A pastora e alegoria

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A pastora e a alegoria


Universidade Federal Fluminense REITOR

Antonio Claudio Lucas da Nóbrega VICE-REITOR

Fabio Barboza Passos Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL EDUFF

Renato Franco [Diretor] Ana Paula Mendes de Miranda Celso José da Costa Gladys Viviana Gelado Johannes Kretschmer Leonardo Marques Luciano Dias Losekann Luiz Mors Cabral Marco Antônio Roxo da Silva Marco Moriconi Marco Otávio Bezerra Ronaldo Gismondi Silvia Patuzzi Vágner Camilo Alves

Coleção Estante Medieval Direção: Fernando Ozorio Rodrigues (UFF) Maria do Amparo Tavares Maleval (UFF/UERJ) CONSELHO CONSULTIVO

Ângela Vaz Leão (PUC-Minas) Célia Marques Telles (UFBA) Evanildo Cavalcante Bechara (UERJ/UFF/ABL) Gladis Massini-Cagliari (UNESP) Hilário Franco Júnior (USP) José Rivair de Macedo (UFRGS) Leia Rodrigues da Silva (UFRJ) Lênia Márcia de Medeiros Mongelli (USP) Luís Alberto de Boni (PUC-RS) Mário Jorge da Motta Bastos (UFF) Massaud Moisés (USP) Vânia Leite Fróes (UFF) Yara Frateschi Vieira (UNICAMP)


Henrique Marques Samyn

A pastora e a alegoria A invenção da pastorela alegórica no Trovadorismo e nos Carmina Burana


Copyright © 2019 Henrique Marques Samyn É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora.

Equipe de realização

Editor responsável: Renato Franco Coordenador de produção: Marcio Oliveira Edição de texto: Maria do Amparo Tavares Maleval Revisão: Fernando Ozorio Rodrigues e Graça Carvalho Normalização: Fátima Corrêa Emendas: Armenio Zarro Jr. Diagramação: Marcos Jesus Capa: Marcio Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP

S187

Samyn, Henrique Maerques. A pastora e a alegoria: a invenção da pastorela alegórica – da lírica occitânica aos Carmina Burana e ao trovadorismo galego-português / Henrique Marques Samyn Niterói : Editora da Universidade Federal Fluminense, 2018. 278 p. : il. ; 23 cm. – (Estante Medieval, v. 12) p. 216 ISBN 978-85-228BISAC LIT011000 LITERARY CRITICISM / Medieval 1. Poesia medieval. 2. Trovadores. 3. Literatura comparada – Galega e portuguesa. I. Título. II. Série

CDD 874

Direitos dessa edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – Anexo – Sobreloja – Icaraí – Niterói – CEP 24220-900 – RJ – Brasil – Tel.: (21) 2629-5827 – Fax: (21)2629-5288 – http://www.propp.uff.br/eduff – e-mail:eduff@vm.uff.br Impresso no Brasil, 2019. Foi feito o depósito legal.


À Lina, pulchrior quam Flora



Li mot fan de ver semblansa (“As palavras têm aparência de verdade”) – Marcabru, “Dirai vos senes duptansa”



SUMÁRIO PREFÁCIO, 13 INTRODUÇÃO, 23 PARTE I. A INVENÇÃO LITERÁRIA 1. O NASCIMENTO DA PASTORELA, 31 1.1. O lugar da tradição, 33 1.2. Origens latinas?, 36 1.3. Origens vernáculas?, 39 1.4. Uma questão perene, 43

2. A INVENÇÃO LITERÁRIA, 47 2.1. Acerca da alegoria, 53 2.2. A vigência do modelo: as pastorelas alegóricas, 60 2.2.1. A fidelidade à infiel: L’autrier, lo primier jorn d’aost, de Giraut de Bornelh, 62 2.2.2. O ciclo de pastorelas de Guiraut Riquier, 64 2.2.3. Gavaudan e a inversão da alegoria, 70 2.2.4. A clivagem radicalizada: Ogan, ab freg que fazia, de Joan Esteve, 73 2.2.5. L’autrier, a l’intrada d’Abril, de Guilhem d’Autpol: a seguidora de frei Johan, 75 2.2.6. Em defesa da virtude: Quant escavalcai l’autrer, 77 2.3. A variante: as pastorelas amorosas pseudoalegóricas, 78 2.3.1. L’autrier, al quint jorn d’Abril: em defesa da honra, 79 2.3.2. O amor como consolo: L’autrier, cavalcava, de Gui d’Ussel, 81 2.3.3. A falsa resistência em L’autrier, el gay temps de pascor, de Joan Esteve, 82 2.3.4. Per Amor soi gai, de Guiraut d’Espanha, 84 2.4. O modelo e as exceções, 85 3. PASTORELAS E PASTORAIS, 87 3.1. As pastorelas francesas, 88


3.1.1. A vitória da pastora, 89 3.1.2. A derrota da pastora, 90 3.1.2.1. A argumentação de Kathryn Gravdal: camuflagem e celebração do estupro, 91 3.1.2.2. A réplica de William Paden: o lugar da ficção, 95 3.1.3. A pastora e o lobo, 99 3.1.4. O embate da carne contra o embate do espírito, 100 3.2. As pastorelas e o antibucólico, 102 3.2.1. A poesia bucólica na tradição clássica, 103 3.2.2. O antibucólico nas pastorelas alegóricas, 106 PARTE II. AS MARCAS DO TEMPO 4. A PASTORA E A ALEGORIA, 111 4.1. A figura da pastora: o percurso histórico, 111 4.2. A pastora na tradição religiosa judaico-cristã, 114 4. 2. 1. O contexto pré-medieval: Raquel e o bom Pastor, 115 4. 2. 2. A tradição medieval: a vida de santa Margarida, 119 4.3. A defesa da virtude, 124 5. A CONSTRUÇÃO DA ALEGORIA, 127 5.1. As origens da alegoria medieval: dos antigos a Eriúgena, 127 5.2. Da percepção alegórica à literatura, 139 5.3. Da pastora enquanto alegoria, 150 6. O LUGAR DAS INTENÇÕES, 155 6.1. O ato e a intenção, 156 6.2. O primado da consciência, 160 6.3. A pastorela como instância de embate moral, 166 PARTE III. DESDOBRAMENTOS E HIBRIDIZAÇÕES 7. A PASTORA E A PUELLA: AS PASTORELAS ALEGÓRICAS MÉDIO-LATINAS, 171 7.1. Os Carmina Burana: notas introdutórias, 171 7.2. Pastorelas e pastorais na lírica latina medieval, 178 7.3. A pastorela alegórica em Gualtério de Châtillon e nos Carmina Burana, 185 7.3.1. Sole regente lora, de Gualtério de Châtillon: uma obra pioneira?, 186


7.3.2. Estivali sub fervore: o desejo e a renúncia, 189 7.3.3. Lucis orto sidere: a dupla alegoria, 192 7.3.4. Vere dulci mediante: violência e caritas, 194 7.4. As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido, 196 8. A PASTORA E A AMIGA: AS PASTORELAS PSEUDOALEGÓRICAS GALEGO-PORTUGUESAS, 199 8.1. Trovadorismo occitânico, trovadorismo ibérico, 200 8.2. Cantigas de amigo e pastorelas peninsulares, 203 8.3. As pastorelas peninsulares não alegóricas, 213 8.4. As pastorelas pseudoalegóricas galego-portuguesas, 222 8.4.1. Quand’ eu hun dia fuy en Compostela, de Pedro Amigo de Sevilha: a pastorela e o código amoroso cortês, 223 8.4.2. Pelo souto de Crecente, de João Airas de Santiago: o motivo da rejeição na pastorela peninsular, 226 8.4.3. Vi oj’ eu cantar d’ amor, de D. Dinis: o resgate do modelo de Marcabru, 228 8.5. Da pastora enquanto amiga, 229 À GUISA DE CONCLUSÃO, 233 REFERÊNCIAS, 236 ANTOLOGIA: PASTORELAS MEDIEVAIS ALEGÓRICAS E PSEUDOALEGÓRICAS, 255 ÍNDICE DE PASTORELAS ANTOLOGIADAS, 257 TABELAS, 300 LISTA DE ABREVIAÇÕES, 301



PREFÁCIO

UM FÉRTIL E EXCELENTE VADE-MÉCUM DE PASTORAS E CAVALEIROS (PREFÁCIO DESINTERESSANTÍSSIMO) What I am calling poetry is often called content. I myself have called it form (John Cage) Com efeito, renomeando com John Cage o formalístico e o conteudístico ad hoc, a partir de sua porosa e compartilhada transitividade conceptual, adoptaremos uma propositada perspectiva digressivamente oblíqua para a adequada explicação da evidente excelência deste lúcido ensaio, A pastora e a alegoria, de que aqui escrevemos de maneira certamente desinteressante. De fato, não queremos converter estas páginas em inútil e vã tautologia prefacial, nem em pobre paráfase dos argumentos e das reflexões que, a seguir, podem (e devem) ser lidos e criticamente ponderados pela leitora avisada e curiosa e/ou pelo leitor curioso e avisado. Explicamo-nos. Se o pensador Cioran – já o afrancesado Emil Michel –, em formoso exagero metafórico em defesa da verdade, foi capaz de sonhar d’un monde où I’on mourrait pour une virgule, Henrique Marques Samyn não só combate honestamente a “atrofia da expressão” neste muito inteligente estudo – que, diga-se de passagem, se alicerça na tese doutoral em Literatura Comparada de que parte –, mas também nele o leitor pode acompanhar o sólido trajeto especulativo e o percurso investigador verdadeiro, brilhantemente sintetizado no descritivo subtítulo desta ímpar obra de teor comparatista: “a invenção da pastorela alegórica – da lírica occitânica aos Carmina Burana e ao trovadorismo galego-português”. É assim que, neste heteróclito prólogo em cinco momentos, falaremos da forma dissertativa e da atitude desviante com que, para a compreensão da pastorela trovadoresca medieval, o professor e poeta carioca, retornando ao futuro, edifica organicamente a engrenagem de um discurso instigante e progressivamente espiralado e cumulativo.

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PRIMUS – CONSIDERAR COMO MAIS PROVÁVEL OU MENOS IMPROVÁVEL Quando um autor – como, sem dúvida, é o caso de Samyn – empreende uma caça-cruzada de saberes e reflexões confluentes e introduz sua obra, já de início, sem pretender “apresentar propostas definitivas, mas apenas sugerir novas vias e possibilidades interpretativas”, considerando que “é preciso rechaçar a crença” ou “proceder com alguma cautela”, vemo-nos compelidos a conjecturar que sua proposta e seus derivados juízos de valor, socorrendo-se das interferências razoadas e das demonstrações lógicas, ao menos se empenham em la ricerca di plausibilità e proprietà, de que tem falado o editor Giorgi Pinoti. E, na verdade, é esta a razoável atitude e a louvável qualidade inerente à explicação interpretativa da pastorela (alegórica) de outrora, a que obedecem as excelentes páginas que se seguem, e com as quais o autor destes parágrafos liminares concorda plena e apaixonadamente. Condicionados como estamos nas interpretações pelo nosso passado, educação, cultura e, em especial, pelo nosso desejo, o significado que temos dado (e damos) a alguns signos literários do “antigamente” acaba distorcido – e não poucas vezes desvirtuado – pela descodificação imperfeita ou incompleta a que, carecentes de saber(es) e contexto(s), necessariamente procedemos. Neste sentido, por exemplificarmos metaforicamente em termos de outras coisas e tempos, o ensaio Le chant du signe (Aventures et mésaventures de nos interprétations quotidiennes), de Lionel Naccache, lembra uma dupla experiência interpretativa, com as legendas PEDXING, pintada no chão de uma rua de San Francisco, e PESSOA, estampada na placa de um elevador em Lisboa: no primeiro caso, associando ao oriental-chinês o que, realmente, assinalava no placar um abreviado pedestrian crossing; no segundo caso, considerando o substantivo comum, presente na referência limitava da capacidade – 4 PESSOAS –, como próprio do e alusivo ao heteronímico poeta. Isto é, o preconceito multicultural da alteridade e o desconhecimento da língua, às vezes, parecem conduzir inevitavelmente ao idiotismo interpretativo. Distantes do âmbito cotidiano desses exemplos, mas com idêntico resultado, o contributo interpretativo de Henrique Marques Samyn a respeito da pastorela medieval, entre o ensaio acadêmico e a exploração sensível do erudito, também combate um certo idiotismo. Uma certa simpleza que, apesar de repetida, comum e assumidamente consensual, não tem deixado de simplificar, de empobrecer e de malsinar os contornos do modo 14

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trovadoresco pastoril, tanto ou mais do que qualquer liberta interpretação “em campo branco”. Não se trata de que o objeto central das páginas em foco, ao resultar especialmente hermético, precise de um titânico Champollion, mas de que, à rebours da habitual visão a preto e branco, aquele que cobice – como, com certeza, Samyn ousa kantianamente pretender – uma nova e (des) condicionada aproximação deve trabalhar no claro-escuro. E é exatamente isto o que faz o professor e poeta carioca: fugir da aterosclerose do prêt-à-penser conformista e apontar às zonas grises e às incoerências críticas dos cansativos e enfáticos discursos consensuais, desconfiando do saber de manual, na sequência do lúcida e ironicamente solicitado por Roman Jakobson. Permitam-nos, portanto, colocar apenas um exemplo significativo no tocante ao “curioso conceito de pastorel compostelana” e dos pressupostos e consideranda a seu respeito, cunhados, há quase dez lustros, pela estudiosa Arlene Lesser “em parâmetros regionalistas” de galega autenticidade e não menor originalidade adâmica. O escritor Marques Samyn, em nome da exatidão, mas sem detrimento da precisão, contraria, com elegância, a pouco sustentável denominação desse conceito-zumbi, também desconsiderando, com delicadeza, a acrítica assunção das mortas-vivas e flaubertianas idées reçues: “[a]penas a fim de nos posicionarmos perante essa tese, adiantemos a observação de que, ao contrário do que afirma Lesser, as situações descritas nas pastorellas compostelanas não ocorrem exclusivamente no âmbito peninsular, o que de imediato afasta a possibilidade de que seja essa uma expressão singular del alma y del carácter de Galiza, como afirma a teórica”. SECUNDUS – ESPRIT DE FINESSE ET ESPRIT DE GÉOMÉTRIE O Voi, che avete gl’intelletti sani, mirate la dottrina, che s’asconde sotto il velame delli versi strani (Dante Alighieri) Temos para nós, aliás, que, transcorrido quase um milênio desde a invenção textual em foco, se deve celebrar que Samyn não atue nem como um perito em múmias, nem como um empobrecedor “editor de variantes” – a saudosa Luciana Stegagno-Picchio dixit. Ao contrário, são o saber do poeta, a competência do utente estetizante da expressão, a intervenção do balibariano “cidadão insurgente” e o conhecimento do engenheiro literário

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os instrumentos e as atitudes com que, nesta obra, se examina a recuada cultura medieval, assim como os meios privilegiados com que, no discurso ensaístico-investigador, se foca a distante e distinta prática trovadoresca de varia et diversa pastorela alegórica (e não só). E foca-se, verdade seja dita, a partir de um hábil e produtivo uso de uma allegoresis que foge da simplificação derivada de qualquer apreensão imediata e que precisa, quod erat demonstrandum, do conhecimento mediato gerado pelo modo exegético. Pois a “sã” inteligência do connaisseur Samyn é plenamente consciente do que, no “Inferno” de sua Commedia – que a passagem do tempo fez devir divina –, já advertia Dante a respeito dos significados encobertos que acompanham as escritas recriativas desses medievais tempos e modos. Por enquanto, buscando esse significado opaco e escondido, o ensaio coloca todas as perguntas, pretendendo dar (todas) as respostas, para o qual se desprega um discurso expositivo que, prega a prega, explica (< ex-plicare) ou elenca ad hoc os múltiplos conhecimentos e diversificados argumentos derivados tanto da ação vital, interventivamente ética e criativamente estética, como da ampla enciclopédia cultural filosófica-reflexiva, psicossocial e crítico-literária que, sem dúvida, possui o autor copiosamente. É assim que são utilizadas estratégias e táticas explicativas diferentes, perante duas tipologias básicas de perguntas com diversa entidade e intenção, de que poderiam ser exempla significativos as que se seguem: “[s]eria possível, afinal, crer que Marcabru tenha criado sua pastorela ab nihilo, e que todas as pastorelas francesas tenham se derivado de uma tradição occitânica que teria ali sua fonte originária?”, ou “[p]or que adjetivamos alegórico o modelo de pastorelas cunhado por Marcabru?”. Isto é, uma primeira tipologia questionadora que, por seu caráter concatenado e conclusivo, solicitaria esprit de finesse e uma explanação mais especulativa do que afirmativa, enquanto a segunda modalidade interrogativa, por sua implícita retoricidade, exigiria esprit de géométrie e um desenvolvimento mais assertivo do que teorizador. Destarte, as pregas e as dobras, retiradas progressivamente no discurso analítico, fazem com que, aos poucos, se torne inteligível não tanto o esclarecimento da configuração histórica e cultural precisas, quanto a explicação certa da gênese e do horizonte de sentido das composições poéticas de teor pastoril. Samyn, ora explorando laços e conexões, ora percorrendo a representação das “marcas do tempo na invenção literária”, promove com esses desdobramentos a ideia de soma e de acumulação, assim como fomenta um iterado ecoar de não poucos harmônicos e ressonâncias. 16

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TERTIUS – MUITAS PÁGINAS AINDA ESTÃO PARA SER ESCRITAS Numa medida dialética entre os úteis da multiplicidade e da singularidade, em contínuo andirivieni, o propositado jeito ensaístico deste, afinal, estudo acadêmico assume uma posição de debate, fugindo felizmente da disposição de combate que originaria qualquer tentativa de catalogar e classificar, simplificando, a criação poética revisitada e a discursividade crítica avaliada. Quer dizer, contra qualquer simplificação, a usual e menos fértil disputa monológica de hoje – por via de regra, contra acadêmicos (arqui) adversários – transforma-se naquela ginástica intelectual em que, num território compartilhado de entendimento, consistia outrora a regrada disputatio. É nesse espaço coincidente dos deleuzianos precursores escuros ou dos borguesianos plagiários por antecipação onde, para só mencionar uma mostra, naturalmente Samyn pode deslizar uma fina e concordante apreciação paradigmática como esta: “o conceito de Williams nos interessa em pontos específicos”. Por outro lado, para contextualizar corretamente a obra, atente-se a que, já na Introdução, o nosso autor – transcorrido mais de um septênio da tese que, sob a competente orientação da professora Maria do Amparo Maleval, defendera na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – sente a necessidade de explicitar uma espécie de suave palimódia, pois, a partir do futuro do passado em que, diferente, está instalado como pesquisador, olha “este trabalho de forma particularmente crítica”, em especial pela ausência nele tanto de um estudo aprofundado dos elementos das pastorelas medievais “associados a estruturas patriarcais”, quanto pela secundarização na investigação doutoral de questões “relacionadas aos estudos de gênero”. Na verdade, esta “autocrítica por omissão” devém partiel et partial, porque a leitura do reformulado trabalho faz com que, de maneira inevitável, sejamos conscientes de que todo ele obedece a um teimoso princípio de eticidade, pairando a honestidade intelectual sobre os diferentes temas e motivos (re)visados em seu percurso expositivo. Para, mais uma vez, só pôr dois exemplos, repare-se na observação em nota de rodapé de que “[n]ão é preciso evidenciar o quanto a atitude do cavaleiro associa-se a valores etnocêntricos e patriarcais”, ou, no corpo do texto, quando Samyn afirma “conquanto o essencialismo dessa observação como se de fato houvesse uma psique feminina única, reflita uma percepção evidentemente androcêntrica”, referindo-se à pretensa “interpretação fiel da psique feminina” e ao “realismo” dionisinos enfatizados pelo professor coimbrão Álvaro Pimpão. A PASTORA E A ALEGORIA

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Item mais: esse posicionamento ético também assenta no homérico labor de inversão dos prejuízos críticos e das ideias preconcebidas – faina que Einstein, lembre-se, achava mais difícil do que fazer pó de um átomo – e a luta contra os “ídolos” das generalizações e das convenções – lida que Francis Bacon, recorde-se, considerava não menos complicada e custosa. QUARTUS – JAMAIS SEREMOS CAPAZES DE DEIXAR ESSE ÂMBITO ESPECULATIVO Na verdade, o escritor não deixa de inscrever suas reflexões – sempre filtradas na peneira de suas intervenções e práticas éticas – nos parâmetros gerais daquilo que poderia ser denominado como um positivismo documental, que, por vezes e paradoxalmente, é rejeitado de maneira controversa. Lembremos que, a páginas tantas, lemos que “é forçoso admitir a existência dessa tradição obscura” – isto é, uma “tradição não documentada” –, para, noutra passagem do ensaio, afirmar: “[n]ão nos aventuraremos aqui a postular novas conjecturas acerca da precedência de umas [as pastorelas médio-latinas] sobre as outras [as vernáculas], uma vez que para que carência de documentação necessariamente mantém todas as conclusões acerca desse assunto num campo especulativo”; ou, noutro lugar, manifestar: “não desejamos, contudo, defender aqui um argumentação desse tipo; não há dados suficientes para sustentá-la, e a afirmação peremptória das suposições aqui elencadas envolveria um alto grau de arbitrariedade”, cerrando este mesmo parágrafo com o consequente considerandum metadiscursivo ou (para)procedimental de que “conclusões como essas devem ser afastadas por uma razão principal: para sustentá-las, seria necessário argumentar em função de uma intentio poética cuja aferição escapa a todas as nossas possibilidades investigativas”. Verificações estas, inter alia et varia, que marcam os limites do apreensível, por muito que o lletraferit Samyn, retornando ao futuro, tire grande proveito interpretativo das possibilidades reconstrutivas que oferece a fértil memória que funciona também para adiante, permitindo, assim um mais do que produtivo e necessário percurso bidirecional de (re)conhecimento. Lembre-se, aliás, que não por acaso, a surpreendente White Queen, a não tão ilógica Rainha Branca, bem dizia a Alice que it’s a poor sort of memory that only works backwords, na obra Through the Looking-Glass, do apaixonado autor de especulares inversões Lewis Carroll.

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QUINTUS – NÃO NOS AVENTURAREMOS AQUI A POSTULAR NOVAS CONJECTURAS

Don, lo cavecs vos ahura que tals bad’em la peintura qu’autre n’espera la mana (Marcabru)

É difícil não perceber o como (bem) opera filologicamente o autor das excelentes (re)escritas poéticas da obra Estudos sobre temas antigos, a respeito dos diferentes aspectos a analisar, fazendo finca-pé na precisão terminológica e conceptual – remito aos excursos distintivos dos termos occitânicos mestissa ou toza. E melhor atua filologicamente Samyn quando o desenvolvimento argumental e propositivo privilegia a perspectiva holística e a nuance criteriosa – quer dizer, a matização fundada. Neste sentido, permitam-nos reproduzir dois trechos exemplificadores, pois, achamos que fazem ver – coisa, aliás, nada fácil – o que pretendemos descrever. O primeiro excerto encerra, entre a realidade e o desejo, as exatas apreciações sobre “As pastorelas médio-latinas como um gênero híbrido”, em concreto, sobre as similaridades entre o corpus da lírica occitânica e quatro obras que se analisam do âmbito médio-latino: “[c]onquanto não tenhamos aqui pretensão de apresentar respostas definitivas para essa querelas, esperamos ter levantado elementos que permitam vislumbrar a possibilidade de que essas similaridades constituam de fato, desdobramentos de um processo mais amplo, o que permite que vejamos consistência onde antes só se percebiam coincidências”. O segundo fragmento, buscando a sempre difícil explicação do evidente, é uma conclusão parcial da parte intitulada “Da pastora como alegoria”, na qual Samyn se serve da segunda e última tornada da primeira pastorela provençal L’autrier jost’una sebissa (O outro dia, perto de uma sebe), composição alegórica de Marcabru que já tinha referido e analisado mais de cem páginas antes: Não é preciso repetir aqui que as pastoras das obras medievais não são figuras reais; agora, contudo, torna-se mais claro seu status enquanto representações. A pastora e o cavaleiro fazem parte do universo medieval das alegorias, inscrevendo-se num jogo de significações que diz respeito à própria condição humana, como lugar em que se digladiam a virtude – representada pela pastora – e o vício – representado pelo cavaleiro. Apenas

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são seres humanos, portanto, cabe escolher entre agir como aqueles que se embevecem com a pintura – o deleite que leva ao pecado – ou como os que buscam o maná – o alimento espiritual que conduz para a perfeição divina.

“Senhor, a coruja vos augura / que um tal se embevece com a pintura, / enquanto o outro espera pelo maná”, é a exata versão informativa dos três interpeladores versos da tornada que geram o sentido básico e inicial – o autêntico primum movens, mas não teológico – de uma engrenagem interpretativa alegorizante ou, melhor, “alegorética”, a partir da constatação de que a “pintura” que o cavaleiro deseja é (e supõe) a beleza das aparências, também com alguma coisa de conotada “carnalidade”, enquanto a pastora almeja o proveitoso “maná”, o multiplicado alimento “espiritual”, ao mesmo tempo que, felizmente, o completo amor “carnal”. Se me permitirem um pequeno excurso lateral, mas alusivo, a respeito da apropriação poudiana da obra de Marcabru, poderíamos dizer que, na realidade, o investigador carioca desenha um magma aggiornato em que a análise da pastorela é (re)situada e (re)conceptualizada em justos parâmetros alegóricos, num processo de atualização diferente, mas confluente e afluente com a ideia da poesia em present do militant de la subversiò em art (e não só) Joan Brossa. O poeta, dramaturgo e artista plástico catalão, na mesma altura do engajado e contextualizado pemário Sextines 1976, escreve em 1977 o poema “Marcabru”, integrado na obra inédita Gual permanent, editada em 2017 por Glòria Bordons. A indeterminante, por propositadamente indeterminanda, atualização do poema consiste basicamente numa intencional descontextualização poética, na qual a segunda estrofe da “aparente” pastorela – e autêntica cansó de ausência moralizante – “A la fontana del vergier”, de Marcabru, adquire novos sentidos, quando “traduzida” para o catalão, levemente modificada e isolada entre reticências: ... Era donzela de cos bell, fila del noble del castell, i quan vaig creure que l’ocell, les flors i l’aigua i el cel blau li feien dolç el cos novell i escoltaria el meu consell, va canviar de tarannà...

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... Era donzela de formoso corpo, ilha de um senhor de castelo, e quando imaginei que os pássaros, as flores e a água e o céu azul enchiam de gozo seu doce corpo, e que escutaria minhas palavras, repentinamente mudou de atitude...

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SEXTUS – SE ESSA NOSSA HIPÓTESE MERECE SER ACREDITADA Il vaut mieux pencher vers le doute que vers l’assurance dans les choses de difficile preuve et dangereuse croyance (Montaigne)

Afinal, diga-se também, podemos estabelecer esse tipo de paralelismos analógicos porque o ensaísta Henrique Marques Samyn está incurso no entendimento do filólogico como a dificílima arte de bem ler, à maneira da incontornável delimitação e da consabida conceptualização nietzschianas. Na allegoresis resultante da soma da alegoria e da exegese, neste método crítico alegorético de interpretação é exigida uma especial contenção hermenêutica, ao estudar os líquidos – quando não gasosos – textos líricos. Precisa-se imperiosamente de uma leitura não literal, não transladada ipsis litteris, que promova o entendimento de uns longínquos poemas de dificultosa inteligibilidade, porque estão centrados na alegoria, no intus legere, do tautológico saber escolher da intelligentia, na capacidade de ler dentro de tempos e realidades – especialmente dos das Idades Médias que aqui nos interessam – que se (de)codificavam noutros parâmetros éticos, estéticos e significativos. É por isto que, no modo ensaístico utilizado – felizmente mais próximo das dúvidas do ceticismo pirrônico do que das certezas apostólicas paulinas – se procura estender a validade das hipóteses contempladas com expressões de cuidadosa prudência como, por exemplo, “embora não seja essa uma hipótese de todo implausível, cabe considerar...”, ou “[e]mbora essas hipóteses, em si, não sejam relevantes para nossa pesquisa, elas trazem conjecturas instigantes relacionadas à disseminação da figura de uma pastora associada aos valores cristãos na Europa medieval”. A elegante distinção e a produtiva dúvida – a montaigniana “inclinação para a dúvida” – ou elucidativo paradoxo e a paixão pela clareza são as atitudes procedimentais básicas que, longe de obediências gregárias e conformistas, sustentam um, às vezes, sofisticado discurso nada elusivo e pouco alusivo, e que, portanto, evitando o tautológico, apenas roça qualquer perigoso abismo interpretativo. Enfim, gostaríamos de finalizar este heteróclito e desinteressante limiar tornando explícitos tanto uma imprescindível celebração e um necessário reconhecimento, quanto o inevitável e consabido convite à leitura.

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Por um lado, celebramos que Henrique Marques Samyn tenha colaborado, com esta excelente obra, a acrescentar o acervo de sólidos contributos acadêmico-investigadores da ampla tradição medievalista auriverde, inserindo-se na singularmente plural estirpe – definida agora numa aleatória enumeração caótica presidida por involuntárias elipses (que não propositadas eclipses) – de estudiosas e estudiosos da estatura intelectual de Oskar Nobiling, Segismundo Spina, Massaud Moisés, Amparo Maleval, Lênia Mongelli, Yara Frateschi Vieira ou Paulo Roberto Sodré. Por outro lado, dado que “só lido” este ensaio poderá devir “sólido”, incitamos à demorada e reflexiva leitura das páginas que se seguem, pois, nelas, o autor alcança suas programáticas pretensões, a respeito do espaço literário das pastorelas alegóricas: dar mais um “passo ao encontro de um vastíssimo terreno que, em sua maior parte, permanec[ia] inexplorado” e atingir “o almejado reconhecimento de ser esse um importante capítulo da história da literatura medieval, do qual muitas páginas ainda estão para ser escritas”. Carlos Paulo Martínez Pereiro (Universidade da Corunha)

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INTRODUÇÃO

Este livro é fruto da tese de doutorado que defendi na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2010. Nas próximas páginas, apresento a introdução original da tese, com poucas alterações, e os agradecimentos; antes disso, acrescento alguns comentários, especificamente no que tange a esta versão do texto. Ao resgatar o trabalho para a publicação, submeti-o a uma revisão completa, reescrevendo trechos que pareceram obscuros; em alguns casos, acrescentei observações e questionamentos a partir de leituras que realizei nos seis anos que separam o momento de conclusão da tese e a sua publicação. Isso quer dizer que, se as ideias centrais da tese foram integralmente preservadas, o texto apresenta modificações, e as referências bibliográficas constantes deste volume listam alguns itens não presentes na tese submetida à banca. As pesquisas a que me venho dedicando nos últimos anos levam-me a olhar este trabalho de forma particularmente crítica; percebo, por exemplo, que poderia ter explorado mais profundamente questões relacionadas aos estudos de gênero, sobretudo na medida em que diversos elementos presentes nas pastorelas medievais estão claramente associados a estruturas patriarcais. Por outro lado, penso que dificilmente seria possível aprofundar também esses questionamentos em uma tese que lida com um corpus vasto, produzido em três âmbitos culturais diversos, abordando também problemas filosóficos e teológicos – e tudo isso no restrito período de tempo hoje facultado àqueles que se dedicam à elaboração de uma tese de doutoramento. De todo modo, já no capítulo conclusivo da tese eu observava que muitas questões permaneceram insuficientemente exploradas; hoje apenas constato a pertinência dessa observação e percebo em que medida esta tese constituiu, de fato, uma aventura por um território em que há ainda muito a ser desbravado – o que, se por um lado não me permitiu enveredar por sendas que poderiam ensejar novas possibilidades investigativas, por outro lado contribuiu decisivamente para meu amadurecimento como pesquisador. ***

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Esta pesquisa começou a germinar no ano de 2004 – quando, tendo defendido uma dissertação de mestrado em Filosofia e prestes a defender outra em Psicologia Social, optei por aventurar-me em outra área acadêmica: os estudos literários. Se havia aí uma ruptura em relação à trajetória anterior, essa era apenas aparente; desde a minha primeira graduação – em Filosofia –, interessavam-me as relações entre arte e cultura, algo transparente em textos que produzi na época sobre artes plásticas e fotografia. Numa tentativa de abordar esses temas sob outro enfoque, transferi-me para a Psicologia Social, em que também não logrei realizar o trabalho como planejava; a transição para a área de Letras constituía, portanto, uma nova tentativa nesse sentido. Foi com esse objetivo que cheguei ao Programa de Estudos Galegos (PROEG) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ciente de que ali poderia desenvolver pesquisas em torno da literatura medieval ibérica, assunto que me interessava há tempos, fui recebido pela professora doutora Maria do Amparo Tavares Maleval, que desde o princípio encorajou a minha participação nas atividades do núcleo – graças a que iniciei, quase imediatamente, uma colaboração com o PROEG, apresentando trabalhos e ajudando na organização de eventos. Ali pude conhecer melhor a literatura galego-portuguesa; ali começou a esboçar-se a pesquisa de doutoramento que teria início dois anos depois. Foi naturalmente lento o processo de escolha de um tema que me facultasse aproveitar a experiência prévia em novas investigações. Ao longo de um ano, esbocei diversas possibilidades, algumas das quais renderam temas investigados posteriormente em artigos e comunicações. A princípio, ocorreu-me trabalhar com as cantigas satíricas galego-portuguesas e os sirventeses occitânicos, em perspectiva comparatista; depois, cogitei investigar a relação entre as produções literárias médio-latinas e peninsulares. O anteprojeto que me levou ao doutorado consistia, fundamentalmente, em uma – um tanto quanto vaga – tentativa de aproximar o temário das cantigas satíricas galego-portuguesas e aquele constante dos Carmina Burana; proposta que, apesar da originalidade, era indubitavelmente muito ambiciosa para o tempo e os recursos de que disporia para a pesquisa. Assim, dediquei todo o primeiro ano do doutorado a leituras de obras líricas peninsulares e médio-latinas, em busca de um tema viável para a pesquisa. A busca por um assunto fértil, que suscitasse questões pouco abordadas na literatura específica, chegou ao término quando me deparei com as pastorelas. Instigou-me perceber algumas semelhanças temáticas entre exemplares galego-portugueses desse gênero e certos Carmina Burana: 24

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em ambos os casos, eu encontrara composições sobre trovadores ou cavaleiros que, em cenários campestres, deparavam-se com jovens pastoras, o que logo ensejava uma tentativa de sedução; não obstante, havia diferenças perceptíveis entre as referidas obras, tanto no que tange à forma quanto no que diz respeito ao desenvolvimento: as cenas de violência sexual presentes em certas pastorelas médio-latinas, por exemplo, jamais se faziam presentes nos textos ibéricos. Aprofundando leituras sobre esse tema, cheguei à matriz occitânica: a obra de Marcabru, L’autrier jost’ una sebissa, que parecia ter de alguma forma influenciado aqueles exemplares. Pude, assim, esboçar uma primeira proposta de trabalho: tratava-se de compreender como, a partir do modelo de Marcabru, nasceram obras ao mesmo tempo tão semelhantes e tão diferentes quanto as pastorelas médio-latinas e galego-portuguesas. Novas questões começaram a surgir, conforme a pesquisa avançava. A busca por uma definição de pastorela que pudesse ser produtivamente adotada na investigação levou-me ao conceito de pastorela alegórica, portadora de um conjunto de características temáticas e de uma estrutura narrativa própria. Investigando esse modelo na lírica em langue d’oc, percebi que havia ali também algumas variantes – obras em que a alegoria não aparecia de forma explícita, ou que encerravam um desfecho amoroso. Parecia-me frutífero investir também no estudo dessas variantes, já que se assemelhavam às obras ibéricas e médio-latinas; contudo, logo notei que certos exemplares franceses também apresentavam características que os aproximavam do modelo alegórico. Um estudo exaustivo de todas essas obras superaria, em muito, os limites impostos para a pesquisa – sobretudo no que tange ao tempo previsto para sua conclusão (48 meses, de acordo com os parâmetros acadêmicos brasileiros) e aos recursos disponíveis, mormente de ordem bibliográfica. Era preciso, desse modo, estabelecer um recorte estreito, definindo um corpus que me fosse possível estudar de forma devidamente aprofundada. O primeiro corpus a ser estudado já estava, naturalmente, determinado: seria impossível estudar o modelo de pastorela alegórica sem investigar a lírica occitânica, no seio da qual ele emerge e se consolida. Já a opção de dedicar-me aos corpora médio-latino e galego-português revelou-se viável pelo fato de as pastorelas produzidas nessas línguas apresentarem uma notável consistência. Ao longo da investigação, constatei que, se todas as pastorelas médio-latinas que seguem o modelo occitânico podem ser consideradas alegóricas, todas as constantes da lírica peninsular correspondem a um modelo melhor qualificável como pseudoalegórico – ou seja: no que diz respeito à estrutura narrativa, assemelham-se à obra de

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Marcabru, sem contudo apresentarem o teor moralizante característico de L’autrier jost’ una sebissa.1 Essa questão decerto enriqueceria minha proposta comparativista, já que suscitava questões em torno dessas particularidades: que fatores poderiam ter determinado essa consistência? Investigar essa questão parecia um assunto mais instigante do que analisar, por exemplo, as pastorelas em langue d’oïl, em que é perceptível a influência do modelo de Marcabru. Num recenseamento inicial, identifiquei algumas dessas composições,2 que ora se apresentam como uma mescla do referido modelo occitânico com elementos típicos das pastorelas francesas, ora constituem legítimos exemplares alegóricos compostos em langue d’oïl, o que denuncia uma transposição da invenção de Marcabru para aquele âmbito literário. Não obstante, a incorporação dessas pastorelas à pesquisa ultrapassaria o escopo viável para a investigação; desse modo, optei por debruçar-me sobre as pastorelas médio-latinas e galego-portuguesas – que, além das características anteriormente mencionadas, haviam sido produzidas no âmbito de tradições líricas distantes (geograficamente) e distintas (literariamente) da occitânica, na medida em que os seus autores dialogaram intensamente com a tradição latina, de um lado, e com a tradição peninsular ibérica, de outro lado. O texto em que apresento os resultados dessa pesquisa está estruturado em três partes. A primeira parte, composta pelos três capítulos iniciais, tenciona investigar o surgimento da pastorela alegórica occitânica como acontecimento literário: suas possíveis origens, características e o que a diferencia de outros modelos de pastorelas. A segunda parte, que compreende os três capítulos subsequentes, visa a analisar a relação entre a pastorela alegórica e elementos extraliterários, ou seja: inscrevê-la em seu tempo, analisando alguns dos fatores que podem ter suscitado sua emergência e situando historicamente seus elementos – esses capítulos investigam a figura da pastora na tradição judaico-cristã, bem como seu possível caminho até as pastorelas alegóricas; o próprio conceito de alegoria na Idade Média; e o surgimento de uma nova perspectiva moral no século XII, consistente com as atitudes que os protagonistas apresentam nas pastorelas. Por fim, os dois últimos capítulos tencionam investigar a influência da pastorela de Marcabru nos âmbitos literários médio-latino e galego-português, analisando seu processo de desenvolvimento e suas particularidades. Apensei ao texto uma antologia com todo o corpus de pastorelas alegóricas e pseudoalegóricas nela analisado. 1 Esse tipo de pastorela ocorre também no âmbito occitânico; Cf. 2.3. A variante: as pastorelas amorosas pseudoalegóricas. 2 Assunto de que trata o Capítulo 3: Pastorelas e pastorais.

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Se, a princípio, os capítulos em que se divide o trabalho podem parecer mal equilibrados, importa compreender que isso ocorre por exigência do tema da pesquisa. O reconhecimento de um modelo arquetípico na pastorela de Marcabru exigiu-me dedicar maior espaço à compreensão de suas especificidades, bem como à investigação de suas condições de emergência: apenas assim se tornariam claros os motivos pelos quais a obra exerceu tamanha influência. Por outro lado, os capítulos dedicados às pastorelas médio-latinas e galego-portuguesas representam uma primeira tentativa de investigar esse corpus a partir da perspectiva que aqui proponho; não pretendo apresentar respostas definitivas, mas apenas sugerir novas vias e possibilidades interpretativas. Espero, finalmente, que as lacunas deste trabalho, de cuja existência estou ciente, possam ser preenchidas em futuras investigações. *** Devo agradecer a Maria do Amparo Tavares Maleval, orientadora que colaborou ativamente para este trabalho desde quando ele não passava de um projeto, e a Lina Arao, companheira de vida e de labor, primeira leitora de muitas das páginas da tese. Agradeço igualmente àqueles que colaboraram diretamente para que este trabalho fosse possível: Mary Kimiko Guimarães Murashima, que durante anos ajudou-me a percorrer as trilhas da latinitas; William D. Paden, cujo trabalho serviu como base para a tese que deu origem a este livro, e que me ajudou fornecendo comentários e explicações adicionais; Yara Frateschi Vieira e Álvaro Alfredo Bragança Júnior – que estiveram na banca de qualificação desse trabalho, tecendo comentários e críticas que me ajudaram a evitar trilhas equivocadas e duvidosas; e Carlinda Fragale Pate Nuñez, cujo auxílio para a obtenção de recursos que possibilitaram a realização deste trabalho foi inestimável. Devo também agradecer a Ida Maria Santos Ferreira Alves, que aceitou fazer parte da banca de avaliação deste trabalho. Também me ajudaram, enviando artigos e outros itens bibliográficos: Carlos Paulo Martínez Pereiro; Alva Martínez Teixeiro; Daniele Gallindo Gonçalves Silva; Maria do Carmo Serén Viana; e funcionários da divisão digital da biblioteca da Universidade de Edinburgo. Agradeço, por fim, a Cláudia Maria de Souza Amorim, coordenadora do PROEG, que viabilizou esta publicação.

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NOTAS PRÉVIAS A fim de uniformizar os nomes de autores medievais aqui citados, normalizamos os nomes occitânicos de acordo com a edição de Riquer (1975-2001) e os nomes galego-portugueses de acordo com a edição de António Resende de Oliveira (1994); para autores médio-latinos, preferimos os nomes latinizados mais comuns. Com o objetivo de facilitar a leitura dos trechos de textos literários originais, optamos por inserir as citações na língua original no corpo do texto, entre parênteses, logo após a tradução do fragmento em questão; isso nos permite também evitar o uso excessivo de notas de rodapé, que utilizamos para transcrição dos textos originais de obras não especificamente literárias. Nas ocasiões em que estrofes inteiras foram traduzidas, inserimos a obra original e a tradução no corpo do texto, lado a lado, também com a finalidade de facilitar a leitura e o cotejo. Traduzimos os textos de forma mais literal possível, evitando quaisquer recriações com fins estéticos. Nos casos das pastorelas em occitânico antigo, nas quais se observa uma alternância entre a segunda pessoa do singular e a segunda pessoa do plural, optamos pela uniformização, quando imprescindível, de acordo com o tratamento predominante em cada caso. Não traduzimos as pastorelas galego-portuguesas, tendo em vista os comentários que já foram feitos em ítens específicos do texto.

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