente dos historiadores. Sem embargo, pensar a morte exige cautela, pois como um fato social total, ela participa de um comércio que faz cambiar várias instâncias da vida dos vivos. Nesse sentido, o modelo que propõe Vovelle42 pode ser útil para pensar a morte enquanto problema amplo que ele desenvolve a partir de três níveis. Como o autor afirma, “o primeiro nível impõem-se por si mesmo: o fato concreto da morte”. É a morte sofrida. Nesse plano, estão em jogo os parâmetros que distinguem o morrer desde a estratificação etária, de gênero e social, até as formas de sentir esse morrer. A morte atua como “revelador metafórico do mal de viver”43, pois evidencia os componentes sociais da desigualdade, além da desigualdade sentida no morrer. Homens, mulheres, crianças, pobres e ricos, não são vistos de modo equivalente no momento da morte e isso revela os valores que se atribuem à condição do existir vivente. A clivagem que se estabelece nesse nível considera aspectos que informam mais sobre a vida, que

VOVELLE, M. A história dos homens no espelho da morte. In: H. BRAET, & W. VERBEKE, A morte na Idade Média. São Paulo: Edusp.1996. pp.11-27. 43 Ibid, p.26.

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sobre a morte44. Também as representações que cercam o morrer em torno do que é uma morte boa ou má, definem o estatuto do morto, mas principalmente seu destino póstumo. A isso se vinculam, especificamente na cultura brasileira, juízos que avaliam as mortes e os mortos que carecem de atenção especial. Dentre esses, os santos locais são aqueles que tomam evidência pública, uma vez que seu tratamento diferencial assume os contornos de culto coletivo. É na perspectiva do culto e do ritual que se enquadra o segundo nível de que fala Vovelle: “a morte vivida é muito simplesmente um complexo de gestos e ritos que acompanham o percurso da última doença à agonia, ao túmulo e ao além”45. Não obstante, é evidente que esse plano se vincula necessariamente ao primeiro, pelo fato de deliberar acerca das práticas funerárias que envolvem a fortuna do morto, bem como as obrigações individuais e coletivas para com ele. Assim, é na morte vivida que se refletem plenamente as relações mais contumazes das quais participam inexoravelmente todos os grupos humanos. Neste momento, estão projetados os valores e as práticas que definem as expectativas do além, mas, de maneira mais intensa, os processos de continuidade do viver. Não por acaso, tanto os mortos perigosos, como os santos locais, dado seu caráter ambíguo, pedem Pensando a partir da situação observada nas montanhas colombianas, Alvarez (2001) apresenta as diferentes reações mediante a morte a partir dos sujeitos sociais que estão em evidência: os mortos. Ele indica como em cada situação a forma e razão de morrer, além dos vínculos sociais do morto, colaboram definitivamente com as demonstrações de solidariedade local: “a comunidade, através de diferenças qualitativas e quantitativas nos ritos fúnebres, julga o significado social do morto e de sua morte. Ela expressa seletivamente, na sua solidariedade, um julgamento social acerca do defunto. Com isso, a morte de patriarcas políticos ou mesmo de homens que são acometidos pela tragédia assume grandes proporções, de sorte que o tratamento destinado a esses homens equivale à glória atribuída no caso dos heróis. Nesses sepultamentos, Alvarez registra que há uma participação massiva da comunidade, além da comensalidade e da presença dos mariachis, que revelam uma condição de status ao féretro. Nos casos de suicídio feminino há um contraste extremo quanto à participação da comunidade. Nessas situações, a morte é vista como um ato de egoísmo extremo e faz aflorar as disputas interpretativas acerca do morrer, as quais revelam uma tensão de gênero fortemente enraizada nas desigualdades entre homens e mulheres e na violência doméstica. Os casos que envolvem sepultamentos de justiçados da guerrilha não articulam muitos convivas, como também pouco se fala, uma vez que o poder dos grupos do narcotráfico tem uma ação agressiva na região. Valor intermédio é o caso dos idosos que morrem de morte natural. Em seus sepultamentos são evidenciados o caráter de reverência em relação aos mais velhos, contudo, o status de heroísmo não lhes está reservado. Ainda em relação às percepções sobre a morte é interessante o estudo que produz Vailati (2002) acerca das repercussões que assumem os funerais de Anjinhos no século XIX, no Brasil. 45 VOVELLE, M. Op.cit. p.13

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rituais elaborados, fórmulas contínuas, orações e preces, ofertas e cuidados, de modo a circunscrever sua presença no mundo, sobremaneira, nos locais que se vinculam à sua memória. As mortes, sofrida e vivida, contudo, não se reproduzem de forma aleatória, mas são carreadas na esteira de construções discursivas que amparam sua percepção, além do que têm definidos os dispositivos práticos que o evento exige. Disso se depreende o terceiro nível: o discurso da morte. Nele, conjugam-se os repertórios sociais e históricos que legitimam os juízos sobre a morte, o morrer e os mortos, atribuindo valores e relações que traduzem uma alteridade dos vivos, ou melhor, projetam os viventes e suas relações no além. Embora os discursos, juntamente com as formas de morrer, as instituições e os rituais, evoluam na história e nas culturas, dando margem, contemporaneamente, a modos mais “objetivos” de enfrentar a morte - o discurso médico, o hospital, as formas de luto, entre tantos outros dispositivos46, ainda é muito forte nas culturas tradicionais, como a brasileira e nordestina, as percepções mágicas e sobrenaturais acerca do evento e seus personagens, além dos desdobramentos, prescritivos e interditos que cercam o morrer. No caso dos santos locais, o discurso e o ritual demonstram a centralidade das percepções tradicionais do morrer e a emergência dos cultos nada mais é que a demonstração da relevância que a morte assume na existência terrena e das relações que ela fomenta. Como já mencionado, a morte não é representada de maneira uniforme, mas existem rupturas nas percepções sobre esse acontecimento. Há mortes que são consideradas boas ou naturais e para as quais se orientam os rituais habituais que se destinam à salvaguarda da alma e à memória do morto. Noutras situações, os acontecimentos em torno da morte corporificam um quadro diferencial que impele os sujeitos a enfrentá-la com maior circunspecção. Fazem parte deste seleto grupo as mortes que envolvem acontecimentos trágicos, com violência extremada e, eventualmente, explícitas demonstrações de altruísmo por parte do moribundo. Nessas situações, os mortos são percebidos de forma ambígua, além do que os espaços que demarcam a tragédia, amiúde, são investidos de poderes especiais, igualmente dúbios. Com ARIÈS, P. História da morte no ocidente: da idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro. 1975; ELIAS, N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001.

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vistas ao ordenamento do que foge ao controle, à regra da morte boa, são elaborados procedimentos específicos como a demarcação do espaço, frequentemente, chantando cruzes e cruzeiros, a fim de marcar o desnível do espaço – agora um espaço sagrado – bem como as demandas rituais consequentes disso. Cabe destacar que nem todos os cruzeiros assumem a condição de milagrosos, como é o caso daqueles dos santos locais, mas o simples fato de erigir uma cruz ou uma capela das almas ou alminhas, como são conhecidas essas construções, implica desde já uma percepção diferenciada do espaço. Embora o espaço e seus símbolos atuem como marcas visíveis do sagrado, da hierofania47, é no âmbito das representações – e dos discursos que as revelam - e das prestações rituais que a memória do sagrado se ativa e se atualiza. Operativamente, elas emergem de acontecimentos misteriosos ou presságios interpretados, como sinais da ação do morto, por meio dos corpos secos ou da incorruptibilidade dos corpos, dos invultamentos de corpos e imagens sagradas, dos odores característicos - frequentemente de rosas das rachaduras de sepulturas, dos sonhos e das visões ou visagens que os mortos protagonizam com os vivos etc. Além disso, as ideias de deambulação das almas errantes ou penadas e a comunicação e a ação entre mortos e vivos encerram a dinâmica entre os mundos temporal e atemporal. Com isso, instaura-se a urgência em corresponder com as expectativas do outro mundo, realizando prestações rituais, as quais, no mais das vezes, deságuam na emergência de cultos mais sistemáticos. Assim, é comum que o culto aos santos locais se inicie a partir de eventos extraordinários que se produzem a partir das rotinas ordinárias do zelo com o morto e com o seu lugar de morte. As percepções e as disposições culturais acerca da morte se originam da antevisão do homem sobre sua condição perecível. Ao antecipar esse acontecimento, as culturas projetam interpretações para explicar a morte, construindo explicações plausíveis de acordo com suas cosmologias e universos simbólicos, e, com isso, tencionam enquadrar a imponderabilidade do caos. Esse exercício, refundido nas distintas culturas históricas, cruza valores e disposições que articulam práticas e crenças sobre as quais redundam nada mais nada menos que as relações entre ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes. 2001

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vivos e mortos. Schmitt48 resume essa assertiva dizendo que “os mortos têm apenas a existência que os vivos imaginam para eles”, decorrendo desse episódio uma estreita relação de solidariedade entre os viventes e as construções sociais especialmente elaboradas para abrigar os mortos, sejam tempos, espaços, formas, discursos etc. Com isso, os homens constroem a partir de seus referenciais culturais e históricos as percepções de uma vida no além, cujo sentido é situar objetivamente a si e aos seus mortos numa comunidade de destino. É patente, o fato de que a vida continua após a morte, pelo menos a existência concreta que os vivos oferecem como legado aos mortos, fazendo-os lembrados em sua condição no além. Esse exercício se corporifica em investimento social o qual se justifica pela necessidade humana de explicar e classificar os fenômenos que envolvem a realidade. Nesse sentido, a construção de categorias e de classificações se orienta no sentido de edificação social de referências para a experiência da vida em sociedade49. Portanto, o fato de destinar aos mortos lugares e formas particulares se assenta na condição antropológica de ordenamento social, o qual se realiza em oposição à ameaça do caos. Os discursos sobre a morte e os mortos, portanto, nada mais são que o exercício do controle social, forma de assegurar a estabilidade dos próprios vivos, já que aqueles que partem não devem voltar ou se voltam devem ter seu retorno circunspecto sob formas bem particulares de aparição. Dentro desta lógica, que dirige a gramática da morte, edificam-se os sentidos que ela instaura. Dentre eles, está aquele que segmenta os mortos. Assim, os mortos comuns participam da lógica geral que lhes assegura um lugar partilhado na memória doméstica do grupo social de pertença, enquanto os mortos especiais ganham vulto público e participam de outros esquemas sociais que investem e reforçam seus qualificativos diferenciais. Esses mortos passam à condição de mortos públicos50 em oposição aos mortos privados e isso se produz a partir de uma cultura que valoriza a relação de cuidado com os mortos. Nessa medida, os mortos públicos, frequentemente desgarrados sociais, destituídos que qualquer espécie de vínculo, mesmo aqueles SCHMITT, J.-C. Os mortos e os vivos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. 49 DURKHEIM, É. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes. 1996. 50 FREITAS, E. T. Memória, cultos funerários e canonizações populares em dois cemitérios no Rio Grande do Norte. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. 2006. 48

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mais elementares (familiares, por exemplo), são personagens que não tem quem por eles olhem, ou melhor, quem por eles orem e façam as prestações rituais esperadas postumamente. A adesão ao cuidado com esses mortos públicos, entretanto, não significa apenas solidariedade para com o morto, mas, principalmente, no caso dos bandidos e dos santos locais, representa proteção para os próprios viventes, uma vez que esses são mortos ambíguos e potencialmente capazes de fazer o mal. Embora concordante com as ideias de Freitas, no que tange à lógica do morto público, compreendo que há importância na condição da morte e do significado de seus personagens como fator decisivo para a assunção dos santos locais. Isso porque, diferentemente dos bandidos santos, que exigem uma alquimia discursiva cruzando morte e vida a fim de construir uma plausibilidade mesmo que precária para o culto, no caso dos santos locais, na medida em que a maior parte deles são personagens sem biografia, o que os faz ícones é especialmente a representação de uma condição: sofrimento, abuso, exploração, fatalidade, dominação. Enquanto os bandidos santos são personagens públicos, que por sua existência histórica, seja real ou ficticiamente construída, puderam ser nominados e reelaborados a partir de biografias que se entrelaçam com o legendário popular corrente – o herói dos pobres -; o santo local é comumente um personagem sem nome, sem biografia, sem vínculos, sem registros, quiçá, nem histórico é, apenas projeção lendária. Assim, o que os faz relevantes não é sua história, mas sua morte. É ela quem nos informa quem é o santo local e que mensagem ele veicula. Óbvio que especulações biográficas se constroem nas narrativas, inclusive porque são através delas que o culto respira, todavia, isso se desenvolve num processo bastante distinto daqueles cujos personagens se projetaram intensamente num cenário público de um tempo e um lugar históricos. Os santos locais, portanto, são construídos a partir dos lugares de sua morte, articulando evento e personagem no produto de uma condição subalterna. A partir desse entendimento, o santo local assume os contornos de um mártir social, pois sua morte trágica traz para o centro do foco não um personagem, mas uma questão social. Inevitavelmente, dentro de uma cultura personalista como a brasileira, o personagem cristaliza o acontecimento, porém, é sobre a condição que ele representa que estão mais fortemente expressas as chaves para a compreensão do culto. Dessa maneira, alguns 79


santos podem não ter nome, outros não têm vínculos, mas é justamente a partir dessas lacunas que eles se projetam: são anônimos, porque podem ser qualquer um. Eles são tão anônimos que, não fosse pela forma de suas mortes, passariam despercebidos como tantos em iguais condições. A compreensão, portanto, é a de que o diacrítico dos santos locais reside na morte, pois é ela que evoca a marca da distinção, a marca dos dilemas da subalternidade, bem como as sementes da subversão. Tal como a morte revela a marginalidade dos sujeitos, é em torno da memória do acontecimento que se tecem as malhas do inconformismo, mesmo que este se afirme em outro plano, seja na perspectiva do milagre, mediado pelo santo não autorizado, seja na certeza da justiça eterna, a qual virtualmente desde já se apresenta quando alberga na plenitude da santidade um pequeno, fazendo-o intercessor das causas de seus pares. Nessa medida, o santo local é o mártir, não aquele cristão que morria na defesa dos ideais religiosos, mas o inocente, o injustiçado, o explorado que, sem forças ou armas para combater, resigna-se heroicamente na condição de vítima extremada de uma ordem dominante.

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04. Considerações Finais

Os santos locais são construções coletivamente gestadas no âmbito de grupos populares que as produzem a partir da intersecção de uma identidade local e de classe em conjunto com a experiência do martírio, da qual resulta uma linguagem religiosa própria, objetivada em narrativas e em práticas, que veiculam mensagens de não conformidade com a ordem estabelecida. Embora nesta linguagem a alegoria principal ponha em curso elementos de natureza religiosa, com a centralidade na presença dos milagres, a mensagem subliminar se dirige ao ordenamento mais amplo da sociedade, envolvendo a contestação da estrutura social, política e econômica de natureza excludente e opressora. A singularidade da releitura do martírio é elaborada no interior da hagiografia popular, cujo enredo oferece como cenário questões que ultrapassam o terreno da religião: é a violência contra a mulher numa sociedade masculina e patriarcal, é a exploração do trabalho numa economia que fomenta desigualdades, é a pobreza em oposição à opulência, é a não posse mediante a concentração de poder. Os santos locais são os personagens que condensam, na condição ordinária do homem em suas respectivas comunidades e a partir de um processo identitário, os enfrentamentos e as expectativas locais como contraponto ao espaço polemológico das disputas sociais entre pobres e poderosos, o espaço utópico51. O culto ao santo local, portanto, fomenta questões existenciais nativas e por isso, mesmo mediante a desautorização ou desaprovação institucional, normalmente goza de credibilidade e se projeta num diálogo híbrido com os signos da religião formal. A teologia popular tem uma tendência à heterodoxia, fruto da recusa ao estatuto da ordem, mas também por formatar-se a partir de processos de conjunção e não de compartimentação. Com isso, torna-se possível forjar o santo local interceptando valores e símbolos de natureza cristã que se cruzam com as disposições interpretativas de uma mundividência encantada52, espécie de visão de mundo onde transitam entidades e poderes das mais diversas naturezas e cujo poder de interferência no curso dos acontecimentos é admitido enquanto certo pelos sujeitos partilhantes. CERTEAU, M. d. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 1994. HOEFLE, S. W. Mundividências encantadas e desencantadas no sertão do Nordeste brasileiro. Análise social. 1997. pp. 189-213.

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Dentre tantos aspectos partícipes dessa mundividência, as questões relativas às representações e às interpretações sobre a morte e os mortos emergem enquanto elemento de destaque, uma vez que esses personagens têm um papel ativo no interior das relações sociais na cultura nacional. Como afirma DaMatta, “no Brasil, a morte mata, mas os mortos não morrem”53, pois, a cultura brasileira se define dentro do que ele chama de uma sociedade relacional, cuja evidência se projeta muito mais nas relações que propriamente nos sujeitos/ atores. Com isso, os mortos se impõem de forma mais pujante que a morte54, de sorte que nem mesmo a decrepitude do corpo faz apagar as relações construídas no interior da intensa economia que liga os vivos aos mortos e vice versa. DaMatta realça um aspecto importante que se consorcia à ideia de espaço utópico de Certeau: é a noção de isonomia no outro mundo. Na verdade, quando o espaço do além aparece em evidência nas relações sociais gestadas na cultura brasileira, um traço marcante que a define é a do outro mundo enquanto território da esperança, naquilo que DaMatta diz ser um local de síntese, marcado pelo signo da eternidade e da relatividade, onde todos os desejos não realizados, pessoal e coletivamente, poderão, enfim, concretizar-se e tornar-se imperecíveis. A esses sonhos se vincula uma dimensão moral e ética que por sua vez aparece no discurso sobre os mortos, haja vista que esses já estão na intemporalidade e desde lá podem estar olhando para os que aqui permanecem. Além do que, é no tempo da zona eterna que todos os equívocos e males se desfazem, como a prova cabal de que sempre existe um outro lado das coisas. Mas esse outro mundo é também um espaço que demarca uma zona de incrível igualdade moral, pois no “outro mundo” tudo “será pago” e todas as contas irão se ajustar com honestidaDAMATTA, R. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Rocco. 1997. p.157. A prevalência da morte sobre os mortos, conforme DaMatta (1997), é marca das culturas modernas, pois requer a condição de individualismo presente na ética e nas instituições sociais próprias da modernidade. Assim, a morte só aparece enquanto um problema filosófico e existencial da modernidade, enquanto nas sociedades tradicionais, onde o indivíduo ainda não existe enquanto entidade moral autônoma de seu grupo, cabe uma preocupação mais acentuada em relação aos mortos. Daí é possível extrair, por exemplo, dentre os diversos registros antropológicos, os inúmeros casos em que há toda uma atenção, nas sociedades tradicionais, com os rituais que estabelecem e fixam os lugares e os tempos dos mortos, bem como as atividades dedicadas a eles.

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de. Essa honestidade que nem sempre é possível aqui na terra, onde os ricos e os poderosos sempre escapam e os “santos” estão sistematicamente “pagando pelos pecadores”. Mas no “outro mundo”, deste outro lado da nossa humanidade, existe uma verdadeira isonomia e todos são vistos e pesados pelas ações pelas quais realmente foram responsáveis aqui neste mundo.55 As imagens e os discursos que evocam a ideia de um espaço sobrenatural, o outro mundo, onde impera uma ética que não é aquela distorcida da qual se utilizam os dominantes, é elaboração frequente que se reflete nas concepções e nas práticas religiosas que se desenvolvem no seio das camadas populares. Mas, se, de fato, essas produções emergem enquanto possibilidades contra discursivas, ao mesmo tempo fica realçada sua condição precária, de modo que as vozes se multiplicam indefinidamente num processo contínuo de reelaboração a fim de assegurar uma plausibilidade mínima que dê sustentação ao objeto de culto. No caso dos santos locais, tanto a plausibilidade quanto os processos de elaboração discursiva que a ensejam se produzem a partir do território comum da narrativa da morte. É no episódio disjuntivo e, principalmente, nas especulações sobre ele que reside a chave de desenvolvimento para o culto, pois, é a condição da morte que sela o diacrítico do morto. Além do que, numa ordem em que impera o Deus estabelecido56, a presença da religião popular não se dá por outra forma que não seja a da precariedade e, nesse campo, se a construção do sagrado vigente, institucional, dá-se por meio do dogma, no caso das expressões populares ela se constrói através da lenda, elaboração de um sagrado alternativo que se articula no insólito jogo das justaposições e do imaginário. E tudo isso começa com a morte. Ibid, p.152. BENEDETTI, L. R. Os santos nômades e o deus estabelecido: um estudo sobre religião e sociedade. São Paulo: Paulinas. 1983.

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Figura 26. Mapa das devoções, figura elaborada pela autora, 2009.


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