A morte midiatizada
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Renata Rezende Ribeiro
A morte midiatizada Como as redes sociais atualizam a experiĂŞncia do fim da vida
Copyright @ 2014 Renata Rezende Ribeiro Copyright © 2015 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Nova Biblioteca, 3
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À vida, aos meus pais, aos meus irmãos, ao meu amor e aos meus amigos! Aos mestres, em especial à querida Marialva Barbosa. Aos encontros: de ontem, de hoje e de amanhã.
A todos que a morte eu senti Um traço Um corpo O desenho sobre o papel As letras Meu pensamento Uma fotografia Um fragmento Um gesto Um vestígio Meu pensamento Sombras, sonhos Na luz, na escuridão Um traço Uma alma Eterna saudade!
Sumário Apresentação Afetações da vida e da morte - Marialva Barbosa | 13 Introdução Os “fragmentos do corpo” | 17 Nossa abordagem | 22
A morte, o homem e as engrenagens | 27
Um breve percurso | 33 “Admirável mídia nova” | 38 As comunidades virtuais | 41 As comunidades virtuais dos mortos ou “cemitérios digitais” | 45
Espaços da morte: a Idade Média e a “Idade Mídia” | 55 O corpo dos espaços | 59 A Divina comédia e o espaço medieval | 63 O Inferno | 65 O Purgatório | 66 O Paraíso | 67
A borda e a fórmula: do espaço pictórico ao espaço físico | 68 O ciberespaço | 74 O espaço sagrado | 78 “O renascimento do Purgatório”: espaço tecnológico da morte contemporânea | 88
Sobre o tempo e a morte | 93
O tempo como símbolo da morte | 96 Passado, presente, futuro | 97 A morte como marco temporal | 99
Um breve percurso sobre o tempo | 106 O tempo contemporâneo | 113 Entre o instante e a duração | 117 O tempo nas redes sociais | 120
Conexões temporais: unindo vivos e mortos | 125 O tempo nos relatos da morte | 129
Memórias e esquecimentos: os encontros com os mortos | 133
Espaços de memória e de comemoração | 137 As artes da memória | 140 As tecnologias da comunicação e a produção da memória | 142 A memória na Divina comédia | 144 A memória nas comunidades virtuais de mortos | 151 Lembrar, escrever, copiar e colar: a morte como projeto tecnológico | 155 A presença dos ausentes: os fantasmas | 157 Apagar os mortos: o esquecimento | 167 Em busca do Paraíso: Letes ou Eunoe? | 170
A morte digital: atualizações do fim da vida | 175
Um lugar para os mortos ou “em busca do cemitério” | 179 Lugares sagrados e terra dos mortos | 185 O túmulo | 188 A cruz | 194 O retrato | 198 Sensações visuais | 202 Os mortos digitais (ou) a imaterialidade material | 205
Conclusão | 211 Referências | 217
Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver. Montaigne
Apresentação Afetações da vida e da morte
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ão existe vida sem afetos. Ao longo da vida, marcada por encontros singulares e definitivos, há a construção de redes de afeto que definem a nossa existência. Fazer este prefácio, para mim, deixa evidente uma das minhas principais redes de afeto: a que envolve os alunos com quem compartilhei (e continuo compartilhando) quase quarenta anos da minha vida. Conheci vários deles, como a autora desta obra fundamental do campo da comunicação, ainda muito jovens. Quando cursavam o curso de graduação e por razões que só o improvável explica, mas também as afetações que os encontros proporcionam, foram me acompanhando por várias décadas e construindo também pelos afetos uma trajetória científica e reflexiva. Sem isso certamente os caminhos teriam sido outros, inclusive o da construção de um conhecimento que tem como cerne e marca fundamental o signo da partilha. Por isso, denominei este prefácio de afetações da vida e da morte. A certeza que mostra a historicidade do ser humano, o fato de que se vive na história. Assim, as perguntas mais fundamentais da historicidade – o que somos, de onde viemos e o para onde vamos – descortinam uma existência que se distribui entre a vida e a morte. A certeza mais absoluta de todo o ser humano ao encontrar o mundo é que a sua vida caminhará inexoravelmente para um fim. Entre o início e o fim, entretanto, há toda uma trajetória marcada por afetações, coisas que nos deixam marcas, algumas das quais permanecem teimando em nossas lembranças. Passagens da vida que vivemos e que revelam afetos e emoções 13
que vão nos construindo em redes de relação com o outro, que fazem da vida um lugar de afetações. Mas, sobretudo, produzem uma existência mais feliz. Por isso, a alegria de fazer o prefácio de um livro escrito por alguém por quem nutro profundo carinho e de ver expressa nas páginas que o constituem a densidade intelectual da autora cujo crescimento e maturidade científica acompanhei por mais de uma década. Assim, não poderia começar de outra forma este prefácio, que tem por objetivo apresentar um livro que fala da morte, senão expondo afetações de vida que me ligaram por um carinho infinito a sua autora. E foi também pela construção desse afeto que a orientei na sua tese de doutorado, cuja marca fundamental está inscrita nesta obra. Mas não só a vida, como também a morte, é marcada por afetações. Lugar que simboliza o fim, no qual a existência se mostra publicamente com a marca do ponto final da trajetória e institui a permissão para o esquecimento. Instaura-se o esquecimento necessário, desejado, elo possível para estabelecer definitivamente a finitude. Entretanto, no mundo contemporâneo ganha contornos específicos e a morte permanece durando em traços fixados nos vestígios tecnológicos que a eternizam. Ao construir uma reflexão madura em torno da temática da morte, Renata Rezende mostra que os regimes de historicidade de cada época, concebidos como a maneira como se vive a relação passado, presente e futuro, determinam também como o homem se coloca diante da morte. Nos tempos contemporâneos marcados pela virtualização cotidiana da existência e que produzem alguns sintomas da nossa época, a morte passa a ser produtora de sentidos a partir do mundo virtual. Que paradoxalmente a expõe e faz com que o apagamento de rastros que a constitui no tempo seja governado por outra lógica, construindo corpos virtualizados que continuam existindo mesmo depois que o corpo físico não está mais presente. E é dessa complexa relação entre imanência, permanência, vida e morte que este livro, com densidade, trata. O alargamento da percepção do tempo que denominamos presente, a eclosão de um individualismo exacerbado, a 14
consciência da ação destruidora humana, a nostalgia do passado e de sua documentação que passam a ser signos de validação do ser no mundo e o término da ideia de futuro como promessa, as marcas do tempo que denominamos contemporâneo, estão todas presentes no livro, mostrando que essas afetações da vida produzem o sentido e a maneira de viver a morte. Se não há mais futuro enquanto promessa, também o esquecimento ganha nova pele significativa. Há um esquecimento resignificado, alvo de permissões de lembranças. A partir de brechas, como no caso dos corpos cuja morte é encenada na virtualidade midiática, são ainda construídas tipologias de esquecimento. A morte deixa ainda mais evidente o “esquecimento de reserva”* – aquele que coloca marcas duradouras, persistentes e que voltam periodicamente – que de tanto voltar, permanece esquecido com possibilidade de ser novamente reconhecido. Mas, sobretudo, institui palimpsestos do esquecimento em camadas graduais, em fluxo constante e em atualização permanente numa dimensão transcultural e transnacional. Revelam, enfim, modos de significar e virtualizar o esquecimento na dimensão transnacional já que estão escritas num espaço governado pela imaterialidade plausível do mundo. O esquecimento que se deixa ver no corpo morto representado e encenado no mundo virtual constrói, por outro lado, o que poderíamos denominar morte limiar: uma morte que não é, mas que poderia ser. Por fim, mostra também como hoje a morte midiatizada continua sendo um investimento coletivo derivado da esperança na vida. Morrer lentamente, apagar gradualmente, acostumar-se com a significação de um fim que não sabemos de fato o que significa são formas de presumir e de experimentar a morte. A tentativa é fazer durar o que não pode perdurar. Construir, enfim, uma existência virtual para quem foi apartado abruptamente do mundo. Diminuir a ausência, a dor, transcender a vida. Sonhos humanos imemoriais que continuam perdurando nos formatos midiáticos contemporâneos. *
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
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Permite ainda, como tão bem remarca a autora, experimentar impressões sensoriais de uma realidade para a qual não se consegue encontrar explicação. Ao criar locais de permanência com a pretensão da eternidade em dispositivos que, paradoxalmente, são fluidos, possibilita a construção virtual/real dos nossos mortos, dos nossos fantasmas. Fantasias alegóricas do desejo humano, a comunicação virtualizada do mundo em que estamos imersos deixa evidente, por outro lado, parâmetros imemoriais do homem. Transcender a morte, encontrar os mortos, tornar a ver aqueles que marcaram definitivamente a nossa existência, são sentidos buscados ao longo da história diante da certeza inelutável do fim. Assim, as possibilidades comunicacionais são adensadas por tecnologias que, ao querer comunicar tão intensamente, são capazes de produzir a comunicação transcendental. Transformar corpos digitais, como diz a autora, em carne é o desejo último do ato comunicacional. Mas é, sobretudo, na esperança histórica de falar com os mortos, na esperança da vida, que se produz cada uma dessas ações. Nesse sentido, o livro, ainda que trate do presente, aquele em que partilhamos modos de vida com outros que presumimos viver a mesma existência, é uma obra não só inscrita na história, como também de história. Afinal, se história é a possibilidade de conversar com os mortos, a autora mostra o sonho duradouro de cada um, seres históricos, que na busca e na esperança produzidas em torno da vida, espera reencontrar e conversar com seus mortos. Marialva Carlos Barbosa Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Introdução Os “fragmentos do corpo”
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o decorrer da vida, conhecemos inúmeras pessoas. Convivemos, falamos e rimos com algumas, discutimos e amamos outras. Essas pessoas tornam-se parte de nossa história. Com o passar do tempo, no entanto, em um instante ou em um fluxo mais contínuo, elas não existem mais. O que existe é o silêncio, mas continuamos ouvindo vozes. O que existe é o vazio, mas continuamos a ver imagens, vestígios que estão por todos os lados: no porta-retratos no quarto, nas cartas antigas no fundo da gaveta, nas roupas no canto do armário, nas lembranças que encontramos, dia sim, dia não. Mas que não nos deixam esquecer. Em um dia de um final de janeiro, encontrei alguns desses vestígios, mas de uma forma diferente do que conhecia até então: eram rastros digitais. Diante da tela do computador encontrei a morte arrebatadora e, a partir desse momento, passei a encontrá-la diariamente, em conhecidos e desconhecidos, em personagens criados com base na realidade ou na ficção. Assim começa esse livro: a partir do encontro com a morte de um amigo que habitava a mesma rede social da qual fazia parte. Nesse espaço, encontrei fragmentos de um corpo: uma imagem, um texto, um som, que, somados na tela do computador, levaram-me até um passado pouco distante e, vasculhando tais fragmentos, depareime com lamentos, orações, preces. Assim encontrei os vestígios da morte digital, e, pouco tempo depois, as comunidades virtuais que reúnem perfis de usuários da rede que morreram na “vida real”, mas continuam “circulando” na internet. Como cada página nessas redes geralmente é individual e só quem tem o login e a senha de acesso é o próprio usuário, quando ele morre no espaço real, seu “corpo digital” continua circulando no ciberespaço. Ou seja, mesmo mortas, essas pessoas 17
continuam recebendo recados, como se virtualmente pudessem ouvir os apelos publicados. Visitando essas comunidades com frequência, percebi que estava em um cemitério, um cemitério digital, repleto de despojos com inúmeras histórias. Algumas com bastante repercussão, inclusive fora da rede, nos grandes veículos de comunicação do país, e outras quase anônimas, provavelmente desconhecidas, não fosse esse espaço digital. Tais narrativas me surpreendiam na medida em que atravessavam minha busca. A morte é inevitável, mas morrer é estranho. Morre-se conforme os acasos ou é a morte que toma a forma do acaso? A morte é o desconhecido e está escrita na natureza da vida. Mas como e por que as atitudes diante da morte mudam no decorrer do tempo? Precisava compreender o próprio sentido de tempo e de espaço, que figuram na contemporaneidade, da memória e do esquecimento, a fim de encontrar pistas para a morte com a qual me deparava: a morte no espaço digital. É nesse sentido que este livro refere-se à ressignificação da morte nas sociedades ocidentais, a partir da digitalização do “corpo morto”, como manutenção de um laço de interatividade, presença e lembrança de um sujeito ausente. A partir das comunidades virtuais de mortos, a intenção é delinear as transformações articuladas pelas tecnologias de comunicação e informação com relação à morte e o morrer na contemporaneidade. Os novos meios de comunicação estariam criando temporalidades e outras espacialidades como a morte no espaço digital? Ou a morte digital é apenas outra forma de morte comunicacional? Nesse contexto, como a atual sociedade imagética está formatando a representação da morte contemporânea? Os homens são os únicos animais que têm consciência de sua própria morte. Segundo Elias (2001, p. 10), “embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim [...]”. Mesmo assim, segundo Freud (1987), ninguém crê em sua própria morte. Para ele, estamos, inconscientemente, convencidos de nossa imortalidade. 18
No Ocidente, cristão e herdeiro do pensamento grego, a morte é como um jogo semântico com o corpo: alma, consciência, espírito, instaurando uma atitude que continua a investir nosso saber mais espontâneo sobre ela: é preciso negá-la. A cultura ocidental não incorpora a morte como parte da vida, mas como castigo ou punição. De maneira geral, o conceito relaciona-se à ruptura, ancorada no modelo de vida que se projeta através da negação da ideia de impermanência. Esse conceito também pode ser visto pela terminologia do termo léxico em que morte significa o fim da vida; fim; grande pesar. Mas como falar de impermanência e de finitude quando as novas tecnologias da comunicação, como as comunidades virtuais “recortam os corpos mortos”, estabelecendo um novo tipo de formalização da morte social, que implica outra dimensão da realidade? Como falar da morte como ausência do corpo, quando o corpo digital traz à tona sua presença em qualquer lugar, a qualquer hora, bastando uma conexão via Internet? A temática é complexa e vasta, até porque o próprio conceito que se tem sobre a morte tende a se alterar de acordo com o contexto cultural e histórico. Philippe Ariès, em História da morte no Ocidente, demonstrou que a atitude do homem diante da morte mudou ao longo dos séculos. Segundo Ariès (2003), no início da Idade Média, havia uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. O homem das sociedades tradicionais resignava-se sem grande dificuldade à ideia de sermos todos mortais. É o que ele denominou morte domada, uma morte domesticada. Com o passar do tempo, no século XVIII, o homem das sociedades ocidentais passou a dar a morte um novo sentido: exalta-a, dramatiza-a, deseja-a arrebatadora. Mas, ao mesmo tempo, já se ocupa menos de sua própria morte, e, assim, a morte romântica, como classifica Ariès, é, antes de tudo, a morte do outro – o outro, cuja saudade e lembrança inspiram, por exemplo, a partir do século XIX, o culto dos túmulos e dos cemitérios. A história também nos mostra que pouco a pouco a Igreja se encarregou dos mortos. Missas e orações estenderam-se por todo o Ocidente. Os cemitérios se tornaram locais de refúgio, de asilo, de reunião, de regozijo, lugares em que se fazia justiça, 19
onde se concluíam acordos, onde se negociavam mercadorias. A Igreja passa a transmitir a ideia de que é possível, ao menos após a morte, o homem obter o conforto que não conseguiu em vida. Desenvolve-se a premissa de continuidade, devendo o homem acreditar que existe algo mais que “um fim em si”. Entretanto, mais do que a religião, é preciso considerar as características das transformações socioeconômicas ao longo dos séculos, como as taxas de industrialização e de urbanização. Gerard Vincent (1992) considera que o “exame de passagem” se seculariza: uma teleologia substitui uma escatologia. Segundo Vincent, a partir do momento em que a história vivida se tornou cumulativa, em que o homem pode duplicar a acumulação dos bens que possuía, bem como o tempo de seu usufruto graças ao prolongamento de sua vida, a incapacidade de eliminar a morte passou a ser vista como um fracasso de seu conhecimento e poder: a morte tornou-se uma grande obscenidade. Philippe Ariès (2003) também ressalta que a medicina mudou a representação social da morte: já não se morre em casa, entre parentes e amigos, mas no hospital, sozinho. Os avanços da ciência, principalmente a partir do século XX, permitiram prolongar a vida ou abreviá-la. Pacientes passaram a ser condenados a meses ou anos de vida vegetativa, ligados a tubos e aparelhos. A morte natural deu lugar à morte monitorada e às tentativas de reanimação. A Europa do século XX começa a optar pela cremação como o “meio mais radical de se livrar dos mortos”. Na França, nos anos 1980, fez-se uma espécie de “campanha promocional” em favor da cremação, para resolver o problema dos cemitérios lotados. As vantagens desse procedimento, segundo a “campanha”, era um ritual mais barato e mais asseado, ao contrário dos enterros, com seus jazigos insalubres, exumações e reduções do cadáver (Ariès, 2003). No entanto, tal estratégia não funcionou. De maneira geral, o enterro continuou a ser a prática mais corrente na França e no restante da Europa. Gerard Vincent (1992, p. 349) recorre à explicação de Albert Thomas para tentar entender por que os “despojos” são fundamentais: “Nada pior do que um cadáver ausente [...]. O 20
que é um cadáver? Uma presença que manifesta uma ausência” (Vincent, 1992, p. 349). A partir dessa perspectiva começa-se a pensar o que fazer para conservar a presença (lembrança) do falecido, “esquecendo que ele não passa de um esqueleto em vias de mineralização”. Thomas (apud Vincent, 1992), afirma que a fotografia, o filme, a fita gravada e os processos de armazenagem de informação são recursos a que podemos recorrer para “guardar as lembranças do morto”. E vislumbra: Imaginar uma espécie de mnemoteca dos tempos futuros, como existem bibliotecas, em que as pessoas poderiam consultar à vontade os traços dos desaparecidos [...] Assim, guardaríamos aquilo sem o que ninguém e nenhum grupo pode viver: uma memória e um passado. (Thomas apud VINCENT, 1992, p. 350)
A Internet, hoje, talvez, possa ser essa mnemoteca. Com a “digitalização do corpo”, uma espécie de diálogo entre os grupos em torno do morto pode ser estabelecido de forma mais efetiva e interativa. Isso ocorreria porque, numa realidade marcada pela midiatização das relações socioculturais, a morte não escapa à formatação midiática de sua performance: é necessário eternizar esse corpo, mesmo morto, e ativar relações comunicativas a seu redor a fim de conservar de alguma maneira a presença do falecido. Haveria, nesse sentido, outra formatação que produz novos sentidos para se pensar a temática, ainda que ancorada em representações constituídas ao longo dos tempos. A partir da hibridização dos meios de comunicação (texto, som, imagem), a mídia passa a implicar uma nova qualificação da vida ou, como afirma Muniz Sodré (2002), um bios virtual. Segundo ele, nos ambientes digitais, o usuário pode entrar e mover-se graças à interface gráfica, trocando a representação clássica pela “vivência apresentativa”. É uma forma condicionante de experiência vivida, com características particulares de tempo e de espaço. Além disso, segundo Sodré (2002), a novidade, nesses ambientes, é o fenômeno da estocagem de grandes volumes de dados e a sua rápida transmissão, acelerando a mobilidade ou a 21
circulação das coisas no mundo, alterando os tradicionais conceitos de espaço e tempo. Desta forma, a representação da morte nas redes sociais desenvolveria novas possibilidades de se viver e de se experimentar o tempo e o espaço. Uma nova formalização da morte social se constitui, implicando outra dimensão da realidade, portanto, novas formas de percebê-la, pensá-la e contabilizá-la – “vivê-la”. O que não significa a extinção das formas tradicionais da cerimônia mortuária e tudo que a cerca, mas a coexistência e mesmo a integração da esfera do atual com a do ciberespaço, onde são proeminentes as tecnologias digitalizadas. As formas tradicionais de representação do “corpo morto” (como a fotografia, o filme, a fita gravada) interagem com as novas (o virtual, o espaço simulativo ou telerreal da hipermídia) expandindo a dimensão tecnocultural, onde se constituem e se movimentam novos sujeitos sociais. Trata-se de uma nova modalidade de representação, que supõe outro espaço-tempo social (imaterialmente ancorado na velocidade do fluxo eletrônico), e, por certo, um novo regime de visibilidade pública. As novas tecnologias do som e da imagem passam a constituir um novo campo do audiovisual, proporcionando ao receptor acolher o mundo em seu fluxo, ou seja, mesmo a morte passa a ser reapresentada a partir da simulação de um tempo “vivo” ou “presente”. A ausência passa a ter outro significado, talvez menos definitivo, com as ferramentas da multimídia. Por esse sentido faz-se necessário entender qual é a significação ou experiência da morte numa sociedade mobilizada pela mídia e interconectada pelas tecnologias digitais de comunicação.
Nossa abordagem Estruturamos este livro em cinco partes. Nossa proposta é que a articulação entre os capítulos contemple, ainda que a partir de determinadas marcações, a relação das técnicas e dos meios de comunicação aos principais elementos que atravessam o imaginário da morte: o espaço, o tempo, a memória e o 22