A psicologia na politica para as mulheres em situacao de violencia

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Edufac 2016 Direitos exclusivos para esta edição: Editora da Universidade Federal do Acre (Edufac), Campus Rio Branco, BR 364, km 4, Distrito Industrial — Rio Branco-AC, CEP 69920-900 68. 3901 2568 — e-mail edufac.ufac@gmail.com Editora Afiliada: Feito Depósito Legal


Madge Porto

A PSICOLOGIA NA POLÍTICA PARA AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA: AVANÇOS E DESAFIOS

2016



A Psicologia na política para as mulheres em situação de violência: avanços e desafios Copyright © Edufac 2016, Madge Porto Cruz Editora da Universidade Federal do Acre - Edufac Rod. BR364, KM04 • Distrito Industrial 69920-900 • Rio Branco • Acre Diretor José Ivan da Silva Ramos CONSELHO EDITORIAL Adailton de Sousa Galvão, Antonio Gilson Gomes Mesquita, Bruno Pereira da Silva, Carla Bento Nelem Colturato, Damián Keller, Eustáquio José Machado, Fabio Morales Forero, Jacó César Piccoli, José Ivan da Silva Ramos, José Mauro Souza Uchôa, José Porfiro da Silva, Lucas Araújo Carvalho, Manoel Domingos Filho, Maria Aldecy Rodrigues de Lima, Raimunda da Costa Araruna, Simone de Souza Lima, Tiago Lucena da Silva, Yuri Karaccas de Carvalho. Coordenadora Comercial Ormifran Pessoa Cavalcante Editoras de Publicações Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio Jocília Oliveira da Silva Design Editorial AntonioQM FredericoSO Capa FredericoSO Ilustrações Wagner Porto (Mestre Parente. Garanhuns – PE) Revisão de texto Grassinete Carioca de Albuquerque Oliveira Ormifran Pessoa Cavalcante


À Socorro Porto (In memorian)... Gratidão e saudades! À Francisco Pereira... Por todos os anos de amor, companheirismo e de incentivo para a escrita de livros! À Dominique, Ewa, Iami, Alícia, Raoni Yô e Ana Carolina... Esperança de dias melhores!



Agradecimentos Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq À Profa. Dra. Júlia Bucher-Maluschke À tod@s que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho


Pelo fim de toda e qualquer violĂŞncia contra as mulheres!


Sumário PREFÁCIO.................................................................................................................15

ÀS LEITORAS E LEITORES: INICIANDO A CONVERSA..........................................18 1 O QUE DIZEM OS ESTUDOS SOBRE MULHERES, GÊNERO E PSICOLOGIA..27

1. A violência contra as mulheres e o atendimento psicológico........................30 2. Estudos de gênero e a violência contra as mulheres no Brasil......................35 3. Violência, mulheres e pressupostos psicanalíticos..........................................40 4. O atendimento psicológico como uma ação das políticas públicas para as mulheres em situação de violência: um processo de institucionalização........46 4.1. A experiência das/os psicólogas/os nos Programas de Atenção às Mulheres em Situação de Violência.........................................................................................52

2 SOBRE OS CAMINHOS PARA ALCANÇAR ALGUMAS RESPOSTAS....................65

1. A Análise do Discurso – AD: algumas considerações.....................................66 2. Estudo documental..............................................................................................70 3. Pesquisa de campo................................................................................................71


3 AS ORIENTAÇÕES DA SPM – DE UM SUPORTE ÀS PROFISSIONAIS À IDENTIFICAÇÃO DAS AMBIGUIDADES......................................................................75

1. As orientações da SPM: uma avaliação preliminar .........................................76 2. As orientações da SPM na avaliação de psicólogas..........................................87 2.1. O que dizem as psicólogas sobre os princípios e referências para a atuação com mulheres em situação de violência................................................................90 2.2. O que dizem as psicólogas sobre as técnicas indicadas para a intervenção em psicologia.............................................................................................................100

4 AS ORIENTAÇÕES DA SECRETARIA DE POLÍTICA PARA AS MULHERES PARA O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO: UM NORTE OU UM EQUÍVOCO?.................127

Para arrematar a conversa.......................................................................................133

POR FIM... ALGUMAS CONSIDERAÇÕES...................................................................141

REFERÊNCIAS .........................................................................................................151



PREFÁCIO O livro “A psicologia na política para as mulheres em situação de violência: avanços e desafios”, fruto da tese de doutorado de Madge Porto, que lhes apresento, vem cobrir uma lacuna nas pesquisas relacionadas às formas com as quais a questão da violência sofrida pelas mulheres vêm sendo atendidas nos dias atuais. Madge, conforme ela descreve sua trajetória nas primeiras páginas do livro e teve a ousadia de apresentar de forma crítica, conforme o título do livro indica, os avanços, mas também retrocessos no que concerne à atuação profissional junto às mulheres em situação de violência. Trata-se de uma obra produzida como resultado de uma pesquisa cuidadosa, realizada sobre tema relevante para os profissionais atuando nesta área. O texto apresentado abre caminho para uma reflexão sobre questões relacionadas à formação e atuação profissional, assim como aponta para o sofrimento psíquico daquelas que procuram os profissionais para aliviar as mazelas de suas vidas. O livro está estruturado em quatro capítulos, apresentando inicialmente um recorte sobre os estudos realizados sobre o tema mulheres, gênero e psicologia, enfocando o que a literatura aborda sobre o processo de institucionalização da psicologia como uma ação das políticas públicas para essas mulheres em situação de violência e apresenta a experiência dos psicólogos nos Programas de Atenção às Mulheres vivendo os dissabores da violência. Apresenta os resultados do estudo documental e da pesquisa de campo com uma reflexão crítica, indicando estereótipos e, sobretudo, sinaliza para dois aspectos cruciais observados na literatura atinente a este tema, o da capacitação das mulheres no enfrentamento do problema e a capacitação dos profissionais nas questões de gênero e no atendimento dessas mulheres. Embora sejam reconhecidas as tentativas de abordagem do problema, este livro apresenta questionamentos de grande importância para a reflexão da prática de psicólogos e de outros profissionais. Neste contexto, não podemos deixar de nos referir a Karl Popper, em

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seu livro Conjecturas e Refutações, quando nos diz que “... podemos aprender com os erros que cometemos... todo o nosso conhecimento aumenta exclusivamente por meio da correção dos nossos erros.” Recomendamos esse livro para os responsáveis pela formação das políticas públicas, os psicólogos, assistentes sociais, advogados, juízes e todos aqueles que desejam o aprimoramento das políticas, da formação de profissionais, de forma a atuarem dando maiores subsídios ao sofrimento dessas mulheres e seus familiares.

Prof. Dra. Júlia Sursis Nobre Ferro Bucher - Maluschke, professora emérita e pesquisadora senior da Universidade de Brasília.

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Às leitoras e leitores: iniciando a conversa Há 20 anos comecei trabalhando como psicóloga em um posto de saúde da Cidade do Paulista, em Pernambuco e, já naquele momento, começaram as inquietações sobre o papel que teria uma psicóloga em relação à política pública, no caso o Sistema Único de Saúde – SUS, que começava a se abrir para ações de psicologia. Assim, iniciei o trabalho tendo que responder a uma demanda de atendimento clínico e diante disso, algumas questões surgiram: como poderia utilizar dos instrumentos que estavam a minha disposição? Como relacionar meu trabalho com o trabalho dos/ as outros/as profissionais que lá também atendiam? O que faziam as psicólogas que também foram aprovadas no concurso e as que já estavam em atividade nas unidades de saúde? Naquela época, foi possível uma articulação entre as psicólogas que estavam espalhadas nos postos de saúde da cidade e formamos um grupo, o qual passamos a nos encontrar uma vez por mês para discutirmos as experiências vividas e propormos alternativas às dificuldades que se apresentavam (PORTO, 2000). Na trajetória dessa experiência de atuação e reflexão sobre a prática, uma questão começava a aparecer. Aos poucos, muitas das “dores da alma”, das depressões e ansiedades que chagavam ao ambulatório, frequentado majoritariamente por mulheres, estavam associadas à experiências de violência doméstica, familiar, conjugal, de gênero1. Na época ainda não sabia como classificar, mas já começava a identificar e perceber a presença de uma violência que não era verbalizada. Logo mais uma vez, uma inquietação, um desafio se colocava: o que fazer com essa questão, como psicóloga de um sistema público de saúde? 1 - Violência doméstica – que ocorre predominantemente na residência, mas pode se estender para a rua ou para o local de trabalho da vítima, envolve as pessoas que vivem no mesmo domicílio incluindo agregados/as e empregados/as domésticos/as; violência familiar ou intrafamiliar - que pode ocorrer na residência ou não, mas se dá entre os membros de uma mesma família; violência conjugal – a que ocorre entre parceiros/as íntimos; e a violência de gênero – que é a violência sofrida pelas mulheres, fruto da “subalternidade em que a divisão social do trabalho tem colocado as mulheres, em termos salariais, na educação dos filhos, nos direitos, entre outros” (CUNHA, 2008, p. 170). A violência de gênero teve seu conceito expandido de forma a agregar a violência sofrida também por lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros.

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Quais as razões da invisibilidade do problema? Esses questionamentos levaram ao estudo que desenvolvi no mestrado em saúde coletiva (PORTO, 2002, 2006a; PORTO, MCCALLUM, SCOTT, & MORAIS, 2003). O mestrado promoveu muitas mudanças, e, entre elas, uma modificação na trajetória de trabalho que se desenvolveu, até então, em Pernambuco, pois conheci um acreano em uma disciplina do curso com quem me casei e vim morar em Rio Branco. Assim, na nova cidade, comecei a trabalhar na gestão de políticas públicas para mulheres em situação de violência. Aqui, me deparei com a angústia de outras psicólogas que não sabiam o que fazer o que fazer, como fazer e qual seria o papel da “psicologia” nessa política (PORTO, 2006b, 2008). Dessa forma, os trabalhos de pesquisa com gestores/as da saúde (PORTO, 2002, 2006a; PORTO et al., 2003) e de atendimento psicológico de mulheres que sofrem violência nos ambulatórios do SUS promoveram a reflexão inicial sobre o atendimento psicológico a essas mulheres nos serviços especializados da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. No entanto, a experiência de supervisão clínica de psicólogas que faziam parte da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, em Rio Branco - AC, por meio da Roda de Conversa em Psicologia (PORTO, 2006b, 2008), fez perceber o quanto o trabalho com a violência desafiava as profissionais e o quanto as mobilizava intelectual e emocionalmente. Do ponto de vista político, essas reflexões partem de um ativismo feminista precoce, que foi se modelando durante o processo de análise ao qual me submeti por muitos anos. Por muito tempo, não me sentia à vontade como feminista entre as psicólogas, pois o feminismo2 ainda era um tema que não fazia ressonância na categoria, na época da formação e nos anos inicias de atuação profissional. Nesse sentido, como diferenciar as 2 - “O feminismo é uma filosofia que reconhece que homens e mulheres têm experiências diferentes e reivindica que pessoas diferentes sejam tratadas não como iguais, mas como equivalentes [...] As feministas denunciam que a experiência masculina tem sido privilegiada ao longo da história, enquanto a feminina, negligenciada e desvalorizada. Elas demonstraram, ainda, que o poder foi - e ainda é - predominantemente masculino, e seu objetivo original foi a dominação das mulheres, especialmente de seus corpos [...] O feminismo é, portanto, um campo político [...] embora tenha assumido variadas tendências. [...] o feminismo vem problematizando a si mesmo ao longo dos tempos, desde as doutrinas do feminismo original, em permanente (des)construção. As intersecções do feminismo com os movimentos de luta de classes configuram diferentes movimentos feministas, entre eles: o radical (inclui-se aqui o movimento de mulheres negras), o liberal, o socialista, o marxista e o anarquista [...] No campo teórico-epistemológico encontramos o empirismo feminista, o ponto de vista feminista e o pós-modernismo ou pós-estruturalismo feminista, corrente contemporânea do feminismo na qual se inscrevem os estudos de gênero[...] Houve, também, várias gerações ou várias fases no feminismo[...] Essas diferentes fases ocorreram em épocas distintas, historicamente construídas conforme as necessidades políticas, o contexto material e social e as possibilidades pré-discursivas de cada tempo [...] Não há, na atualidade, um só feminismo, unívoco e totalizante, mas vários feminismos[...]” (NARVAZ & KOLLER, 2006, p. 648-649).

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questões que eram caras às mulheres das que se referem a todos? Questionavam-me assim. Por outro lado, também não me sentia à vontade nos espaços feministas, pois era indagada sobre o machismo das teorias psicológicas, em especial, as teorias psicanalíticas. Nesses espaços, não havia possibilidade de discussão sobre a psicologia. Esta era vista como limitante, por ser psicologizante, e que, muitas vezes, colocava as mulheres como portadoras de transtornos psíquicos, quando a questão de suas dependência e submissão eram entendidas como social, histórica e cultural. É importante destacar que as relações de poder e submissão definem marcas subjetivas muito fortes, que marcam os corpos também, e são por essas definidas. Essas indagações começaram junto com a atuação profissional como psicóloga e, até hoje, fazem parte das reflexões realizadas sobre o trabalho desenvolvido em psicologia. Neste estudo me exponho como psicóloga e como feminista, na tentativa de defender que não há contradição entre o entendimento da violência contra as mulheres a partir da categoria de análise Gênero3 e o trabalho em psicologia que enfoque a subjetividade4 das mulheres, suas dores, contradições, medos e desejos. Diante disso, o objetivo deste estudo foi verificar como as psicólogas avaliam as orientações/normatizações para o atendimento psicológico, dentro da política pública especializada para as mulheres em situação de violência, que lhes são oferecidas pelas/os gestoras/es dessa política, tentando identificar se há alguma atribuição que só possa ser desenvolvida por psicólogas/os nas equipes multiprofissionais dessa política especializada. Com isso, não se quer negar a grande importância do movimento feminista e seus relevantes avanços, que trouxeram muitos ganhos para a vida das mulheres. Ao mesmo tempo, que não se quer negar a progressão da teoria psicanalítica, que também promoveu o estabelecimento de um 3 - “[...] utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo ‘gênero’ torna-se uma forma de indicar ‘construções culturais’ – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. ‘Gênero’ é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT, 1995, p. 75). 4 - “[...] instâncias psicológicas que compõem este sujeito: o psiquismo, a cognição, a ‘mente’, a consciência, a identidade, o self; mas também, as percepções, as interpretações, e uma certa dimensão ‘intrapsíquica’, das emoções, do desejo, do inconsciente” (PRADO FILHO & MARTINS, 2007, p. 14).

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lugar de sujeito para as mulheres a partir do fim do século XIX. Apesar da aversão de muitas feministas a essa teoria e concordando com estas que consideram o pai da psicanálise como um machista, que tentou reduzir as mulheres a um lugar “natural”, cuja única saída era a maternidade, não há como negar um tangenciamento entre esses dois movimentos: o feminismo e a psicanálise. Existe um paradoxo, pois Sigmund Freud, que deu voz às mulheres que queriam mais que a maternidade (KEHL, 2008) e que compreendeu que a subjetivação e as formas de sofrer são indissociáveis do social e da cultura (MENEZES, 2012), é rechaçado pelo feminismo. Entretanto, a teoria psicanalítica transcende o modelo e apresenta saídas positivas para os dois sexos (BIRMAN, 2002; KEHL, 2008), mesmo que seu criador, de fato, tenha defendido uma saída única para as mulheres – a maternidade, uma existência determinada pela natureza. Não se pode desconsiderar que Freud foi um homem do seu tempo, influenciado pelas referências da modernidade, as quais apresentavam um lugar específico e “natural” para as mulheres e que, segundo Kehl (2008), para ele foi melhor acreditar. O objetivo também, como feminista e psicóloga, é contribuir com uma avaliação crítica do que está estabelecido como forma de encaminhar as políticas públicas para as mulheres em situação de violência, sem desconsiderar o que foi realizado. As conquistas do movimento feminista são inegáveis, assim como as dificuldades também existentes nesse processo, dessa forma, fazer uma autoavaliação parece relevante para alguém que participa da construção do feminismo e da psicologia no Brasil. Dessa forma, há uma história longa de estudo e reflexões para chegar a essa proposta de análise sobre esse tema específico. Há um lugar político, social, histórico e pessoal de onde partem as inquietações e perguntas colocadas. E é considerando essa trajetória e esse contexto que a atual pesquisa se apresenta.

Para quê pensar sobre violência contra as mulheres e atendimento psicológico? A Roda de Conversa em Psicologia, já referida, iniciou-se com base nas orientações do programa de prevenção à violência da Secretaria de Política para as Mulheres - SPM (BRASIL, 2003a) para a capacitação/educação con-

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tinuada e supervisão das equipes cuidadoras. O trabalho foi operacionalizado com encontros quinzenais, no período de um ano, com as psicólogas da delegacia da mulher, centro de referência para mulheres em situação de violência, casa-abrigo, maternidade, Centro de Testagem e Aconselhamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis - DST e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida-AIDS e do Programa Sentinela (hoje chamado Centro de Referência Especializado de Assistência Social - Creas), com o objetivo de se discutir questões da saúde mental no contexto das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Esse formato inicial da Roda de Conversa em Psicologia foi fruto da experiência inaugural de supervisão clínica da psicóloga da Casa-abrigo Mãe da Mata de Rio Branco-AC, na época, no formato de intercontrole5. A casa-abrigo é um serviço especializado da rede de assistência às mulheres em situação de violência e tem como objetivo principal a proteção dessas mulheres e seus filhos/as quando estão em risco de morte. Nessa oportunidade, a intervenção psicológica realizada na casa-abrigo era discutida sistematicamente e as dificuldades eram muitas. Essa experiência apontou para a necessidade de se expandir a discussão para as outras psicólogas, que estavam, de alguma forma, também atendendo às mulheres que passavam pelo abrigo. A possibilidade de se discutir uma intervenção que considerasse o contexto da trajetória pelas mulheres percorrida, quando acionam as políticas de enfrentamento à violência, parecia cada vez mais viável e importante (PORTO, 2006). Politicamente, tinha-se como um dos objetivos da Roda de Conversa em Psicologia articular a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres e esboçar uma proposta de política de saúde mental, considerando esse tipo de violência e as diretrizes do SUS, principalmente, no que se refere à promoção e prevenção em saúde. Esse trabalho fomentou algumas perguntas, como: o que se espera da psicologia nesse contexto? Como essas profissionais são orientadas para 5 - Formato de supervisão na qual a supervisora, uma psicóloga mais experiente, faz parte da mesma equipe técnica da psicologia que faz os atendimentos e, por isso, não pode se colocar como um terceiro que observa o trabalho, como numa supervisão clássica. Sendo assim, oferece apoio à psicóloga que realiza os atendimentos a partir da apresentação e discussão dos casos atendidos e das situações de conflito na instituição. Um espaço para se falar das dificuldades e do sofrimento de se trabalhar com o sofrimento da violência contra as mulheres. Uma forma de oferecer espaço de fala para a profissional; avaliar o trabalho realizado, atentando para a transferência e contratransferência; e também realizar o acompanhamento do processo de cada mulher atendida no serviço, assim como, o processo desse atendimento para a psicóloga e para a supervisora. Por fim, um espaço horizontal de trocas com o objetivo de promover uma melhor qualidade do trabalho oferecido à população que acessa o serviço.

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a realização do trabalho? Como elas se sentem? Como realizam seu trabalho? Qual a relação que se estabelece entre os conceitos do movimento feminista e da psicologia? Diante dessas questões, apresenta-se como hipótese a de que as orientações da SPM não são suficientemente adequadas para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência, pois o conceito de gênero (SCOTT, 1995) – defendido por uma parte do movimento feminista e utilizado como referência para os atendimentos às mulheres que sofrem violência - não é suficiente para dar suporte teórico e técnico à intervenção em psicologia nos serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência, principalmente, porque aproximadamente 1/3 das mulheres que passam por esses serviços retornam às situações de violência (GARCIA, RIBEIRO, JORGE, PEREIRA, & RESENDE, 2008), apontando para o fato de que algo precisa ser revisto e avaliado nessas políticas. As orientações da SPM parecem afastar o trabalho das/os psicólogas/ os das teorias psicológicas e propõem a intervenção como algo que precisa seguir a proposta da não-psicologização do fenômeno da violência contra as mulheres, talvez porque a suposição é que necessariamente um/a psicólogo/a, quando trabalha, psicologiza o fenômeno objeto de sua intervenção. Estudos como os de Machado (2004), Oliveira (2004), Francisquetti (2005), Falcke e Wagner (2011) demonstram o esforço de psicólogas, que estão refletindo sobre o atendimento psicológico no contexto da violência contra as mulheres, a partir de diferentes pressupostos teóricos, destacando, de diferentes formas, que é preciso trabalhar elementos do sofrimento pessoal e das dinâmicas intrasubjetivas. É o que será apresentado mais adiante. Há uma ideia presente nos textos da SPM e do Conselho Federal de Psicologia – CFP, de que o trabalho de psicologia precisa considerar as questões sociais. Aspecto que não se discute, pois isso é necessário, sem dúvidas. Entretanto, esse paradigma vem trazendo alguns equívocos nas orientações das práticas em psicologia. Até que ponto há uma transferência de atribuições de outras áreas para a psicologia? No judiciário isso parece que se apresenta bem mais claramente com

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as questões do depoimento “sem dano” 6. É do/a psicólogo/a a responsabilidade de produzir provas para o processo? É mais relevante usar a preparação do/a psicólogo/a para acelerar o processo crime do que utilizá-la para acolher o sofrimento da criança? Qual profissional estaria disponível para ouvir o que a criança quer falar? É proteger a criança colocá-la frente a um/a psicólogo/a para que o juiz possa produzir uma prova e consiga julgar o agressor? Caso o/a psicólogo/a assuma esse papel, não haverá outro profissional capacitado, preparado para acolher a dor de quem sofre violência. A preocupação com o processo judicial de quem teve um direito negado é algo muito importante, isso não se discute, mas não pode ser mais importante que a pessoa, o seu sofrimento, pelo menos para as/os psicólogas/ os. O sofrimento e as emoções envolvidas, muitas vezes contraditórias, são relevantes e precisam de um lugar para sua expressão. Outro exemplo é a resolução 01/1999 (CFP, 1999), que define que homossexualidade não é doença e dessa forma não pode ser “curada”, contudo, isso não significa que o/a psicólogo/a não vá trabalhar, com aquele que desejar, o seu sofrimento diante de se identificar homossexual, mas não vai trabalhar para a reversão, para que se transforme em heterossexual. Embora exista quem defenda suspender essa resolução. Por fim, nessa perspectiva, também está a questão dos psicólogos/as nos serviços de saúde, onde se demanda que estes, por exemplo, deem a notícia de um diagnóstico difícil, pois “estão mais preparados”. Desse modo, o médico delega uma função que é sua e acaba com a possibilidade de o/a psicólogo/a funcionar como alguém que possa acolher, apoiar a dor e o sofrimento decorrentes da notícia, independentemente da teoria psicológica utilizada, mas atuando segundo a regulamentação da profissão, de suas atribuições específicas. Dessa mesma forma, está acontecendo, no judiciário, nos casos de violência contra as mulheres, pois, quando o/a psicólogo/a precisa dizer sobre os fatos da violência, quando funcionam como quem vai apurar a verdade para uma justa decisão do/a juiz/a, há a perda do lugar de quem pode acolher, apoiar a dor e o sofrimento de viver violência de gênero, doméstica, conjugal, com todas as características que esse tipo de violência 6 - Depoimento sem dano – quando psicólogos/as, e também assistentes sociais, são chamados a realizar audiências em salas preparadas para atender crianças e, a partir de seus conhecimentos técnicos, levar a criança a falar sobre o abuso sofrido a partir do que quer saber o juiz que dirige a audiência de outra sala.

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tem com suas contradições, seus desejos e sonhos. Há tempos e desejos diferentes nessa demanda da responsabilização criminal, da conscientização de direitos individuais e de falar sobre o sofrimento de perder o sonho do amor romântico, o “desejo” de viver um amor “verdadeiro”, ter uma família, ou qualquer outra questão. No entanto, no contexto do atendimento às mulheres em situação de violência, há uma referência para o trabalho considerando apenas as questões de gênero, do patriarcado. E algo se apresenta como se os atendimentos psicológicos não pudessem se desenvolver no plano da individualidade, do “mundo interno” (FREUD, 1938/2000), da subjetividade, no que se refere às dores e sofrimentos e os interesses e desejos, quando se vive determinada situação. Essa proposta pode ser colocada em termos de redefinir o que vem a ser um trabalho em equipe multiprofissional, identificando as funções de cada categoria profissional que faz parte da equipe. Isso, além de desconstruir a ideia que existe nesse contexto, a de que a psicologia é limitante por reduzir sua intervenção aos aspectos individuais, sem considerar o âmbito social. Outra questão importante a se destacar é a de que não se pode destituir as possibilidades de intervenção da psicologia porque a formação apresenta limitações ou porque alguns fazem mau uso de seus recursos e técnicas. Esse argumento não é suficiente. No que se refere à intervenção clínica nas políticas públicas para as mulheres em situação de violência, em especial para aquelas que, após passarem pelas ações padrão, continuam se submetendo à violência, retornando aos serviços da rede, reiteradas vezes, essa reflexão também se faz necessária. Não basta dizer que esse tipo de intervenção não tem lugar na política pública específica porque psicologiza o problema social, é preciso demonstrar que isso acontece considerando todos os possíveis fatores que influenciam esse resultado suposto. É preciso realizar pesquisas, estudos e indagar “... se suas técnicas estão sendo úteis e eticamente apropriadas aos setores sociais que consomem seus serviços” (PRIMI, 2010, p. 33). Só assim é possível promover um debate amplo. E é com essa inspiração que o estudo proposto se definiu.

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1 O QUE DIZEM OS ESTUDOS SOBRE MULHERES, GÊNERO E PSICOLOGIA

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino (BEAUVOIR, 1949b/s.d., p. 13).

[...] embora fosse impensável para Freud que a condição das mulheres no Ocidente pudesse vir a sofrer profundas modificações e com isto abalar os fundamentos da ‘natureza feminina’, a psicanálise foi uma das maiores responsáveis por essa transformação (KEHL, 2008, p. 257).

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Segundo Pinto (2003), o movimento feminista promoveu a construção de políticas de inclusão sociopolítica e valorização das mulheres ao longo do Século XX. Houve uma trajetória em que, numa perspectiva histórica, pode-se destacar dois momentos importantes: o feminismo do início do século pela busca da cidadania, representado pelo movimento sufragista, em uma luta pelos direitos políticos e, a partir de 1960, um novo feminismo, que se organiza em plena ditadura, a segunda fase do feminismo no Brasil. Na década de 1970, começaram a se formar os primeiros grupos feministas, que se encontravam para discutir as questões que lhes afligiam, em especial, o corpo, a sexualidade e o prazer. Eram grupos informais que se autoconduziam, até mesmo quando o objetivo era terapêutico. As mulheres que atuavam nessas atividades e atendimentos, ainda de natureza experimental e incipiente, eram as próprias feministas. Essas eram as mulheres conscientes de sua opressão, que precisavam trazer essa consciência para as outras mulheres. Para essas mulheres militantes, por muito tempo, “a vítima era, isso sim, a outra, aquela que não era feminista, aquela que não tinha cultura, aquela que não tinha condições econômicas” (PINTO, 2003, p. 81). Na década de 1980, novos temas passaram a despertar a atenção dos grupos de mulheres, agora mais organizados e autônomos, a violência e a saúde (PINTO, 2003). Nesse momento da trajetória, as feministas obtiveram conquistas importantes, na Constituição de 1988, e a efetivação das primeiras políticas públicas para as mulheres – as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAM e o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher - PAISM, por exemplo, (PINTO, 2003). Na década de 1990, vieram as casas-abrigo, os serviços de interrupção da gravidez, prevista em lei, e, mais recentemente, os centros de referência. No início do Século XXI, no Brasil, houve a criação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres – SPM – vinculada à Presidência da República, mediante a Lei n° 10.683, de 28 de maio de 2003 (BRASIL, 2003b), com sua competência detalhada no Art. 22, da Lei nº 12.314, de 19 de agosto de 2010 (BRASIL, 2010c): À Secretaria de Políticas para as Mulheres compete assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas para as mulheres, bem como elaborar e implementar

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campanhas educativas e antidiscriminatórias de caráter nacional, elaborar o planejamento de gênero que contribua na ação do governo federal e demais esferas de governo, com vistas na promoção da igualdade, articular, promover e executar programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados à implementação de políticas para as mulheres, promover o acompanhamento da implementação de legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem ao cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo Brasil, nos aspectos relativos à igualdade entre mulheres e homens e de combate à discriminação, tendo como estrutura básica o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o Gabinete, a Secretaria-Executiva e até 3 (três) Secretarias.” (NR) (BRASIL, 2010c).

Vale destacar que, na norma técnica de uniformização dos centros de referência para mulheres em situação de violência, de 2006, já havia essa mesma definição da competência da SPM (BRASIL, 2006b, p. 07), com exceção da definição da sua estrutura básica. Também houve a realização da I, II e III Conferência Nacional de Política para as Mulheres, em 2004, 2007 e 2011, respectivamente, e as publicações do I e II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, publicados em 2004 e 2008, respectivamente, ambos são fruto das conferências e servem de documento básico para a implantação das políticas específicas para as mulheres (BRASIL, 2004a, 2008). Por fim, o documento de referência mais recente, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011a). As demandas do movimento feminista, nesse contexto, ocuparam um importante espaço na estrutura do governo federal, passando da condição de propostas de orientações e referências do movimento social para as ações e políticas públicas, definidas como políticas de governo e de Estado, para as mulheres. Dentre essas, existem as orientações para os atendimentos às mulheres em situação de violência. Antes de apresentar os estudos relacionados à violência contra as mulheres e ao atendimento psicológico, é importante conceituar algumas das importantes categorias utilizadas neste estudo: violência contra as mulheres e psicologia. A violência contra as mulheres é entendida aqui como os vários ti-

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pos de violência que atingem as mulheres pelo fato de serem mulheres. É uma categoria cunhada pelo movimento feminista para apresentar as desigualdades na relação entre mulheres e homens (BRANDÃO, 1998). Os termos violência de gênero ou doméstica não contemplariam à discussão, pois ampliariam o debate por incluir a violência sofrida por crianças, idosos ou homossexuais, por exemplo, e poderiam favorecer a perda do foco dos atendimentos psicológicos às mulheres que sofrem violência e buscam os serviços especializados. A psicologia, por sua vez, é entendida como o estudo da subjetividade, que abrange o comportamento, a consciência, o inconsciente, as emoções, percepções, pensamento, sentimentos, aprendizagem, linguagem, memória, atenção, entre outros. Vale ainda destacar que as teorias psicológicas são determinadas pela visão de mundo e de ser humano de cada pesquisador/a ou teórico/a, que formula uma proposta explicativa, o que faz da Psicologia uma ciência complexa, baseada em pressupostos epistemológicos, muitas vezes, conflitantes e que não caminha para um consenso.

1. A violência contra as mulheres e o atendimento psicológico Oliveira e Souza (2006) apresentam um estudo sobre as concepções de gênero e violência conjugal entre psicólogos/as (nove: seis mulheres e três homens) que atendem mulheres e/ou homens em situação de violência conjugal em serviços especializados no Espírito Santo, concluindo que há “... indícios da utilização de uma perspectiva relacional na análise da violência entre cônjuges” (p. 44) e que: Se a violência conjugal é uma produção histórica sustentada por questões culturais que regem o funcionamento das relações, as diversas combinações entre afeto, valores, crenças e condições materiais devem ser investigadas. Quando apenas as mulheres são “acolhidas”, “fortalecidas” e “empoderadas” pelo atendimento psicológico, ou mesmo quando os homens são atendidos, mas unicamente na

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condição de agressores que precisam ser conscientizados para que outras mulheres não sejam violentadas, nos perguntamos: que violência está sendo trabalhada e que violência está sendo produzida pelos psicólogos? (OLIVEIRA; SOUZA, 2006, p. 46).

Diferente desses autores, Diniz (2011) apresenta a defesa da inclusão da ótica de gênero nas intervenções em psicologia, tentando destacar a desigualdade de poder existente nas relações conjugais mediadas pela violência e a importância disso para se pensar o trabalho da psicologia, questão essa entendida por Oliveira e Souza (2006) como uma argumentação dualista, quando, paralelo a esse entendimento, não se percebem as questões relacionais envolvidas nesse conflito. Identificar que “... homens e mulheres sofrem, praticam e sentem a violência em proporções variadas” (OLIVEIRA; SOUZA, 2006, p. 46) é importante para definir o tipo de trabalho que será desenvolvido pelos/as psicólogos/as. A mesma desigualdade, que coloca a mulher numa situação de vulnerabilidade diante da violência, promoveu formas de estar e se relacionar com esse contexto, onde elas também se expressam e significam o que vivenciam de várias formas, assim como definiram qual o papel dos homens nesse cenário. Oliveira e Souza (2006) tentam refletir sobre o papel de psicólogos/as nesse contexto militante feminista; todavia, Diniz (2011) apresenta um argumento feminista e militante para os/as psicólogos/as. Hanada, D’Oliveira e Schraiber (2008) apresentam as limitações dos serviços especializados oferecidos às mulheres em situação de violência, em um estudo realizado em São Paulo, e destacam que o resgate ou fortalecimento da autoestima no contexto da violência contra as mulheres deve ser o de empoderamento ou empowerment, definido a partir da concepção feminista como: “... fortalecimento das mulheres no sentido da redistribuição de poder em favor delas, sendo necessárias mudanças na ideologia patriarcal, nas estruturas das instituições sociais (...) que reforçariam e perpetuariam a disseminação de gênero e iniquidades sociais” (p. 06). No entanto, para essas autoras, os/as psicólogos/as dos serviços especializados não fazem um trabalho que possa contribuir com o empoderamento das mulheres atendidas. Hanada, D’Oliveira e Schraiber (2008) entendem que as psicólogas trabalham a autoestima como algo do plano pessoal, individual e, por isso, a intervenção é inadequada. Apresentam,

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ainda, que o papel do/as psicólogo/as seria o de trabalhar pelo que chamam empowerment, em termos políticos e não pessoal ou subjetivo. Aqui, podem se destacar duas questões para serem discutidas: 1) a separação do que é político e do que é pessoal e 2) a defesa de uma intervenção em psicologia fundada apenas numa referência feminista militante e, ao mesmo tempo, preconceituosa da psicologia. Essas posições apresentam a psicologia como uma ciência e uma profissão que a priori aliena e não promove emancipação social e política. O estudo de Hanada et al. (2008) ainda apresenta uma avaliação de algumas das normas propostas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM para o atendimento nos serviços especializados, as quais serão analisadas mais adiante. Hanada, D’Oliveira e Schraiber (2010) se referem ainda que o psicólogo está presente e é solicitado a participar dos serviços especializados e que poderiam ter como elemento específico de seu trabalho o compartilhamento dos saberes teóricos e da prática da Psicologia com a equipe nas situações de supervisão, pois: Isso efetivaria o apoio entre a equipe não só no que diz respeito à solidariedade no trabalho e nas decisões conjuntas, mas também nos aspectos técnicos da intervenção. Nesse sentido, isso valeria para todos os profissionais, cada um compartilhando, nos espaços de capacitação e supervisão, o que teria de específico na sua formação na construção de um saber comum a respeito da violência contra as mulheres, o que facilitaria e incrementaria o trabalho (HANADA et al., 2010, p. 53, não grifado no original).

Contudo, nesse mesmo texto, as próprias autoras dizem que as/os psicólogas/os consideram ações exclusivas da categoria as intervenções “essencialmente clínicas” (p. 54) e que, quando não desenvolviam essas atividades, suas intervenções não apresentavam uma delimitação definida das atividades dos outros profissionais da equipe e, ao mesmo tempo, afirmam o contrário: [...] como é tradicional entre os psicólogos, as atividades que foram consideradas próprias e exclusivas desse profissional foram aquelas essencialmente clínicas, individuais ou em grupo. As exceções foram os abrigos e os serviços jurídicos nos quais a atuação do psicólogo não era clínica e não

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havia delimitação clara entre as atividades do psicólogo e de outros profissionais da equipe [...] As diversas atividades realizadas conjuntamente com outros profissionais ou articuladamente a eles demonstraram possibilidade de atuação psicológica para além da psicoterapia, abrindo espaço para novas práticas mais integradas com as ações da equipe e seus objetivos. [...] Essas diferenças entre o que é considerado trabalho próprio do psicólogo poderiam indicar um trabalho conjunto, com tarefas compartilhadas entre diversos profissionais de formações diferentes. Porém, parecem indicar mais uma indefinição do lugar e dos afazeres do psicólogo e o pouco conhecimento sobre as possibilidades de intervenção desse profissional. Possivelmente também refletem a diversidade e os conflitos internos ao campo da Psicologia, que carece de definições mais claras de suas práticas não clínicas (HANADA et al., 2010, p. 54-55).

A conclusão se apresenta ambígua, pois não fica explicitado qual é o papel do psicólogo na equipe, quais as suas atribuições ou quais as possibilidades de intervenção desse profissional em “suas práticas não clínicas”. Percebem haver uma indefinição, mas as autoras não fazem uma proposição clara. Afirmam que é preciso definir as atribuições dos psicólogos nos serviços especializados e nos não especializados, mas não apresentam qual seria a atribuição, para além da clínica, que fosse algo que, de fato, exigisse ser psicólogo, principalmente porque também destacam que, quando estes/as profissionais não fazem o que é tradicional da psicologia, realizam tarefas iguais às dos outros membros da equipe. E, nesse ponto, mais uma vez, cabe a pergunta: por que é preciso ter psicólogos/as nesses serviços? Para fazer o quê? O texto de Hanada et al. (2010) parece defender, de forma implícita, que há um lugar para os/as psicólogos/as nessas políticas; eles são chamados para atuar, mas não sabem o que fazer, já que não devem atuar de forma clínica. Todavia, o que poderiam fazer não ficou explicitado, e os que fizeram atuaram de forma indiferenciada daquilo que outros profissionais poderiam fazer. A intervenção clínica, assim, não deve fazer parte desse serviço, por definição e não por conta de uma avaliação estudada e aprofundada sobre que tipo de intervenção funciona nesse contexto específico. O texto dá a entender que há algo importante que só os psicólogos poderiam fazer nesses serviços, mas que ainda não se sabe o que é, com exceção de um pa-

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pel nas supervisões, anteriormente citado. E aqui fica mais uma pergunta: Por que seria importante os/as psicólogos/as dividirem os saberes teóricos e práticos com a equipe nas supervisões? Esses saberes serviriam para quê? Para serem trabalhados de que forma? Isso também não ficou claro. Machado (2004), que coloca o foco de sua análise nas consequências do trabalho nesse contexto de violência contra as mulheres para as psicólogas, entende que o atendimento psicológico às mulheres vítimas de violência promove na psicoterapeuta/psicóloga dilemas teóricos, técnicos e emocionais. Dentre esses, a autora apresenta como dilemas emocionais: o estresse pós-traumático7 dos terapeutas que trabalham com essas mulheres, a “vitimização por contato” (p. 407) e o aumento do risco da síndrome de burnout8, decorrente da ausência de supervisão e da falta de uma rede de suporte, entre outros. Esses elementos não são considerados nos textos de Hanada et al. (2008, 2010); o que há é uma crítica ao trabalho dos/ as psicólogos/as nesses serviços, sem uma atenção às consequências dessa atividade na vida da/o profissional. Dentre os dilemas vividos pelas psicólogas, pode-se destacar o dilema que se apresenta no conflito entre a formação em psicologia e as orientações dos serviços especializados para mulheres em situação de violência, que fica implícito nos estudos já citados sobre o assunto (HANADA et al., 2008, 2010; Machado, 2004), com destaque para o depoimento de Oliveira (2004): [...] como psicóloga minha intervenção tendia a avaliar o papel delas na produção de relações violentas, o que necessariamente não era contraditório às explicações no viés de gênero, mas dirigia a atenção para a discussão sobre fatores para além (ou aquém?) da discussão sobre os determinantes culturais (OLIVEIRA, 2004, p. 10).

Confirmando esse entendimento, Francisquetti (2005) aponta as potencialidades do trabalho com o psiquismo, principalmente, quando a 7 - Transtorno de Estresse Pós-Traumático, entendido aqui como: “... um conceito que avalia o quão ameaçador foi determinado evento traumático, assim como os sintomas apresentados pelo paciente” (SCHESTATSKY et al, 2003, p. 11). 8 - Síndrome de burnout, entendida aqui como: “... uma reação à tensão emocional crônica por lidar excessivamente com pessoas.” (CARLOTTO & CÂMARA, 2008, p. 154). É um construto formado por três dimensões relacionadas, mas independentes: a exaustão emocional, a despersonalização e a baixa realização no trabalho.

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equipe multiprofissional se depara com mulheres que, após o acesso às políticas de proteção, decidem voltar para a convivência com o marido agressor, com sua vida e de seus filhos/as em risco e sofrendo agressões físicas, sexuais e verbais. A violência contra as mulheres, para a autora, se dá em um “... contexto complexo, onde estão em jogo, atravessando as pessoas em cena, a realidade externa, a cultura, os fluxos, as forças inconscientes, fantasias, traumas, desejos de vida, desejos de destruição – morte...” (p. 02), o que contribui para a existência dos dilemas emocionais anteriormente citados que, em muitos casos, acometem as psicólogas. Esta autora percebe o custo do trabalho para as/os profissionais e, ao mesmo tempo, identifica um campo privilegiado para a atuação profissional, além de detectar a existência de um espaço para a intervenção com base na teoria psicanalítica, quando se refere a importantes conceitos dessa teoria. Assim, a intervenção em psicologia nos serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência poderia ser pautada também nas teorias da psicologia, entre elas as teorias psicanalíticas e não apenas na teoria de gênero. Contudo, também não é possível definir qual teoria ou técnica é a melhor. Há a intervenção mais adequada para determinada mulher em seu contexto de vida e faz-se necessário identificar a intervenção que se adequa à demanda de cada mulher, pois haverá aquelas que, com algumas “oficinas de autoestima” mudam suas vidas, e aquelas que, mesmo participando dessas oficinas, retornarão seguidamente aos serviços de saúde e/ou especializados, ainda submetidas à violência e correndo risco de morte, como ocorre em muitos casos.

2. Estudos de gênero e a violência contra as mulheres no Brasil As explicações feministas, a partir dos conceitos de gênero e patriarcado (BEAUVOIR, 1949a/s.d., 1949b/s.d.; Saffioti, 2004; Scott, 1995), utilizados inicialmente para responder às questões relativas à violência contra as mulheres, só respondem em parte à questão. Saffioti, quando discute sobre gênero, diz:

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Este conceito não se resume a uma categoria de análise, não obstante apresentar muita utilidade enquanto tal. Gênero também diz respeito a uma categoria histórica, cuja investigação tem demandado muito investimento, podendo ser concebido em várias instâncias [...] Cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de acordo: o gênero é a construção social do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 1999, p. 82).

Dentro das concepções que enfatizam a categoria “patriarcado”, as mulheres têm status de objeto e estão na posse dos homens. Esse modelo foi se definindo ao longo da história e aprisiona as mulheres de tal forma a fazê-las reproduzi-lo (BEAUVOIR, 1949a/s.d., 1949b/s.d.; SAFFIOTI, 2004; SCOTT, 1995). Dessa forma, é possível entender a vulnerabilidade de qualquer mulher a situações de violência de gênero. Isso não se questiona. Contudo, o porquê de algumas mulheres se submeterem a situações de violência – mesmo em muitos casos tendo opções de vida sem violência - e outras não admiterem viver tal situação precisa ser discutido, pois a teoria de gênero (SCOTT, 1995) não explica satisfatoriamente, como já foi referido anteriormente. Com efeito, paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero. Embora se trate de mecanismo de ordem social, cada mulher o interpretará singularmente. Isto posto, a ruptura de integridades como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade. Isto equivale a dizer que a violência, entendida desta forma, não encontra lugar ontológico (SAFFIOTI, 1999, p. 84, não grifado no original).

Saffioti, nessa citação, faz uma reflexão sociológica do fenômeno da violência contra as mulheres, mas destaca algo que chama de “individualidade”, apontando a existência de alguma coisa, para além da influência social e cultural, no contexto da violência contra as mulheres. Vale destacar que a discussão sobre o conceito de gênero é extensa e complexa, e conta com a contribuição de autores/as como Bourdieu (1998/2005), Rubin (1993), Arán (2009), Butler (1990, 1992) e Swain (2006),

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estas três últimas consideradas como teóricas da Terceira Onda do feminismo (LAGO, s/d). Assim, dentro da compreensão mais contemporânea do conceito de gênero, destaca-se aqui, Butler (1990), que apresenta a categoria sexo como uma produção discursiva do gênero, questionando o binarismo sexo-gênero que coloca o sexo no lugar da natureza; e Swain (2006), que discute sobre o dispositivo amoroso, recurso que impõe às mulheres o desejo do amor romântico e está ligado à construção social do feminino na cultura patriarcal. Esses foram considerados conceitos importantes para compreender o fenômeno da violência contra as mulheres, mesmo sendo as referências de Scott (1995) e Saffioti (1999, 2004) a base teórica que mais se destaca na constituição das políticas públicas para as mulheres, no Brasil. As análises realizadas tomaram o conceito de gênero utilizado por Butler (1990) e Swain (2006), embora o estudo não se detenha a aprofundar as discussões contemporâneas sobre o conceito de gênero. Soares (2007), em um texto publicado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, aponta os impasses e desafios no processo de enfrentamento à violência contra as mulheres. Nessa reflexão, defende que é importante reconhecer as conquistas das últimas décadas no combate a esse tipo de violência, como a notificação compulsória dos casos de violência contra as mulheres no SUS, assim como a discussão sobre a violência como questão pública e não privada e a desmistificação de família idealizada e do homem cordial. Na sequência, a autora aponta que nessa trajetória houve a defesa da denúncia e da criminalização como pilares da mobilização. A autora apresenta dados, colhidos em pesquisa nacional, de que a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil, fazendo o somatório de 2,1 milhões de mulheres agredidas por ano (VENTURI, RECAMÁN, & OLIVEIRA, 2004), e destaca uma questão: esse montante se refere a criminosos que precisam ser encarcerados como assaltantes, traficantes de drogas ou sequestradores? Ao mesmo tempo, aponta que a agenda dos movimentos de direitos humanos defende o não-encarceramento, ou seja, adoção de penas alternativas ou mesmo a despenalização, com exceção dos crimes significativamente violentos. Assim, para a maioria dos casos, o princípio seria restringir direitos, e não a liberdade. E a autora segue sua análise apresentando dados de que o encarceramento, mesmo curto, aumenta a frequência e a intensidade da violência;

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destacando, ainda, que a questão não é se as demandas feministas estão ou não em dissonância com a agenda dos direitos humanos, e sim, de que não há o debate aberto sobre a questão. Não há a discussão de muitas questões que surgem ao longo da trajetória, que constrói um novo modelo para lidar com a violência contra as mulheres, pois esse ainda não está pronto. E é nessa linha da reflexão de Soares (2007) que este estudo se apresenta. Não para desconsiderar o que foi feito ou proposto, desmerecer os avanços ou não reconhecer as conquistas. Pretende-se, considerando a importância de tudo o que foi feito, da militância política às propostas técnicas e operacionais, avaliar algumas lacunas e o que ainda não teve a resposta esperada. É preciso pensar sobre as múltiplas dimensões do fenômeno, as gradações de intensidade a as diferenças entre conflitos, agressões e violências9 e não radicalizando para respostas “... entre a criminalização ou patologização da violência e de seus autores...” (SOARES, 2007, p. 77). É preciso considerar as influências multidimensionais. Entretanto, a compreensão multidimensional não nega que haverá momentos em que a ação deverá ser de criminalizar e, em outros, que deverá haver tratamento; isso vai depender do caso em que se está trabalhando. Quando se consideram as multideterminações, não se pode necessariamente negar a ocorrência das situações limite. Soares (2007) continua sua reflexão avaliando as políticas de segurança e apresentando propostas, entre elas, que também se defende aqui, a que será preciso ter clareza das escolhas realizadas para que as soluções não se constituam em mais violência. Para dar seguimento à reflexão que se pretende desenvolver, é importante destacar que os dados do serviço 180 da SPM mostram, em 2010, que se atendeu 108.546 casos e, desses, 58,8% se referiam à violência física e 25,3% à violência psicológica. Os tipos de violência moral (11,6%) e sexual (2,1%) ficaram com percentuais menores (DIEESE, 2011), talvez pela dificuldade que ainda existe de identificar esses tipos de violência. Em 2011, os dados apresentam uma situação, mais uma vez, alarmante:

9 - Conflitos - tensão produzida pela presença simultânea de motivos contraditórios (WEISZFLOG, 2004). Agressões - ataques e provocações mútuas ou não, permite o revide não havendo diferença de poder entre agressor e agredido (GROSSI, 2006/1998). Violências - ataques e provocações onde um tem poder para aniquilar, paralisar, impedir a reação do outro (GROSSI, 2006/1998).

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A Central de Atendimento à Mulher-Ligue 180 registrou, de janeiro a outubro de 2011, 530.542 ligações. No período, foram registrados 58.512 relatos de violência. Desse total, 35.891 foram de violência física; 14.015 de violência psicológica; 6.369 de violência moral; 959 de violência patrimonial; 1.014 de violência sexual; 264 de cárcere privado; e 31 de tráfico de mulheres. Um dado relevante e que chama atenção é que as violências moral e psicológica atingem juntas, o percentual de 34,9% dessas ligações. PERFIL - A maior parte das mulheres que entrou em contato com o Ligue 180 e que também é vítima da violência tem de 20 a 40 anos (26.676), possui ensino fundamental completo ou incompleto (16.000), convive com o agressor por 10 anos ou mais, 40% e 82% das denúncias são feitas pela própria vítima. O percentual de mulheres que declaram não depender financeiramente do agressor é 44%. E 74% dos crimes são cometidos por homens com quem as vítimas possuem vínculos afetivo-sexuais (companheiro, cônjuge ou namorado). Os números mostram que 66% dos filhos presenciam a violência e 20% sofrem violência junto com a mãe. Os dados apontam que 38% das mulheres sofrem violência desde o início da relação e 60% delas relataram que as ocorrências de violência são diárias (BRASIL, 2011a, p. 17, não grifado no original).

Esses dados apontam algumas questões relevantes para o estudo ora apresentado: 1) a magnitude da violência, com destaque para violência moral e psicológica, que promovem consequências na saúde mental das mulheres; 2) o tempo que as mulheres levam para denunciar; 3) a ocorrência sistemática das situações de violência; e 4) ao mesmo tempo, mais de 40% das mulheres não dependem financeiramente dos companheiros, mas estão vivendo em situação de violência. Por fim, considerando que a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006d) entrou em vigor em 2006, a magnitude da violência é significativa e aponta para o fato de que o fenômeno é muito maior, pois esses dados são das mulheres que, de alguma forma, procuraram ajuda. É importante destacar o contexto social e econômico em que o atendimento psicológico passa a ser relevante nessas políticas, que também surgem num contexto específico que atinge outros países, como apresenta Machado (2004), sobre a experiência em Portugal. Para a autora, as políticas locais são influenciadas por programas propostos para agências internacionais, caracterizadas pelas dimensões que se seguem: postura educa-

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tiva; posicionamento político (paradigma feminista), planejamento para a segurança, ênfase no empowerment10, decisões tomadas em curtos prazos e a ênfase na mudança social nos papéis tradicionais de gênero (MACHADO, 2004, p. 401).

3. Violência, mulheres e pressupostos psicanalíticos11 A falta de respostas mais efetivas por parte das políticas públicas especializadas de enfrentamento à violência contra as mulheres, fomentadas a partir dos fundamentos feministas, pautados nas explicações sociológicas, históricas e culturais, justifica apresentar os pressupostos psicanalíticos para serem utilizados também nesse contexto. Segundo Garcia et al. (2008), 1/3 das mulheres que procuram os serviços especializados retorna a situações de violência, ou seja, mesmo passando pela política pública especializada, cujo objetivo é conscientizar sobre o fato de que a violência contra as mulheres é consequência de uma construção histórica do modelo patriarcal, muitas mulheres continuam se submetendo, se assujeitando12 a esse tipo de violência, o que pode ser pensado como um resultado que precisa de uma avaliação. Há de se pensar o que acontece. Também não se excluem aqui as limitações desses pressupostos psicanalíticos como tentativa de explicação do fenômeno, tanto do ponto de vista apresentado por Neri (2002) e Kehl (2008) quanto por Laurent (2012). Neri (2002) destaca que a psicanálise deu crédito ao discurso feminino, quando deu ouvidos à histeria. Para a autora, algo inédito no pensamento 10 - Machado (2004) define “ênfase no empowerment – enfatizando as competências e os recursos da vítima na construção da mudança”(p. 401). 11 - Como pressupostos psicanalíticos entende-se a concepção da existência do inconsciente, nos termos definidos por Freud: “[...] daremos o nome de ‘o inconsciente’ ao sistema que se revela por meio de um signo indicativo da inconsciência de cada um dos processos psíquicos que o compõem.” (FREUD, 1912/2004, p. 89). Em outras palavras: “O inconsciente freudiano é, em primeiro lugar, indissoluvelmente uma noção tópica e dinâmica, que brotou da experiência do tratamento. Este mostrou que o psiquismo não é redutível ao consciente e que certos ‘conteúdos’ só se tornam acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências [...]” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967/1988, p. 307); e também a compreensão da dinâmica subjetiva a partir de conceitos como: castração, falo, narcisismo, sublimação, identificação, supereu e foraclusão (NASIO, 1988/1997). 12 - Expressão utilizada por Menezes (2012), que enuncia a ideia de atividade, de ação na vivência de uma submissão, representando de forma clara o fenômeno que se quer estudar.

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ocidental, já que “um outro”, “um feminino” é apresentado depois de séculos de exclusão. Todavia, ela destaca que mesmo nesse movimento de “dar voz a esse outro, singular” (NERI, 2002, p. 13) reafirma o masculino como universal. Discussão também levantada por Kehl (2008) Laurent (2012), por sua vez, aborda sobre os pressupostos psicanalíticos e a escolha das mulheres e destaca as questões do feminino, discutindo o ‘masoquismo feminino’ do ponto de vista de Freud e Lacan, considerando o movimento feminista uma ação contra uma ordem patriarcal, a partir da produção das psicanalistas mulheres e destacando que Lacan questiona Freud no entendimento do masoquismo como algo da “natureza feminina”: “... é claro que Lacan aborda os fenômenos que foram reagrupados sob a rubrica “masoquismo feminino”, mas faz um esclarecimento com a ajuda de outros conceitos, recusando o de masoquismo feminino.” (LAURENT, 2012, p. 53). O autor também destaca os limites dos pressupostos psicanalíticos, apresentando que a psicanálise não pode ser preventiva e nem traz garantias. Como as demais abordagens, há limites; no entanto, oferece uma opção de trabalho diante das dificuldades que se observa para se obter bons resultados no desenvolvimento dos atendimentos que objetivam que as mulheres rompam com situações de violência. Pode-se dizer, assim, que os pressupostos psicanalíticos, articulados na teoria psicanalítica, em suas diversas abordagens, podem ter um lugar na política de enfrentamento à violência contra as mulheres, sendo uma possibilidade de intervenção diante da insistência de muitas mulheres em permanecer vivendo em situações de violência, mesmo quando teriam condições objetivas de romper a relação. Narvaz (2010) entende a psicanálise como: [...] verdade universal e atemporal em alguns círculos mais conservadores, a psicanálise freudiana, sem consideração histórico-crítica, é problemática, e seus conceitos e pressupostos têm sido contestados e revisados em relação às concepções misóginas e sexistas, sobretudo no que tange às questões da diferença sexual, do feminino13 e da feminilidade14 (NARVAZ, 2010, p. 48) 13 - Segundo Holovko (2008, p. 13): “Alguns psicanalistas, apoiados na teoria freudiana, privilegiam a ideia do feminino como falta, carência, vazio, enquanto outros teóricos, desde os primeiros, como Ernest Jones, Melanie Klein, Karen Horney etc., procuram compreender as mulheres a partir de seus próprios padrões, não da falta, mas da presença de uma sexualidade com características próprias e não mais em referência à psicologia masculina.” 14 - Segundo Kehl (2008, p. 65): “uma construção discursiva produzida a partir da posição masculina, à qual se espera que as mulheres correspondam, na posição que a psicanálise lacaniana designa como sendo a do ‘Outro do discurso’”.

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No entanto, paradoxalmente, para fundamentar essa afirmação, faz referência a autoras, como Maria Rita Kehl e Elizabeth Roudinesco (NARVAZ, 2010), conhecidas psicanalistas que fazem críticas à teoria psicanalítica, questionando pressupostos e avançando no desenvolvimento da teoria, fazendo considerações histórico-críticas do lugar das mulheres. Essa questão não é recente na psicanálise, pois Karen Horney (1967/1993) foi uma das pioneiras, inclusive discutindo o conceito de “masoquismo feminino”. A teoria psicanalítica entende e aborda esse fenômeno, nomeado por Freud de “masoquismo feminino”, a partir das críticas que se estabeleceram. Ou seja, o fenômeno existe, precisa de intervenção e, já em 1933, Horney alertava: “… undertakes to evaluate the weight of social conditionings in the genesis of any sex-limited peculiarities in the distribution of masochistic trends.”15 (HORNEY, 1967/1993, p. 214). Narvaz (2010) questiona a reflexão sobre a violência contra as mulheres a partir de pressupostos psicanalíticos, em especial, a ideia de um desejo de servidão como algo de “uma natureza feminina” (NARVAZ, 2010, p. 55), mais especificamente, o conceito de masoquismo feminino nas situações de violência doméstica (termo usado pela autora). Todavia, o que se pretende defender nesta reflexão é a compreensão do masoquismo feminino como algo que não é de “uma natureza feminina”, e sim que “... a subjetividade masoquista é uma forma possível de inscrição dos sujeitos na ordem da cultura” (NARVAZ, 2010, p. 54), como a própria autora afirma, e, sendo assim, mesmo considerando que isso seja construído/determinado pela “... história da produção ideológica das subjetividades em gênero” (NARVAZ, 2010, p. 55), é preciso fazer algo com isso, e não apenas dizer que essa é uma experiência tanto de homens quanto de mulheres e que não é “natural” das mulheres. Se esse tipo de servidão acontece com algumas dessas mulheres, que se sujeitam à violência, é preciso pensar formas de intervir considerando esse processo. Utilizando outro conceito psicanalítico, o desamparo, Menezes (2012) traz uma reflexão sobre o conceito de masoquismo do ponto de vista dos textos freudianos, e que se apresenta diferente do entendimento de Narvaz (2010):

15 - Tradução livre: ... um comprometer-se a avaliar o peso de condicionamentos sociais na gênese de quaisquer peculiaridades limitados ao sexo na distribuição de tendências masoquistas.

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[...] o que está no cerne da experiência do masoquismo é o evitamento do desamparo. O masoquismo seria uma modalidade subjetiva em que o sujeito se submete de modo servil a um outro, como forma de se proteger do desamparo terrífico. Nesse sentido, a questão em primeiro plano é a posição de assujeitamento e humilhação na relação com outro e não o prazer com a dor. [...] A dor é uma consequência da posição servil e submissa diante do outro e não um objetivo a ser alcançado. O objetivo, na verdade, é se proteger do desamparo (MENEZES, 2012, p. 116, não grifado no original).

Para Narvaz (2010), a perspectiva de Freud de enquadrar as mulheres num modelo limitado e consequente do modelo imposto pela modernidade destitui o construto teórico, que perderia sua possibilidade explicativa. Questão entendida por Kehl (2008) de forma diferente, pois esta compreende esse movimento de Freud como seu desejo de limitar as mulheres ao padrão que as aproximava da “natureza”, mas que isso não é o que a psicanálise fala das mulheres. Kehl (2008) não destitui o construto masoquismo, pois o compreende dentro do contexto no qual a psicanálise se fundou – a modernidade, o individualismo – e na relação com os outros conceitos da teoria. As mulheres se encarregam, frequentemente, de levar o amor um pouquinho além dos limites estabelecidos pelo falo; elas são portadoras de uma certa desmedida, de um saber que informa que, diante de certos prazeres, a dor pode valer a pena – o que não equivale em absoluto a dizer que a dor seja a condição do prazer, mas a sustentar seu prazer apesar dos riscos da dor (KEHL, 2008, p. 269, grifado no original).

A autora defende que o masoquismo vem como uma forma de ser “A Mulher” que esperam que seja, sendo um objeto que, muitas vezes, possa se deixar agredir. E ainda, quanto à medida do exagero para o amor, também pode-se trazer o conceito de dispositivo amoroso (SWAIN, 2006)16, fazendo uma articulação, neste ponto, pelo menos, entre as teorias contemporâneas de gênero e a psicanálise. 16 - Citado na p. 25.

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Quem trabalha com mulheres em situação de violência percebe semelhança dessa descrição com as mulheres atendidas. Há um estranhamento, um incômodo quando, ao oferecer a possibilidade de sair da violência, a mulher “escolhe” ficar. Também não é novidade se ouvir: ela gosta de apanhar, se não gostasse deixava o cara, separava. Nesse ponto, vozes feministas se levantam: mulher não gosta de apanhar. E justificam o machismo de Freud na construção do “masoquismo feminino”. Nesse contexto, os textos de Menezes (2012) e Kehl (2008) refutaram essa afirmação, pois apontam que o masoquismo feminino não tem nada a ver com um masoquismo ‘natural’ das mulheres, ou seja, que esta tem prazer em sofrer e que esse conceito foi construído num momento histórico que influenciou uma definição equivocada. Pelo contrário, o masoquismo feminino não se refere às mulheres, pois trata-se de uma posição que pode ser assumida por homens e mulheres, considerando o que significa o termo feminilidade, na teoria psicanalítica. Além do que, a submissão, o assujeitamento, a humilhação, que caracterizam o masoquismo, bem semelhante ao que caracteriza mulheres que insistem em relações mediadas pela violência, não se dão pelo prazer da dor, mas pelo prazer em que viver a dor vale a pena. É esse prazer, esse desejo, que precisa ser esclarecido, entendido e não negado. Não cabe aqui uma discussão teórica a partir do que ainda se desenvolve nas teorias psicanalíticas sobre feminino, feminilidade, mulheres, “masoquismo feminino” (BIRMAN, 2002; FREUD, 1924/2007, 1931/2000, 1933/2000; KEHL, 2008; LAURENT, 2012; MENEZES, 2012). Para a reflexão que se propõe este estudo, cabe verificar que os pressupostos psicanalíticos apresentam uma questão rechaçada pelas feministas, o que foi inicialmente conceituado como “masoquismo feminino”, como algo que não considera as questões históricas e sociais. Todavia, as teorias psicanalíticas aprofundam essa discussão, consideram a influência do patriarcado e do feminismo e apresentam uma forma de entender o fenômeno. Assim, o argumento usado para rechaçar essas teorias, nesse contexto, perde o sentido. Dessa forma, defende-se que o entendimento do sentido de permanecer na situação de violência, considerando as teorias psicanalíticas, pode ser incorporado às políticas de assistência/atendimento às mulheres, pelo menos para atentar que, nesse contexto da violência contra as mulheres,

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há aquelas que, com a intervenção padrão, não efetuam uma mudança em suas vidas e que a equipe não enxerga e não entende um motivo para isso. Nesses casos, há de se pensar que pode existir um lugar para intervenção utilizando pressupostos psicanalíticos. Essa ideia já aparece, de alguma forma, em um dos textos da SPM (TAQUETTE et al., 2007b), quando é apresentada uma definição para subjetividade: A subjetividade é a característica do sujeito, aquilo que é pessoal, individual, que pertence ao sujeito e apenas a ele, sendo, portanto, em última análise, inacessível a outrem. É um processo dinâmico e histórico, imanente aos fenômenos humanos, construída ao longo da vida. A subjetividade possibilita a emergência de instâncias singulares que constroem identidades pessoais, afetivas e culturais. Sua expressão propicia a diferenciação dos sujeitos, uns em relação aos outros dentro do mesmo grupo, ou seja, uma relação de alteridade. No entanto, demonstra também as marcas de pertencimento aos diferentes coletivos socioculturais. É importante garantir a possibilidade de manifestação subjetiva como forma de implicar os sujeitos em suas próprias histórias e ações. Sujeito é um termo corrente em psicologia, filosofia e lógica. É empregado para designar ora um indivíduo, como alguém que é simultaneamente observador dos outros e observado por eles, ora uma instância com a qual é relacionado um predicado ou um atributo. Na acepção da filosofia ocidental, o sujeito é definido como sujeito do conhecimento, do direito ou da consciência. Na experiência psicanalítica, a instalação do dispositivo da associação livre produz as condições para a emergência do sujeito do inconsciente, por meio da repetição e da transferência. As chamadas “formações do inconsciente” – atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas e chistes – são outra modalidade de emergência do sujeito. O sujeito é, portanto, menos um construto a priori do que uma categoria que se impõe à experiência. Por isso, se pode dizer que o sujeito não “nasce” e não se “desenvolve”, mas “se constitui” no campo da linguagem. É a essência da subjetividade humana, no que tem de universal e singular (TAQUETTE et al., 2007b, p. 85-86.)

Por fim, ainda dentro do contexto das teorias psicanalíticas e da violência contra as mulheres, em especial, em relação aos casos em que

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as mulheres insistem em permanecer em situações de violência, pode-se falar da fantasia do espancamento: uma criança sendo espancada (FREUD, 1919/2000) e que relaciona o ato de ser espancada com o de estar sendo amada e a relação dessa fantasia, que gera sentimento de culpa, convertendo o sadismo em masoquismo, com uma posição passiva e, assim, feminina (FREUD, 1931/2000). Posição feminina aqui significa o reconhecimento do limite e da imaginária onipotência, que se dá com homens e mulheres. Freud esclarece que masoquismo “não é a manifestação de um instinto [pulsão] primário, mas se origina do sadismo que foi voltado contra o eu (self) - ou seja, por meio de regressão de um objeto para o ego” (FREUD, 1919/2000). E, ainda nesse texto, refere: “... tanto no homem quanto na mulher, encontram-se impulsos instintuais [pulsões] masculinos e femininos, e que cada um igualmente pode muito bem ser submetido à repressão...” (FREUD, 1919/2000). O que aponta que não há o entendimento de uma natureza feminina passiva, nem que o masoquismo é algo que ocorre em mulheres apenas. A construção da ideia do feminino como passivo se deu por conta das referências da cultura patriarcal (SAFFIOTI, 2004), que definiram para as mulheres um lugar de segundo sexo (BEAUVOIR, 1949a/s.d., 1949b/s.d.). Dessa forma, é possível trazer pressupostos psicanalíticos para a discussão da violência contra as mulheres sem com isso naturalizar a violência ou negar as teorias feministas de gênero.

4. O atendimento psicológico como uma ação das políticas públicas para as mulheres em situação de violência: um processo de institucionalização A Psicologia foi oficialmente definida como profissão, no Brasil, em 1962, através da Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962 (BRASIL, 1962). Nesses mais de 50 anos, muitas mudanças aconteceram. A partir do início dos anos 1980 começou um processo de mudança nas demandas e no perfil de formação do/a psicólogo/a brasileiro/a. Nesse momento, a psicologia

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assumiu sua expansão, com compromisso social, numa ação para popularização de suas intervenções. Assim, consolidando-se como uma “Psicologia Brasileira” (CFP, 2012a, p. 14), ou seja, uma psicologia que assume compromissos com a sociedade brasileira, em seu processo de redemocratização e que serviu de exemplo para a democratização da estrutura do Sistema Conselhos de Psicologia, com o objetivo de estabelecer a reconstrução e a reorganização da profissão. A partir daí, começaram os Congressos Nacionais da Psicologia – CNP, instância deliberativa máxima da categoria, entre outras instâncias de deliberação, garantindo às/aos psicólogas/os a responsabilidade de decidir sobre qual Psicologia se quer, a partir da prática profissional e da pesquisa, que se desenvolva em todo o país (CFP, 2012a). Ao longo dessa trajetória, algumas pesquisas foram realizadas para caracterizar a/o profissional da psicologia. Dentro do contexto da expansão da Psicologia para as políticas públicas, é importante mencionar alguns estudos que caracterizam perfis das/os profissionais. Dessa forma, destaca-se a pesquisa do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Púbicas - Crepop (CFP, 2008, 2010), sobre a atuação de psicólogas/os em programas de atenção à mulher em situação de violência; o estudo de Bastos, Gondim e Rodrigues (2010), cujo objetivo era caracterizar o/a psicólogo/a brasileiro/a; e a mais recente pesquisa feita pelo CFP (2012a), realizada por telefone e apresentada com resultados parciais na 2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia (CFP, 2012b)17, além do estudo de Porto e Bucher-Maluschke (2012a).

17 - Essa mostra teve como objetivo comemorar os 50 anos de profissão regulamentada, completados em 2012.

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Quadro 1 Apresentação da comparação entre as diferentes pesquisas com a categoria das/os psicólogas/os Profissão e Gênero no Exercício da Psicologia no Brasil4

Pesquisa Crepop.1

Pesquisa Nacional2

Pesquisa com psicólogas/os do CRP 013

Número de inscritos/as

X

CFP - 236.100 CRP - 01 11024 (2009)

9736 (20115)

CFP -216.0006

Total de participantes

103

3335

24

1.500

80,4%

CFP - 83,3% CRP01-80,1%

83,3%

89%

12,6%

CFP - 16,7% CRP01-19,9%

16,7%

11%

Média

37,73 anos

CFP-36,7anos CRP01 - 35 anos

35,7 anos

X

Faixa etária

Até 28 anos Entre 24 e 29 – 25% anos – 24,3% Até 34 anos – 50%

Até 29 anos29,2% Até 34 anos - 45,9%

Entre 20 e 39 anos – 47%

Instituição Pública

X

28,9%

37,5%

X

Instituição privada (filantrópica e comercial)

X

71,1%

62,5%

X

Lato sensu

50,5%

47,4%

66,7%

Strictu sensu

18,4%

23,4%

12,5%

Sexo

Idade

Formação

PósGraduação

48%

1 - CFP (2008). 2 - A. V. B. Bastos et al. (2010). 3 - Porto & Bucher-Maluschke (2012a). 4 - CFP (2012a). 5 - Informação da Coordenadora de Orientação e Fiscalização do CRP01, via mensagem eletrônica, em 14 de abril de 2011. 6 - De acordo com o Cadastro Nacional de Psicólogos do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP, 2012c).

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Esses dados apontam que as pesquisas feitas com o auxílio da rede mundial de computadores, com exceção de uma (CFP, 2012a), mostram uma semelhança na caracterização dos/as entrevistados/as, mesmo quando as amostras estudadas se apresentam tão diferentes. Resultado que afirma uma característica que se impõe à categoria e que precisa ser considerada, com destaque, para o número significativo de mulheres que compõem a psicologia brasileira. A 2ª Mostra Nacional de Práticas em Psicologia – Compromisso com a construção do bem comum foi um evento que contou com a participação de aproximadamente 25 mil inscritos (http://mostra.cfp.org.br/) e mais de 5 mil trabalhos expostos (CFP, 2012b, p. 19). Esse evento foi um grande momento da psicologia no Brasil e, pela primeira vez, houve um espaço de discussão das questões das mulheres, considerando que a categoria é composta por 89% de mulheres (CFP, 2012b, p. 37), que foi chamado: O Feminino na Psicologia: muitas e diferentes mulheres. Foram realizadas atividades nos três dias do evento, nos dois horários. O espaço estava localizado na entrada de um dos pavilhões da Mostra e apresentava no seu entorno os dados da pesquisa do CFP sobre quem são as/os psicólogas/os, além da fala das psicólogas que estão com mandato eletivo, no Congresso Nacional, e dos vídeos, divulgados na oportunidade do anúncio da pesquisa, onde as mulheres psicólogas falam sobre as mulheres e a profissão em diferentes áreas. As discussões passaram por temas, como a descriminalização do aborto, o conceito de gênero, o feminino e o feminismo, a violência contra as mulheres e o papel da psicologia nesse contexto. Um espaço para discussão das questões das mulheres, dentro de um importante evento para a categoria, é um marco significativo, pois, pela primeira vez, foi discutida a questão de a classe ser composta por mulheres, em sua maioria quase absoluta, e o que isso influencia no desenvolvimento da profissão. O núcleo dirigente do CFP assumiu a discussão, que já há muito tempo era pautada pelas psicólogas feministas e que só na comemoração dos 50 anos da profissão houve o início do debate feminista, ou melhor, dos diversos feminismos assumidos pela categoria. Assim, a psicologia assumiu que é uma profissão majoritariamente de mulheres e precisou abrir-se para a discussão política do que isso representa, como o acesso ao poder, a divisão do trabalho doméstico, a relação entre o trabalho e a responsabilidade com os/as filhos/as e a violência contra as mulheres, questões que, agora,

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demandam posicionamento político e técnico dos que fazem a psicologia. Diante da relevância dessa iniciativa, faz-se necessário apresentar os dados da pesquisa Profissão e Gênero no Exercício da Psicologia no Brasil, fruto desse processo de discussão dentro da categoria, que teve como foco os temas mulher, psicologia e trabalho e que, na sua formatação final, apresenta dados de 1.331 psicólogas entrevistadas/os de todo Brasil (LHULLIER, 2013). O principal resultado desse estudo quantitativo foi o de que, dos 232 mil profissionais em exercício, 88% são mulheres. No que tange à questão da relação entre psicologia e violência contra as mulheres, observou-se que 27% das psicólogas afirmaram ter sofrido uma violência em algum momento de suas vidas. A maioria refere que essa violência ocorreu na adolescência ou na vida adulta. Dessas, 11% sofreram violência sexual, 31% violência física e 97% assédio e agressão verbal, considerando que cada psicóloga pode responder por mais de um tipo. No que se refere aos autores da violência, 22% delas apontaram parentes ou familiares (excetuando-se o cônjuge); e apenas 18% apontaram como autores o companheiro, cônjuge, marido ou namorado ou ex. (LHULLIER, 2013). A pesquisa, na sua apresentação preliminar (CRP, 2012a), apontou que as psicólogas, como as mulheres brasileiras de uma forma geral, têm tripla jornada de trabalho e, no caso das psicólogas, contribuem com mais da metade de seu salário para as despesas da família (31%). Situação que promove a perda de oportunidades profissionais (para 38%) e agravos à saúde, quando 57% se referem cansadas ou muito cansadas ao final de um dia de trabalho e 7% se dizem exaustas. Um dado que chama a atenção, os índices de violência na categoria: 23% dos/as psicólogos/as afirmaram ter sido vítimas de agressão em algum momento da vida, e os tipos de violência destacadas foram a violência psicológica, como agressões verbais, assédio moral e sexual, sendo que, desses, 11% estão relacionados à violência sexual (LHULLIER, 2013). Contudo, a proporção de homens que afirmam ter sofrido violência é maior do que entre as mulheres, pelo menos nos resultados preliminares (CFP, 2012a). Esse dado aponta para algo preocupante: o não-reconhecimento, principalmente das psicólogas, das situações de violência. Os homens da categoria, segundo a pesquisa, conseguem identificar situações de violência a que estão submetidos mais que as mulheres, contrariando, dessa forma, as pesquisas que apontam que um número significativo de mulheres sofre violência em 50


algum momento da vida em percentuais que são diferentes em cada pesquisa, mas que se apresentam relevantes. A investigação de Venturi, Recamán e Oliveira (2004), estruturada como uma pesquisa domiciliar, contou 2.502 entrevistas, em 187 municípios de 24 estados do Brasil, onde identificaram que 19% das mulheres referem já ter sofrido algum tipo de violência perpetrada por homens, todavia, quando são estimuladas com essa questão, ao fazer menção aos diferentes tipos de violência, o percentual que afirma ter sofrido esse tipo de violência sobe para 43%. E, ainda reforçando os dados que apontam o número elevado de mulheres que sofrem violência na população em geral, o estudo Schraiber et al. (2007), com uma amostra representativa da cidade de São Paulo (940 participantes) e de 15 municípios da Zona da Mata de Pernambuco (1.188 participantes), composta por mulheres que tiveram parceria afetivo-sexual alguma vez na vida, com idades entre 15 a 49 anos, aponta que, das mulheres entrevistadas em São Paulo, 41,8% já sofreram violência psicológica, 27,2%, violência física e 10,1%, sexual. Já as mulheres de Pernambuco relataram ter sofrido os mesmos tipos de violências, porém num percentual um pouco maior do que as violências observadas em São Paulo: 48,9%, violência psicológica, 33,7%, física e 14,3%, sexual. Observando os resultados dessas pesquisas populacionais/domiciliares, que apresentam a proporção de mulheres que já viveram pelo menos um episódio de violência variando entre 69,4% e 43%, independentemente do tipo de violência vivido e sem considerar que essas violências também podem se sobrepor, percebe-se que o resultado de 27% entre as psicólogas chama a atenção e demanda mais estudos para se identificar o que esses dados apontam. No que ser refere à caracterização do agressor, segundo o Dieese (2011), 43,1% das mulheres e 12,3% dos homens foram agredidos, em 2009, na própria residência, na distribuição segundo local da agressão (p. 278). No que se refere à relação com o agressor, no mesmo ano, 69,4% foram agredidas por cônjuge/ex-cônjuge, parente ou pessoa conhecida, e 53,1% dos homens, por pessoas desconhecidas ou por policial e segurança privada. Esses dados apontam que as agressões às mulheres, três anos após o início da vigência da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006d), continuam sendo a violência intrafamiliar, doméstica, conjugal, e, as que atingem os

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homens, a violência das ruas, e em percentuais menores. Dados também confirmados pelo estudo feito em Rio Branco (COSTA, 2008), com dados do primeiro ano de vigência da Lei Maria da Penha (setembro de 2006 a agosto de 2007), nos processos que chegaram a ter uma sentença de mérito, mostram que 76,14% dos agressores eram companheiro/ex-companheiro ou ex-marido, parente ou pessoa conhecida. O dado, na pesquisa com as psicólogas, também apresenta um resultado diferente quanto à caracterização do agressor, quando comparado aos estudos anteriormente citados, pois só 40% referem terem sido agredidas por parceiros/cônjuges ou ex ou um parente do sexo masculino e, nos outros estudos, o percentual varia entre 69,4% e 76,14%. Esses dados da literatura, conflitantes com os resultados da pesquisa do CFP citada (LHULLIER, 2013; CFP, 2012a), instiga duas perguntas: 1) Por que, entre as psicólogas, essa violência se apresenta numa magnitude inferior? 2) Por que não são os cônjuges/companheiros ou ex os maiores agressores, como apontam outras pesquisas? Isso é intrigante, pois a psicologia é uma categoria composta majoritariamente por mulheres. Questões a serem refletidas. Todavia, não é objeto direto deste estudo.

4.1. A experiência das/os psicólogas/os nos Programas de Atenção às Mulheres em Situação de Violência O Conselho Federal de Psicologia - CFP publicou, através do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Púbicas – Crepop, dois relatórios de pesquisa sobre a atuação de psicólogas/os em programas de atenção à mulher em situação de violência. No primeiro (CFP, 2008), são apresentados os resultados quantitativos da pesquisa com psicólogas/os que atuam nesse contexto e, no posterior (CFP, 2010a), os qualitativos, que serão descritos na sequência. O objetivo do Crepop, com esse e outros relatórios de pesquisa sobre a atuação de psicólogas/os nas mais diversas políticas públicas, é contribuir para a formulação de referências técnicas para a prática profissional. A pesquisa referente à atuação de psicólogos em programas de aten-

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ção à mulher em situação de violência foi realizada em 2008, via internet, como já foi citado, com questões fechadas e abertas, e abordou: dados biosociodemográficos, da formação específica, caracterização do trabalho, modos de atuação profissional, ensino/pesquisa, avaliação de atuação profissional. O tratamento dos dados foi realizado por meio do software Sphinx. Contudo, há o destaque de que o resultado não permite generalizações, pois o universo correspondente é desconhecido e a “amostra voluntária” (CFP, 2008, p. 04). Responderam a essa pesquisa 103 psicólogas e psicólogos. A maioria que respondeu ao questionário do Crepop atua no Sudeste (54,4%), em instituições públicas (81,6%), com mais 30 horas semanais de trabalho (39,8%) e com remuneração de até R$ 1.500,00 (51,5%). Observa-se, nessa pesquisa, um conflito com relação à questão do referencial teórico/conceitos/autores para a realização do trabalho. Esse estudo se restringiu às psicólogas e psicólogos que atuam no serviço especializado, contudo, essas/es profissionais destacam realizarem uma intervenção clínica, psicoterapias, com a defesa de ser essa a intervenção adequada, mas também existe um questionamento de que esse tipo de intervenção não é eficaz nesse contexto, assim como defendem as feministas e a própria política para as mulheres: Sobre a realização da psicoterapia no ambiente institucional, relatam que acreditam que poderiam trabalhar de forma diferenciada, mas que se sentem mais confortáveis com a realização da psicoterapia breve. Inclusive, afirmaram ser o mais indicado, tendo em vista que as mulheres chegam aos serviços em situação de crise. Questionamos sobre como a psicoterapia breve pode romper com a cultura da violência, tendo em vista que muitas mulheres retornam aos agressores e voltam a sofrer violência, mesmo após o atendimento nos serviços. Essa é uma questão para a equipe [...], que acredita que as ações do psicólogo nesse contexto devem buscar romper com um processo que é sócio-histórico, a cultura da violência de gênero, e que o atendimento da crise não é suficiente para sua superação (CFP, 2010a, p. 41).

Nesse estudo, há o argumento de que, por desconhecer a política de atenção às mulheres em situação de violência, a/o psicóloga/o atuaria nos moldes da psicologia clínica: “Frequentemente esse trabalho está relacionado

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à atuação clínica, ao sigilo e à escuta do profissional da Psicologia, o que nos permite inferir que o desconhecimento acerca da política não possibilita um olhar para além da perspectiva clínica” (CFP, 2010a, p. 41-42). Como conclusão dessa discussão, o estudo aponta que “o modelo clínico pauta a atuação de muitos(as) profissionais da Psicologia neste campo e que este modelo vem sendo gradativamente questionado por estar centrado no indivíduo e, muitas vezes, reificar noções naturalizantes sobre a violência” (CFP, 2010a, p. 42). Assim, para os/as autores/as dessa pesquisa, o desconhecimento dos/ das psicólogos/as entrevistados/as sobre políticas especializadas de atenção às mulheres promove a realização de intervenções clínicas. Dessa forma, parecem supor que quando estes/as conhecerem essas políticas poderão realizar o trabalho esperado, perspectiva que reproduz as expectativas dos documentos da SPM, que serão apresentadas adiante. Percebe-se também que o atendimento em crise é compreendido de forma diferente nas diferentes áreas de estudo. Do ponto de vista da psicologia, atendimento para situação de crise seria a psicoterapia breve e esta não é suficiente para a superação da situação de violência, segundo os/as entrevistados/as da pesquisa do Crepop. Da perspectiva do feminismo, atendimento em crise, como menciona Machado (2004), citada anteriormente, se caracterizava por: postura educativa, paradigma feminista, planejamento para a segurança, ênfase no empoderamento, decisões tomadas em curtos prazos e a ênfase na mudança social nos papéis tradicionais de gênero. Assim, no contexto do atendimento às mulheres em situação de violência, psicólogas, parecem assumir o discurso feminista, pois é o que elas têm como referência de como se deve promover a mudança das mulheres, mesmo que, ao mesmo tempo sejam avaliados como não-conhecedores/as da política pública especializada por utilizarem suas referências profissionais. E, nessa tentativa de realizar algo que seja compatível com as expectativas da proposta oficial, não definem o que seria para além da perspectiva clínica ou acompanhamento psicossocial. Dessa maneira, pode-se supor que essa forma de compreender o trabalho que deveria ser realizado é fruto das orientações oferecidas pelas políticas especializadas para as mulheres em situação de violência. Há, também, nessas ideias, alguns pressupostos que merecem uma reflexão. Primeiro, que a intervenção clínica é necessariamente incompatível com o trabalho em psicologia que é esperado para a política pública específica. Todavia, não há uma definição do que é uma intervenção clínica, mas pode-se

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supor, pela conclusão citada, que é entendida como atendimentos individuais, pautados em teorias que consideram o sujeito humano como algo abstrato e separado do social ou teorias que “naturalizam” a violência. No entanto, entre as 27 referências teóricas ou conceitos apontados como os que orientam as ações cotidianas da psicologia, no contexto da intervenção com mulheres em situação de violência (CFP, 2010a, pp. 40-41), 18 são áreas/escolas/teorias psicológicas, como se pode ver no Quadro 2:

Quadro 2 Lista das escolas de psicologia citadas como as que orientam a intervenção de psicólogos/as no estudo do CFP (2010, pp. 40-41), categorizada como teorias tradicionais e recentes Teorias tradicionais da psicologia Psicologia Humanista /Abordagem Centrada na Pessoa – ACP/ Atendimento centrado na pessoa. Psicologia Existencialista Gestalt Psicodrama Psicanálise / Pichon-Rivière Psicoterapia Breve Psicologia Junguiana Psicologia Clínica Psicologia Comportamental /Psicologia Cognitiva Teorias recentes da psicologia Psicologia Compreensiva Psicologia Holística Psicologia Sócio-Histórica Psicologia Social e Comunitária Psicologia Jurídica Psicologia Sistêmica / Conceito de resiliência Conceito de representação social Psicologia Institucional Psicologia do desenvolvimento – Bioecológico / Urie Bronfenbrenner

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Os dados apresentados apontam uma contradição com a própria conclusão do documento, pois, pelo menos, oito das escolas teóricas da psicologia citadas são áreas da psicologia ou conceitos que propõem uma psicologia “mais expandida”, que tem como proposta uma intervenção menos centrada no indivíduo. São áreas/escolas/conceitos mais recentes que tentam explicitar os fenômenos psicológicos, os processos individuais, destacando a importância do social e da cultura para a realização das intervenções em psicologia. Todavia, as demais escolas, mais tradicionais, não estão comprometidas necessariamente com uma psicologia circunscrita aos processos psíquicos individuais e alheia aos processos de ordem social. A psicologia e suas teorias, como qualquer instituição, a partir de determinados entendimentos, serviram a alguns objetivos em determinada época. Porém, não podem hoje ser consideradas assim, pois houve uma redefinição política da categoria nos anos 1980 e um desenvolvimento enquanto ciência nas últimas décadas, quando em todas essas teorias clássicas houve uma explicitação da constituição da subjetividade na interação com o social, o cultural e o histórico. O uso do argumento de uma psicologia psicologizante necessariamente tenta negar esse processo de transformação pelo qual passou a psicologia nas últimas décadas. As psicólogas e psicólogos afirmam também que orientam suas ações a partir de mais 10 referenciais teóricos/conceitos/áreas e que não são da psicologia (CFP, 2010a, pp. 40-41), como: Direito / Código Civil e Penal/ Direitos Humanos; Saúde Pública / Política da Assistência Social da Saúde/ Atendimento breve/ Educação; Relações de Gênero / Plano Nacional de Políticas para as Mulheres/ Lei Maria da Penha/ Movimentos Feministas e leituras feministas/ Bárbara Soares /Mirian Grossi; Estudo da Violência / Redução de Danos; Filosofia / Michel Foucault; Sociologia / Conceito de família/ Conceito de patriarcado; Antropologia; Teologia; e, Políticas Públicas. Observamos, assim, que a maior parte da referência teórica ou conceitos citados por esses/as profissionais não estão no grupo que poderia ser entendido como o que trabalha uma psicologia individualizante, “naturalizante”. E, mesmo que assim fosse entendido, a utilização desses referenciais fora da psicologia não permitiriam essa compreensão. Dessa forma, referir que o “... trabalho está relacionado à atuação clí-

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nica, ao sigilo e à escuta do profissional da Psicologia, o que nos permite inferir que o desconhecimento acerca da política não possibilita um olhar para além da perspectiva clínica” (CFP, 2010a, p. 41-42) é um equivoco, considerando as próprias referências que os/as entrevistados/as na pesquisa do Crepop revelaram utilizar, pois não seria necessariamente o conhecimento da política específica de intervenção no contexto da violência contra as mulheres que possibilitaria um olhar para além da perspectiva clínica, ou seja, considerando as determinações sociais e culturais do fenômeno, pois várias das áreas da psicologia citadas já desenvolvem essa questão. Além disso, a lista de outras referências, utilizadas pelos/as entrevistados/as, para além das teorias psicológicas, mostra que não há essa simplificação do fenômeno da violência e nem o entendimento de que a intervenção precisa se limitar à compreensão de fenômenos pessoais, subjetivos – pressupostos quando se fala de atuação clínica, modelo clínico, perspectiva clínica -, como se esses pudessem ser separados do contexto social, político, cultural e histórico. Esses dados chamam a atenção também quando se observa os percentuais: 42,5% apontam o Direito como área que influencia fortemente sua atuação entre opções como Saúde Mental, Saúde Pública e Psicanálise; 79,6% referem que a atividade mais frequente em sua prática é o acolhimento e o aconselhamento, entre opções como assistência/tratamento psicológico (67%) e supervisão psicológica (18,4%). É interessante destacar que Narvaz (2010), diante do mesmo documento do Crepop (CFP, 2008), refere: “... identificamos que psicólogos(as) que trabalham em programas de atenção às mulheres em situação de violência têm sua formação baseada predominantemente no referencial teórico da psicanálise” (NARVAZ, 2010, p. 48). É certo que pesquisas constatam que há uma tendência para a utilização das abordagens psicanalíticas entre as psicólogas e psicólogos brasileiros, como, por exemplo, observou o estudo de Gondim, Bastos e Peixoto(2010), sobre as orientações teóricas utilizadas pela categoria: 20,2% refere utilizar a abordagem psicanalítica, 14,9%, a abordagem humanista, 13,6%, a comportamental, 12,8% a sócio-histórica e 12,7%, a abordagens cognitivistas. Dessa forma, avalia-se que, dentro desse corpo de respostas, a conclusão da autora sobre a pesquisa do Crepop não tem consistência, pois

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mesmo sendo a única teoria psicológica citada pelos/as psicólogos/as entrevistados/as, a Psicanálise ficou em quarto lugar, depois de respostas como Direito e Saúde Mental, como área do conhecimento que mais influencia seu trabalho. O que é estranho nessas respostas é um/a profissional da psicologia ter como referência principal para seu trabalho em psicologia conhecimentos que não são as teorias psicológicas. É de se questionar porque Narvaz (2010) entende esse dado como uma afirmação que psicólogos/as têm a formação baseada predominantemente no referencial da psicanálise, pois nesta pesquisa esta foi a única teoria psicológica entre os referenciais citados e, mesmo assim, não como referência principal para a realização do trabalho. Não se pode negar que esta é uma característica da psicologia no Brasil, e os dados de Gondim et al. (2010) demonstram que, de fato, a psicanálise, em suas mais diversificadas formas, “... teve ampla disseminação acadêmica e cultural, sendo o referencial predominante nas disciplinas de Psicologia Clínica dos cursos de graduação em nosso meio” (NARVAZ, 2010, p. 48), mas não são os dados do Crepop (CFP, 2008) que demonstram isso. Essa pesquisa do Crepop (CFP, 2008, 2010a) é significativa, pois demonstra a preocupação da psicologia brasileira com o tema e o compromisso em estabelecer referências para a atuação dos/as profissionais nessas políticas. Contudo, como foram entrevistados/as apenas os/as profissionais que estão realizando o trabalho nas políticas públicas especializadas no atendimento às mulheres em situação de violência, esse resultado está possivelmente influenciado pelas orientações normativas para esses serviços, anteriores à pesquisa e única referência para esses/as profissionais. Talvez por isso que resultados como os que serão apresentados a seguir, surgiram. Na lista dos marcos lógicos e legais que norteiam o trabalho na área (CFP, 2008), as psicólogas e psicólogos apresentam como principal marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos (62,1%) e, em seguida, as convenções internacionais, como Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (35,9%) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (33%); também é destacada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Princípios e Diretrizes) (13,6%). Quanto às publicações específicas da SPM, 58,3% apontam como um dos cinco marcos mais importante para a realização do trabalho o Pla-

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no Nacional de Políticas para as Mulheres II e 39,8%, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres I, e não houve referência ao Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que foi um dos documentos apresentados para as/os entrevistadas/os. Esses dados chamam a atenção, pois, desses documentos apresentados como marcos e diretrizes para a realização do trabalho, na oportunidade da pesquisa específica para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência, não aparecem as normas técnicas ou termos de referência (BRASIL, 2005a, 2005b, 2006a, 2006b) que, de alguma forma, apresentam as orientações para o trabalho de psicologia a ser desenvolvido e que serão avaliadas mais adiante. Já Hanada et al. (2008) apresentam uma avaliação de algum desses documentos da SPM (BRASIL, 2005a, 2005b, 2006a, 2006b) e consideram que: [...] não são documentos somente técnicos, mas com importante dimensão política. [...] o atendimento psicológico muitas vezes se confundiu com o trabalho do assistente social [...] o trabalho específico do psicólogo é pouco delimitado, girando em torno de aspectos como: escuta qualificada e acolhimento, fortalecimento, promoção da auto-estima, superação da situação de violência e promoção de autonomia das mulheres. Aspectos que também foram colocados para toda a equipe multiprofissional (HANADA et al., 2008, p. 03).

No entanto, ao mesmo tempo, as autoras apontam que nos documentos de 2006 (BRASIL, 2006a, 2006b) “... o lugar do psicólogo aparentemente ficou melhor definido na rede de assistência do que nos outros documentos” (HANADA et al., 2008, p. 03). Porém, entendem que esses documentos ainda não discutem a diferença entre a intervenção dos psicólogos “... especializados no trato com situações de violência e psicólogos da rede de saúde” (p. 03). Há uma imprecisão nesse entendimento, pois a discussão é que os/ as psicólogos/as insistem em intervenções individualizadas, não atentando ao que se faz necessário, que é, segundo essas autoras, trabalhar o ‘resgate’ e ‘fortalecimento’ da autoestima, tão presentes nos documentos, para além da valorização de si na dimensão emocional, e sim o:

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[...] fortalecimento das mulheres, no sentido da redistribuição de poder em favor delas, sendo necessárias mudanças na ideologia patriarcal, nas estruturas das instituições sociais (família, classe, religião, processos educacionais e suas instituições, mídia, serviços e práticas de saúde, leis e códigos civis, instituições governamentais) que reforçariam e perpetuariam a discriminação de gênero e iniqüidades sociais (HANADA et al., 2008, p. 06, não grifado no original).

Há uma expectativa de que os/as psicólogos/as desempenhem um serviço especializado, que ainda não foi definido pelos documentos normativos, que precisa servir a uma emancipação de ordem política para a mudança de um tipo de ideologia, mas que é realizado de forma a tornar-se “... individualizado e psicologizado, com compreensão reduzida do trabalho possível do psicólogo na emancipação dessas mulheres e no enfrentamento à violência vivida” (HANADA et al., 2008, p. 06, não grifado no original). Todavia, as próprias autoras falam de atuações dos/as psicólogos/as nessas políticas especializadas: Os psicólogos dos serviços paulistas estudados realizam também atividades de caráter sócio-educativo, de orientação (de direitos, de saúde, sobre os recursos sociais) e mediação de conflitos. Além destes, em alguns serviços (principalmente policiais e jurídicos), estavam na função de oferecer apoio pontual e de urgência, acolhendo “desabafos” e dando “apoio emocional” à clientela do serviço (HANADA et al., 2008, p. 06).

Ou seja, ações não exclusivamente psicoterápicas, realizando atividades que poderiam ser realizadas por outros profissionais. E, assim, fica uma dúvida: qual seria o trabalho possível do psicólogo nesse contexto? Ao mesmo tempo, esses documentos (BRASIL, 2006a, 2006b) não foram referidos na pesquisa do Crepop e, dessa forma, não se sabe o que eles podem significar para o grupo estudado. Segundo Machado (2004), a referência para a intervenção psicológica nos casos de violência contra as mulheres foi influenciada pelos modelos da intervenção em crise e feministas, que se tornaram marco teórico, apesar de outras perspectivas possíveis de intervenção, como, segundo a autora, a

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cognitivo-comportamental, por exemplo. Dessa forma, para esta autora há vantagens para as intervenções baseadas nessas referências, contudo, do ponto de vista do sofrimento psíquico presente nesse tipo de situação, começam a surgir dificuldades. A primeira seria a expectativa de que a/o psicóloga/o teria um alinhamento com a defesa dos interesses e direitos da vítima, tendo que assumir essa defesa e comprometendo os possíveis resultados de uma intervenção em psicologia. Para Machado (2004), a referência nesse marco teórico pode potencializar o atendimento realizado, mas também apresenta paradoxos e problemas como os limites da rede de atendimento. Contudo, as dificuldades mais relevantes seriam as internas à própria atuação em psicologia. Dentre essas, que a autora chama “dilemas”, destacam-se três: teóricos, técnicos e emocionais. Dentre os dilemas teóricos, Machado (2004) questiona dois postulados centrais dos modelos feministas e de intervenção em crise: a postura educativa e a percepção da vítima como “sobrevivente” (essa última mais características dos modelos feministas). A perspectiva educativa, que inclui apresentar como ocorre o ciclo de violência ou quais as estratégias de dominação utilizadas pelos agressores, pressupõe que o/a psicólogo/a sabe melhor do que a mulher atendida sobre o que vai acontecer e sobre o que é melhor para ela. A autora questiona se essa seria a tarefa de um psicólogo nesse contexto de intervenção e, nesse ponto, a discussão converge para o estudo aqui proposto, principalmente, quando se observa que, no Brasil, as psicólogas não percebem ou não identificam as violências a que são submetidas (CFP, 2012a). Qual é o papel que psicólogas e psicólogos poderiam e teriam condições de desenvolver nesse contexto que pudessem contribuir para uma mudança na vida das mulheres que demandam o atendimento psicológico? A noção de “sobrevivente”, para Machado (2004), é limitante e simplista, por pensar numa equação dominante-dominado, um herói-vítima versus um vilão demoníaco, que perpassa uma avaliação moral; o agressor é “mal” e não se leva em conta que a dimensão cultural dos papéis de gênero também promove a referência do uso da violência para os homens. Essa perspectiva apresenta uma potencialidade para a frustração, quando a mulher não consegue corresponder à expectativa desse papel heroico. Talvez seja isso que promova tanta frustração para a equipe de atendimento

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de toda a rede, quando a mulher que denunciou, separou... volta a conviver com o parceiro. Por fim, Machado (2004) destaca o conflito que pode existir entre os valores das mulheres atendidas nos serviços especializados e a ideologia de gênero que dá a base teórica para o modelo de intervenção proposto para esses casos de violência, entre o que o serviço oferece e o que as mulheres desejam. Pode-se pensar se essa questão seria uma possível explicação para a resistência que existe tanto para as mulheres buscarem as políticas públicas que lhe são oferecidas quanto para efetivarem uma mudança de sua situação de vida, como na experiência das delegacias especializadas (BRANDÃO, 1998) e das casas-abrigo (MENEGHEL et al., 2000). Dessa forma, mesmo quando são atendidas pelos serviços dessa rede, aproximadamente 1/3 retorna às situações de violência (GARCIA et al., 2008). Parece haver uma expectativa de que as mulheres precisam se adequar aos serviços oferecidos, e de que esses só têm uma forma de existir. Talvez exista, no contexto dessas discussões teóricas, um equívoco entre o entendimento das causas de um sofrimento psíquico e o que se pode fazer para atenuá-lo. Tirar da psicologia o lugar da atuação clínica, da escuta do sofrimento psíquico e das dores da alma e a garantia do sigilo profissional, como parece sugerir a pesquisa do Crepop (CFP, 2010a), entendendo que dessa forma se promove uma psicologia mais “engajada”, “social”, é algo que não faz sentido. Por que a psicologia, para considerar o contexto social, a cultura, a influência da história, precisaria não atuar de forma clínica, não se colocar para a escuta e a guarda do sigilo? O que se destaca dessa questão é a ideia de que, para ser ‘social’ e intervir numa política pública, a psicologia precisa deixar de ser clínica, de escutar o sofrimento e de se comprometer com o sigilo. O objetivo da psicologia é estudar o comportamento, os processos mentais, o psiquismo, a cognição, a “mente”, a consciência, a identidade, o self, as percepções, as emoções, o desejo, o inconsciente, e intervir nesses aspectos do humano. A demanda por abandonar esse foco, com o argumento de que só dessa forma estará sendo menos centrado no indivíduo e mais centrado no social, não se sustenta. A atribuição principal de um/a psicólogo/a é intervir na experiência humana interna, psíquica, em qualquer circunstância de trabalho, e isso não significa que está entendendo que essa experiência se passa no nível individual, subjetivo, intrapsíquico sem que haja influência do social.

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Todavia, intervir a partir de algo que não é o que se coloca como objetivo da psicologia, ou seja, quando um/a psicólogo/a refere utilizar como referencial teórico, para orientação de sua intervenção profissional, o Direito, a Filosofia, a Antropologia e a Teologia (CFP, 2010a, p. 41-42), isso não significa atuar de forma mais ampla ou menos centrada no indivíduo. Significa exercer uma prática fora do escopo teórico que foi formado e intervir a partir de conhecimentos dos quais não tem formação para atuar e, o pior, deixa de fazer a intervenção para a qual se preparou: escutar e acolher as dores, emoções e sofrimento psíquico vivenciados pelas mulheres que sofrem violência, uma parte importante no processo de superação da situação de violência, mas não a única. É importante destacar que o estudo, ora apresentado, foi proposto a partir do entendimento de que se faz necessário realizar uma análise crítica das propostas de intervenção das políticas públicas para as mulheres em situação de violência, reconhecendo-se os avanços que tanto o Movimento Feminista quanto a SPM trouxeram para a vida das mulheres e para o processo de controle da violência que as atinge. Entenda-se que a militância feminista se faz necessária e que a intervenção gestora da SPM também. Porém, há que se refletir sobre os resultados, dificuldades e conflitos do que é proposto para o enfrentamento da violência contra as mulheres. A experiência de Portugal, descrita no texto de Machado (2004), foi fundamental no processo de construção deste estudo, pois mobilizou a necessidade de se saber como as propostas para a intervenção em psicologia, para as mulheres em situação de violência, estavam sendo colocadas e quais suas consequências aqui no Brasil.

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2 SOBRE OS CAMINHOS PARA ALCANÇAR ALGUMAS RESPOSTAS

Cada comunidade pesquisa (e habita) um mundo construído em grande parte por ela mesma. Os problemas que interessam, os fenômenos relevantes etc. são peculiares a este mundo, bem com os métodos, técnicas e instrumentos legítimos de pesquisa dos objetos deste mundo (FIGUEIREDO, 2008, p. 177).

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A proposta metodológica é de um estudo qualitativo, descritivo-analítico, dada a escassez de referências bibliográficas que tratem deste tema: violência contra as mulheres e atendimento psicológico. Para tal, foram realizados um estudo documental e uma pesquisa de campo. Como técnica de análise dos dados, utilizou-se a Análise do Discurso. A justificativa para a realização dessa análise está na constatação de que os/as psicólogos/as são apresentados/as como profissionais que compõem a estrutura mínima de recursos humanos para o desenvolvimento das ações pretendidas pela SPM, figurando, dessa forma, a intervenção em psicologia como uma atividade relevante dentro da política pública proposta. No entanto, ao mesmo tempo, a intervenção em psicologia é reconhecida pelo ativismo feminista como uma intervenção que não promove os objetivos que as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres pretendem alcançar, como já apresentado anteriormente. Há, neste caso, um elemento eminentemente político, que atravessa a psicologia como ciência e profissão, fazendo com que a análise do discurso ofereça uma possibilidade de entendimento do que significam as demandas e as resistências, seus sentidos e significados no contexto estudado.

1. A Análise do Discurso – AD: algumas considerações Teve-se como objetivo realizar uma análise do discurso para identificar as funções dos textos produzidos pela SPM para orientar o atendimento psicológico às mulheres em situação de violência, como eles são organizados para se tornarem persuasivos, o que defendem e qual é o objetivo que se tem com a orientação proposta. A Análise do Discurso é uma ferramenta importante no contexto deste estudo, pois entende o discurso para além de seus aspectos linguísticos, considerando as questões sociais, ideológicas, políticas das palavras utilizadas para ser pronunciado e, também, faz uma interface com a Psicanálise e o Materialismo Histórico (CAREGNATO & MUTTI, 2006). Para os autores dessa disciplina/teoria, o discurso revela sentidos a partir do lugar social do sujeito (FOUCAULT, 1969/2010; FERNANDES, 2008). O sujeito é definido não como um indivíduo, e sim como um efeito 66


(RIVERA, 2007), intercruzando-se com a perspectiva psicanalítica e a contradição, como define Foucault (1969/2010): [...] é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada: só tem seu lugar na defasagem existente entre consciência e o inconsciente, o pensamento e o texto, a idealidade e o corpo contingente da expressão [...] O discurso é o caminho de uma contradição a outra: se dá lugar às que vemos, é que obedece à que oculta. Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia aparência (p. 170-171).

É a partir dessa compreensão do discurso que a análise proposta se revela, ou seja, identificar os sentidos dos enunciados no contexto histórico e político de sua produção, portanto a AD se faz importante no estudo das políticas públicas, neste caso, da política pública para mulheres em situação de violência, pois faz interfaces com algumas áreas e teorias que dão suporte à discussão apresentada: A AD não é uma metodologia, é uma disciplina de interpretação fundada pela intersecção de epistemologias distintas, pertencentes a áreas da linguística, do materialismo histórico e da psicanálise. Essa contribuição ocorreu da seguinte forma: da linguística deslocou-se a noção de fala para discurso; do materialismo histórico emergiu a teoria da ideologia; e finalmente da psicanálise veio a noção de inconsciente que a AD trabalha com o de-centramento do sujeito. O processo de análise discursiva tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais, bastando que sua materialidade produza sentidos para interpretação; podem ser entrecruzadas com séries textuais (orais ou escritas) ou imagens (fotografias) [...], portanto, quem segue este princípio pode afirmar uma filiação com a AD da linha francesa (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 680).

Diante dessa reflexão, a linha de análise que será tomada para este estudo é a linha francesa, que tem como principais referências Pêcheux e Foucault. Embora se saiba as divergências teóricas entre esses autores, es-

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tas não inviabilizam a análise a partir da interfase linguística, materialismo histórico e pressupostos psicanalíticos. Quanto à referência ao materialismo histórico, é importante destacar a alusão feita aos autores da história social inglesa, que discutem o materialismo histórico considerando também questões como representações, valores, crenças, atitudes emocionais, além de observar o destaque que Willians (1989, p. 14) dá aos “inúmeros sentimentos” presentes em suas reflexões, em sua construção intelectual. Experiências humanas – sentimentos e pensamentos - podem ser pensadas do ponto de vista histórico, econômico e psicológico, pois não são excludentes, necessariamente, pelo contrário, se relacionam. Burker (1995) apresenta as determinações de sentido e significado a partir da força, de imposições e que essas são feitas de múltiplas formas ,como a partir do campo da linguagem. Essa discussão também remete às teorias psicanalíticas, à junção linguagem e corpo, e dá condições de pensar essas ideias articulando a linguagem, tanto da perspectiva dos pressupostos psicanalíticos quanto da história social que se encontram nesse ponto, pois, mesmo que essas ciências não façam a mesma análise, se atêm ao mesmo foco, ao mesmo fenômeno: o discurso. Segundo Fernandes (2008), o sujeito discursivo é composto por várias “vozes sociais” (p. 35), marcado por discursos diferentes, presenças de outras vozes, de forma explícita ou implícita. Vozes essas constituídas a partir dos espaços sociais diversos. Dessa forma, a AD não objetiva entender o discurso como um caminho para entender outra realidade existente por detrás do discurso, e sim, os textos em si mesmos, não em seu conteúdo, mas no efeito de seu sentido. Assim, pretende-se identificar, com base nos textos já citados, a função do discurso expresso pela SPM com relação ao atendimento psicológico às mulheres em situação de violência, pois o discurso não ocorre em um vácuo social, ou seja, todo discurso é circunstancial. E, para isso, faz-se necessário analisar o discurso e o contexto interpretativo (onde, quando, com quem, o quê), identificar as funções das falas e dos textos e explorar como eles são realizados e como o discurso se organiza a fim de se tornar persuasivo (GILL, 2002/2008), além de ser importante destacar que, no final, tem-se uma versão diante das outras possíveis. Foucault (1969/2010) questiona: “... como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (p. 30). Os enunciados apresentam um sentido e revelam conflitos consequentes “...dos lugares sociais assumi-

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dos por diferentes sujeitos socialmente organizados” (FERNANDES, 2008, p. 38). Também é preciso, para a realização de uma AD, identificar as formações discursivas e como são empregadas; como é feito o uso dos verbos – como são conjugados; quais os tipos de palavras usadas – advérbios, adjetivos; qual o tipo de linguagem (direta, indireta) (LEMMERTZ, 2004). Assim, com base nessa perspectiva de análise, é que os documentos oficiais da SPM, para o atendimento psicológico de mulheres em situação de violência, foram examinados. Pode-se dizer que existem muitos estilos diferentes de análise e que estas podem ser utilizadas em campos como: sociologia da ciência, os estudos da mídia e de tecnologia; psicologia social e análise de políticas. Nesse contexto, Gill (2002/2008) propõe a classificação dessas diferentes formas de AD em três tradições teóricas mais amplas: a) Linguística crítica, semiótica social ou crítica e estudos da linguagem (mais próxima da análise estruturalista); b) Teoria do ato de falar, etnometodologia e análise da conversação – orientação funcional ou da ação que o discurso possui; o que as narrações têm como objetivo conseguir; e, c) A associada com o pós-estruturalismo, que objetiva olhar historicamente o discurso. Todavia, para este estudo a perspectiva da AD utilizada é a da linha francesa, como já esclarecido anteriormente. Dessa forma, a AD promove a análise de falas e de textos em quatro temas principais: preocupação com o discurso em si mesmo; visão da linguagem como construtiva e construída; discurso/forma de ação; convicção na organização retórica do discurso (GILL, 2002/2008). Segundo Caregnato e Mutti (2006), é necessário identificar nos textos a serem analisados a ideologia, a história e a linguagem, atentando para os sentidos pré-constituídos, a memória do dizer, as condições de produção do discurso e como o discurso está funcionando. A AD investiga como o conteúdo é usado para o alcance de determinados efeitos. Assim, é importante verificar a forma pela qual se diz alguma coisa; observar o que as narrações têm como objetivo conseguir; permite reconhecer o significado tanto do que está explícito na mensagem quanto do que está implícito; portanto, não só o que se fala, mas como se fala.

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2. Estudo documental Foram analisados 12 documentos, entre relatórios, manuais, termos de referência e normas técnicas, publicados pela SPM, de 2003 (ano de sua criação) a 2010, os quais, de alguma forma, se referem aos atendimentos psicológicos para mulheres em situação de violência, descrevem e orientam as ações de referência de forma implícita ou explícita ou servem para nortear as psicólogas e psicólogos em seus atendimentos nos serviços que compõem a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2003a, 2004, 2005a, 2005b, 2006a, 2006b, 2006c, 2009, 2010a, 2010b; TAQUETTE, 2007a; TAQUETTE et al., 2007b.). Assim, os trechos dos documentos que se enquadravam nesse critério foram transcritos para possibilitar a realização das análises pretendidas. Para a identificação desses trechos de interesse para a análise, foi utilizada a técnica de busca de palavras-chave como: psicólogo/a/os/as, psicologia, psicanálise. Após as primeiras análises, a pesquisa se estendeu para palavras como depressão, ansiedade, resiliência e arteterapia. Para operacionalizar essa análise, foram estruturados alguns quadros a partir de categorias, como: área na qual a psicologia é delimitada, composição da equipe nos serviços especializados, intervenção proposta para ser realizada pelas equipes/profissionais, temas a serem trabalhados, além dos conceitos que fundamentam as publicações e o referencial teórico de psicologia que é utilizado, tipo de texto, formação dos autores/as, estrutura formal da publicação e seu objetivo. Os quadros foram feitos também por documento, especificando o que cada documento apresentava em relação às categorias definidas, o que facilitou a composição dos quadros citados, propiciando duas formas de perceber as informações, ou seja, o que cada documento apresenta com relação a cada categoria determinada e, por fim, como cada categoria é apresentada no conjunto dos documentos, numa perspectiva temporal. É importante destacar que partes dos documentos, as quais não constavam a temática estudada, não foram transcritas de forma a ter um foco no ponto de interesse para a discussão proposta e por conta da necessidade de apresentar um trabalho sucinto e conciso. As partes retiradas estão identificadas com o símbolo [...].

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3. Pesquisa de campo Para tal foi utilizada a entrevista semiestruturada18 presencial como técnica para a investigação, após os resultados de um estudo inicial através de um questionário online (PORTO & BUCHER-MALUSCHKE, 2012a)19. As psicólogas inscritas no CRP 20 - seção Acre (CFP, 2011) foram convidadas a participar da entrevista a partir de um convite via mensagem eletrônica. Tinha-se como objetivo entrevistar psicólogas que atendem ou atenderam na rede de enfrentamento à violência contra as mulheres e psicólogas que não tinham essa experiência, de forma que pudesse haver uma comparação entre as respostas dos dois grupos. Das 31 psicólogas convidadas, 15 manifestaram o desejo em participar como voluntárias de pesquisa, mas só 12 efetivaram a participação. Assim, foram realizadas 12 entrevistas, de fevereiro a março de 2012, sendo seis com psicólogas que tinham experiência em serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, em especial, o centro de referência e a casa-abrigo, e seis com psicólogas que nunca fizeram atendimento em serviço especializado de atendimento às mulheres, mas que já atenderam ou atendem mulheres em situação de violência. Por fim, desse último grupo, uma psicóloga teve experiência de atendimento com meninas em situação de conflito com a lei e outra, por não ter ainda a psicóloga para atender no serviço especializado para mulheres em situação de violência, quando foi solicitada, realizou alguns atendimentos. No decorrer da entrevista, nos casos em que a psicóloga não entendia a frase apresentada na escala de avaliação, foi orientado que comentasse a partir do que entendeu, independentemente de ser o entendimento “cer18 - A entrevista foi dividida em três partes. A parte inicial investigou temas como a forma de identificação do caso de violência, a intervenção realizada, o que conhece dos documentos da Secretaria de Política para as Mulheres SPM, como viveu a experiência de atender mulheres em situação de violência, quais as teorias indicadas para essa intervenção, como compreende o fenômeno da violência contra as mulheres e como explicam as situações em que as mulheres, mesmo após receber apoio, continuam nas situações mediadas pela violência. Também tinha questões sobre o resultado e a avaliação da eficácia, dificuldades e facilidades para o atendimento psicológico. Por fim, o papel que o psicólogo/a tem/teve na equipe multiprofissional. Ainda foi aplicada uma escala onde a psicóloga avaliava seu grau de concordância com as orientações referentes ao atendimento psicológico que foram retiradas dos manuais, portarias e termos de referência da SPM e, por fim, a aplicação de um questionário fechado para a definição de um perfil biosociodemográfico e de formação em psicologia da informante. Estes dois últimos itens serão apresentados nesta publicação. Os outros resultados foram publicados em formato de artigo científico (Porto & BUCHER-MALUSCHKE, 2012a, 2012b). 19 - O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Acre em 13.10.2010, protocolo nº 23107.014891/2010-79.

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to”. Seria o entendimento possível quando não se tem o texto completo, sendo apresentadas as frases que foram destacadas dos textos selecionados. Nos casos em que o documento oferecia uma explicação para o termo como, por exemplo, “resiliência”, quando a informante não entendia, era explicado a partir do significado dado pelo manual. Quando não havia a explicação, era solicitado que a entrevistada comentasse a partir do que foi possível compreender, pois a entrevistadora também não sabia o que significava. Por fim, para as que não entendiam o que era a “rede de atendimento”, eram elencados os serviços que a compõe casa-abrigo, centro de referência, delegacia especializada, serviço de aborto previsto na lei, entre outros. As entrevistas foram gravadas em aparelho digital e, posteriormente, transcritas e revisadas. A revisão foi realizada com a leitura do texto transcrito simultâneamente ao áudio, para tentar corrigir eventuais erros de transcrição. Vale destacar que, nos trechos escolhidos para ilustrar as análises constituídas, foram retirados os vícios de linguagem, como ‘né’ e ‘tá’, após consulta às psicólogas entrevistadas sobre o que gostariam de ter publicado nos resultados da pesquisa. Entende-se que essa decisão não trouxe prejuízo para a análise pretendida, pois se fazia necessário respeitar a solicitação das informantes para o uso de suas falas, além de possibilitar uma melhor leitura do texto.

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3 AS ORIENTAÇÕES DA SPM – DE UM SUPORTE ÀS PROFISSIONAIS À IDENTIFICAÇÃO DAS AMBIGUIDADES

Por um lado, a abordagem clínica das vítimas de violência coaduna – na possibilidade de uma abertura para a palavra - com a dimensão terapêutica de uma reestruturação subjetiva e com a dimensão ética de uma restituição da dignidade. Por outro, contribui para a investigação e para o conhecimento dos processos de dominação e sujeição no campo complexo da construção e da instituição social do gênero (FUKS, 2008, p. 310).

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1. As orientações da SPM: uma avaliação preliminar Como apresentado anteriormente, as publicações da SPM variam entre manuais, termos de referência, que se apresentam em uma portaria (documento oficial), e no formato de manual, em uma norma técnica, além de publicações que relatam experiências ou resultado de conferências e avaliações da política e ainda as que apresentam textos mais teóricos. Algumas publicações têm autoria explicitada e outras ficam como autoria institucional. Há psicólogas e psicólogos compondo a lista de autores/as em algumas publicações (BRASIL, 2003a, 2010b; TAQUETTE, 2007a; TAQUETTE et al., 2007b). O curioso é, que, na publicação que mais apresenta questões referentes à atuação em psicologia (BRASIL, 2006b), não há a explicitação da participação de psicólogos/as em sua elaboração. Na publicação de 2003, há a apresentação do chamado Protocolo: orientações e estratégias para a implementação de Casas-abrigo (BRASIL, 2003a, p. 55), que pode ser considerado um precursor das normas técnicas publicadas a partir de 2006. Uma das publicações de 2010 faz uma avaliação dessa política proposta desde 2003 (BRASIL, 2003a), e amplia sua função, como, por exemplo, ampliando a ação de proteção às mulheres em situação de tráfico de pessoas (BRASIL, 2010a). A maioria dos documentos revela uma estrutura descritiva, que apresenta os pressupostos teóricos e a forma de operacionalizar os serviços de casa-abrigo e/ou centro de referência para mulheres em situação de violência, detalhando sua implementação. Uma portaria em 2005 descreve a instalação dos centros de referência e, em 2006 apresenta um detalhamento das ações na norma técnica (BRASIL, 2005a, 2006b). Os demais documentos, que não discutem sobre as políticas citadas, apresentam o plano nacional de políticas para as mulheres, as ações específicas para as adolescentes, a norma técnica para as delegacias da mulher e ações em segurança pública e, por fim, uma visão integral do fenômeno da violência contra as mulheres. Nas publicações definidas para este estudo, a partir das categorias apresentadas, as psicólogas e psicólogos ficam delimitados, quando estão explicitados nos textos, na maioria dos documentos, como profissionais da saúde e/ou da área social, compondo o quadro da equipe mínima, ou seja,

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da equipe fundamental para o desenvolvimento do serviço. Em apenas dois documentos, onde não existe a explicitação do profissional de psicologia, há referência a uma assistência psicossocial ou à necessidade de garantir o bem-estar psicológico e o “atendimento integral, que leve em conta os aspectos jurídico, psicológico e social.” (BRASIL, 2010a, p. 02), o que pressupõe a presença do/a psicólogo/a na equipe. Por fim, há, em uma das publicações, a referência da capacitação de psicólogos/as nas equipes multiprofissionais nos serviços básicos do Sistema Único de Assistência Social - Suas. Em dois documentos há o destaque sobre a necessidade de algumas características do profissional da equipe, entre eles a/o psicóloga/o, como: um “perfil profissional e sua possibilidade de adequação às necessidades de trabalho” (BASTOS & SILVA, 2007, p. 131), e ainda como precisando de “capacitação técnica e emocional dos profissionais” (PHEBO, 2007, p. 33). Essas orientações têm como referência principal, no que tange às necessidades para a realização do trabalho, a utilização da categoria gênero. Assim, supõe-se que esse perfil seja uma identificação com a temática da violência contra as mulheres a partir dos pressupostos do feminismo. No entanto, o que significa capacitação emocional não foi possível entender. Assim, poder-se-ia questionar: quem realizaria essa capacitação emocional, o/a psicólogo/a ou qualquer profissional da equipe que discuta as questões da violência contra as mulheres a partir das questões de gênero? E, caso seja uma tarefa da psicologia, ela deve ser realizada pelo profissional que faz parte da equipe ou por outro/a psicólogo/a? Há, também, a demanda pela garantia da privacidade e confidencialidade das informações (2007a) pela equipe, mas, ao mesmo tempo, há a orientação para realização dos trabalhos em grupo e da produção de documentos para alimentarem os processos no judiciário. Aqui se encontra um conflito também apontado por Jasmine, uma das psicólogas entrevistadas: [...] eu, do meu ponto de vista como psicólogo [sic], eu acho que se eu tivesse que fazer um relatório sobre a situação daquela mulher, eu faria junto com ela. Eu chamaria ela pra sala. Eu digo olha, eu preciso escrever sobre como você está. Vamos fazer isso. É claro que eu colocaria isso em termos técnicos no sentido de um relatório. Mas eu pegaria dela. Eu não colheria dos atendimentos que foram feitos sobre ela, porque aí eu taria falando aquilo que eu concluí mediante

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a fala dela. Mas será que realmente a fala dela é aquilo que ela está querendo expor naquele momento? É... porque se tivesse, como [...] a abrigada, no caso, não está participando dessa rotina junto com a parte técnica, que entraria também o psicólogo. Eu acho que isso ficaria, assim, mais viável do psicólogo trabalhar toda essa situação com aquela abrigada, sem ela tá fantasiando do quê que tão falando de mim? (JASMINE).

Esse conflito pode gerar uma desconfiança da mulher, como referiu a entrevistada, com relação à/ao psicóloga/o. Machado (2004) considera esta desconfiança como consequência de um dilema técnico e ético: “[...] o cumprimento dos seus deveres legais poderá conduzir ao reforço do sentimento de impotência da vítima, à sua desconfiança face ao técnico ou ainda ao próprio abandono do processo terapêutico” (p. 406). Com relação à intervenção proposta para ser realizada pelas profissionais de psicologia, há orientações diversas nas publicações analisadas, entre elas a indicação de técnicas específicas, como realização de grupos focais (BRASIL, 2003a) e oficinas (BRASIL, 2003a, 2005b, 2006a), mas que não se restringem às psicólogas. Observou-se, ainda, a indicação da utilização de “Técnicas de relaxamento e controle do estresse, de resolução de conflitos e de assertividade” (2006b, p. 37), indicadas para serem realizadas por psicólogos/as. Assim, diante dessa orientação, algumas questões emergem: o trabalho do/a psicólogo/a seria o de repasse de técnicas para as mulheres aprenderem e utilizarem nos momentos de conflito ou seria uma técnica para ser utilizada no contexto do atendimento, de forma a promover mudanças na forma de a mulher lidar com a situação de violência? E o que se estaria tratando, quando existe a atenção para esse tipo de intervenção? Aqui, também, seria possível a atuação dos/as outros/as profissionais da equipe? Parece haver uma mistura entre técnicas de intervenção fundadas em teorias psicológicas e técnicas de proteção e segurança que não são da área da psicologia, mas estão sendo colocadas para as psicólogas desempenharem e, todavia, poderiam ser desempenhados pelas assistentes sociais ou advogadas, numa atividade de grupo ou individualmente. Há, também, a indicação de encaminhamentos tanto para fora dos limites da política (BRASIL, 2003a) quanto “... para tratamento em arte-terapia” (BRASIL, 2006b, p. 37) dentro dos limites do serviço. A norma

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técnica para centros de referência de atendimento às mulheres em situação de violência (BRASIL, 2006b) traz, pela primeira vez, a previsão de um diagnóstico psicológico aprofundado para que se possa realizar um encaminhamento de tratamento, todavia, indica a arteterapia e, nesse encaminhamento, a decisão da psicóloga seria também indicar se o tratamento em arteterapia será individual ou em grupo. Mais uma vez, o atendimento individual é destacado como pertinente. Parece que aqui fica mais próximo das questões da subjetividade, nos termos classicamente relacionados com a intervenção privativa da psicologia quando há a introdução de questões como diagnóstico psicológico e atendimentos individuais. Mas, ao mesmo tempo, o encaminhamento sugerido é para arteterapia, que não é psicologia, embora o documento apresente-a como “extensão do atendimento psicológico” (BRASIL, 2006b, p. 38) e, concomitantemente, refere que ser psicólogo apenas não capacita o/a profissional para tal intervenção: Arte-terapia é o termo que designa a utilização de recursos artísticos em contextos terapêuticos. Esta é uma definição ampla, pois pressupõe que o processo do fazer artístico tem o potencial de aura quando a cliente é acompanhada por um(a) arte-terapeuta experiente, que com ela constrói uma relação que facilita a ampliação da consciência e do autoconhecimento, favorecendo e possibilitando mudanças. É um campo de interface com especificidade própria, pois não se trata de simples “função” de conhecimentos de arte e de psicologia. Isso significa que não basta ser psicólogo e “gostar de arte” ou ser artista ou educador(a) e “gostar de trabalhar com pessoas com dificuldades especiais” (BRASIL, 2006b, p. 38, não grifado no original).

Isso parece apontar para o reforço da ideia de que nesse contexto não há espaço para a intervenção tradicional da psicologia, pois, mesmo diante de quadros e sintomas psíquicos clássicos, o tratamento não deve ser psicoterapia, e sim arteterapia, que é entendida nesse contexto como: Consiste numa extensão do atendimento psicológico e compreende sessões de atendimento individuais ou em grupo realizadas por um(a) arte-terapeuta, com o objetivo de resgatar o potencial criativo da mulher em situação de violência, ativando núcleos saudáveis de sua psique e estimulando movimentos de autonomia e transformação.

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[...] Por meio do criar em arte e do refletir sobre os processos e os trabalhos artísticos resultantes, a mulher atendida poderá ampliar o conhecimento que tem sobre si mesma e sobre os outros, aumentar sua auto-estima, aprender a lidar melhor com sintomas, estresse e experiências traumáticas, desenvolver recursos físicos, cognitivos e emocionais e desfrutar do prazer vital do fazer artístico (BRASIL, 2006b, p. 38, não grifado no original).

Todavia, considerando a ideia defendida nessa definição de que a arteterapia “consiste numa extensão do atendimento psicológico”, é importante destacar que a Resolução CFP N.º 013/2007 (CFP, 2007), no artigo 3º, apresenta as especialidades que podem ser concedidas a um/a psicólogo/a: Psicologia Escolar/Educacional; Psicologia Organizacional e do Trabalho; Psicologia de Trânsito; Psicologia Jurídica; Psicologia do Esporte; Psicologia Clínica; Psicologia Hospitalar; Psicopedagogia; Psicomotricidade; Psicologia Social e Neuropsicologia. Portanto, como se vê, não há indicação da arteterapia como fazendo parte do campo de especialização de um/a profissional da psicologia. A explicitação sobre o que é arteterapia também chama a atenção por alguns outros motivos: é um texto de autoria institucional e não apresenta se houve especialistas que formataram a norma técnica. Há, nessa norma técnica, a indicação dos profissionais para comporem a equipe do centro de referência, dentre outros, dois psicólogos, com indicação para um ficar no atendimento inicial e outro para o atendimento psicológico, além de uma arteterapeuta para atividades complementares. Contudo, a orientação é de que após o diagnóstico aprofundado, caso avalie como adequado, o psicólogo poderá encaminhar para a arteterapia, para uma intervenção complementar, para que a mulher aprenda a lidar com os sintomas diagnosticados. Nesse ponto, pode-se perguntar: onde ela poderá tratar esses sintomas? Assim, pode-se supor que o psicólogo indicado para o atendimento psicológico fará avaliação psicológica, e que o atendimento psicológico indicado ficaria circunscrito à utilização de algumas técnicas, algumas delas não privativas de psicólogos, como, por exemplo, “técnicas e estratégias de proteção e segurança pessoal [...] com o objetivo de promover o resgate da auto-estima da mulher e a resiliência da mulher atendida” (BRASIL, 2006b, p. 37), não tendo a atribuição de trabalhar, do ponto de vista da psicologia, os sintomas do sofrimento psíquico identificados.

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Percebe-se também a introdução de um novo objetivo, a promoção da resiliência, termo da chamada psicologia positiva. Há ainda a apresentação de possíveis sintomas de transtorno/sofrimento psíquico, como depressão e ansiedade, que podem ser tratados juntamente com o resgate da autoestima e a promoção da resiliência. Pela primeira vez (BRASIL, 2006b) alguns dos transtornos psicológicos possíveis nesse contexto foram explicitados como algo a ser trabalhado por psicólogos/as, algo também da subjetividade, no sentido de um sofrimento psíquico, mas que serão ‘curados’ quando tratados do ponto de vista de uma conscientização sociopolítica, ou seja, a compreensão de que as relações de gênero são estabelecidas de forma que o exercício do poder entre os sexos é desigual e, sendo assim, entender “que a violência é inaceitável e insustentável” (BRASIL, 2006b, p. 37). Nessa orientação, não há indicação para a psicoterapia, mesmo quando se apresenta a possibilidade de sintomas de possíveis psicopatologias, como depressão e ansiedade crônica ou mesmo sintomas reativos a experiências específicas. O/A psicólogo/a, assim, não se dedicaria a cuidar dessas questões, concentrar-se-ia em identificá-las e encaminhá-las, no manual de 2003 (BRASIL, 2003a), para os serviços de saúde e, na norma técnica de 2006, (BRASIL, 2006b), para uma intervenção que não mais se daria fora do serviço, mas que não seria da psicologia, como no encaminhamento para a arteterapia. Contudo, não se propõe compreender o que faz alguém não entender que a violência é inaceitável e insustentável? Após três anos da primeira publicação (BRASIL, 2003a), há a referência de espaços de atendimento psicológico ou psicossocial para as profissionais, porém, para as mulheres atendidas, a referência é para atendimento psicossocial (BRASIL, 2006c). Em ambas, é destacada a necessidade de supervisão para as equipes multiprofissionais. Os espaços de atendimento psicológico também são indicados para as profissionais na norma técnica para as delegacias especializadas (BRASIL. 2006c); o suporte psicológico, explicitado e classificado como da área da saúde, mas, ainda, relacionado como questão social e sem especificar a quem caberia o suporte social, se ao/à psicólogo/a ou ao/à assistente social. Com isso, destacam-se também as consequências do trabalho realizado, na saúde dos/as profissionais e na organização do serviço. Há, também, a valorização profissional daquelas que trabalham com mulheres em situação de violência. A questão de gênero ainda se apresenta como relevante, entre-

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tanto, as condições da estrutura do trabalho também são importantes para a realização dos atendimentos. No ano de 2007, um dos manuais para as ações relativas a adolescentes e jovens em situação de violência apresenta: “... Profissionais e provedores de saúde têm de estar adequadamente capacitados para o manejo clínico e psicológico das vítimas de violência sexual” (DREZETT, 2007, p. 88, não grifado no original). Aqui, o manejo clínico e psicológico não são ações para os/as psicólogos/as, e sim para os profissionais de saúde e para os provedores, que o manual não explica quem seriam. Na sequência, refere-se à “capacitação e sensibilização dos operadores de direito (juízes, advogados, defensores e promotores públicos) e dos profissionais de saúde (médicos, psicólogos e assistentes sociais)” (EISENSTEIN & FIGUEIREDO, 2007, p. 171; não grifado no original). As psicólogas e psicólogos, mais uma vez, entre os profissionais de saúde, assim como os assistentes sociais, que antes eram profissionais da assistência psicossocial, aqui estão na saúde, e o manejo clínico e psicológico como atribuição de todos os profissionais da equipe e que estes precisam estar capacitados para tal. No início das publicações há a indicação da inclusão dos homens, da “fala masculina” (BRASIL, 2003a, p. 57) nas intervenções. Mas, na sequência, há a indicação contrária, ou seja, a não-inclusão dos homens “que o atendimento não deve promover sessões de mediação entre a mulher atendida e o(a) agressor(a) em situações de violência doméstica” (BRASIL, 2006b, p. 37). A violência como relacional e fundada nos conceito/papéis de gênero, foi o argumento usado para que o trabalho incluísse os homens e, posteriormente, o mesmo argumento foi utilizado para justificar a não-inclusão do homem na atividade de atendimento proposta. Percebe-se que, ao longo do tempo, a orientação para a inclusão dos homens nas atividades se modificou. Entretanto, ainda é uma questão polêmica nesse contexto. As publicações sugerem alguns temas para serem trabalhados nos serviços, entre 2003 e 2005: dependência emocional, independência dos homens e dos serviços, cidadania, protagonismo. Há também uma referência aos temas a serem trabalhados com as equipes como, por exemplo, a preparação dessas para manejar temas para a formação/qualificação profissional das mulheres nas formas associativas de produção e “... mudanças de atitudes e formação de valores (no caso das ações específicas na área de relações de gênero), ministrados por pessoa(s)

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de competência reconhecida” (BRASIL, 2006a, p. 20). Ainda em 2006, há o destaque para trabalhar a autodeterminação e as parcerias e sistemas de referência e contrarreferência (BRASIL, 2006c). Metade das publicações destaca a questão da diversidade, ou seja, amplia a discussão para categorias como raça e classe, além de gênero, como importante questão para ser trabalhada com as mulheres. Em 2007, esses mesmos temas são sugeridos para compor as capacitações da equipe: “preconceito, gênero, etnia, inserções de classe” (BRASIL, 2007a, p. 89). A questão da diversidade continua como temática em 2009 e, em 2010, além do tráfico de pessoas, que aparece como temática a ser incluída (BRASIL, 2010a). Das 12 publicações analisadas apenas três não explicitam o trabalho com o tema da autoestima (BRASIL, 2004, 2006a, 2010b). A questão da autoestima, um termo recorrente entre as/os profissionais da rede de atendimento às mulheres e nos próprios textos sobre violência contra as mulheres, aparece explicitamente em quase todos os documentos e, apesar de ser um elemento da subjetividade, um sentimento, é referido como construído e reconstruído a partir do entendimento do valor e do lugar da mulher na cultura patriarcal, sendo algo influenciado apenas por essas questões, e não como algo também da ordem emocional, pessoal, subjetiva. Hanada et al. (2008) destacam uma concepção de resgate ou fortalecimento da autoestima, para o contexto da violência contra as mulheres, como já descrito anteriormente, como um fortalecimento que seria fruto da redistribuição de poder, onde essas precisariam ser favorecidas, de forma a mudar a ideologia patriarcal. Assim, a mulher, tendo uma autoestima elevada, não se submeteria à violência; isso parece ser o pressuposto. E a mulher elevaria essa autoestima com as discussões dos seus valores a partir dos conceitos de gênero e papéis/relações de gênero. Segundo Hanada et al. (2008, p. 06), o “ ‘resgate’ ou ‘fortalecimento’ da auto-estima” precisa ser mais amplo que a dimensão individual, entendida pelas autoras como a dimensão que está sendo trabalhada do ponto de vista da psicologia e que é compreendida por estas como uma dimensão limitadora do processo de empoderamento. Em uma publicação, o/a psicólogo/a é apresentado/a como o/a responsável por promover a elevação da autoestima; em outras, a autoestima seria trabalhada em atividade de grupo, oficinas, e, pode-se supor, outras

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profissionais poderiam realizar a atividade. Em um dos documentos há a defesa de uma fundamentação filosófica para a decisão de não romper com a violência (BRASIL, 2007b, p. 11), e há quatro publicações que apresentam, de forma implícita, algum referencial teórico da psicologia, que é deduzido das técnicas ou conceitos utilizados. Termos como: sujeito, sujeito desejante, desejo, pulsão (BRASIL, 2003a, 2007a) se referem a pressupostos psicanalíticos. Já expressões, como padrão de interação, técnicas de contra-controle, relaxamento e assertividade (BRASIL, 2003a, 2006b) estão relacionadas à psicologia cognitiva comportamental, sendo o relaxamento e o treinamento assertivo técnicas do chamado behaviorismo radical, de Skinner (FADIMAN & FRAGER, 1986); e, por fim, as expressões resiliência, controle do estresse e resolução de conflitos, que podem ser identificadas como termos da psicologia positiva. Finalmente, sobre os conceitos utilizados nas publicações, a violência de gênero é a expressão empregada em praticamente todas as publicações analisadas; em algumas publicações fica como sinônimo de violência contra as mulheres ou violência doméstica. Há a utilização de expressões como conceito de gênero e papéis de gênero. Atuação em rede de atendimento também aparece em quase todas as publicações. A violência como relacional, ou seja, como uma relação que se estabelece mediada pela violência, aparece de 2003 até 2007. Alguns conceitos aparecem em quase todas as publicações: direitos humanos e sujeitos de direitos. Subjetividade surge na primeira publicação, em 2003, e só volta a aparecer em 2007 e 2009. Algumas publicações apresentam uma tipificação da violência e, entre os tipos de violência citada, há a violência psicológica ou emocional antes e depois da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006d), que define a violência psicológica como um dos cinco tipos de violência contra as mulheres. O termo Feminismo é explicitado em três publicações (BRASIL, 2003a, 2006b, 2009) e o vocábulo machismo ou expressão correlata (cultura/ideologia machista ou padrões machistas) aparece mais vezes (BRASIL, 2003a, 2006a, 2007b, 2009, 2010a, 2010b). Em 2006, há uma publicação que explicita questões referentes ao sofrimento psíquico, como indicadores de “distúrbios emocionais: stress - dor de cabeça, dor nas costas, dor no estômago, distúrbios do sono, distúrbios alimentares, cansaço. Ansiedade – aceleração de batimentos cardí-

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acos, síndrome do pânico. Depressão, pensamentos suicidas, tentativas de suicídio, drogadição e alcoolismo”, ou “Problemas Pessoais: Problemas no casamento ou na família. Problemas com drogas ou álcool. Extrema irritação, nervosismo e/ou fadiga” (BRASIL, 2006b, p. 19-20). As publicações de 2007 (TAQUETTE, 2007a, TAQUETTE et al., 2007b) têm um foco na adolescência e nas questões relacionadas, como: gravidez, abortamento, abuso sexual, entre outros. Em 2009, houve uma publicação composta por vários artigos, escritos por diferentes autores, e, em alguns capítulos, há referência a questões relacionadas com a psicologia (BRASIL, 2009). Nesse momento, há a indicação de acompanhamento psicológico para as mulheres e os homens nos serviços de saúde. Contudo, o documento destaca: “A baixa qualidade de serviços de atendimento para mulheres também apareceu no debate como uma violência sofrida pelas mulheres, que acabam sendo re-vitimizadas pela ausência de atendimento, demora e despreparo de parte dos agentes de saúde” (STROZENBERG, 2009, p. 85). Há a utilização da expressão “sofrimento psíquico” (SILVEIRA, 2009, p. 36) e, ao mesmo tempo, a apresentação da ideia de que a atenção à singularidade é uma “psicologização” (COELHO, 2009, p. 126). Entretanto, termos como “qualificação psicológica” (MINGARDI, 2009, p. 113) e “valorização psicológica” (MINGARDI, 2009, p. 115) dos profissionais da segurança pública são utilizados. Esses conceitos não são utilizados pela psicologia, mas, pode-se supor que, para quem escreveu o texto, parece ser algo importante a ser desenvolvido, se não para as mulheres em situação de violência, para os/as servidores/as da segurança pública. Em 2009, a preocupação com a seleção adequada dos profissionais ainda é destacada. Há também, nesse documento, duas questões que aparecem de forma mais explícita no conjunto dessa discussão: 1) O entendimento de que as teorias sociológicas são utilizadas para explicar os fracassos e as teorias psicológicas para explicar os sucessos das trajetórias individuais (COELHO, 2009, p. 126), e 2) a constatação de que os modelos trabalhados no contexto da discussão sobre a violência contra as mulheres excluem os pressupostos psicanalíticos, mas esses não deveriam ser negligenciados, pois “eles [os pressupostos psicanalíticos] são fundamentais sob vários aspectos e para várias finalidades” (SOARES, 2009, p. 152). É importante evidenciar que esta é uma publicação composta de capítulos escritos

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por diferentes autores/as, e o conflito entre a resistência às teorias psicológicas e a valorização destas, no contexto da violência contra as mulheres, se explicita. O “bem-estar [...] psicológico [...]” (BRASIL, 2010a, p. 04) também está associado aos benefícios da seguridade social, questão que aparece de forma explícita pela primeira vez nessa seleção de documentos. Ainda em 2010, a capacitação é sugerida para “Incentivar [...] a assistência qualificada e humanizada” (BRASIL, 2010a, p. 06) nos serviços especializados e, também, nos Centros de Referência da Assistência Social - Cras e nos Creas (BRASIL, 2010b, p. 49), que estão fora da rede especializada. Há a explicitação do feminismo como a base para as ações propostas para serem desenvolvidas: “Resgatar a Casa-Abrigo como espaço de segurança, proteção, (re)construção da cidadania, resgate da auto-estima e empoderamento das mulheres, a partir de valores feministas” (BRASIL, 2010a, p. 05, não grifado no original). Agora há a explicitação de uma referência política para o desenvolvimento das atividades nos serviços. Há, ao mesmo tempo, uma referência que destaca os avanços com “a criação de normas e padrões de atendimento” (BRASIL, 2010a, p. 02). Ainda há a referência para a inclusão de mais um serviço na rede de enfrentamento à violência contra as mulheres: o abrigo provisório (BRASIL, 2010a), que também recebe mulheres vítimas do tráfico de mulheres e a explicitação do profissional da psicologia na equipe: “o Centro de Referência de Atendimento à Mulher foi definido como central no processo de abrigamento, dada sua expertise o[sic] atendimento das mulheres em situação de violência, à existência de psicólogos/as e assistentes sociais...” (BRASIL, 2010a, p. 20 - Nota de rodapé. Grifo no original). Existe a indicação de tornar as mulheres independentes dos homens e dos serviços da rede de enfrentamento à violência contra as mulheres (BRASIL, 2006a). Diante de tal proposta várias perguntas surgem: Por que ficariam dependentes dos serviços? A dependência das mulheres tem uma explicação nas relações desiguais de poder entre os sexos, mas, e a dependência dos serviços, como se explicaria? Qual e de quem seria a dependência? Seria a dependência emocional também do serviço? Do que se fala quando se refere à dependência? Questão que remete a uma percepção infantilizada das mulheres, como se tivessem uma dificuldade de ser independente, que é o que se espera de uma pessoa adulta; sem condição

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de assumir a vida sozinha, por ter sido socializada dentro de referências que justificam essa atitude e por não se sentir com forças e determinação para construir algo diferente do que lhe foi apresentado, até então, com seus custos e esforços necessários. Isso se daria porque haveria uma dependência para além da estabelecida pelo patriarcado e um lugar de segunda categoria ou segundo sexo (BEAUVOIR, 1949a/s.d., 1949b/s.d.)? Ou seria algo relacionado com uma subjetividade que se forma nesse contexto e se estabelece de forma a extrapolar o limite da relação afetivo/sexual?

2. As orientações da SPM na avaliação de psicólogas O grupo de 12 psicólogas que aceitou participar da pesquisa era um tanto heterogêneo. Elas tinham idades variadas, tendo a mais jovem 21 anos, e a mais velha 67 anos. A maioria (07) ficou na faixa etária entre os 30 e 39 anos. A maior parte (09) não tinha companheiro/a. Metade do grupo declarou não ter religião; das que declaram ter religião (06), se identificaram como cristãs e 1/3 do total não nasceu no estado no qual realizam seu trabalho. A maioria tem pós-graduação (08), sendo uma com mestrado e nenhuma tem o título de especialista do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2000). Mais da metade (08) trabalha mais de 30h semanais. A maioria tem mais de um vínculo de trabalho. Apenas uma tem filiação a partido político e outra tem militância em movimentos sociais. Quanto às experiências com a política pública especializada e o referencial teórico que utilizam, pode-se ver no quadro a seguir:

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Quadro 3 Classificação das psicólogas entrevistadas com relação ao vínculo com os serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência, com a indicação da teoria de referência utilizada para realização do trabalho. Grupo

Atendimento em serviços especializados

Atendimento em serviços ou consultórios não especializados

Psicóloga7

Teoria psicológica que utiliza

Gardênia

Psicologia social, da saúde e análise do comportamento – Cognitivo-comportamental

Açucena

Linha Humanista

Jasmine

Abordagem Centrada na Pessoa

Morgana

Teoria psicanalítica

Macela

Teoria psicanalítica

Malva

Teoria psicanalítica

Malena

Abordagem psicodinâmica e orientada para o insight e Gestalt-terapia

Nora

Não fica clara a teoria com qual trabalha, mas refere: “Atendimento direto, aqui e agora”

Serena

Teoria psicanalítica

Ariadne

Teoria psicanalítica

Xena

Teoria psicanalítica

Violeta

Teoria psicanalítica

7 - Esses nomes são fictícios, para preservar a identidade das psicólogas entrevistadas. A opção por designar as voluntárias da pesquisa com nomes e não com referências ou números tem como objetivo deixar a leitura mais fácil e fluente.

Das seis informantes que atuam em serviços especializados, duas trabalham em centro de referência, duas em casa-abrigo e duas trabalharam em ambos os serviços. Das seis que não atuam nem atuaram em serviços especializados, três trabalham em consultório particular, sendo que, destas, duas realizam outras atividades; ainda dentro desse grupo, duas trabalham em hospital e uma em centro de saúde. Quanto à teoria psicológica utilizada em sua atividade profissional, sete fizeram referência à teoria psicanalítica; uma referiu a abordagem psicodinâmica orientada para o insight e Gestalt-terapia; e outra referiu a psi-

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cologia social, da saúde e análise do comportamento - Cognitivo comportamental; por fim, três destacaram a “Linha Humanista”, sendo que uma especifica “Abordagem Centrada na Pessoa”, outra, apesar de não deixar clara a teoria com que trabalha, fala de “Atendimento direto, aqui e agora”. Das 12 psicólogas entrevistadas, 7 utilizaram explicitamente o conceito de gênero quando falaram do fenômeno da violência contra as mulheres, as demais não o utilizaram, mas todas consideram os papéis desempenhados por homens e mulheres como algo culturalmente determinado, referiram-se ao machismo, ao patriarcado ou aos ‘estereótipos sociais’ (ARIADNE). Vale destacar que essa questão não está relacionada com o grupo ao qual a psicóloga foi classificada, pois, das que não se utilizaram explicitamente do conceito, duas são do grupo das que têm experiência de atendimento nos serviços especializados, o que se poderia supor que utilizariam esse conceito, que é a base da política. Isso aponta que as psicólogas, independentemente de onde realizam seu trabalho, compreendem o sofrimento psíquico de forma integrada às questões sociais, não havendo uma compreensão limitada às questões pessoais vivenciadas pela mulher atendida. Foi identificado que existia, nesse grupo que foi avaliado, uma compreensão da influência dos aspectos sociais e culturais na produção daquele sofrimento e na sua possibilidade de superação, sem com isso desconsiderar que o foco do trabalho precisa ser a subjetividade: E acaba que as mulheres assumem isso porque são as cuidadoras. [...] a gente continua de certa forma mantendo um certo... Homens dominam e mulheres cuidam. É porque a gente acaba sendo aquelas que nos responsabilizamos por aquilo que dá certo, por aquilo que dá errado. Então eu acho que seria interessante também pensar sobre isso, por que que esses homens não estão conseguindo assumir então suas escolhas? Assumir os seus desejos? Por que é que eles também estão tão perdidos assim? [...] mesmo a gente reivindicando o nosso lugar, mesmo a gente brigando pelas nossas coisas, até que ponto a gente também não tá reforçando quando assume algumas posturas é... é com relação ao homem mesmo, a esse lugar do masculino de perceber assim mulheres sempre muito compreensivas, muito atenciosas, muito preocupadas, sempre elas se preocupando na história da DR. Isso é do feminino, mas isso

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acaba tirando dos homens a responsabilidade pelas questões deles (Serena).

A partir da caracterização das voluntárias de pesquisa, é importante destacar como a avaliação que este grupo fez, das orientações da SPM, foi categorizado de forma a apresentar os sentidos e significados que estas profissionais atribuíram às propostas para o desenvolvimento do trabalho em psicologia nas políticas públicas para mulheres em situação de violência. Dessa forma, as orientações foram distribuídas em dois grupos temáticos: 1. Princípios e referências para a atuação; e 2. Técnicas para intervenção em psicologia.

2.1. O que dizem as psicólogas sobre os princípios e referências para a atuação com mulheres em situação de violência No que concerne aos princípios e referências para realização do trabalho, quatro orientações propostas pela SPM foram apresentadas às psicólogas entrevistadas, são elas: 1. É necessário resgatar o desejo da mulher em direção a seu reconhecimento como sujeito. O deslocamento do lugar da queixa para o lugar de sujeito desejante passa pela quebra da equação fechada “vítima x algoz” (BRASIL, 2003a, p. 58). 2. A violência deve ser compreendida como relacional. Corresponde a um padrão de interação do casal, como uma dança orientada pela adesão de homens e mulheres aos papéis de gênero. Assim, é preciso repensar as relações de gênero e o poder dos homens sobre as mulheres, revisando valores e promovendo o diálogo e a negociação nas relações

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(BRASIL, 2003a, p. 57 e 60). 3. É necessário promover o questionamento do lugar, das interações e códigos e das expectativas que reproduzem a dependência emocional (BRASIL, 2003a, p. 58). 4. A intervenção em psicologia pode vir a dar-se fora dos limites do programa especializado, inclusive através de encaminhamentos a serviços adequados, na área de saúde, e que compreendam suporte psicológico à mulher (BRASIL, 2003a, p. 58). A primeira orientação que foi apresentada, “É necessário resgatar o desejo da mulher em direção a seu reconhecimento como sujeito. O deslocamento do lugar da queixa para o lugar de sujeito desejante passa pela quebra da equação fechada “vítima x algoz” (BRASIL, 2003a, p. 58), teve a concordância da maioria das psicólogas, embora três tenham destacado achar indistinta a ideia e/ou explicitaram que há uma indefinição de abordagens teóricas da psicologia: ... Essa primeira mesmo aqui: “É necessário resgatar o desejo da mulher em direção ao seu reconhecimento como sujeito”. Tá! Pra mim tava bom! Eu já entendi o que que é necessário fazer. Aí continua: “O deslocamento do lugar da queixa para o lugar de sujeito desejante passa pela quebra da equação fechada vitima X algoz”. Eu acho sem significado essa continuação, porque se ela tá dizendo que é necessário resgatar o desejo da mulher em direção ao seu reconhecimento como sujeito, eu já entendi o que é pra fazer. [...] Complica, porque não precisa. Essa parte aqui de que na queixa pode ser... Como ele coloca aqui, deslocada. Não tem... E aí também vai ter uma outra questão. Até aqui, o reconhecimento como sujeito, qualquer psicólogo de qualquer abordagem entendeu. Mas quando vem pro deslocamento, o sujeito desejante já entra numa outra linha de abordagem que a psicologia toda segue... Não segue essa linha. Já é um termo direcionado pra uma linha, pra uma abordagem da psicologia. Então eu vou entender se eu sigo e se eu atuo, e eu trabalho dentro dessa linha. Se eu não atuo? Então, até o ponto aqui o sujeito tá claro. Qualquer

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psicólogo que ler de qualquer abordagem vai entender. Daqui já direciona. [...] Entendeu? Porque daqui pra frente já direcionou pra uma abordagem. [...] E aí não tem só uma abordagem dentro da psicologia (JASMINE).

Nessa frase, uma avaliação comum entre as psicólogas foi identificar a necessidade da responsabilização das mulheres pela experiência que estão vivenciando para que aja uma mudança e a saída do lugar de vítima: É diferente colocar a mulher como alguém... culpabilizar a mulher é uma coisa, que eu acho que é errado, que a mulher não tem culpa de tá naquela situação. E responsabilizar ela por aquela situação é outra coisa, que não implica em culpabilizar. Mas, tudo bem, tá sendo difícil pra você? O que que a gente pode fazer daqui pra frente, o que que você pensa em fazer, como você pensa em agir diante da situação? De uma forma que ela possa se ver capaz de fazer algo naquilo ali, porque até então ela se via ali totalmente passiva. Alguém que não teria nenhuma atitude. E aí, eu acho que essa é a grande diferença, é essa, trazer ela pro centro do discurso, mas não uma forma de culpabilizar, você tá isso, porque isso é muito comum na delegacia, essa culpabilização... (MORGANA).

Ainda com relação ao lugar de vítima, destaca Açucena: E uma coisa que eu também abordo, não nos primeiros atendimentos, mas depois é a questão também do agressor. Ele também é uma pessoa. O agressor também é uma pessoa, o agressor também tem o seu sentimento. [...] E, às vezes, a questão fica muito assim mesmo. É vítima e agressor. Ela é vítima. Ela realmente foi a vítima, ela tem que ser atendida, ela é que... Ela tá com a razão e o outro não tem razão. E a gente tem situações aqui de, às vezes, atender filhos, e que as crianças relatam. Teve um caso que me chamou atenção de uma garota que me disse: Açucena, a mamãe - ela usou o termo mesmo, vítima. A mamãe não é só vítima não! Ela... Quando o papai chega bêbado, ela fica dizendo coisa com ele até ele se zangar e bater nela. [...] criança começou a ver. Os dois. Ele faz, mas ela, ela também faz (AÇUCENA).

A partir de outra concepção teórica, Gardênia comenta:

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O discurso da vítima ele atrai reforço, as pessoas ficam ô coitada, se sensibiliza e aquela mulher tem uma atenção naquela hora. É uma forma dela ser reforçada positivamente, dela ser olhada, cuidada um pouquinho, as pessoas, nem que seja por pena (GARDÊNIA).

O desejo de mudar, de ter autonomia existe para Gardênia e Açucena, mas, se o entendimento for o da responsabilização, é importante pensar qual é o desejo dessas mulheres. Se há uma responsabilidade da mulher nesse processo, como refere Morgana, o atendimento psicológico tem um lugar importante para acolher essa contradição. Todavia, da forma como a questão foi apresentada, causou uma inquietação, por apontar para uma determinada teoria para conseguir atingir o objetivo, que é trabalhar o reconhecimento da mulher como sujeito, que tem seus próprios desejos, e não alimentar o lugar de vítima. Todavia, nesta mesma publicação há uma orientação que apresenta de forma explícita a referência teórica de gênero da primeira onda feminista20 (BEAUVOIR, 1949b/s.d, 1949b/s.d.; SAFFIOTI, 2004; SCOTT, 1995): A violência deve ser compreendida como relacional. Corresponde a um padrão de interação do casal, como uma dança orientada pela adesão de homens e mulheres aos papéis de gênero. Assim, é preciso repensar as relações de gênero e o poder dos homens sobre as mulheres, revisando valores e promovendo o diálogo e a negociação nas relações (BRASIL, 2003a, p. 57 e 60).

Diante dessa afirmação, quase todas as psicólogas entrevistadas concordaram com a frase, sendo que duas questionaram o ponto da negociação nas relações: [...] o que é cultural parece que passa a ser normal, aceitável, justificável. E se não tiver uma reflexão sobre isso vai permanecer assim, porque já é... As mulheres reforçam esse papel. Ah, os homens é... também de uma certa forma aprenderam assim, vão ficar assim. Tá, tudo bem. E vai fazer o que com isso? E aí quando fala assim: “Promover diálogo e negociação das relações” a minha preocupação é essa a 20 - Primeiro conjunto de discussões nos primórdios do movimento feminista sobre o conceito de gênero.

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questão da negociação nas relações. Eu acho que tem todo um movimento mesmo do diálogo e tal, mas depende em que momento. Eu acho momentos que não tem negociação de relação. Que eu acho que tem que tomar uma atitude, tem que ter uma quebra até por uma questão de proteção dessa mulher. Às vezes até é... compulsório, como tá sendo agora. Que às vezes assim, você não pode mais parar o processo, em algumas situações. Então é só o destaque nisso, “negociação nas relações”. Em que momento isso? Se já é uma situação de violência. Como seria isso? Quem faria isso? [...] A não ser, poderia dizer, tá é um profissional que trabalha com terapia de casal. E aí? Vai fazer alguma coisa nesse sentido? Mas, assim, ... Não sei. Mas eu, eu não atenderia um homem. Nem lá, nem cabe. Mas tem um grupo que caminha pra isso, que atende homens e mulheres, ao mesmo tempo ou individualmente no mesmo serviço. Mesmo nos serviços que são exclusivos da mulher. Por exemplo, na Vara tem o atendimento em grupos reflexivos para homens. Às vezes, com a mesma profissional. Aí eu acho complicado. Porque essa coisa de: “negociação nas relações”, sim, é pra quê? É pra dar uma amenizada na violência? É pra... Não sei se isso dá certo. Diz que tem que fazer alguma coisa pra não fazer nada. Aí alguma coisa não é qualquer coisa, é diferente. Então o que que tá sendo de fato promovido. Agora não acho que seja negociação nas relações o papel da psicóloga não (MACELA).

Macela destaca que a proposta não deveria fazer parte das atribuições da psicologia, pois, nesse contexto, segundo ela, compreender a questão como relacional não significa necessariamente se colocar para a negociação. Aqui, percebe-se que a entrevistada entende que as mulheres estão em um lugar de menor poder para se colocarem para negociações. Nora expressa sua mudança de entendimento do fenômeno da violência contra as mulheres após ter sofrido violência do ex-marido: [...] Eu soube que eu fui traída, e parei pra repensar a relação [...] Você para e conversa e reconversa. Uma dança só dá certo se os dois dançarem o mesmo passo, [...] Tem mulheres que, que aguentam isso a vida inteira, sabe? E precisa do outro pra, pra se manter mulher [...] E eu casei com a certeza de que eu não repetiria a história da minha mãe. Foi muito difícil eu não repetir a história, foi muito difícil, mas eu tô conseguindo. [...] se eu fosse ver os meus valores, eu não

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teria me separado de jeito nenhum, [...] Então são coisas que você precisa ter muito discernimento nessas horas. E eu acho que é isso que pega algumas mulheres. Porque se você fraquejar, você não sai da situação. De jeito nenhum [...] Quando eu falo pra você que eu hoje vejo as mulheres vítimas de violência com outro olhar, você não tem noção. (Risos) (NORA).

Esse riso final foi após um longo relato da experiência vivida que, em muitos momentos, chorou. Durante o relato, a entrevistada fala sobre a dificuldade de lidar com as questões relacionadas ao rompimento da relação, que, no seu caso, não foi motivado pela violência, mas que essa ocorreu quando ela decidiu pela separação e pela mudança de vida, e passou a namorar. Nesse momento, começam a surgir vários tipos de violência, inclusive física. Aqui, destaca o sofrimento em ver a aflição do filho que percebe ser usado para atingi-la. Talvez aí sua concordância parcial com a frase, já que fica a pergunta: como se negociam essas questões? Gardênia e Açucena destacam a necessidade de agregar os homens para a realização dessa discussão: [...] o trabalho com a mulher em situação de violência ainda é muito visto como o trabalho de mulher, coisas de mulher. Enquanto os homens não tiverem juntos, refletindo com a gente, trabalhando com a gente dando palestra em escola pra menino, pra menina, isso aqui vai ser sempre coisa de mulher, problema de mulher. Eu acho isso. Sobre essa questão... [...] A gente tem que trazer o homem pra essa discussão, pra esse trabalho. [...] Também não pode ser qualquer homem. Tem que ser comprometido com a causa de gênero, que não é uma causa só das mulheres (GARDÊNIA).

Gardênia assume para si e coloca para as mulheres, de uma forma geral, a responsabilidade de trazer os homens para esse debate. Questão que demonstra o quanto as mulheres, por um lado, sofrem com o problema e querem cessá-lo, mas, por outro, reforça o modelo de que cabe apenas às mulheres as ações relativas à resolução dos conflitos e problemas do espaço privado e das relações pessoais, afetivas e sexuais. São as mulheres que têm que convencer os homens de que há um problema que eles precisam também resolver, por isso entendem que: 95


Não vai mudar esse quadro se não se pensar numa política de atendimento aos agressores. [...] Os homens não se percebem como agressores. Eles não estão cometendo crime. É natural isso. Eles mandam, eles têm, têm que ter o poder. O poder econômico, o poder que lhe foi já determinado tempos e tempos atrás, que o homem é que mandava (AÇUCENA).

Por fim, Morgana avalia que não são questões para o atendimento em psicologia. Para ela, seria para uma intervenção em educação: [...] teria que ser trabalhado na sociedade, não trazer homens e mulheres que estão passando por aquela situação [...] refletir sobre os papéis de gênero. E isso é interessante assim pras mulheres, refletir. Mas porque que isso eu posso, isso eu não posso e tal. Mas por que quê isso é colocado dessa forma? Por que que os homens têm esse papel, e eu não. Enfim, isso é interessante fazer, mas não como uma solução pro problema. Acho que só isso aí não resolve. Eu acho que precisa ser feito mais. Isso aqui eu acho que é uma questão assim macro, pra começar na educação, na escola, em todos os espaços que precisaria ser trabalhado. Mas não como algo assim que vai resolver o problema agora (MORGANA).

Mais uma vez, a atribuição colocada não é entendida como algo que precisasse ser assumido pela psicologia nesse contexto. Seria preciso entender o fenômeno, e isso as psicólogas demonstraram entender. Contudo, para elas, não caberia à intervenção em psicologia assumir a realização dessa tarefa específica, quando outras profissionais, com mais condição de assumir, fazem parte da equipe. Entendem também que à psicologia se demanda outras atribuições, outros tipos de intervenção, em especial, no contexto da política pública especializada. E, uma dessas seria, por exemplo, trabalhar a subjetividade das mulheres no que se refere à atitude de dependência. E, quanto a essa questão, a maioria das psicólogas informantes concordou com a orientação que destaca a necessidade de trabalhar a dependência emocional: “É necessário promover o questionamento do lugar, das interações e códigos e das expectativas que reproduzem a dependência emocional” (BRASIL, 2003a, p. 58). Apenas uma declarou nem concordar nem discordar da frase. Contudo, quatro, das 12 psicólogas, expressam que não entenderam ou acharam indefinida a questão colocada: “eu não sei o que

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que quis dizer aqui, que eu não entendi” (MALVA). Houve também um não-entendimento do que poderia ser feito, como diz Ariadne: [...] eu fico me perguntando, como é que você... Eu nunca consegui encontrar o caminho de fazer esse questionamento fora da vivência da pessoa. Às vezes a gente coloca num sentido amplo, o que eu tenho visto são as pessoas assim se prenderem a estereótipos [...] Eu não sei como as pessoas ficam aquela coisa americana assim de... A pessoa fez uma brincadeira e é considerado um assédio. Aí vamos lá, sabe, fica aquela coisa de confronto. Até mesmo em relação... Eu não sei como comentar isso aqui [...] não, assim, como com grandes palestras, coisas desse tipo, sabe? Eu acho que nas grandes palestras eles fazem levantamento de bandeira que estereotipa também as pessoas [...]... Esse questionamento tem que ter o espaço, mas desde, desde que... vivencial [...] até usando técnicas de grupo mais eficazes pra poder trabalhar isso. [...] porque quando fica apenas debate de ideias, às vezes, cai nesse, nessa palavra vazia (ARIADNE).

Xena destaca que, mesmo as mulheres tendo condições objetivas de realizar, sentem-se limitadas: [...] é você poder dentro da... Dessas relações, de como essas relações tão constituídas, você poder repensar isso [...] aí a questão emocional eu não vejo assim só de sentimentos, mas eu vejo de tudo que a pessoa acha que tem essa dependência, mas quando de fato ela não tem nenhuma dependência em relação ao outro, [...], ela faz, ela dá conta, ela consegue, mas ela imagina que ela precisa ter essa outra figura, porque não tem essa outra figura na nossa sociedade, ainda é muito pejorativa, muito discriminatória [...] (XENA).

Não ser dependente e se colocar como dependente seria a chamada “dependência emocional”? As mulheres, para tal atitude, estariam motivadas pelas promessas e ilusões do amor romântico? Sobre isso, referiu Gardênia: Eu acho que a gente precisa estudar melhor isso. Talvez isso comece lá na nossa infância, na nossa educação lá que a gente... Esse lugar é dado pra gente, esse lugar da... Nós somos afetivas, nós somos delicadas, nós somos... Desde

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criança a gente, a gente se vê assim, então, acho que as dores de amor elas tocam mais as mulheres do que o homem. Talvez a gente aprendeu que elas tenham mais importância (GARDÊNIA).

Ou seria algo como aparentar a vivência desse amor, expor para uma sociedade que a mulher realiza o papel que lhe é determinado: Normalmente vem a dependência financeira, a dependência já mais, digamos, de um status social. Não sei até que ponto isso vem também... Está relacionado ao emocional. Se isso pode ser considerado emocional, mas entra essa questão mais de aparência ao público (VIOLETA).

Assim, as psicólogas discursam a partir da frase, falam sobre seus entendimentos, mas pouco referem sobre do que se trata essa dependência emocional: “Essa dependência emocional só vivendo pra saber.” (NORA) ou “A dependência emocional, ela é subjetiva.” (MALVA). Morgana aponta: (...) ela mesma fica se culpando e ela não sai daquele discurso: Ah, porque a culpa é minha, porque eu volto, porque eu já sei que ele não presta e eu volto e tal. E quando ela fica se culpando ela não anda, ela fica parada ali e se culpando a todo momento. Então eu tenho procurado, assim, tirar elas desse discurso de culpabilização e trazer pra essa questão de: que papel essa pessoa tem na sua vida? Que função ela tá desempenhando? Porque, às vezes, tem alguns casos também que a mulher sai daquela relação e ela acaba se envolvendo numa outra que tem o mesmo padrão relacional (MORGANA).

Nesse ponto, nem mesmo as psicólogas conseguem definir o que seria essa dependência emocional e nem como trabalhá-la, a partir do que a orientação da SPM apresenta, a não ser da perspectiva da intervenção em psicologia clínica, fundamentada nos pressupostos psicanalíticos, como apontam Ariadne e Morgana. E diante da discussão do tipo de intervenção necessária para se trabalhar com a dependência emocional de mulheres em situação de violência, vem a questão: onde realizar este trabalho? Assim, a análise da orientação que aponta para o local da intervenção em psicologia, “a intervenção 98


em psicologia pode vir a dar-se fora dos limites do programa especializado, inclusive através de encaminhamentos a serviços adequados, na área de saúde, e que compreendam suporte psicológico à mulher.” (BRASIL, 2003a, p. 58), teve a concordância da maioria das entrevistadas e três referem que não é uma frase clara, pois não conseguem entender ou têm dúvidas se conseguiram entender, e duas fazem comentários que não se atêm à temática ou às questões colocadas na frase. Houve uma concordância quando se percebia como uma alternativa possível, mas não como algo que não devesse existir nos serviços especializados, como relata Jasmine: “acho que não tem que ser fora não, tem que participar, tem que ser dentro do programa, até pra poder saber direitinho qual o papel daquele momento da psicologia.” E Macela relata: Eu não sei se eu entendi direito isso... [...] Sim! Eu não entendi o que... “E que compreenda o suporte psicológico à mulher”. Quer dizer assim: Eu posso tá encaminhando, por exemplo, pra maternidade, é isso? Que lá vá ter o atendimento psicológico a essa mulher? ... Não sei! Eu acho que pode encaminhar, eu acho que tem que usar toda a rede de serviço, sim, mas aí é o que eu tô te dizendo, tem que saber quem é quem. Quem é a psicóloga mais adequada pra encaminhar essa mulher. Sou eu ou é a da maternidade, por exemplo. Vai depender do caso. Acho que pode sim, com certeza. Mas... Eu achei confusa essa 4ª [frase] (MACELA).

Nessa ambiguidade para o entendimento, Macela destaca que antes da mistura sobre qual a intervenção mais adequada há uma imprecisão relacionada aos papéis dos profissionais, nesse caso das psicólogas, nos diferentes serviços. Isso, além da falta de preparo dos serviços de saúde para lidar com a questão (PORTO et al., 2003; SCHRAIBER, 2001; SCHRAIBER & D’OLIVEIRA, 1999; SCHRAIBER et al., s/d), o que também é destacado por Malva: “[...] quando a mulher chegasse num hospital com uma queixa vaga, aquele profissional que fizesse o processo de triagem já conseguiria identificar que ela era uma vitima de violência doméstica. E eu vejo que isso ainda não acontece”. Xena já concorda porque acha que a intervenção necessária em psicologia não encontra espaço nos serviços especializados: “Uma ajuda às vezes que seja muito mais eficaz numa outra estrutura mesmo, numa outra forma

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de intervenção [...]”. Ariadne fala de que esse encaminhamento orientado é algo difícil, pois depende da decisão da mulher de enfrentar uma questão difícil, a ilusão do amor romântico, as faltas da vida, aspectos que serão discutidos adiante: É eu acho que aonde for possível fazer. A pessoa se sensibilizou, fazer o encaminhamento seria muito bom que eles possam sustentar isso, porque eu tenho a impressão que quando as mulheres não se encaminham, elas recuam, é porque, assim, elas se veem enredadas com o estilo de domínio que a violência traz [...] (ARIADNE).

Diante dessa reflexão pode-se pensar que é preciso dar lugar nos serviços especializados para esse tipo de demanda. Não apenas negá-la ou rechaçá-la, a partir de argumentos que o trabalho com a subjetividade, a individualidade não é política emancipadora. É preciso se perguntar se o objetivo é a formação de militantes da causa feminista ou oportunizar uma reflexão sobre valores, interações, expectativas e, também, o confronto com desejos não conscientes para dar a oportunidade de decisão, de fato, para cada mulher.

2.2. O que dizem as psicólogas sobre as técnicas indicadas para a intervenção em psicologia As frases que serão analisadas nesse item e estão abaixo relacionadas se referem de forma direta às técnicas e intervenções em psicologia, ou que podem ser percebidas como também dirigidas às psicólogas e psicólogos. Estão em quatro publicações da SPM (BRASIL, 2003a, 2005b, 2006a, 2006b), como se segue: 1. As/Os psicólogas/os precisam, incluindo a fala masculina, ampliar os relatos de vivências de violência, através de grupos focais (BRASIL, 2003a, p. 57).

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2. O atendimento não deve promover sessões de mediação entre a mulher atendida e o(a) agressor(a) em situações de violência doméstica, pois a mediação familiar é inadequada na situação de violência doméstica, uma vez que a mulher agredida e o agressor estão em papéis desiguais no que se refere ao exercício de poder pessoal (BRASIL, 2006b, p. 37). 3. É necessário promover oficinas, onde as mulheres possam trabalhar coletivamente a situação de violência vivida e reconstruir sua autoestima (BRASIL, 2006a, p. 10). 4. Os acompanhamentos psicológicos individuais constituem procedimento fundamental para o fortalecimento da autoestima da mulher (BRASIL, 2005b, p. 06). 5. É preciso promover o atendimento especializado e continuado às mulheres em situação de violência, até que estas possam tornar-se independentes dos serviços prestados (BRASIL, 2006a, p. 03). 6. Ao/À psicólogo/a cabe facilitar à mulher atendida a aquisição de técnicas de contra-controle, que lhe forneça instrumentos para assumir o controle da situação, saindo do papel de vítima passiva da violência doméstica e no trabalho, e de técnicas e estratégias de proteção e segurança pessoal (BRASIL, 2006b, p. 37). 7. Técnicas de relaxamento e controle do estresse, de resolução de conflitos e de assertividade devem integrar o atendimento psicológico (BRASIL, 2006b, p. 37). 8. O(A) técnico(a) responsável pelo atendimento psicológico poderá, após a elaboração do diagnóstico aprofundado, encaminhar a mulher em situação de

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violência ao atendimento de arte-terapia, caso julgue adequado, indicando ainda se o atendimento deverá ser individualizado ou em grupo (BRASIL, 2006b, p. 37). 9. É necessário promover a resiliência da mulher atendida, de forma a tratar possíveis sintomas de depressão e ansiedade crônica; promover paradigmas que possibilitem à mulher em situação de violência internalizar o conceito de que a violência é inaceitável e insustentável (BRASIL, 2006b, p. 37). A maioria das psicólogas concorda com a primeira orientação desse bloco: “As/Os psicólogas/os precisam, incluindo a fala masculina, ampliar os relatos de vivências de violência, através de grupos focais.” (BRASIL, 2003a, p. 57), que consta na primeira publicação da SPM, mas algumas apontam explicitamente uma discordância. Seis, das 12 psicólogas, avaliaram a frase como imprecisa, não compreenderam o que esta pretende orientar, seja porque entenderam os conceitos de uma forma diferente: “[...] tá se referindo aqui, fazer mais pesquisa sobre o assunto? [...] Eu achei que grupo focal fosse usado pra pesquisa. Não sei, não sei o que é que eu acho disso. Não tenho uma opinião formada.” (GARDÊNIA); seja porque acharam estranha a afirmação: Não entendi. Porque é assim, no caso as psicólogas precisam, incluindo a fala masculina, ampliar o seu relato de vivência da violência através de grupos. Seria trazer essa fala masculina pra dentro dos grupos de vivência? [...] É!... Acho isso muito forte, porque entrariam as questões de domínio, por exemplo. Teria que ser um psicólogo que entendesse, por exemplo, de psicodrama, porque, como que vai trazer uma fala masculina, fazer uma representação mediante aquela mulher que sofreu aquela violência? (JASMINE).

Também houve o entendimento de que o homem precisa de um espaço para sua fala, mas não no mesmo grupo ou serviço em que a mulher é atendida.

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Pode, sim, mas não necessariamente fazer. Às vezes, o serviço... Não tem sala, não tem espaço. Eu acho que não tem que atender, o mesmo serviço que atende homem atender mulheres. [...] Tô pensando na característica do serviço, que o serviço se dispõe (MACELA).

Nora remete à sua experiência, ao seu sentimento com relação à proposta de intervenção: ... Eu não vejo realmente nenhum tipo de relato de vivência olhando o lado masculino. Entendeu? Porque eu hoje dentro dos meus resquícios, dos meus rancores eu penso que o outro não se arrependeu de nada que fez comigo. Tanto a violência física quanto a violência emocional, psicológica. [...] É, mas vai que ele tenha sofrido com o que fez? Só que eu não sei, entendeu? E nem conheço colegas que trabalham com essa área vendo o lado masculino... [...] Eu não quero isso. [...] É muito difícil você ter a tua dignidade, o teu caráter colocado à prova [...] (NORA).

Nessa fala, pode-se perceber a relação que existe entre intervir como profissional e as experiências como mulher, a influência das vivências pessoais na forma de pensar a técnica que precisará desenvolver no trabalho. Além das questões técnicas, no sentido da prática a partir das referências teóricas, há o fato de esse trabalho ser realizado majoritariamente por mulheres, que são potenciais vítimas de violências perpetradas pelos companheiros. Quanto à orientação que parece se apresentar como uma indicação contrária a anterior, pois nesse caso a referência é de que os homens não participem de atividades junto com as mulheres: “O atendimento não deve promover sessões de mediação entre a mulher atendida e o(a) agressor(a) em situações de violência doméstica, pois a mediação familiar é inadequada na situação de violência doméstica, uma vez que a mulher agredida e o agressor estão em papéis desiguais no que se refere ao exercício de poder pessoal” (BRASIL, 2006b, p. 37), metade do grupo entrevistado concordou com a frase e a outra metade ficou entre uma concordância com ressalvas ou não se posiciona. Contudo, a maioria relativiza a questão:

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Dependendo do grau da violência, dependendo do poder pessoal de cada um, eu acho que nisso aí deve ser avaliado. [...] É, porque são graus de violência. Eu acho que a violência psicológica, moral, ela é o limite de todo casal e talvez pra esses casos fosse interessante, não sei se mediação ou atendimento, uma terapia de casal (GARDÊNIA). Eu acho que aí depende, [...] É, dependeria do contexto, é... , isso realmente caberia. Agora quando a situação é assim de muito longa data e a violência se acentuando até... Aí não tem porque, eventualmente, ele ser atendido, separadamente [...] (ARIADNE).

Outras destacam, nessa mesma linha da relativização, mas considerando não caber essa ação à psicologia ou ao serviço especializado: [...] eu penso que a mulher, a mulher tem que ser cuidada. Que o nosso papel enquanto psicólogas não é tá promovendo essa mediação ali. O lugar da mediação é outra instância (MALENA).

Para algumas informantes, dependendo do caso, da indicação, poder-se-ia ter uma boa resposta: [...] há casos que realmente não dá, mas não que não se deve promover essas sessões de... Numa tentativa, dependendo do objetivo que foi identificado, da mulher, talvez ela deseje uma reaproximação, só que nem ela nem ele sabem como chegar a um nível de... Só a repetição daquele ciclo. Não se perceberam. Se ela percebe, ele não, talvez seja interessante essa tentativa [...] Pra casos. [...] Específicos (VIOLETA).

Aqui, se percebe que as psicólogas consideram o desejo das mulheres de continuar na busca de uma realização, mas que, no processo, na situação de vivenciar essa negociação, poderiam se deparar com as impossibilidades, com a realidade, e isso permitir decisões mais adequadas para cada mulher. Outra demanda pode surgir da percepção a importância de trabalhar as comunicações, mediar a comunicação, que está comprometida por conta de todas as questões de poder, papéis desiguais e conflitos derivados das mudanças, questão discutida por Oliveira (2004). A autora foca sua reflexão na

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comunicação de duplo vínculo, ou seja, a expressão de mensagens contraditórias durante a comunicação que é consequência dos diferentes referenciais existentes para cada sujeito. Destaca, como exemplo, que as mulheres apresentam demandas de emancipação para uma vida pautada nos valores do individualismo, trabalhar fora, decidir sobre sua vida, mas, ao mesmo tempo, têm dificuldade de abrir mão de papéis tradicionais, como resolver sozinhas as questões relacionadas aos filhos/as e à casa. O próprio feminismo e, consequentemente, a política pública para as mulheres em situação de violência apresentam a necessidade de discutir sobre a diferença de poder, a desigualdade dos papéis sociais, em alguns momentos favoráveis à mediação e em outros não, mas não consideram, como Oliveira (2004) propõe, que “... o conceito de mulher e homem de cada pessoa não carrega apenas traços culturais, mas outros singulares, produzindo diferentes combinações e mesmo deslocamentos do cultural” (OLIVEIRA, 2004, p. 51). Oliveira e Souza (2006) defendem: O modelo dualista impede uma abordagem psicológica capaz de investigar os múltiplos fatores que compõem as conjugalidades violentas. Além disso, este modelo contribui para silenciar os homens que se sentem machucados, frágeis, violentados, legitimando uma cultura que, mesmo se dizendo crítica e processual, continua valorizando a virilidade masculina e a fragilidade feminina (p. 46).

Nesse contexto, o CFP (2012d) advoga: É importante ressaltar que o atendimento psicológico nos serviços de atenção à mulher em situação de violência deve ser direcionado exclusivamente para mulheres com o objetivo de preservar a confiança nas relações estabelecida [sic] com a (o) profissional. No entanto, entende-se que a abordagem da violência deve também incluir o autor de violência em espaço específico para tal, conforme prevê a Lei Maria da Penha (p. 92).

Não se quer com isso minimizar a magnitude da violência na vida das mulheres e o lugar de poder que ainda pertence aos homens. Entretanto, essa forma de perceber demonstra que as psicólogas entendem que a defi-

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nição de papéis de gênero é algo que também define e impõe um lugar para os homens e que isso não pode ser ignorado. O “ser um agressor” também é uma imposição da cultura patriarcal e assim precisa ser considerada e não apenas entender que é preciso apenas encarcerar em todas as situações. É importante destacar, neste momento da reflexão, que uma referência ,também reiteradamente apresentada na política para mulheres em situação de violência, é o trabalho para promoção da autoestima, assim como a independência emocional, citada anteriormente . Assim, quanto à autoestima, duas frases foram selecionadas para serem avaliadas: “É necessário promover oficinas, onde as mulheres possam trabalhar coletivamente a situação de violência vivida e reconstruir sua auto-estima.” (BRASIL, 2006a, p. 10) e “Os acompanhamentos psicológicos individuais constituem procedimento fundamental para o fortalecimento da auto-estima da mulher.” (BRASIL, 2005b, p. 06). No processo de análise das frases pelas psicólogas, observou-se que a maioria das informantes concorda com a necessidade de promover oficinas, contudo Açucena e Gardênia destacam algumas questões: “Acho interessante, mas tudo isso aqui é o como fazer? [...] Trabalhar em grupo é uma responsabilidade muito grande. Concordo, mas, assim, eu acho que tem que se pensar muito como fazer.” (AÇUCENA). Já Gardênia avalia a orientação como equivocada: Não sei se dá em reconstruir autoestima, porque autoestima é produto, já de uma outra coisa, de uma outra performance. Ela já conseguiu romper esse ciclo, ela tá num novo momento de vida e a autoestima vai vir como um produto disso. Dela já ter mudado algumas coisas no cotidiano dela, ter conseguido fortalecer alguns recursos, e aí a autoestima vai ser um produto, mas a oficina ela pode contribuir com informações pra que essa mulher consiga mudar aí algumas questões, ter coragem pra mudar algumas questões, na vida dela e aí ter como produto essa melhora na autoestima. [...] oficinas pra reconstruir autoestima dá ideia daquelas oficinas show, daquelas palestras show que a pessoa sai de lá animadíssima, mas não mudou nada. (Gargalhadas) (GARDÊNIA).

Para uma das psicólogas, essa autoestima passa pela noção de respeito ao feminino e ao masculino:

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[...] as mulheres têm que aprender a se respeitar a si mesma e a outra. Ter uma atitude de respeito. Eu acho que a gente ainda tem muito o que conquistar nesse campo. [...] pra construir sua autoestima elas têm que levar em conta o outro também, porque o homem não pode ser degradado pra ela poder se valorizar, mas tem que ser considerado (ARIADNE).

Curioso é que essas são psicólogas de abordagem teórica diferente e que avaliaram não ser a melhor forma técnica de trabalhar a questão tão valorizada nos documentos: a autoestima. Destaque para a ideia de Gardênia, que defende que, só depois do trabalho com as questões relativas à experiência da violência ,é que a autoestima pode se elevar, não seria elevá-la para produzir uma ação. Outra questão que se destaca com relação à noção de autoestima é sobre o que seria uma autoestima alta. Da perspectiva dos conceitos de gênero e dispositivo amoroso (BUTLER, 1990; SWAIN, 2006), o modelo social para uma mulher se considerar empoderada e plena passa por ser amada e aceita: O dispositivo amoroso se afirma nas práticas que se desdobram de forma exponencial para a construção do feminino: a educação formal, a pedagogia sexual, a disciplina dos corpos – magros e belos – a domesticação dos sentidos e dos desejos para seguir a imagem ideal DA mulher. Isto é o assujeitamento, em sua plenitude (SWAIN, 2006, p. 12).

A autoestima estaria em se enquadrar ao modelo ou romper com este? Em outras palavras, qual autoestima se buscaria? Como ser empoderada num contexto que, a todo o momento, regula, assujeita e define? No que tange ao atendimento individual para trabalhar a autoestima, as psicólogas concordam, mas algumas relativizam, pois o que é mais importante é a indicação “[...] não sei se é essencialmente, mas que ele é importante é.” (AÇUCENA); “Eu não acredito nisso não. (Gargalhada); [...] O acompanhamento psicológico individual, não é, pra mim, não é o procedimento fundamental não.” (MALENA); “[...] nem sempre esse resultado é um resultado obtido. Às vezes, a pessoa passa anos nisso, mas assim, não tem como saber.” (SERENA);

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[...] a impressão que dá da afirmação é que, assim, fosse é... Que o atendimento individual fosse o principal pro estabelecimento dessa autoestima. Então eu não concordo, porque eu acho que tem outras formas de intervenção que podem... Porque aí tá a questão da característica da pessoa. Não, não necessariamente o atendimento individual é bom ou vai ser o melhor pra todo mundo. Então, acho que a gente precisa tá pensando nesse outro, tá compartilhando com esse outro o que que é melhor técnica pra tá utilizando (XENA).

Isso demonstra que psicólogas não avaliam que trabalhar com a subjetividade é algo que se dê nos moldes tradicionais do atendimento individual, que esse pode ser indicado, a depender da avaliação do profissional que poderá dizer o que melhor é indicado para aquela mulher que se apresenta em seu sofrimento. Não é porque é uma vítima de violência de gênero que necessariamente terá que ser trabalhado em intervenções grupais para que não se “psicologize” o problema, nem em intervenções individuais porque “são fundamentais”. Não é o formato do atendimento que promove o entendimento do fenômeno, e sim a compreensão da profissional sobre as causas do fenômeno, das relações desse com a constituição da subjetividade e do sofrimento psíquico. Dessa forma, pode-se pensar que deveria caber ao profissional, a partir do objetivo que é colocado, decidir qual a melhor intervenção. As psicólogas, mesmo de formação clínica psicanalítica, não estão alienadas de uma realidade histórica e social, como, em alguns momentos, os documentos estudados sugerem: [...] eu acho que tem aquela coisa que é particular de cada um, que ela tem que se situar em relação à sua própria história [...] assim, aquela posição, é menina, é bonita, então já tá muito bem. [...] É não tem mais preocupação, entende? E ela, assim, com raiva porque eles não estavam considerando todo o interesse dela, que é muito nessa área da informática, ela tem uma cabeça muito boa pra essas coisas. E ele achando que ela tava se intrometendo em seara alheia, Então tem o preconceito dos pais com as filhas, das filhas com... Das mães com as filhas também, nesse sentido, e fica essa aberração. A gente tá começando a se libertar. Bem no comecinho. (Risos) (ARIADNE).

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Por outro lado, há algumas que apostam no atendimento individual, duas que têm experiência no atendimento em centros de referência. Malva questiona: “[...] como é que ela vai romper se ela não trabalhar as questões internas, subjetivas?” e Macela destaca: [...] como eu tô tendo a experiência individual e em grupo, eu acho que todos dois são importantes. Se... Eu fiquei agora pensando, se eu tivesse que abrir mão de um [...]. Eu acho que eu abriria mão do grupo. Mas o grupo, ele é muito importante também, porque a troca de experiência, essa mulher poder, às vezes escutar da outra uma fala que é dela, causa um impacto muito grande. E... trabalha eu acho que um pouco isso, essa condição de vítima. Mas o atendimento individual eu acho que seja fundamental, sim. Acho que deveria de fato ter (MACELA).

Apesar das diferentes defesas, o que se coloca nesse ponto é que ficaria para a psicóloga decidir o tipo de atendimento que deve ser realizado em cada caso, que a questão não é ser individual ou em grupo, mas que tipo de trabalho se quer desenvolver a partir dos objetivos estabelecidos. Dessa forma, o desenvolvimento da autoestima não está relacionado a se submeter a atendimentos individuais ou grupais, e sim, ao entendimento do que se concebe como autoestima e, consequentemente, o que poderá promovê-la. Vale destacar que, além da indicação de técnicas específicas a serem utilizadas para questões bem definidas, como se observou até o parágrafo anterior, há uma curiosa orientação quanto à possibilidade de outro tipo de dependência, destacada anteriormente: “É preciso promover o atendimento especializado e continuado às mulheres em situação de violência, até que estas possam tornar-se independentes dos serviços prestados.” (BRASIL, 2006a, p. 03). Quanto a esta orientação, a maioria das psicólogas informantes concorda com a afirmação, duas destacam que não se pode trocar uma dependência por outra: Acho que não precisa ser nada muito, muito, muito longo, porque eu penso assim é... É importante tudo isso, mas é importante que elas saibam caminhar. Não dá pra tirar a pessoa de uma dependência e colocar na outra. Sabe assim? (NORA).

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Pois, segundo Macela, essa dependência se estabelece: [...] é uma coisa que a gente vê muito na Casa-Abrigo. Assim, como elas ficam muito fechadas, elas ficam muito dependentes do serviço. E aí é uma luta constante da equipe da Casa-Abrigo de tentar ver se essa mulher pode. Ela pode fazer, ela pode ir atrás de tirar um documento, de tirar uma certidão, de ir num posto de saúde. Enquanto ela tá lá, ela é totalmente acompanhada, totalmente assistida pra sair e tudo. Essa dependência ela acontece de fato, e o profissional tem que tá atento a isso. Então, eu concordo sim, ela precisa tornar-se independente do serviço prestado. Eu acho que em alguns casos fica sim uma relação de dependência, mas olha só! Dependência dos serviços prestados, não tá dizendo aqui que especificamente na psicologia. Eu acho que nenhuma mulher que eu atendo hoje esteja dependente da psicóloga, entende? Mas eu acho que algumas são dependentes dos serviços em outras áreas, entendeu? Que querem, por exemplo, todas as facilidades [...] Auxílio moradia, numa bolsa família, que querem que a assistente social faça por ela. Que vá por ela, que vá com ela, entende. Então acho que essa dependência da psicóloga é... Eu não acho que tenha, mas a dependência do serviço eu acho que ela acontece. Agora, se a gente tiver falando assim da questão da independência no sentido de, de alta terapêutica, entendeu? E aí eu acho que sim, é claro, porque aí, mas isso tá implícito no trabalho da psicóloga (MACELA).

Para Morgana, parece que, se o serviço fizer ou resolver pela mulher, a tendência é alimentar essa dependência. Algumas mulheres, eu via muito isso, assim, elas iam lá na casa, assim, eu tenho uma casa, a casa tá lá, mas, assim, como se fosse um suporte mais social de ter aquele centro lá, elas iam até lá, voltavam, mas não como uma demanda de movimento interno, de trabalhar mesmo as questões. Então..., eu acho assim, que não é uma questão de tornarse independente dos serviços prestados, eu acho que elas, assim, qualquer momento da vida delas elas podem recorrer a esse serviço, eu acho que o serviço tem que tá lá. E de qualquer forma o atendimento psicológico, ele trabalha visando essa autonomia do sujeito, independente se for mulher ou homem ou qualquer coisa esse sujeito tem que ser autônomo, precisa saber lidar com as suas questões.

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Então isso vai ser trabalhado enquanto profissional de psicologia, eu acho que dá pra pensar dessa forma. Mas esse serviço especializado continuado precisa ver a demanda da mulher, porque, assim, eu não vejo demanda dessa forma pra isso assim, no centro (MORGANA).

Diante dessas falas, pode-se perguntar se esta dependência citada não seria algo da mesma natureza que a dependência do homem, marido, companheiro? Parece haver vários tipos de dependência, uma promovida pela própria estrutura dos serviços e outra que pode existir, mas não pode ser alimentada, na psicoterapia. Contudo, Gardênia avalia que: Sempre que eu fiz terapia, sempre foi muito bom pra mim assim, sempre que eu precisar vou voltar de novo ou supervisão. Então eu acho que no grupo enquanto a mulher quiser ficar, por exemplo, no grupo, eu acho que ela pode. Por, por mim eu acho que ela deve ficar e permanecer porque ali é um lugar não só pra curar essas dores em função da violência, mas de socialização também de troca pra essa mulher. Que às vezes não tem muito o que fazer como recreação, como contatos sociais, acaba virando um evento social pra aquela mulher também e que tem um teor reflexivo superbom. Enquanto puder e quiser, deve continuar indo e dali talvez surjam outras coisas, aquele grupo que era um grupo de reflexão, se torne depois uma terapia ocupacional, se torne um grupo de mulheres artesãs [...] desde que esse grupo se fortaleça e vire outra coisa [...] (GARDÊNIA).

Podem-se dar também outros sentidos ao movimento de retorno das mulheres aos serviços, e não apenas o da dependência. Pode-se pensar que a mulher que retorna não quer encerrar seu acompanhamento, pois ainda precisa de apoio, mesmo que o serviço não entenda o porquê e qual seria esse apoio. Xena, por sua vez, avalia que o serviço precisa ser oferecido a despeito de vir ou não a causar dependência: “Preciso promover. Eu preciso, eu preciso dá, é... Pôr à disposição dessa mulher, que ela possa tá utilizando esse serviço.” Assim como Açucena:

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Precisa desse atendimento especializado, porque, muitas vezes, a pessoa não consegue mesmo só. Ela precisa do suporte, senão não tem como fazer isso. Porque, às vezes, só você se fortalecer emocionalmente, mas você não tem onde morar. Fica na rua? E precisa. Tem que ter a moradia, sabe. Não tem como (AÇUCENA).

Ainda no contexto da discussão sobre dependência, Ariadne destaca os limites e as contradições de se oferecer esse tipo de serviço: É preciso, agora o que acontece é que a gente não consegue, não tem tido essa, essa frequência. [...] geralmente elas abandonam antes um pouco de tarem completamente fortes porque é... Mas é que é necessário é... Mas não é tão, não é muito possível ainda (ARIADNE).

Dessa forma, entre precisar de apoio e se tornar dependente há inúmeras possibilidades. Há uma relação que se estabelece com o serviço e esta, em alguns casos, precisará ser avaliada e mais bem compreendida. Ainda entre as orientações que tiveram uma reação de estranhamento das psicólogas entrevistadas está a seguinte: “Ao/À psicólogo/a cabe facilitar à mulher atendida a aquisição de técnicas de contra-controle que lhe forneça instrumentos para assumir o controle da situação, saindo do papel de vítima passiva da violência doméstica e no trabalho, e de técnicas e estratégias de proteção e segurança pessoal.” (BRASIL, 2006b, p. 37). Diante desta afirmação, três entrevistadas discordaram e nove concordaram, sendo que destas, três concordaram parcialmente, como referem Malena e Açucena: “eu acredito que isso não cabe só à psicologia.” (MALENA). [...] eu não sei exatamente se só, por exemplo, ao psicólogo essa questão aqui, sabe? [...] Às vezes, até de, de segurança mesmo física, dependendo, porque, às vezes, a pessoa corre pro perigo. Dependendo, essa pessoa pode tá com uma faca e a pessoa, às vezes, não vê que tá correndo de fato um risco de morte. Aí vai, confronta, vai pra cima. Coloca a criança na frente, não é? [...] Então tem algumas orientações nesse sentido também [...] Dela se situar, ter a... Não perder noção do que tá acontecendo. Aquilo é real. Não perder o controle porque se você não raciocinar pode acontecer algo terrível. Se você não fugir, não tomar uma iniciativa, acreditar que

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aquilo vai acontecer. Precisa acreditar que vai acontecer. [...] (AÇUCENA).

Da forma que a orientação está colocada, fica evidente que é uma ação estabelecida como de responsabilidade técnica da psicologia, como as técnicas para assumir o controle da situação, mas que também podem ser trabalhadas por outras áreas do conhecimento, pois essas não são atribuições privativas de psicólogos/as e talvez não sejam nem mesmo para ser desempenhada por estes/as. Assim, aparenta-se um conflito, até mesmo uma contradição. Diante dessa frase houve um estranhamento geral como se o que está posto fosse algo que não seria privativo, exclusivo da psicologia, com exceção da psicóloga que trabalha com base nas teorias cognitivo-comportamentais: “Fazia, uma das técnicas era o treino assertivo, que ela assume o controle da situação sem ser agressiva, mas se colocando, se posicionando com mais firmeza, mas sem agredir o outro.” (GARDÊNIA). Machado (2004) destaca que essas ações educativas que promovem uma postura pedagógica do profissional trazem dificuldades; uma delas é apresentar a ideia de que o terapeuta sabe o que é melhor para a mulher que atende, sabe melhor o que vai acontecer na vida desta. A autora defende que esse não é o papel de psicólogos/as, sendo o papel adequado levar as mulheres a perceberem a complexidade da questão e que toda decisão estará suscetível de erros e limitam outras possibilidades. Sobre essa questão, Jasmine refere: Não sei como que isso ajudaria, porque assim, eu acredito que uma técnica só vai fazer efeito [...] digamos uma técnica de defesa pessoal. Eu vou aprender a técnica, mas quando eu aprendo a lidar com meu medo, senão a técnica não vai ajudar, ela vai me desestruturar, porque eu vou querer sair batendo, brigando. [...] aquisição de técnica de contra controle? Gostei não. (Gargalhadas). Aiii, não sei, mas eu não gostei não. Eu não ensinaria nenhuma técnica. Eu como psicóloga de forma alguma. [...] Até porque o suporte psicológico viria justamente pra ela aprender a lidar com isso e ela criar a técnica dela de como que ela vai se livrar. Não sei, mas eu ensinaria, não (JASMINE).

Assim, pode-se perguntar: seria, então, papel da psicologia trabalhar

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esse medo, os sentimentos envolvidos em toda situação, desde sofrer a violência até ter que ter estratégias para lidar com o agressor e não querer desempenhá-la ou não conseguir realizá-la? Morgana, ainda na reflexão sobre se seria ou não atribuição de psicólogas e psicólogos ensinar técnicas de controle, sugere que a proposta sofreu influência da perspectiva teórica do profissional que deu suporte técnico para sua construção: Isso aqui me pareceu, assim, [...] uma visão muito da linha cognitiva comportamental que é algo digamos, assim, o psicólogo que ajudou a fazer esse... O psicólogo que ajudou a fazer a norma pode ter... Pode ser dessa linha e achou que isso aqui era interessante. E aí assim, eu nunca trabalhei com isso assim, não... Eles defendem que tem os seus resultados, e, assim, então, não me sinto à vontade pra dizer que não serve, mas assim, eu não trabalho com isso e eu acho que há outras abordagens que se pode fazer um trabalho bom. [...] o que me parece é que foi uma visão de um profissional que escreveu, mas assim, que os psicólogos não necessariamente vão usar isso aqui, porque nem todos vão trabalhar dessa forma usando essas técnicas... Essa visão mais comportamental. E aí entra naquela velha coisa, assim, pra algumas correntes basta mudar o comportamento que você vai mudar as circunstâncias, aí pra outras acredita-se que não basta mudar o comportamento, tem que mudar as forças, a psicodinâmica, as questões inconscientes que estão interferindo nesse processo. Então acho que vai muito de cada profissional... (MORGANA).

Mesmo quando a orientação apresenta algo privativo da psicologia, é algo de e para psicólogos/as que atuam utilizando uma determinada teoria. Dessa forma, a orientação não cumpre seu papel, pois os que não dominam essa teoria não poderão trabalhar com essa técnica de forma segura e com qualidade. Assim, pode-se mais uma vez destacar, que a melhor orientação seria explicitar o objetivo que se quer alcançar, e não a técnica que deveria ser utilizada. Por fim, a informante pressupõe que houve a participação de psicólogos/as na elaboração dessas orientações. Contudo, essa é uma das publicações onde não foi explicitada se houve a participação de especialistas na área de psicologia na sua construção. Mesmo assim, o texto promove o entendimento de escolha por um tipo de abordagem, por uma escola teó-

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rica, quando se tem como foco a mudança do comportamento. E ainda dentro dessa discussão, Violeta defende que há um lugar para a intervenção em psicologia, e não seria o de apresentar técnicas de defesa pessoal: No sentido da proteção e segurança pessoal, só que não que ele vá fornecer as técnicas, assim, digamos de defesa pessoal, algo do tipo, mas que ela possa se assegurar de que vai poder ter a sua independência dali pra frente sem ficar com medo (VIOLETA).

Para Machado (2004), diante da atribuição das/os psicólogas/os nesses serviços de como traçar plano de segurança com as mulheres em situação de violência, traz os seguintes problemas: Não será, contudo, que, ao traçarmos planos de segurança com a vítima, poderemos acabar por reforçar a sua culpabilidade, se acontecer que aquela não seja capaz de se defender ou de implementar as estratégias delineadas? Não será que, nessas situações, lhe transmitimos a sensação de ter fracassado e de ter, para além disso, frustrado o terapeuta? Não será, pior ainda, que comunicamos à vítima uma falsa sensação de segurança, fazendo-a acreditar que existem padrões causais na violência e que ela a pode antecipar? Não será também que sobrecarregamos o técnico com uma tarefa quase impossível: a de garantir a segurança da vítima? (MACHADO, 2004, p. 406).

A autora não quer com isso dizer que não se deve ter preocupações quanto à segurança, mas aponta a necessidade de se refletir sobre as consequências das opções terapêuticas escolhidas. E, pode-se acrescentar, dificultaria uma atribuição que, essa sim, psicólogas estariam preparadas para fazer, que seria a de acolher as contradições e as dores/sofrimentos psíquicos da situação vivenciada. No que se refere às questões da segurança, duas das psicólogas entrevistadas, que trabalham ou trabalharam em centros de referência, apontam para a importância dessa proteção:

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Eu acho que esse controle seria entre aspas, ela assume um controle à medida que ela consegue se posicionar e dizer não. [...] Aí ela consegue. Ela se impõe e ela determina e ela faz. Não mostra insegurança, [...] Na medida que ela consegue fazer isso, ela assume esse controle, assim, entre aspas. [...] Eu acho que essa aquisição caberia porque ali o psicólogo, ele vai tá levando. Ele não vai dando as técnicas, eu acredito. Mas ele vai tá levando ela a repensar os seus próprios conceitos, os seus próprios valores e orientando ela em relação aos direitos que ela tem. [...] Não que o psicólogo vai chegar lá, assim, como receita de bolo. [...] porque a gente tem aquelas orientações que se dá de ter o telefone gravado de uma vizinha ou ter os vizinhos sabendo. [...] Ter uma mochila de roupa. [...] É! Ligar pro 190, pro 180. Essas orientações que se é dado. [...] Quando a mulher tá entrando... Iniciando uma relação. Pontos pra se perceber o perfil do homem agressor ou é... técnicas de que a mulher pode desde o início ir se posicionando dentro da relação, dizendo não em relação a algumas coisas. E aí eu encontrei dez itens lá falando. Eu acredito que essas orientações até se possa dá, mas não é uma regra. São orientações que servem. [...] Mas que vai depender da mulher, do contexto que ela tá vivendo, [...] eu acho que o papel do psicólogo não se restringe a isso, a fornecer essas técnicas. Mas pode ser um instrumento, algo que... Essas pequenas orientações que eu acho que se deve dar quando a mulher não quer sair de casa, não quer denunciar, você pode orientar o que que ela pode tá fazendo pra se proteger (MALVA).

Contudo, Ariadne questiona é a operacionalização dessa questão: Isso aqui é difícil [...] Que seria aqui no caso para você é..., vamos dizer, é, tenha aulas, tenha técnicas de autodefesa (Gargalhadas). Faça um tae-kwon-do aí, vamos dizer, aprenda [...]. Uma mulher aprender uma luta é importante pra você saber o domínio do seu corpo, da força que você tem, [...] O homem frente à resistência física da mulher ele aí que ele bota a violência dele pra valer. É muito difícil. Tem que ser uma mulher muito ágil e com muita capacidade de autodefesa. [...] Como é que você se antecipa à situação pra não entrar no miolo do vulcão? [...] agora eu não sei como é que poderia fazer isso aqui não [...] seria bom a gente ter essa autodefesa, seria (Risos). Agora, como? (ARIADNE).

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E Xena avalia como necessário: [...] cabe facilitar mesmo, sabe, ampliar horizontes, é... sabe, mostrar possibilidades. Eu acho que cada psicóloga que tá atendendo essa pessoa e, às vezes, há a necessidade de ter é... uma intervenção mais direta mesmo, [...] Acho que, dependendo da situação o posicionamento dessa psicóloga, desse psicólogo ele precisa ser direto. Precisa ser de orientação, de traçar estratégias mesmo com essa outra pessoa. Então, eu acho que dependendo da situação, eu acho que é necessário mesmo... [...] Vamos acionar, o que a gente precisa acionar. [...] Quais são as possibilidades de intervenção? É... Quais são as medidas que podem ser buscadas pra proteger essa pessoa (XENA).

Machado (2004), quando apresenta os dilemas técnicos da intervenção em psicologia, destaca: “ao procurar produzir numa vítima a consciência da sua situação de vitimação e do risco que ela corre, não poderemos apenas estar a agravar o seu mal-estar” (p. 405). Também poder-se-ia perguntar se cabe à/ao psicóloga/o fazer essa intervenção ou trabalhar o sofrimento decorrente dessa situação. Talvez coubesse a outro membro da equipe dar a notícia do risco que a mulher corre, tal qual um médico dá um diagnóstico, ficando a/o psicóloga/o, hospitalar, por exemplo, com a tarefa de acolher a dor, o sofrimento decorrente da conscientização de que algo grave está acontecendo, que coloca sua vida em risco ou mesmo da possível dificuldade da mulher de desempenhar ações que lhe são propostas. Assim, se a/o psicóloga/o for a/o porta-voz da notícia do risco, ou das orientações do que é preciso fazer para se proteger, terá condições de atuar como quem dá suporte ao sofrimento consequente? Quem vai cuidar do possível medo da mulher de atuar da forma que foi orientada, ou do desejo de não fazê-lo por acreditar que seu desejo se realizará? O desejo de que o homem mude e de que o casamento dos contos de fada, elementos centrais da ideia de amor romântico, se realize? Há um conflito: assumir ou não essas orientações. O aspecto obscuro que se observa parece não ser a questão da segurança, mas a quem cabe o desenvolvimento dessa atividade e a que preço? A atitude de questionamento quanto ao que era colocado para que uma psicóloga desenvolvesse em seu trabalho ainda se seguiu principal-

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mente diante de orientações que continuam apontando técnicas específicas para serem utilizadas, como a orientação “Técnicas de relaxamento e controle do estresse, de resolução de conflitos e de assertividade devem integrar o atendimento psicológico.” (BRASIL, 2006b, p. 37). Neste item houve uma concordância da maioria das informantes, todavia, como técnicas que podem ser usadas, mas que, mais uma vez, dependem da formação da profissional. Macela refere: “Não necessariamente. [...] em algum momento, dependendo da técnica do profissional... [...] Pode ser que isso caiba. [...] Agora eu não acho que deve pegar como norma, entende?”. Açucena destaca: “Dependendo do estado da pessoa, ela vai precisar de algum desses... Dessas técnicas.”, assim como Malena: Achei isso aqui bacana [...] nem todo profissional se identifica com essa prática. Como as abordagens, cada um se identifica com uma abordagem. Eu fico preocupada de, disso, é... Ser um indicativo, digamos, é um indicativo pra política pública da mulher e pessoas que não se identifiquem, porque se for bem trabalhado, dá certo (MALENA).

Por sua vez, Gardênia fica feliz com a orientação, por fazer parte de sua abordagem teórica, fala como se sentisse contemplada com orientações técnicas de sua linha de intervenção: “Nossa! Vou colocar fortemente nesse aqui! (Gargalhadas).”, referindo-se ao grau de concordância que escolheu para a frase apresentada. Outras psicólogas questionam as indicações justamente por não integrarem a abordagem teórica que utilizam. Morgana diz: “Também é uma visão bem cognitivista.”, e Nora destaca: Esse negócio de técnicas de relaxamento dessas coisas assim, eu não, eu não sou uma pessoa que usa muito dessas coisas nem comigo, quanto mais com os outros. [...] Não uso muito disso, não sei, não tenho assim informação pra falar sobre essas coisas [...] (NORA).

Essa orientação provocou diferentes entendimentos e reações, desde não conhecer e não gostar da proposta, até ser exatamente o que faz na intervenção profissional, o que aponta que esse tipo de orientação não parece adequado, pois vai depender do tipo de formação do/a profissional. E, na sequência das avaliações, mesmo apontando para a importân-

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cia do tipo de formação da/o profissional para a atuação com uma ou outra técnica, onde concordaram com a orientação embora relativizando, as psicólogas entrevistadas se surpreendem diante da orientação: O(A) técnico(a) responsável pelo atendimento psicológico poderá, após a elaboração do diagnóstico aprofundado, encaminhar a mulher em situação de violência ao atendimento de arte-terapia, caso julgue adequado, indicando ainda se o atendimento deverá ser individualizado ou em grupo (BRASIL, 2006b, p. 37).

Pode-se considerar que esta foi uma das frases que mais mobilizou o grupo de informantes, quando se considera a reação ou a entonação da voz, no entanto, as psicólogas ainda se dividiram entre as que concordaram, mesmo com ressalvas, e as que não concordaram. As que concordam falam que pode ser importante, pode funcionar, desde que seja uma escolha da mulher, dentre algumas opções que possam ser apresentadas. Mais uma vez, a questão da indicação da profissional para o caso aparece, ou seja, para as informantes, a psicóloga, que deve dizer o que é mais adequado. [Riu, ao final da leitura da frase a ser analisada] É... Primeiro que, se esse técnico responsável for a psicóloga, ela não tem nada que, que, que tá encaminhando uma pessoa pra esse serviço específico, arteterapia, [...] A gente precisa saber o que a pessoa se identifica, quais são os anseios, o que que ela busca pra si. É muito variado o projeto terapêutico singular. [...] É. Uma determinação. Tem que ter isso. Pelo menos é o que eu tô entendendo [...] Ele é um técnico que ele foi chamado pra avaliar aquela mulher. Ou ele é aquele... É o profissional, psicólogo que tá acompanhando através de psicoterapia? São coisas diferentes. Se o papel [...] for aquele profissional que faz um trabalho pontual pra servir de subsídio pra uma audiência, pra um julgamento, ele tem que fazer o papel dele muito bem feito, da forma mais aprofundada como está posta aqui e se retirar... E aí vai pra psicoterapia, seja individual ou em grupo com outra profissional (MALENA).

Essa fala remete à resolução nº 08, de 2010 do CFP, que faz a distinção entre as funções dos/as psicólogos/as na atuação como perito e assis-

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tente técnico no Poder Judiciário e ainda destaca o papel dos/as psicólogos/ as que atuam como psicoterapeutas das partes (CFP, 2010b). Entretanto, essa questão já estava definida no art.º 2º, letra ‘k’, do Código de Ética Profissional do Psicólogo - CEP (CFP, 2005), quando veta ao/à psicólogo/a: “Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos resultados da avaliação” (p. 10). Dessa forma, mais uma vez, fica a questão sobre: qual seria o trabalho de um/a psicólogo/a nesse contexto, ou mesmo ,quais as atribuições e como estas poderiam ser desenvolvidas? Houve também uma dificuldade para o entendimento da orientação, talvez por não conhecerem a técnica indicada ou por ser uma intervenção que não faz parte da psicologia como ciência e profissão: “... Só na questão da arteterapia? [...] porque o encaminhamento eu acho, assim, é necessário a gente fazer, eu não sei se por que ficou específico arteterapia. Que é um trabalho muito interessante a arteterapia. Agora não sei.” (AÇUCENA); “A arteterapia é uma abordagem que pode ajudar. Agora se vai ser individualizado ou em grupo eu pensei que era com relação à terapia, mas é específico da arteterapia?” (VIOLETA); “ ‘Indicando ainda se o atendimento deverá ser individualizado ou em grupo’ ... é... da arteterapia?” (MACELA); A mulher tá em situação de violência [...] faz uma elaboração aprofundada de diagnóstico e vai mandar a mulher pra arteterapia? [...] Não sabia nem que a arteterapia fazia individual. Tem arteterapia individual? (Risos) [...] É como a técnica antiestresse, deve fazer parte, arteterapia e tal, mas não como algo que depois de um diagnóstico aprofundado a pessoa seja encaminhada pra arteterapia. [...] Então o diagnóstico não foi feito. Se uma mulher fica numa situação dessa, não é porque gosta. A arteterapia não vai resolver (SERENA).

Essa reflexão crítica da orientação, em alguns momentos com ironia ou surpresa, não foi unanimidade. Gardênia percebe como algo para iniciar, estimular o processo de autoconhecimento da mulher: “eu acho bem interessante, se tivesse esse recurso. Pra iniciar esse mergulho interno”. Contudo, como algo anterior ao atendimento psicológico, que promoveria a busca pelo trabalho de um/a psicólogo/a. Dessa forma, mesmo assim, não

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seria um serviço a ser utilizado da forma que a orientação apresenta, pois para elas, precisa que haja um lugar para se trabalhar o sofrimento psíquico da perspectiva das teorias psicológicas. Por fim, quanto à avaliação sobre a última orientação técnica apresentada, mas uma vez um estranhamento foi percebido no grupo, pois diante da frase: “É necessário promover a resiliência da mulher atendida, de forma a tratar possíveis sintomas de depressão e ansiedade crônica; promover paradigmas que possibilitem à mulher em situação de violência internalizar o conceito de que a violência é inaceitável e insustentável.” (BRASIL, 2006b, p. 37), as psicólogas entrevistadas demonstraram uma dificuldade maior para o entendimento. Por um lado, elas não sabiam o que significava resiliência ou, mesmo sabendo, achavam a frase complicada. Para algumas, a orientação apresentava muitas questões numa mesma frase, e estas questões não se relacionavam necessariamente. Apesar de sete psicólogas afirmarem concordar com a frase, algumas falaram a partir do que compreendiam pelo termo: Eu também achei confusa [...] Não sei se é porque eu achei muita coisa num negócio só. [...] Promover a resiliência. Isso me parece tão estranho [...] mas a impressão disso, como tem muita coisa na mesma frase, eu achei que ficou um pouco confuso [...] Elas não veem a violência como algo inaceitável e insustentável, elas acham que isso é normal, é comum, é frequente, todo mundo passa. Todo homem é assim, todo homem é assim! Então, acho que precisa quebrar esse padrão de fato [...] Eu não sei se porque promover a resiliência me soou estranho, aí eu fiquei bom, tá, vai promover a resiliência, pensando que é um processo tão delicado, tão demorado [...] esses sintomas eles são todos assim pontuais, focais. Esse choro, essa irritabilidade, essa coisa de não conseguir se controlar. De se sentir diminuída, de sentir vontade de se deitar na cama e não se levantar mais. Então, eu não sei se eu tô entendendo, assim, como se fosse, então, vai ter que tratar de tudo isso primeiro, essa coisa que tá ali, pra depois desse processo que é esse processo mais crônico, mais ali da crise é... Ir trabalhando a questão da resiliência, seria isso? [...] Às vezes, até com a medicação. Então vai demorar três meses, porque pra depois vai pensar nessa coisa da resiliência de, então, se fortalecer. Não sei, parece que eu tô vendo os processos assim um pouco separados, entende? Mas eu, eu entendi o que quis dizer, entendeu? E concordo.

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Mas eu acho que... Eu não sei se o texto que ficou um pouco confuso, mas também não sei qual seria a proposta. [...] Eu acho que eu separaria... [...] as afirmações, não sei. [...] Acho que ficaram dois, dois conceitos e duas situações no mesmo parágrafo que não tão diretamente relacionados. A alguma coisa me soou estranho, mas enfim, a ideia eu concordo, entendeu? (MACELA).

Apenas Morgana foi categórica na discordância: Isso aqui parece um livro de autoajuda (Gargalhadas). [...] Essas psicologias muito positivas, né: Ah, pensa positivo que a mulher vai conseguir e tal. E pra mim, assim, existem tantas coisas por trás. É uma situação tão complexa que cada caso é um caso [...] O que seria esse ‘promover a resiliência’ porque assim, a resiliência seria essa capacidade de passar por adversidade e superar e tal, mas assim, como é que se desenvolve isso? [...]. Pra mim sintomas são só sintomas. Assim, se eu preciso tratar de um quadro de ansiedade e depressão eu preciso tratar realmente do quadro e não só dos sintomas. [...] Porque senão eu vou tratar do sintoma e daqui um mês aí acontece alguma coisa e a mulher já tá em crise de novo. [...] (MORGANA).

Houve também um questionamento sobre o que observaram como uma imposição para as mulheres: [...] me dá uma ideia de que é uma coisa muito brusca, assim, dizer assim que a violência é inaceitável e insustentável. Porque, de certa forma, ela já passou por aquilo. Então, ela aceitou até esse ponto [...] as mulheres, às vezes, elas, elas relatam que chamam pra briga. [...]. Então, só que até chegar a esse ponto tanto ela quanto ele tiveram alguma, alguma situação que foi é, acumulando, (VIOLETA).

Outra questão que é destacada é o como fazer para desenvolver essa resiliência ou promover a internalização desses conceitos: “Não sei como a gente pode fazer isso muito, mas concordo.” (ARIADNE); “Só que como é que internaliza? Racha a cabeça da mulher no meio e bota dentro?” (SERENA). Jasmine refere que “[...] a resiliência se encaixa em qualquer abordagem da psicologia. Porque você trabalhar o seu sofrimento, [...] não deixar que

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ele atrapalhe o tanto de vida que você ainda tem [...]”. Aqui pode-se pensar se quando se utiliza deste conceito como capacidade de superação, como “Habilidade do indivíduo em superar adversidades médias e severas, como traumas de guerra e episódios sistêmicos de violência, por meio da elaboração e ressignificação dos danos advindos da adversidade sofrida” (BRASIL, 2006b, p. 37), poder-se-ia trabalhar em qualquer abordagem, como refere a entrevistada. Pode-se dizer, então, que é possível trabalhar, em qualquer abordagem psicológica, a possibilidade de superação do ser humano, pois as diversas teorias psicológicas têm diferentes técnicas, pressupostos e conceitos, porém, com um objetivo em comum: promover mudanças na vida das pessoas. Dessa forma, a banalização do diagnóstico de depressão e ansiedade tem levado a situações que limitam a vivência do luto (FREUD, 1917/2000), da tristeza, processos saudáveis, pela ideia do adoecimento. A chamada medicalização da vida21. Hoje com essa questão de depressão, de ansiedade, as pessoas não querem deixar o ser humano viver mais nem o luto de nada. Tudo é necessário entrar com medicamento, com tratamento, sem perceber que esse ser humano tem uma força dentro dele que pode, sim, resolver, que ele pode, sim, passar por aquilo (NORA).

É preciso saber quando se trata de um transtorno psíquico e qual a sua gravidade para propor o encaminhamento, e quando se trata de um momento de luto e tristeza que causa sofrimento psíquico, mas não necessariamente são transtornos mentais ou psicopatologias. E, nesse caso, pode-se perguntar: qual das integrantes da equipe teria mais condições de fazer essa avaliação? E, depois de identificado, qual o trabalho a ser realizado? Parece que a utilização da capacidade de resiliência é importante, contudo, a forma como é colocada deixa dúvidas, é confusa e mistura as ações. A partir dos discursos das entrevistadas, trata-se de uma capacidade que é importante para superar traumas, mas seria esta a tratar os sintomas destacados nos textos? Ou seria o indicado nesses casos uma psicoterapia 21 - Questão discutida pelo CFP diante da crescente escalada do uso de drogas, com destaque para as drogas lícitas, como as medicações para depressão, ansiedade, e os chamados distúrbios do deficit de atenção e hiperatividade. http:// drogasecidadania.cfp.org.br/episodio-04-medicalizacao-e-sociedade/

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para, em princípio, tratar “depressão e ansiedade crônica” e, nesse processo de autoconhecimento, desenvolver a capacidade de resiliência? Por fim, é importante destacar que os documentos de 2009 e 2010 (BRASIL, 2009, 2010a, 2010b) não foram avaliados pelas psicólogas informantes na pesquisa de campo. A justificativa é de que, nessas publicações não havia referências peculiares à intervenção em psicologia, como existiam nas publicações acima citadas. As publicações de 2007 foram avaliadas pelas informantes, mas, como não se referiam diretamente aos atendimentos psicológicos e sim às capacitações e perfil profissional, optou-se por não apresentá-los nesta oportunidade.22

22 - Caso tenha interesse sobre esse tema, acessar: Porto, 2013.

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4 AS ORIENTAÇÕES DA SECRETARIA DE POLÍTICA PARA AS MULHERES PARA O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO: UM NORTE OU UM EQUÍVOCO?

O grande desafio é afirmar a especificidade da experiência vivida, ou seja, a positividade do corpo feminino na sua diferença (...) esse gesto de positivação da feminilidade teria longo alcance como crítica da cultura e forma de enunciação de novas subjetividades (ARÁN, 2009, p. 663).

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Das 12 entrevistas, apenas três consideraram as orientações como boas, no que se refere a sua clareza quanto às referências apresentadas para a atuação em psicologia e que são suficientes para ajudar na intervenção: “... Eu acho que é um norte. Pra gente saber por onde ir” (NORA), mas, mesmo avaliando positivamente, revelam ressalvas: Eu fiquei, por exemplo, em dúvida numa questão ou outra pela necessidade de ficar relendo, repensando sobre isso, porque uma coisa é você fazer uma leitura, e depois você precisa re... Precisa ficar pensando e repensando sobre isso. [...] Totalmente não! Pelo menos pra mim. E eu acho talvez que outros aspectos precisariam ser colocados, talvez, aqui. Não sei te precisar exatamente como. [...] Mas eu senti falta (AÇUCENA).

As demais informantes (nove) avaliaram as orientações como vagas e/ou ambíguas, Macela enfatiza: [...] eu só falei que tava confuso, confuso, confuso. E eu já tava ficando incomodada, eu digo faltei às aulas desse negócio, porque, assim, é... Eu acho que tem que ter a segurança profissional. Fato. Mas você tá ali e você entende que é um centro de referência e que outras pessoas já fizeram e já aconteceram, é importante você ter um referencial daquilo que você considera como instância maior. Aí você pega algo que você considera tudo como confuso, confuso, confuso, [...]. Difícil, ou seja, vai ter que mudar e melhorar, porque pra ficar desse jeito tem coisas aqui que sinceramente, assim (MACELA).

Gardênia destaca que uma das questões que faz a orientação ser vaga é a mistura das teorias psicológicas: Eu acho que elas são vagas, e, e assim, eu fico imaginando num começo de carreira, você começando a trabalhar agora. Tem algumas coisas que não dizem nada, que parece o samba do crioulo doido. Tá tudo junto. Eu vejo uma linguagem de base analítica, eu vejo uma linguagem mais voltada pra cognitivo comportamental. Também não tem uma abordagem específica aqui nessas orientações. [...] Eu sempre achei esses manuais assim meio vagos, e eles trazem

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um formato de uma metodologia, que dá pra você ter uma ideia do trabalho, dá um norte pra você. Mas, na hora de realmente fazer o tratamento, tá junto com essa mulher, não diz muita coisa (GARDÊNIA).

Com relação às teorias psicológicas, pode-se dizer que não haveria problema propor um trabalho a partir de mais de uma escola teórica ou que a psicóloga escolhesse qual a melhor teoria para a sua intervenção. O problema que se apresenta é a mistura entre diferentes teorias, como se fosse algo que todo e qualquer psicólogo/a poderia realizar, o que demonstra um desconhecimento de pressupostos importantes da profissão, composta por diferentes matrizes teóricas, que promovem diferentes intervenções. Caso isso não seja considerado, ou seja, que os/as psicólogos/as seguem linhas teóricas diferenciadas, esse tipo de orientação fica sem sentido. O melhor seria, então, apresentar o objetivo de se ter uma psicóloga na equipe. E, assim, pode-se perguntar: para obter o quê? Para realizar qual trabalho, que outro profissional não realizaria? Só assim faz sentido definir que psicólogos/as precisam fazer parte dessa equipe. Relata Morgana sobre essa questão: Eles colocam lá aquelas questões lá meio autoajuda, meio psicologia positiva. [...] Comportamental. [...] Isso aqui me parece aquela questão, assim, vamos construir, lá em cima, [...] Quando eu entrei no estágio, [...] me deu uma visão geral, mas o documento pensando nele como uma referência que eu vou recorrer lá no momento de dúvida, de algo mais... Mais consistente ele é fraco. [...] Pro atendimento psicológico. [...] É, parece que tá uma salada da psicologia. Fizeram uma salada e... É provável até que seja alguém que fez esse documento nem que seja da psicologia, porque geralmente você quando é psicólogo você tem uma noção que existem diferentes abordagens, que você não dá pra trabalhar com tudo, precisa se definir um referencial, ou então um profissional muito despreparado. Pode ser. Não sei. [...] Porque, por exemplo, digamos que eu tô numa comissão dessas, eu vou fazer esse documento, eu vou usar o meu referencial, o referencial, porque eu não vou me atrever a usar o que eu não tenho o menor conhecimento, que não tenho o menor domínio. [...] talvez a questão não seja olhar, não seja algo assim de técnica exatamente, porque aí teria que contemplar várias questões. Eu acho que não teria como

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colocar de técnico, porque eu acho que talvez também isso aí seria o mínimo que o psicólogo deve saber. Se ele passou por uma faculdade, ele tem que saber o método e as técnicas que ele vai trabalhar. Mas, sobre a dinâmica, sobre o psiquismo da mulher, sobre as variáveis, sobre, sobre essa questão mais do fenômeno da violência numa perspectiva olhando pra essa mulher, assim, por exemplo, tem textos que falam sobre isso, essas questões. [...] Algo mais, mais nesse sentido. Eu acho que seria mais viável (MORGANA).

Diante desta fala, parece não adiantar apontar técnicas de diversas teorias da psicologia acompanhadas do destaque para que os/as psicólogos/ as não foquem a subjetividade atuando com base na psicologia clínica e trabalhe temas como cidadania, protagonismo e autoestima, por exemplo, como se isso ampliasse a atuação de psicologia para além da individualidade e como se, trabalhando a subjetividade, não se pudesse oferecer um aspecto importante para o acesso a essas questões. As orientações defendem uma posição política, como também foi identificado por Machado (2004) ,no estudo sobre a intervenção psicológica no contexto da violência contra as mulheres em Portugal, e não consideram que, em alguns casos, a intervenção adequada possa ser a que permite que a mulher mergulhe na sua subjetividade e história de vida sem com isso perder o contexto do que está vivenciando e todas as importantes questões de conscientização da exploração do sistema patriarcal denunciado pela categoria gênero, de Scott, (1990) e pelas discussões posteriores (BUTLER, 1990, 1992; ARÁN, 2009 e SWAIN, 2006). As psicólogas percebem as limitações dos documentos no que se refere à psicologia. O lugar da psicologia, nesse contexto, ainda não está claro e isso é observado na mistura entre as atribuições da psicologia e do serviço social: “E se você pegar também a parte do serviço social, não vai tá muito diferente. Tirando a parte socioeconômica, tem muita coisa que parece muito as duas profissões.” (GARDÊNIA). Hanada et al. (2010) observaram que: [...] nem todos os serviços psicossociais tinham psicólogos, apesar de a equipe dos centros de referência ter como base os psicólogos e os assistentes sociais. A propósito, quando da proposta de uniformização desses serviços, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em Norma Técnica

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para Centros de Referência de 2006, fez essa mesma indicação para a equipe mínima (p. 45).

Esse é um ponto relevante, pois leva ao questionamento sobre a quem interessa defender os atendimentos chamados “psicossociais”, quando podem existir sem nem mesmo ter psicólogos/as para realizar a parte ‘psi’ do atendimento e, ainda, reforçando que outro profissional pode intervir nesse aspecto. Ficou explícito, por fim, que a política pública desenvolvida no Brasil é semelhante à desenvolvida em Portugal (MACHADO, 2004), pois, também é influenciada pelo modelo dos programas propostos para agências internacionais no que se refere à postura educativa, ao paradigma feminista como posicionamento político, destaque ao planejamento para a segurança, ênfase no empowerment, proposta de intervenções em curtos prazos (técnicas para o controle da situação) e a ênfase na mudança social nos papéis tradicionais de gênero. Esses resultados também apontam uma semelhança com a avaliação feita por Machado (2004) sobre os dilemas teóricos vividos pelas psicólogas diante da demanda da política pública: a hegemonia dos modelos de intervenção em crise e feministas, que defendem uma postura educativa do psicólogo/a; da percepção da mulher como ‘sobrevivente’ e o potencial conflito entre os valores das mulheres atendidas e a profissional. Nesse último caso, destaca-se a fala de Nora, quanto à mudança na relação com as mulheres que atendia, depois que ela própria sofreu violência, bem como a identificação de Pinto (2003), que, para as feministas, só as não-feministas sofriam violência. Diante dessas constatações, pode-se acrescentar que as psicólogas também parecem pensar assim “só as não-psicólogas sofrem violência”, quando revelam sofrer menos violência que os psicólogos (CFP, 2012a), como já foi apresentado. O trabalho educativo tem um lugar e uma função relevantes, no entanto, ele não promove o trabalho dos processos intrapsíquicos do sofrimento psíquico presente na situação, além dos desejos e contradições dessa experiência e que precisam de um lugar de expressão. Há um modelo do que deve ser feito, e todas as mulheres que procuram o serviço especializado precisam a este se adaptar. Atitude que fica próxima do que as feministas apontam como limitação da psicologia, o enquadre em um modelo que não amplia para outras compreensões. 131


No que se refere aos dilemas técnicos, apontados por Machado (2004), a orientação de conscientizar as mulheres sobre sua condição de vítima e sobre o risco que correm poderia agravar seu mal-estar, principalmente, quando se percebem os limites dos recursos existentes para esse apoio. Questão também percebida e vivida pelo grupo estudado, quando destacam os limites da rede de atendimento. Quanto ao trabalho para desenvolver a assertividade, que foi bem avaliado por apenas uma entrevistada, é percebido por Machado (2004) como possível potencializador de mais violência, principalmente, quando considera que o momento da separação é o que mais traz risco para as mulheres. Quanto à apresentação de planos de segurança, também um aspecto já discutido, as psicólogas referem sobre a questão, destacando que não há segurança para a equipe. Sobre a falta de segurança da equipe, relata Macela: Eu acho que uma coisa que dificulta é a questão da segurança. Eu acho que a segurança ainda é falha. Eu acho que precisava ter um serviço que oferecesse segurança pros profissionais. Então acho que ali, nisso peca porque os homens acabam entrando na casa como eu já tive vários que foram pro atendimento. Ficaram esperando a mulher na porta. Então eu não sinto que assim que seja seguro da maneira que é necessário (MACELA).

Essa questão se diferencia do ponto de vista de Machado (2004), que refere sobre os eventuais limites desses planos para as mulheres atendidas em relação às opções terapêuticas adotadas. A situação potencial de conflito que pode se estabelecer entre as dinâmicas do processo psicoterápico e as obrigações legais da/o psicólogo/a, pode ocorrer quando as orientações de segurança, eventualmente, se colocarem contra a vontade da mulher atendida, que, muitas vezes, não quer fazer o que é orientado pela política especializada, ou seja, não quer fazer a denúncia ou não quer se submeter aos procedimentos de proteção. Ao mesmo tempo, como o próprio discurso apresentado nas normas orienta, é preciso incentivar a autonomia e a capacidade de decisão da mulher, o que definiria a garantia da liberdade de escolha dessas, questão também fundamental em um processo psicoterápico. Esse ponto é polêmico e envolve discussões éticas, todavia foi colocado

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pelas psicólogas entrevistadas como um conflito ter que atender as mulheres e participar das reuniões de equipe, por exemplo, onde as mulheres, em especial nos abrigos, sabem que, nesse tipo de atividade, a pauta da reunião é sobre elas. Isso poderia justificar a evasão da participação das mulheres nas atividades da equipe multiprofissional, que é percebida nesses serviços. Enfim, no que se refere aos dilemas emocionais, Machado (2004) apresenta que as dificuldades citadas trazem desgaste e dificuldades emocionais para os/as psicólogos/as, como foi apresentado anteriormente. Não era o objetivo deste estudo entrar nas questões pessoais das consequências do trabalho com mulheres em situação de violência, principalmente, por ser um grupo de pessoas próximas à pesquisadora. Porém, mesmo assim, houve um relato sobre a vivência de uma violência perpetrada por um homem da família. Isso já era esperado, como a própria autora (MACHADO, 2004) destaca, pois, ser psicóloga não é garantia de que não se tenha vivido esse tipo de violência, em especial, por ser um grupo de mulheres, pois ser mulher é condição de vulnerabilidade para as violências de gênero, familiar, doméstica e/ou conjugal. As recomendações dessa autora, para o enfrentamento das consequências desse tipo de trabalho, também são destacadas pelo grupo, como a necessidade da supervisão clínica, da discussão com os pares e os cuidados para sua segurança pessoal. Assim, é identificada a existência de conflitos e sofrimento, inerente a esse tipo de intervenção profissional e que precisam ser discutidos.

Para arrematar a conversa... A partir da análise realizada, observou-se que a violência contra as mulheres é discutida, nas orientações da SPM, quase que exclusivamente como fruto das relações de gênero fundadas na sociedade patriarcal, em que psicólogo/a, assistente social e advogado/a atuariam de forma semelhante e em que, após o resgate de uma autoestima, avaliada como baixa, mudanças no comportamento das mulheres dar-se-iam no rumo da redefinição da relação afetiva, culminando com um possível rompimento dessa relação. Isso porque a baixa autoestima seria derivada da construção social, cultural e histórica dos papéis de gênero e promoveria a permanência das

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mulheres em situação de violência. Embora no primeiro documento publicado pela SPM (BRASIL, 2003) apareçam conceitos como sujeito desejante e desejo, o foco para a intervenção psicológica não é a subjetividade, nos termos já definidos, ou a influência do inconsciente. Pode-se perceber a defesa da ideia de que apenas a partir de uma conscientização política/militante, da construção social dos papéis de gênero, uma mudança aconteceria na relação mediada pela violência. No entanto, caso as questões da subjetividade – emoções e desejos - precisassem de algum tipo de intervenção, deveriam ser trabalhadas nos serviços de saúde. Nesse momento, as mulheres que sofrem violência são o público dos serviços e o ponto principal das orientações, ou seja, as ações propostas têm como objetivo atendê-las bem. Posteriormente, aparece uma tentativa de diferenciação da intervenção psicológica, mas, ainda, como uma forma de trazer a/o psicóloga/o para uma intervenção mais política e militante apenas, e não como um trabalho com foco nas questões da subjetividade, do sofrimento psíquico. Dessa forma, não explicita uma especificação da intervenção em psicologia diferenciada das demais. Isso, porque as ações são pulverizadas entre os/as profissionais da equipe, todos/as, em tese, poderiam desenvolver o trabalho, que, assim, não é específico de nenhuma profissão, ficando também sem especificação qual seria o papel dos/as psicólogos/as. Contudo, nessa fase, aparece a questão do diagnóstico clínico e da intervenção embasados em diferentes correntes da psicologia, apesar da forma desconexa e incipiente em que é apresentada. Talvez, seja o resultado das várias “vozes sociais” (FERNANDES, 2008, p. 35) que compõem o sujeito discursivo ou a definição por um determinado enunciado em detrimento de outro (FOUCAULT, 2010/1969), ou seja, a defesa de uma ação militante, que entende que um tipo de intervenção em psicologia não é adequado. Dessa forma, quando há a indicação de referências dentro da psicologia de forma explícita, são destacadas intervenções que têm como base teorias do comportamento e/ ou fenomenológicas. Mesmo quando a possibilidade de encaminhamento para dentro do serviço é levantada, depois de um diagnóstico psicológico, esse não é para uma intervenção psicológica, pois, como já foi destacado, arteterapia é uma intervenção não privativa de psicólogos/as, podendo ser realizada por qualquer profissional capacitado para tal, como o próprio documento ressalta. Assim, continua a ideia de que se precisa de um psicó-

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logo que não seja ou aja como psicólogo, já que diz que um não psicólogo tratará os sintomas de sofrimento psíquico identificados. Por fim, considerando a trajetória temporal das publicações avaliadas, identifica-se que os textos passam do foco da capacitação das mulheres para a capacitação dos/as profissionais nas questões de gênero e para a necessidade de um perfil específico para a realização do atendimento. As mulheres passam de sujeitos desejantes para sujeitos de direito, e psicólogos/as passam de integrantes da equipe de suporte social para integrantes da equipe de saúde. Os atendimentos individuais passam a ser oferecidos juntamente com os grupais. Mas, mesmo dessa forma, ainda há a necessidade de argumentar que o fenômeno da violência contra as mulheres é determinado por questões de ordem social, histórica e cultural, e não pessoal ou da ordem da subjetividade. Assim, diante da preocupação de destacar que a questão não é psicológica, não é apresentado o que a psicologia poderia oferecer para a compreensão do assujeitamento de algumas mulheres à violência. O que seria significativo, pois o trabalho de conscientização das relações assimétricas entre os sexos, com algumas mulheres, pelo menos para 1/3 das que procuram os serviços especializados (GARCIA et al., 2008), não é suficiente para promover o rompimento das situações de violência. Considera-se, dessa forma, que a função do discurso apresentado nesses documentos parece ser a de trazer as mulheres para uma conscientização de um lugar político a partir do conceito de gênero, que é o padrão que se repete nos documentos analisados, como se, só a partir da incorporação desse conceito, o entendimento dessas relações de poder determinasse a resolução da vivência de situações de violência doméstica. Desse modo, essa resolução seria o desenvolvimento de outra posição, a não-aceitação da violência. Nesse contexto, o atendimento psicológico, dentro da política pública, aparece indefinido, como precisando ser mais político e militante e menos subjetivo e pessoal, ou seja, necessitando ter uma base teórica num construto político, e não nas teorias que embasam a intervenção clínica em psicologia, independentes da escola teórica. A intervenção clínica parece ser entendida como não promotora dessa conscientização, o que é reforçado pela análise de Hanada et al. (2008). Nesse contexto, pode-se considerar que, se o objetivo dessas publicações é de orientar as atividades em psicologia a serem desenvolvidas, este não está sendo atingido. As possibilidades de atuação da psicologia clíni-

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ca23, enquanto ação que ‘dá ouvidos’ ao sofrimento psíquico, ficaram prejudicadas por várias razões. Primeiro, pela insistente referência para uma atuação que não tivesse foco na subjetividade. Segundo, por fazer sugestões de técnicas que se referem a diferentes teorias e que não serão utilizadas por aqueles/as que têm outra abordagem teórica. Sendo a psicologia uma ciência de tantas e distintas matrizes teóricas (FIGUEIREDO, 2008), não seria adequado orientar qual a técnica a ser usada, e sim qual o objetivo que se pretende atingir com a intervenção psicológica. E, por fim, por propor ações que não fazem parte da formação dos/as psicólogos/as e que aparecem como sendo uma justificativa de ser uma forma de ‘ampliar’ o trabalho do/a psicólogo/a para além das questões individuais. Percebe-se que há uma contradição, porque psicólogos/as estão relacionados/as como profissionais da equipe mínima (BRASIL, 2003a, 2006a, 2006b) desses serviços, todavia sem poder/dever fazer o trabalho de psicologia. Em outras palavras, as questões que remetam à subjetividade e à individualidade devem ser trabalhadas como questões sociais e culturais e como se fossem necessariamente contraditórias às questões do empoderamento (empowerment). Hanada et al. (2008) consideram que alguns desses documentos aqui analisados (BRASIL, 2003a, 2006b) restringem o “resgate” ou “fortalecimento” da autoestima a uma dimensão exclusivamente individual. Entendendo, dessa forma, que apenas o empoderamento político poderia promover a conscientização desejada. No entanto, da forma como as orientações são apresentadas, qualquer profissional de nível superior, com formação nas Ciências Humanas, Sociais Aplicadas ou mesmo da área das Artes, conseguiria realizar as atividades promovidas por esses serviços. Assim, a equipe poderia, pode-se supor, ser apenas composta por profissionais de um só tipo de formação, não necessitando de uma equipe multiprofissional. Por outro lado, como mostraram os documentos analisados, há uma demanda por um trabalho específico de psicologia, e eles apontam a existência de um sofrimento psíquico que precisa de uma atenção, mesmo que ainda não se identifique exatamente qual seria o trabalho a ser realizado, apesar das diversas limitações, materiais e humanas, nos serviços oferecidos, como apontam os estudos de Hanada et al. (2010) e do Conse23 - Entendida como uma intervenção que não se limita às intervenções individuais clássicas, mas ampliando a partir da referência na Psicologia Clínica Institucional, com a discussão de processo grupal (PICHON-RIVIÈRE, 1983/2005) ou com a intervenção institucional, com foco nas relações interpessoais e no cotidiano institucional (BLEGER, 1984), por exemplo.

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lho Federal de Psicologia (CFP, 2008). Há a necessidade de manejo clínico e psicológico, como propõe uma das publicações, mas, desde que não seja realizado por psicólogos/as, e sim por todos os profissionais da saúde. Questão que precisa ser refletida. Qual seria a preparação dos outros profissionais para desenvolver essa atribuição? Não seria algo que psicólogos/as estariam mais capacitados para realizar? A orientação aponta que essa intervenção se faz necessária. Dessa forma, pode-se perguntar: Para quê? Nesse contexto, percebe-se que o Estado apropria-se do discurso e da forma de realizar o trabalho da psicologia sem deixar de forma objetiva um espaço para que as mulheres que procuram os serviços possam dizer o que desejam nessas/dessas relações “intermediadas pela violência” e desses serviços. Pinto (2003) destaca que já nas primeiras experiências de enfrentamento à violência, na década de 1980, “... as mulheres agredidas não queriam se tornar militantes feministas, queriam apenas não ser mais agredidas.” (p. 81). Tem-se que considerar isso ou não? Por fim, essa análise das características das publicações da SPM aponta para a necessidade de aprofundar o estudo, de entender o fenômeno da violência contra as mulheres e desenvolver orientações mais apropriadas para as/os psicólogas/os. As publicações explicitam, de várias formas, um contexto que precisa de uma intervenção. Diante de termos como psicológico, emocional, clínico, diagnóstico, ansiedade, depressão, nervosismo, drogadição, problemas com álcool e suicídio, não há como não se pensar que se trata do objeto de trabalho de psicólogos/as, a partir de seu conhecimento da psicologia. Contudo, os documentos analisados apontam para o entendimento de que as teorias psicológicas, por definição, não são adequadas ao contexto da violência contra as mulheres, e, dessa forma, a intervenção precisa ser “mais ampla” e “social”. Diante dessas observações, pode-se considerar que há um conflito, uma tensão e algumas contradições e, neste sentido, é preciso discutir: qual é o papel da psicologia no contexto do atendimento às mulheres em situação de violência? Pois o entendimento de que a intervenção da psicologia é limitadora e não contribui para favorecer uma efetiva emancipação dessas mulheres parece ser fruto de uma compreensão preconceituosa, que não considera os avanços dessa ciência e as possibilidades do trabalho com a subjetividade nesse contexto. Talvez o reducionismo não esteja na atuação

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que psicologiza um problema social e, sim, devido a uma não possibilidade de construção de qual seria o trabalho da psicologia nesse contexto. E isso, certamente, foi produzido por essa ideia da psicologização, mas, ao mesmo tempo, há a indicação de que aspectos específicos da subjetividade precisam ser trabalhados, tais como os desejos, as contradições, os medos, entre outros, pois, se não fosse assim, só educadoras, assistentes sociais ou sociólogas seriam suficientes na composição do quadro mínimo para esses serviços. Isso porque, mesmo tendo acesso às informações sobre a opressão de gênero, as mulheres podem não realizar as mudanças esperadas, e muitas não estão realizando, pois existem esses outros elementos que compõem sua experiência e que precisam ser trabalhados.

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POR FIM... ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O significante para O Homem não é o pênis, é o Verbo. Se as mulheres também manejarem o “falo da fala”, podem se descolar da dívida infantil com um pedaço de carne a mais ou a menos no corpo” (KEHL, 2008, p.266).

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O fenômeno da violência contra as mulheres é entendido como algo que constitui e é constituído na interação sujeito/sociedade, assim, não se pretende separar o que é da subjetividade do indivíduo do que é do social, da cultura, pelo contrário. Também não se pretende destituir a luta feminista. Este estudo pretende contribuir com a política pública para as mulheres em situação de violência, de forma que se fortaleça e apresente bons resultados. E isso não é possível sem crítica e avaliação. Desse modo, dentro da delimitação estabelecida para o estudo, no que se refere ao recorte teórico-metodológico, faz-se necessário responder às questões que foram colocadas para este estudo. Com relação à hipótese formulada inicialmente, pode-se dizer que foi confirmada, pois diante da pergunta: as orientações oferecidas pela SPM para o desenvolvimento da intervenção em psicologia nos serviços especializados para o atendimento às mulheres em situação de violência são adequadas? A resposta é não. Assim, pode-se observar que o conceito de gênero, que é a referência principal para o estabelecimento das orientações para os atendimentos psicológicos às mulheres que sofrem violência nos serviços especializados, não é suficiente para dar suporte teórico e técnico à intervenção em psicologia. A proposta de uma intervenção psicossocial, enfaticamente defendida, dessa forma, não é suficiente e, assim, não poderia ser a única a ser oferecida. É importante evidenciar que, das 12 psicólogas entrevistadas, sete disseram ter como referência teórica os pressupostos psicanalíticos, e as outras cinco referiram como base teórica para suas intervenções a Gestalt-terapia, a psicologia social, a psicologia da saúde, a análise do comportamento – Cognitivo-comportamental - e a abordagem Humanista. Estas demonstraram que o entendimento das questões da subjetividade não se restringe ao funcionamento individual, separado dos fenômenos sociais, como geralmente são as críticas dirigidas às ações da psicologia nas políticas públicas. Mesmo as psicólogas que têm nos pressupostos psicanalíticos seu referencial teórico não avaliam a problemática de suas pacientes que sofrem violência do ponto de vista de um sofrimento exclusivamente pessoal. Pelo contrário, entendem o fenômeno como algo produzido por uma construção social e cultural, diferentemente do que apontam alguns estudos que foram apresentados ao longo de texto. Também é importante assinalar que os trechos destacados para ilustrar os sentidos e significados

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que as psicólogas deram às propostas de SPM no estudo foram, de forma significativa, de psicólogas que não trabalham ou não trabalharam na política pública especializada, ou seja, não tiveram capacitações/orientações que introduzissem as questões de gênero na reflexão sobre o fenômeno da violência contra as mulheres de uma forma sistematizada. Isso é relevante à medida em que há uma ideia de que psicólogas não consideram os fenômenos sociais e, assim, atuam de forma a limitá-los ao aspecto psicológico, individualizado, desconsiderando o contexto cultural, histórico e social, ou seja, psicologizando o fenômeno social. As entrevistadas apontam que psicólogas, mesmo aquelas que não estão na política especializada e/ou referenciadas na teoria psicanalítica, consideram, e não poderia ser diferente, a subjetividade como o elemento no qual concentram suas ações, mas que essa subjetividade não pode se constituir fora da cultura. A análise dos documentos da SPM, a partir da perspectiva das psicólogas entrevistadas, assinala várias questões importantes. Incorporar as questões sociais às intervenções em psicologia não significa realizar o trabalho que o/a assistente social sabe fazer, e sim realizar o trabalho de intervir com o objetivo de minimizar o sofrimento psíquico, considerando que, na construção desse sofrimento, há um processo social, histórico e cultural, mas o objetivo do trabalho não muda. Se as psicólogas começarem a assumir o lugar de quem coleta informações para, por exemplo, compor relatórios sociais para legitimar a entrada em programas sociais ou relatórios ‘psicossociais’ para justificar intervenções do judiciário, haverá a perda de um espaço fundamental para o rompimento das situações de violência. O lugar da fala da dor, do sofrimento psíquico, que é viver numa relação de violência com todas as contradições existentes, se perde, pois o lugar da/o psicóloga/o, que deveria ser o de escutar, acolher, refletir, pois se preparou para isso, está distorcido. O papel principal da psicologia não está em resolver as falhas do judiciário, com seu sistema que não dá as respostas esperadas pela sociedade e, agora, incorpora os/as psicólogos/as em seus quadros, mas de forma limitada e limitante. O discurso de que as psicólogas precisam assumir seu lugar nas questões dos direitos humanos e nos processos sociais, que constroem situações de adoecimento e sofrimento psíquico, parece estar sendo utilizado de

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forma a haver um afastamento da possibilidade de oferecer oportunidade de acolhimento do sofrimento e da dor psíquica e de autoconhecimento, que, junto com a emancipação material e econômica e a busca pelos direitos constitucionais, além da compreensão histórica e cultural da submissão das mulheres aos homens, construiriam um processo de empoderamento mais amplo e consistente. É preciso questionar a quem serve essa distorção. Quando uma profissional, formada com uma determinada base de conhecimentos, é chamada a atuar de forma a não desenvolver esse conhecimento, isso pode tornar-se um problema. Parece haver uma ambiguidade, não apenas nas orientações da SPM, como foi avaliado pelas entrevistadas, mas elas refletem uma imprecisão anterior. Qual o papel do Estado? Quem são seus agentes, o que fazem e para quê? O discurso por uma psicologia com compromisso social está sendo utilizado para promover uma ampliação da atuação da categoria, para que não se limite a atuar para uma classe social mais favorecida, e isso é muito importante. Todavia, também está sendo utilizado para determinar tarefas que não estão dentro das atribuições da psicologia, que não fizeram parte da formação das psicólogas e que promovem resultados preocupantes. É preciso pensar até que ponto os limites das políticas públicas também podem estar sofrendo interferência de outras questões. Quando se pondera que há uma equipe mínima necessária para realizar as tarefas propostas, apontadas nas publicações da SPM, mas, ao mesmo tempo, há os limites de recursos e de pessoal, que foram reclamados pelas entrevistadas, pode-se pensar que fica mais interessante que as ações propostas sejam para ser realizadas por qualquer profissional. Assim, todos/as poderiam ser chamados a fazer o mesmo trabalho, para que assim realizem a reflexão sobre a opressão de gênero como um fenômeno social, que é o necessário para as orientações que estão postas. Seria uma intervenção mais barata para os cofres públicos, pois investimentos em capacitações, formação, supervisões e psicoterapia são caros. Quando as psicólogas assumem outros papéis que lhes são colocados, não conseguem desempenhar mais o papel para o qual foram preparadas e poderiam contribuir no contexto de ações concomitantes e convergentes para resolução de uma problemática. Este fica inviabilizado no momen-

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to em que a psicóloga demanda o mesmo que os outros profissionais da equipe – solicitando informações, reduzindo a fala a termo e apresentando os direitos que devem ser exigidos. Nesse contexto, não consegue mais se colocar como aquela que vai escutar, acolher dores, contradições, amores que se deseja, mundo que se quer outro. As psicólogas, dessa forma, não teriam que perguntar sobre fatos ou colocar premissas defendidas pelas ativistas feministas. Deveriam, sim, colocar-se para ouvir o que a pessoa quer e deseja falar. Em meio ao processo de responsabilização ou de conscientização da opressão de gênero, pontos importantes do processo de luta pelos direitos humanos, o atendimento psicológico poderia oferecer o espaço não apenas para falar do que ocorreu, mas também para falar do passado, dos sonhos, das frustrações, do desejo de mudar a situação e realizar um anseio, do confronto com a realidade e de como fazer para construir novos sonhos, entre muitas outras questões. Esse deveria ser o lugar da psicologia nas políticas públicas para as mulheres em situação de violência, sem a pressão de ter que relatar ‘o fato’ para que possa ser cumprida uma demanda judicial, sem preocupação com a prescrição ou os ritos processuais. Que essa ação fique para quem se preparou para ela. Existe uma necessidade de definição das atribuições de cada psicóloga em cada lugar da rede, como apontado nas entrevistas. Na Vara especializada da violência contra as mulheres, poderia haver o lugar da perícia psicológica – desde que isso ficasse claro e estabelecido dentro do que preconiza o Código de Ética Profissional do Psicólogo e a resolução que dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário (CFP, 2010b). É relevante a definição de um papel e um lugar para a psicologia ajudar na responsabilização do agressor, mas esse não deveria ser o papel nas casas-abrigo e centros de referência, como também foi referido pelas psicólogas entrevistadas. Faz-se necessário deixar mais claro o que se espera da intervenção profissional em psicologia, definindo os objetivos e as atribuições das psicólogas, principalmente, por conta das contradições identificadas nas publicações analisadas. As psicólogas poderiam ser chamadas a contribuir com a política especializada a partir de seu conhecimento especializado e, não apenas, como ocorreu na pesquisa do Crepop, já apresentada, para referir sobre uma intervenção em psicologia pautada pela política pública especia-

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lizada. Nessa oportunidade, os/as psicólogos/as pareciam tentar trazer para sua prática o que era solicitado e não propor qual seria o trabalho que uma psicologia poderia contribuir nesse contexto. Se as psicólogas puderem fazer o trabalho para o qual se prepararam, intervindo na subjetividade, emoções, processos mentais, e os demais membros da equipe aquilo que lhe compete – advogada com as questões do direito; assistente social com as questões do serviço social, do apoio material –, a psicóloga atuaria de forma a contribuir com o enfrentamento de um fenômeno multideterminado, onde cada profissional atuaria no aspecto para o qual se preparou para realizar, dentro de um conjunto de ações com o mesmo objetivo, ou seja, oferecer às mulheres em situação de violência uma oportunidade de mudança de suas vidas. Só assim será possível que a intervenção da equipe multiprofissional possa atuar de forma a considerar as diversas faces do fenômeno da violência contra as mulheres. Ademais, é colocada a cobrança para que a psicóloga atue de forma a não intervir nas questões emocionais, aspecto trabalhado pela psicologia clínica, por exemplo, pois assim estaria atuando de forma a naturalizar a violência. Contudo, essa visão naturalizante pode existir também na atuação da/o advogada/o ou da assistente social, por não compreenderem o fenômeno da violência como é compreendido pelas feministas e pelas publicações da SPM, e não porque atuem utilizando uma perspectiva clínica ou uma atuação clínica. Essas/es profissionais também podem ser limitantes em suas atuações e, por isso, a limitação eventual de uma psicóloga não é, necessariamente, por conta de sua intervenção nos aspectos intrapsíquicos. A formação da graduação em psicologia oferece ferramentas para o desenvolvimento de um trabalho com a subjetividade e o comportamento, a partir de diferentes escolas e teorias. Essa formação, na maioria dos casos, não exclui as questões sociais, culturais e históricas, pelo contrário, há o entendimento de uma via de mão dupla entre o ‘individual/eu’ e a ‘sociedade/o outro’, como já foi exposto. E, quando se trabalha a psicologia no foco das questões da subjetividade, não se negam e não se podem negar os aspectos sociais ou culturais, e que um não se reduz ao outro e é justamente nesse ponto que as questões das relações de gênero poderiam ser trabalhadas. Também é importante destacar que esse tema já começa a integrar a formação em psicologia no Brasil. Todavia, o foco de uma intervenção

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em psicologia clínica deveria ser para atuar com a subjetividade, com o que se passa no desejo e na emoção de cada um/a, e isso precisa ser considerado também no contexto da violência, sob pena de não se oferecerem, de fato, as possibilidades que poderiam ser apresentadas pela psicologia. Fazer atendimento individual não significa necessariamente estar centrado num modelo individualista. Não é a forma de atendimento que define isso, é a compreensão do fenômeno com o qual se está trabalhando. Assim, é importante que se promovam intervenções em psicologia apoiadas nas escolas teóricas psicológicas, com o compromisso com a interdisciplinaridade e o conceito de gênero, que precisam também fazer parte da formação. Cada mulher que sofre violência vive um conflito: apanhar e se sentir ‘segura’, amparada, ou enfrentar o desamparo em todas as suas dimensões? Conflito que promove uma diversidade para os serviços especializados, pois a intervenção não pode ser restrita a ações que têm como base pressupostos de uma conscientização política de uma opressão sem trabalhar o quanto esta produziu, entre outros, uma subjetividade que busca realizar um desejo, aqui entendido como um desejo ilusório, socialmente construído, de plenitude pela realização do amor romântico. É preciso entender essa dinâmica, mesmo que a proposta de intervenção psicológica não se dê a partir do referencial teórico das teorias psicanalíticas. É preciso deixar essa possibilidade de compreensão do fenômeno, não a rechaçando de forma apriorística, como incompatíveis com o contexto, pois foi demonstrado, pelo menos para o grupo estudado, que não é. A política proposta apresenta-se limitada e, por isso, abre espaço para a inclusão de outras formas de entender o fenômeno da violência contra as mulheres, no que se refere à intervenção em saúde mental. Dessa forma, é relevante repensar a proposta de construção do modelo de atenção multidisciplinar que está sendo desenvolvido, pois este foi capaz de gerar essas orientações contraditórias, ou mesmo essas propostas pouco consistentes. Há um grupo de mulheres que necessita mais do que o empoderamento político apenas. São mulheres que diante da possibilidade deste, ou mesmo na sua falta, precisam de um acolhimento para as suas contradições. A proposta de intervenção psicossocial é necessária, importante e tem suas indicações, mas não pode ser substitutiva da intervenção em psicologia clínica. Não pode ser apresentada como a única opção possível

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para atuação no contexto da violência contra as mulheres. Seria importante orientar quanto à necessidade, em alguns casos, de um trabalho em psicologia que considere as questões da subjetividade, da dor e do sofrimento das mulheres. As orientações quanto às técnicas ou a encaminhamentos, como para a arteterapia, por exemplo, poderiam não ser colocadas. As profissionais da psicologia, a partir do conhecimento e da referência teórica utilizada, juntamente com as técnicas que dominam, teriam como alcançar o objetivo: oferecer um espaço para acolher a dor única, pessoal, não compreendida e, muitas vezes, não aceita pelos familiares, amigos e, algumas vezes, nem mesmo pela rede de assistência. Oferecer o espaço para a expressão dessa dor, identificá-la, não como certa ou errada, com formas preestabelecidas de encaminhamento, mas como o sofrimento que faz as mulheres procurarem os serviços, especializados ou não. E, sendo assim, as psicólogas poderiam tentar descobrir como essas mulheres percebem, sentem e entendem o que vivem e a procura pela ajuda. Dessa forma, oferecer esse espaço poderia ser a melhor orientação às profissionais da psicologia, pois, como consequência desse objetivo, cada profissional desenvolveria sua ação, a partir da escola teórica de sua competência e não seria necessário apontar técnicas para serem utilizadas, o que demonstrou ser improdutivo, do ponto de vista das psicólogas entrevistadas. Dessa forma, faz-se necessária, no processo de identificar e/ou construir o papel da psicologia na política especializada, a inclusão das psicólogas para que essas participem do debate para a definição da sua intervenção dentro da política. O trabalho poderia ser potencializado, se ambas as perspectivas – feminista e psicológica – pudessem estabelecer um diálogo, com o objetivo de oferecer uma oportunidade eficaz e de qualidade às mulheres que sofrem violência e buscam ajuda nas políticas públicas para as mulheres em situação de violência. A intervenção em psicologia, e mesmo das demais profissões, poderia ter sua referência no conceito de gênero, ampliado a partir de teorias de gênero mais contemporâneas24, que apontam a imbricação existente entre as questões sociais e individuais/subjetivas que estão presentes no fenômeno da violência contra as mulheres. Isso, de forma a tentar pensar o fenômeno da violência contra as mulheres considerando suas contradições 24 - Integração dos estudos de gênero da 2a e, principalmente, da 3a onda do feminismo (LAGO, s/d; BUTLER, 1990) e de conceitos como dispositivo amoroso (SWAIN, 2006).

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e suas múltiplas facetas. Nesse contexto, também se faz necessário promover uma análise das orientações que estão oficialmente colocadas de forma sistemática e, a partir de estudos mais amplos, que possam ser generalizados, para observar se os achados apresentados se confirmam. É importante ainda avaliar os resultados obtidos pelas intervenções propostas em pesquisas de acompanhamento ou seguimento com as egressas dos serviços. Estas ações poderão contribuir para o desenvolvimento do fazer psicológico, nesse contexto específico, a partir da prática e dos resultados de pesquisas. Também será importante estudar o problema dos dilemas que as psicólogas enfrentam nesse tipo de trabalho e como os vivenciam, considerando-os também como objeto em que a política pública especializada precisará intervir, mais cedo ou mais tarde.

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Lista de siglas AD - Análise do Discurso. Aids – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. CEP – Código de Ética Profissional do Psicólogo. CFP – Conselho Federal de Psicologia. CNP - Congresso Nacional da Psicologia. Cras - Centros de Referência da Assistência Social. Creas - Centros de Referência Especializados da Assistência Social. Crepop - Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Púbicas. CRP – Conselho Regional de Psicologia. Deam – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Dieese - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis. Paism - Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher. PNPM - Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. SPM – Secretaria de Política para as Mulheres. Suas – Sistema Único da Assistência Social. SUS - Sistema Único de Saúde.

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Madge Porto Professora da área de Psicologia no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre - Ufac. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura, pela UnB (2013), Mestra em Saúde Coletiva, pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002), Graduada em Psicologia - UFPE (1992), Psicóloga Especialista em Psicologia Clínica (Conselho Federal de Psicologia - CFP) e

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Pesquisadora vinculada ao grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Meio Ambiente/Ufac. Conselheira suplente da Região Norte no XVI Plenário do Conselho Federal de Psicologia (2013-2016). Atua nas áreas da psicologia clínica e institucional, nos seguintes temas: psicoterapia, supervisão clínica e institucional, saúde mental, Sistema Único de Saúde, gênero, violência contra as mulheres e feminismos.


Wagner Porto (Mestre Parente). Trabalha com construção vernacular, desenvolvimento ambiental, xilogravura, literatura, escultura, mamulengo, cartuns e música. Contato: timbodasartes@hotmail.com. Fone: 55 (87) 96122579.

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ISBN: 978-85-8236-019-4

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