Vittorio Cappelli
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Aitaliana belleno epoque Rio de Janeiro Aspectos e histórias da emigração meridional na modernidade carioca.
A belle ĂŠpoque italiana no Rio de Janeiro
Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcanti Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança
A UFF associa-se às comemorações dos 450 anos de fundação da cidade do Rio de Janeiro
Vittorio Cappelli
A belle époque italiana no Rio de Janeiro Aspectos e histórias da emigração meridional na modernidade carioca
Tradução de Aline Marques, Cecília Maculan Adum e Raphael Salomão Khéde (coordenador)
Copyright © 2013 Vittorio Cappelli Copyright © 2015 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Direitos de publicação da tradução em português do original italiano La belle époque italiana di Rio de Janeiro, publicado pela editora Rubbettino, em 2013, cedidos à Eduff.
Série Universidade, 1
A Eduff agradece o apoio do Laboratório de Tradução (LABESTRAD), vinculado ao Instituto de Letras da UFF, na realização da tradução desta obra.
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói/RJ CEP 24220-008, Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 - Fax.: +55 21 2629-5288 www.editora.uff.br - secretaria@editora.uff.br Impresso no Brasil, 2015 Foi feito o depósito legal.
Sumário
À guisa de prólogo Entre os Bourbon e Garibaldi (1820-1841) 9 Teresa Cristina de Bourbon: uma princesa napolitana imperatriz no Rio (1843-1889) 13
Os imigrantes e as dinâmicas do contexto Entre império e belle époque (1872-1920) 27 Dois funerais exemplares: Pasquale Segreto e João do Rio (1920-1921) 48 Vittorio Emanuele Orlando no Rio de Janeiro (20-28 de outubro de 1920) 57
Antonio Jannuzzi: “o italiano que construiu meio Rio de Janeiro” De Fuscaldo ao Rio: o início de uma saga familiar e de uma cadeia migratória (1874) 63 Entre Santa Teresa e o calvinismo 69 Grandes sucessos e graves desastres: da questão das habitações à Amazônia (1889-1899) 83 No novo século: o triunfo da Avenida Central 100 Do Rio a Fuscaldo: ida e volta (1911) 108 Rumo ao epílogo dos anos 1920: entre Rio e Valença 115
Entre o Centenário da Independência e a chegada de Marinetti (1922-1926) 122
Pasquale Segreto: “o ministro do divertimento” (1883-1920) Cilentanos no Rio entre loterias, espetáculos e jornais 138
Os jornais, os jornaleiros e São Francisco de Paula 157 Nota 165 Fontes 168 Referências bibliográficas 170 Agradecimentos 186
“…a ciência nada tem a ver com a utilidade ou perversidade das instituições. O lado social não lhe pertence, mas só o mecânico. Demais, há um princípio de solidariedade que liga todas as instituições de um país, a loteria e a engenharia.” MACHADO DE ASSIS, Balas de Estalo (1883-1886) “A crescente pressão da superfluidade, a formidável flor do parasitismo e do vício e do amor, a vida dos sentidos multiplicada por cem, obrigam o artista a ver e sentir de uma outra maneira, a amar de um outro modo, a se divertir de uma outra forma […] A aspiração dos novos artistas deve ser a de capturar, através de sua próprias personalidades, o grande momento da transformação social de seu país no milagre da vida contemporânea.” JOãO DO RIO, Discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras (1910) “…uma corrida cahotica […] em que o politico e o mendigo, o mundano e o coisa nenhuma, a inercia frivola e o trabalho em protesto, hombreiam sem se reconhecerem. […] o rodopio em que se chocam heterogeneidades, em que impera em mil contradicções o Paradoxo Rei de uma sociedade passando sem transição de aldeia comedida a sofreguidão dos automoveis […], de uma cidade em que os desoccupados sem cultura podem ser de um momento para outro autoridades e as autoridades sem valor proprio afundam em pedinchões; em que os pobres da vespera armam palacio de novos ricos e ninguem sabe ao certo quem é rico ou pobre de verdade, em que a politica é o monopolio de uma velha companhia theatral, […] representando para a indifferença do povo, cuja unica preoccupação è aparentar, è gosar, è gastar […].” JOãO DO RIO, Vida social («O Paíz», 17 de dezembro de 1919)
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À guisa de prólogo
Entre os Bourbon e Garibaldi (1820-1841) No Rio de Janeiro, nas primeiras duas décadas de 1800, vivia uma pequena colônia de italianos. Assinalava-o Angelo Trento, em sua já clássica monografia sobre a emigração italiana para o Brasil, precisando que era constituída, em primeiro lugar, por trabalhadores manuais (marinheiros, vendedores ambulantes, funileiros, costureiros, sapateiros), mas também por adeptos do pequeno comércio e de profissões liberais, como médicos e músicos (Trento, 1989). A esse primeiro modesto núcleo de italianos, em 1820, junta-se um rico contingente de imigrantes forçados: depois de um pacto ocorrido entre o Reino das Duas Sicílias e o Brasil, com a intenção de esvaziar as prisões de Nápoles, em 11 de março de 1820. As fragatas Sirena e Amalia deixam o porto de Nápoles e velejam em direção a Lisboa, tendo a bordo um contingente de trezentos detentos. A maior parte prosseguirá, logo em seguida, para o Brasil, naquele tempo ainda ligado à mãe pátria lusitana pelo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Sabemos que 9
os deportados, estabelecidos no Rio, “ali viveram agitadamente com o comércio ou com algumas profissões” e, desses, “mais de trinta fizeram tanta fortuna a ponto de serem considerados ricos negociantes” (Scarano, 1958). É esse o ponto de início das crescentes relações entre o Reino das Duas Sicílias e o Brasil. O próprio Brasil, dois anos depois, em 7 de setembro, proclama sua independência de Portugal, aclamando imperador D. Pedro I. Em 1825, o novo rei de Nápoles Francesco I inicia relações diplomáticas com o recémnascido Império brasileiro, do qual reconhece oficialmente a independência em 1826. Três anos depois, o barão Emidio Antonini, enviado como encarregado de negócios ao Rio de Janeiro, é recebido pelo imperador D. Pedro I, dando início às relações diplomáticas formais entre os dois Estados (Scarano, 1957). O objetivo principal da iniciativa napolitana é, naturalmente, de caráter econômico, no quadro dos visíveis progressos da marinha mercantil dos Bourbon, que vão bem além do anedotário relativo ao primado do Ferdinando I, o primeiro barco a vapor a cruzar, em 1818, as águas do Mediterrâneo, de Nápoles a Marselha. A marinha napolitana, antes da Unificação da Itália, é a mais importante da Península. Somente os estaleiros navais de Gênova podem competir com os arsenais napolitanos. Já em 1824, a marinha mercantil napolitana conta com 3.712 navios, o equivalente a 100.299 toneladas, e observa com crescente interesse as potencialidades dos mercados latino-americanos (Salzano, 1924). Os resultados não demoram a aparecer, apesar da forte hostilidade demonstrada pelo Império britânico em relação à expansão comercial dos Bourbon em direção ao Brasil (leve-se em consideração que a Inglaterra, em 1810, dois anos depois da abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, havia firmado um tratado com Portugal assegurando-lhe privilégios que garantiam uma incontrastável hegemonia nas transações comerciais com o Brasil, destinada a durar mais de cem anos). Em 1830, ano da substituição no trono napolitano de Francesco I por Ferdinando II, a qual imprime um maior impulso à economia do Reino (Lepre, 1974; Bevilacqua, 1993; Galasso, 2007; Lupo, 2011; Malanima, Ostuni, 2013), cinco navios napolitanos descarregam no Rio “vários produtos que foram ‘bem apreciados’”. Em 1832, Ferdinando II designa um diplo10
mata de carreira, Gennaro Merolla, cônsul-geral do Reino das Duas Sicílias no Rio de Janeiro (Scarano, 1957; Avella, 2012). Entre setembro de 1832 e agosto de 1833, outros dez navios descarregam “no porto do Rio de Janeiro 7760 barris de vinho e 268 de aguardente. Nesse ínterim, tornam-se muito difíceis as relações entre o Reino dos Bourbon e a Inglaterra, que visa transformar o mar Mediterrâneo num mare nostrum britânico. O ápice da crise entre os dois estados se manifesta com as pretensões monopolistas britânicas a propósito da expedição de enxofre siciliano, rejeitado pelo ministro das relações exteriores do Reino, Folco Ruffo di Calabria, em 1840 (Di Rienzo, 2012). Como se sabe, “a guerra do enxofre” — que tem uma importância estratégica para a indústria química britânica — ameaça desaguar em um conflito armado, mas se resolve com a mediação francesa, que impõe pesadas condições ao Reino das Duas Sicílias (Cancila, 1995) deixando, inevitavelmente, um rastro de suspeita e de rancor. No mesmo período, depois de alguns anos de incertezas, são retomadas as transações comerciais entre Nápoles e Rio de Janeiro, enquanto Ferdinando II acrescenta ao consulado napolitano do Rio, regido por Merolla, os vice-consulados de Santos, Campos, Santa Catarina, Maranhão e Pará, com o objetivo de proteger as transações comerciais. Naqueles anos, de Nápoles para o Brasil, exportam-se vinho, azeite, sal, aguardente, velas, sementes de linho, seda, maná, figos secos; e do Brasil são importados café, açúcar, couro, madeira de qualidade (Scarano, 1957). Mais tarde, em 1854, por iniciativa de Ernesto Merolla, filho do velho cônsul, será instituído um novo vice-consulado no distante Ceará, a fim de proteger os funileiros “napolitanos” imigrantes que estavam lá (Scarano, 1960)1. Enquanto isso, depois dos movimentos do Risorgimento de 1821, 1831 e 1834, a presença italiana no Rio tornou-se politicamente bastante efervescente por conta do aparecimento de liberais, carbonários e exilados seguidores de Mazzini. Enfim, como 1
Assim escreve Merolla a Luigi Carafa, “diretor” do ministério dos exteriores do Reino das Duas Sicílias, em 12 de dezembro de 1854: “Sendo informado que na província do Ceará se encontram vários R. Súditos exercitando a profissão de caldeireiro e, caso pudessem precisar de proteção, estimei oportuno, no interesse do serviço real, enviar para vós um R. Vice-Cônsul na pessoa de Oliveira Borges” (Ver em: SCARANO, 1960).
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se não bastasse, registra-se a chegada de Giuseppe Garibaldi, que fará do Rio de Janeiro sua base de ação por um ano e meio: em 21 de novembro de 1835, chega de Marselha ao porto do Rio o brigue francês Nautonier; entre os passageiros está o futuro “herói dos dois mundos”, então com vinte e oito anos. A sua chegada era esperada, mesmo porque tinha sido programada e organizada pessoalmente por Giuseppe Mazzini, que já possuía, no Rio, suas referências, todas de origem lígure2: em primeiro lugar, Giuseppe Stefano Grondona, residente no Brasil desde 1815 (expulso em 1823 por suas ideias revolucionárias, em 1834 retornou de Montevidéu), o qual tinha fundado na capital brasileira a Società Filantropica Italiana3, inspirada nos ideais de Mazzini (ao próprio Grondona se atribui a iniciação de Garibaldi em uma loja maçônica irregular do Rio (Fanesi, 2007); Luigi Rossetti, jovem marinheiro, comerciante e intelectual mazziniano, no Brasil desde 1827 até sua morte, ocorrida em 1841; Giovanni Battista Cuneo, marinheiro de profissão, que dois anos antes, em algum ponto do Mar Negro, havia iniciado Garibaldi no mazzinianismo (Cuneo vive no Rio de 1835 a 1837; e, mais adiante, torna-se biógrafo de Garibaldi). A presença e a amizade desses e de outros personagens permitem a Garibaldi, apenas dois meses após a sua chegada, sentir-se tão à vontade naquela cidade a ponto de ter a impressão de morar ali havia muitos anos (Pace Chiavari, 2007). A escolha de Mazzini pelo Rio como meta para o jovem Garibaldi é facilmente compreensível a partir das fortes ligações marítimas e comerciais existentes havia tempos entre Gênova e o Rio de Janeiro, além da localização estratégica do Rio para a marinha mercante do Piemonte, através da rota por Montevidéu e Buenos Aires. Não é casual, de fato, o papel preponderante dos lígures no início de 1800, dentro daquela pequena comunidade italiana do Rio, que parece bem familiar ao jovem Garibaldi. Este, entretanto, rapidamente se entedia com a vida ociosa que levou nos primeiros meses de sua estadia carioca, enquanto observa a presença, aos seus olhos insuportável, dos navios mercantes dos Saboia e dos Bourbon no porto do Rio.
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Entende-se por lígure quem é originário da região da Ligúria, norte da Itália, onde se encontra a cidade de Gênova.
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Sociedade Filantrópica Italiana.
Enquanto isso, em 1836, publica-se o jornal La Giovine Italia, que testemunha o começo da propaganda mazziniana; Garibaldi e seu inseparável companheiro Luigi Rossetti se dedicam ao comércio de cabotagem ao redor do Rio, ao longo da costa fluminense, de Campos a Angra dos Reis, com uma modesta embarcação de vinte toneladas, que apelidam de Mazzini e sobre cujo mastro principal se agita a bandeira da Giovine Italia4 (Pace Chiavari, 2007). Mas sabe-se que a atividade da Congrega della Giovine 5 Italia no Rio terá vida breve: o centro da propaganda política italiana, desde 1838, irá deslocar-se para o sul, entre a Argentina e o Uruguai (Franzina, 1995). Cuneo se transfere para Montevidéu; Garibaldi se une à revolta independentista e republicana do Rio Grande do Sul como comandante de um navio pirata; Luigi Rossetti dirige o órgão oficial da revolução, O Povo, e depois perde a vida em uma dessas batalhas, durante a retirada das forças republicanas do Rio Grande (Trento, 1989). É o ano de 1841 — o mesmo em que D. Pedro II, sem ter ainda completado 16 anos, foi proclamado imperador do Brasil — que, como veremos, abrirá uma nova fase na história da presença italiana no Rio de Janeiro6.
Teresa Cristina de Bourbon: uma princesa napolitana imperatriz no Rio (1843-1889) Depois de longas negociações, em 1º de abril de 1842, foi assinado o contrato de casamento entre o jovem imperador do Brasil D. Pedro II e a princesa napolitana Teresa Cristina de 4
Jovem Itália.
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Congregação da Jovem Itália.
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O primeiro imperador do Brasil, D. Pedro I (1822-1831), havia abdicado dez anos antes em favor do filho, para voltar para Portugal, onde morreria em 1834, com apenas 35 anos. Em 1831, então, D. Pedro II, nascido em 2 de dezembro de 1825, é ainda uma criança. Começa, portanto, o turbulento período da “regência” (1831-1840), caracterizado por tumultos e revoltas em cada região do imenso país: da “Cabanagem” de Belém, no Pará, à “Revolta dos Malês”, na Bahia, à “Rebelião Farroupilha”, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que havia suscitado o entusiasmo de Garibaldi e Rossetti.
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Bourbon, irmã do rei das Duas Sicílias Ferdinando II. O acordo é fruto da iniciativa diplomática conjunta de Vincenzo Ramirez, ministro plenipotenciário e representante das Duas Sicílias em Viena, e Gennaro Merolla, o dinâmico e astuto cônsul-geral napolitano, ativo havia dez anos no Rio de Janeiro. Trata-se de uma complexa operação, que se mostra “de cunho estratégico, voltada a reforçar as antigas relações entre o sul da Itália e um jovem país, rico de recursos, pronto para se tornar um elemento chave no tabuleiro internacional”. Nada de casual, portanto, e sim, pelo contrário, “um momento crucial da política atlântica perseguida pela diplomacia dos Bourbon” (Avella, 2012). O matrimônio foi celebrado por procuração na Cappella Palatina de Nápoles em 30 de maio de 1843, na presença de José Alexandre Carneiro Leão, embaixador extraordinário como representante do imperador. Em 2 de julho, Teresa Cristina zarpa do porto de Nápoles em direção ao Rio, escoltada por uma esquadrilha brasileira e acompanhada por uma pequena frota napolitana. Depois de dois meses de viagem, em 3 de setembro, o cortejo nupcial naval atraca no Rio, onde é acolhido solene e festivamente, como narra com comoção e riqueza de detalhes o capitão da marinha napolitana Eugenio Rodriguez (Rodriguez, 1844). É o início, na prática, da longa e interessante história de uma princesa napolitana no trono do Brasil, que se interromperá somente em 1889, depois de quase meio século, após o golpe de Estado que porá fim ao Império e dará início à primeira República brasileira (1889-1930). Sobre Teresa Cristina, pesaram, até pouco tempo atrás, dois tipos de preconceito: um político e outro de gênero. O primeiro preconceito, de natureza política, diz respeito à versão do Risorgimento italiano que designava os Bourbon de Nápoles como a representação do mal e da insipiência, impedindo qualquer atribuição ao Reino das Duas Sicílias de qualidades político-culturais, além de econômicas. Ainda mais improvável era reconhecer, nos Bourbon, a capacidade de construir confiáveis projetos políticos internacionais, capazes de competir com a hegemonia britânica nas transações comerciais intercontinentais. O segundo preconceito diz respeito aos paradigmas culturais do século XIX, que destinavam 14
às mulheres, mesmo nos níveis mais altos das hierarquias aristocráticas e dinásticas, papéis inteiramente subalternos sem brilho algum. Teresa Cristina que, ao contrário, ainda antes do casamento, respondia em francês às cartas escritas em português pelo seu futuro esposo, recém-chegada ao Rio, manifesta qualidades insólitas para uma mulher no mundo aristocrático daquele tempo. Ela apresenta, de fato, precisas competências musicais e uma grande paixão pelo belo canto lírico, que exercita com bons resultados inclusive pessoalmente, transmitindo o amor pela música e, em particular, pela ópera a D. Pedro, o qual, bem cedo, aprende também a língua italiana (Barman, 2010). A imperatriz napolitana, além disso, exibe grande competência e vivo interesse pela arqueologia, afirmando um entusiasmo realmente insólito, vistos os parâmetros culturais dominantes e os modelos femininos impostos pela cultura implacavelmente patriarcal daquele período7. Ela dá completa expressão a essa sua paixão cultural, transferindo para o Brasil uma riquíssima quantidade de restos arqueológicos, provenientes de Pompeia e de Herculano, e também da etrusca Veio, onde possuía algumas propriedades.
1 | A imperatriz do Brasil Teresa Cristina de Bourbon (1876, aproximadamente)
Teresa Cristina decide, em 1854, pedir ao irmão Ferdinando objetos de Pompeia e de Herculano em troca de objetos de arte indígena brasileira. O Rei de Nápoles aceita o pedido da irmã 7
ZERBINI, Eugenia. A imperatriz invisível. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, 2007 (Ver em: AVELLA, 2012).
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sem nenhuma hesitação8. Inicia-se, assim, uma operação cultural não de pouco valor, que terá como resultado a formação, no Rio de Janeiro, da maior coleção arqueológica clássica existente na América Latina, com cerca de 700 peças, vindas de Nápoles e de Veio. A iniciativa da imperatriz é compartilhada e favorecida por D. Pedro II, que cultiva uma paixão idêntica pela arqueologia. Não por acaso, o casal imperial irá sucessivamente, no curso de longas viagens transoceânicas, visitar as escavações de Pompeia, além das pirâmides e das antiguidades egípcias (Avella, 2012). A paixão de Teresa Cristina pela música e pelas artes produzirá resultados amplamente visíveis, como o evidente multiplicar-se, no Rio, de eventos artísticos, nos quais se celebra o triunfo da música italiana. Nos anos imediatamente posteriores à chegada da imperatriz, dissemina-se, na corte e na cidade, uma verdadeira melomania. O autor mais em voga é Bellini, e, no Rio, não se faz outra coisa que não seja cantar a ária Casta diva da ópera Norma (Lucchesi, 1999). Nessa mesma direção, terá, a seguir, um valor emblemático a vida profissional de Carlos Gomes (1836-1896), o maior compositor brasileiro do século XIX. Nativo de Campinas, depois de ter estudado por três anos no conservatório do Rio com o italiano Gioacchino Giannini9 e ter composto já duas óperas, Carlos Gomes, em 1863, será convidado por Teresa Cristina ao conservatório de Milão, para aperfeiçoar-se sob a direção de Lauro Rossi, no auge dos triunfos de Verdi (contrariamente ao parecer de D. Pedro II que teria preferido a Alemanha wagneriana). A relação de Gomes com a Itália se consolidará no tempo, seja através da música, seja na vida privada: ele se casará com a pianista ita-
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A cumplicidade do irmão Ferdinando com o destino brasileiro de Teresa Cristina é confirmada não só pelas estratégias político-diplomáticas e comerciais colocadas em ação, mas também por curiosas atitudes do rei Bourbon. Resulta, por exemplo, que Ferdinando II, em 1856, tenha solicitado à pequena cidade de San Marco Argentano a aquisição de um Guia geral de navegação para as costas setentrionais e orientais da América do Sul, do Rio da Prata ao Pará, obra de Eugenio Rodrigues, oficial da marinha napolitana que havia acompanhado Teresa Cristina ao Rio em 1843. Uma solicitação análoga foi reiterada em 1859. Cfr. P. Chiaselotti, L’Ottocento dietro l’angolo, disponível em: http://www.sanmarcoargentano.it/ottocento/index.htm.
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Gioacchino Giannini (1817-1860), autor da ópera Pipelet (1859), emigrou para o Rio de Janeiro em 1846. Sobre a música brasileira, até o início dos anos 1900, uma síntese bem informada se encontra na parte sobre o “Brasil” da Enciclopedia Italiana (aa.vv., 1930), com base em Guilherme Mello (MELLO, 1922).
liana Adelina Peri e suas novas óperas serão encenadas também no Alla Scala de Milão e no Carlo Felice de Gênova (Vetro, 1977). Em suma, configura-se com as iniciativas culturais de Teresa Cristina um tipo de contraposição à francofilia cultivada pelas elites brasileiras, a começar pela celebrada “missão artística francesa”, de 1816, da qual fez parte o notável arquiteto Grandjean de Montigny, introdutor do neoclassicismo na capital brasileira10. A operação cultural de Teresa Cristina se intensifica imediatamente com o grande sucesso da soprano milanesa Augusta Candiani, a qual desembarcou no Rio poucos meses depois da imperatriz. Candiani estoura com a Norma, em 1844, a ponto de obrigar um respeitável patriarca da literatura brasileira como Machado de Assis11 a afirmar, quando do retorno da cantora do Rio Grande do Sul, mais de trinta anos depois daquele episódio: A Candiani não cantava, colocava o céu em sua boca [...]. Quando suspirava a Norma era de enlouquecer. O público fluminense, que morre pela melodia como o macaco pela banana, estava, então, em suas auroras líricas. Escutava a Candiani e perdia a noção da realidade. (CENNI, 1960)
Eram estudantes, especialmente, que se exaltavam, que esperavam a cantora fora do teatro para aclamá-la e para acompanhá-la até em casa (Cernicchiaro, 1926). O sucesso era tão grande, desde 1844-1845, que a cantora, com a proteção dos soberanos, fez do Brasil (e do Rio) sua nova pátria: ali, morrerá, depois de uma longa carreira, em 1890. O episódio da Candiani não é isolado e sim o início de uma longa série. Basta recordar a chegada, ao Rio, em 19 de junho de 1870, da cantora Carlotta Patti (1836-1889), recebida triunfalmente pelo exponente mais respeitável da comunidade italiana, 10
É necessário dizer, todavia, que próprio o neoclassicismo, substituindo o estilo barroco lusitano, foi introduzido, em outro lugar do Brasil, por um italiano, já no século XVIII: é o caso do bolonhês Giuseppe Antonio Landi (1713-1791), aluno predileto de Ferdinando Bibiena, ativo em Belém desde 1753. Landi realiza, ali, o palácio dos governadores do Grão-Pará, o Hospital Real (hoje Casa das Onze Janelas), a igreja de São João Batista, a igreja de Santa Ana etc. (MENDONÇA, 2003/2005).
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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) era um profundo conhecedor da cultura italiana. Em sua obra literária, percebe-se a influência, sobretudo de Dante e Leopardi. A sua paixão pela lírica italiana, particularmente por Verdi, Donizetti e Bellini, aflora, frequentemente, em sua narrativa. Dele não poucas obras foram traduzidas para o italiano (DI NONNO, 2008).
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Luigi Vincenzo De Simoni12 — médico-literato e “conselheiro de leitura” da imperatriz Teresa Cristina —, o qual, ao revê-la, dedica-lhe um soneto que começa assim: “filha da harmonia e do belo canto, / Que vem a essas margens brasileiras, Uma tu és daquelas vivas almas, / Que a terra da Itália honram tanto”. Carlotta Patti, irmã da ainda mais conhecida cantora de ópera Adelina e filha de artistas13, realiza 12 concertos no teatro São Pedro de Alcântara e no Lyrico Fluminense, obtendo um grande sucesso. Alguns anos mais tarde, de agosto a novembro de 1875, uma companhia lírica italiana alcança grande sucesso com a soprano Giuseppina D’Amico. Em 1876, começa a atividade de empresário do maestro Angelo Ferrari, a qual prosseguirá por dez anos. Nos anos setenta, é o momento das cantoras Antonietta Baroldi Fricci, Antonietta Pozzoni Anastasi, Maria Luisa Durand, Marietta Biancolini, Ermínia Borghi-Mano e, enfim, do célebre tenor Francesco Tamagno (depois desses, entra-se na década posterior [Cernicchiaro, 1926]). Mas não se trata apenas da ópera e da música. Também o teatro e a dança foram promovidos principalmente pelos artistas italianos. Depois da falência da revolução de 1848, desembarca, no Rio, junto ao pai mazziniano em fuga de Milão, a dançarina e atriz Marietta Baderna, bailarina do teatro Alla Scala. As suas apresentações provocaram entusiamo impressionante, mas também reações escandalizadas pela inusitada sensualidade da bailarina e pela conduta política da jovem mulher, de sentimentos republicanos como seu pai. Após quinze anos de turbulentas atividades artísticas e políticas, Baderna
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Luigi Vincenzo De Simoni (Novi Ligure, 1792) chega ao Rio em 1817, tendo obtido o diploma de medicina na Universidade de Gênova e se especializado na Universidade de Pavia. Médico e naturalista, ele está entre os promotores da Academia Imperial de Medicina, cujo primeiro núcleo remonta ao ano de 1829. De 1852 a 1860, dirige o serviço sanitário da Santa Casa de Misericórdia do Rio. É também literato e escritor bilíngue (traduz em português os clássicos italianos, de Dante — de quem é o primeiro tradutor em língua portuguesa — a Ariosto; além dos principais poetas do início dos anos 1800, de Monti a Foscolo e a Leopardi). Em 1855, o imperador o nomeia professor de língua e literatura italiana no Colégio D. Pedro II. Por alguns anos, é também professor das princesas Isabel e Leopoldina, filhas de D. Pedro II e de Teresa Cristina (PICCAROLO, 1922; CENNI, 1960; FALLEIROS HEISE, 2007).
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Tanto Carlotta, quanto Adelina Patti (1843-1919), ambas cantoras de fama internacional, são filhas do tenor, de Catania, Salvatore Patti e da soprano romana Caterina Chiesa Barrili (BONAVENTURA, 1935).
desaparece misteriosamente, deixando, porém, traços de sua presença no Rio, até mesmo no léxico brasileiro, no qual o termo “baderna” está para agitação, desordem, confusão (Corvisieri, 1998; Malta, 2011). Enfim o teatro: impossível deixar de recordar a figura de Adelaide Ristori (1822-1906), a maior e mais célebre atriz dramática de seu tempo, que teve parte notável também na história política e diplomática do Risorgimento. Ristori se apresenta no Rio por mais de dois meses em 1869, e depois, ainda por vinte dias em 1874, quando é recebida na corte com admiração e generosidade desmedidas. Suas repetidas apresentações tiveram um estrondoso sucesso, a apreciação crítica entusiástica de Machado de Assis e a admiração incondicional do próprio imperador D. Pedro II, com o qual a atriz travará uma longa correspondência epistolar, interrompida somente pela morte do imperador em 1891 (Vannucci, 2004; Barraco Torrico, 2008). A chegada de Adelaide Ristori, ao Rio, em 1869, teve uma repercussão solene e oficial: pela primeira vez, depois da Unificação, uma atriz italiana, de fama internacional e consagrada como embaixatriz da cultura do novo Estado italiano, visitou as comunidades dos emigrados da América Latina. Os destinos da viagem, depois do Rio, foram Buenos Aires e Montevidéu. (VANNUCCI, 2004)
Durante uma apresentação dedicada pela atriz aos ítalo-brasileiros, no palco do Teatro Lyrico Fluminense, o exponente mais respeitável da comunidade italiana, o médico-literato Luigi Vincenzo De Simoni, definiu Ristori como “exímia e incomparável rainha da cena trágica e dramática”. No final do segundo ato de Camma, uma tragédia de Giuseppe Montanelli, “uma menina italiana, com bandeira tricolor a tiracolo, levou ao palco um diadema com sete rosas de ouro e brilhantes, como homenagem da colônia italiana, no valor de dez mil francos”. No final do terceiro ato, elegantes senhoras conduzidas pelo presidente da Società di Beneficenza, depois de um discurso de circunstância, entregaram-lhe um bracelete de ouro com duas figuras esculpidas representando a arte e a caridade, ornadas de pérolas e de brilhantes. (VANNUCCI, 2004)
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Outros presentes, ainda mais preciosos, a atriz recebeu pessoalmente do imperador e da imperatriz.
2 | Monografia sobre a amizade de Adelaide Ristori e D. Pedro II
Dois anos depois, em 1871, também Tommaso Salvini (1829-1915), o maior protagonista masculino do teatro italiano, de larga fama internacional, encena no Rio de Janeiro o drama de Paolo Giovannini Morte civil (1861), cavalo de batalha dos grandes atores veristas da época. Em 1874, Salvini retorna de novo para o Rio. Dessa vez, é recebido por D. Pedro e Teresa Cristina, que na ocasião precedente estavam na Europa. O imperador me quis frequentemente no seu palácio da cidade — dirá Salvini em seu livro de memórias — e me convidou para sua residência no campo para um almoço, onde tive a oportunidade de conhecer também a imperatriz, à qual não podia dar mais prazer do que ouvir de sua Nápoles.
D. Pedro, continua o ator, sendo um perfeito poliglota, me fez a cortesia de falar perfeitamente em italiano, coisa muito bem recebida também pela imperatriz, mesmo que Ela mantivesse ainda o acento napolitano. Encenei dez vezes no Don Pedro, a seguir passei para o teatro Fluminense, destinado à ópera, onde fiz outros oito recitais, sempre com crescente afluência. Nos dias de repouso, deleitava-me visitando os arredores daquela cidade encantadora. Convencime de que a verdadeira América se encontrava no Brasil. Lá, a natureza alarga suas dádivas com abundância, e tudo ali é duplamente exuberante. (SALVINI, 1895)
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Mais tarde, será a vez de Eleonora Duse (1858-1924), que em 1885 estará empenhada em uma longa tournée sul-americana, com a companhia Città di Torino, dirigida pelo ator Cesare Rossi e por ela mesma com o então marido Tebaldo Checchi. No decorrer da turnê, que obtém grandes e repetidos sucessos, a atriz ficará por três meses no Rio de Janeiro, exibindo-se de 15 de junho a 16 de setembro no teatro São Pedro de Alcântara. A Duse, então com apenas vinte e sete anos, mas já atriz principal capaz de competir internacionalmente pelo primeiro lugar com a grande Sarah Bernhardt, tinha conseguido uma carta de apresentação para o imperador do Brasil, escrita para ela por Adelaide Ristori, de quem era enfim, no teatro, a merecida herdeira. O imperador D. Pedro a receberá com todas as honras14. É totalmente evidente, por essas e outras crônicas, que o exercício das paixões culturais de Teresa Cristina tem uma ressonância no culto imperador, o qual aceita abrir um canal privilegiado de comunicações com a Itália. É testemunho disso também outra correspondência epistolar de D. Pedro, especificamente com Alessandro Manzoni, que o imperador — como conta Franco Cenni — encontra em sua residência em Brusuglio, recebendo de presente do escritor um retrato de Cesare Beccaria (Cenni, 1960). Estamos em 1871, ano de uma longa viagem à Europa, que leva o casal imperial também à Itália (Teresa Cristina revê Nápoles depois de 28 anos), à Palestina e ao Egito. A ligação deles com a Itália, portanto, é favorecida por relações nada banais, que se desenvolvem sem interrupção, com o envolvimento de ambos. Mas é igualmente evidente que as vocações culturais e artísticas da imperatriz já eram todas evidentes e afinadas desde a formação do cortejo nupcial que a havia acompanhado ao Rio em 1843. Daquele cortejo faziam parte artistas, como o cantor lírico Arcangelo Fiorito e o pintor-escultor Giovanni Castelpoggi, além de artesãos de altíssimo nível, provenientes das fábricas de seda da Real Colônia de San Leucio15 (Avella, 2012). 14
Ver Eleonora Duse. In: Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 42, Treccani Roma, 1993. Duse retornará outra vez ao Rio de Janeiro em 1907, exibindo-se no Teatro Lyrico. Disponível em: http://www.brasilcult.pro.br/teatro/painel08.htm.
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Complexo monumental localizado em Caserta, região da Campânia, sul da Itália.
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Mas realmente emblemática do protagonismo cultural de Teresa Cristina é a história que se refere aos irmãos Domenico e Cesare Farani, funileiros de Sapri16, que de sua cidade natal primeiro se deslocaram para Nápoles e depois foram tentar a vida exatamente no Brasil, onde havia chegado, havia pouquíssimo tempo, a princesa Teresa Cristina17. Franco Cenni contou, a esse propósito, no seu Italianos no Brasil, uma divertida anedota: parece que os dois irmãos funileiros estavam discutindo animadamente, em seu dialeto, exatamente embaixo das janelas da residência imperial, um atribuindo ao outro a responsabilidade pelos insucessos e pelas dificuldades em que se tinham metido. Teresa Cristina, que conservava naquele momento fresquíssimas recordações do ambiente napolitano, interessada naquela conversa conduzida em um dialeto a ela familiar, pede a um soldado para levá-los a sua presença. Os dois, amedrontados pelo uniforme, tentam fugir, mas são alcançados e levados até a imperatriz, a qual, falando com eles em dialeto napolitano, tranquiliza-os e pede para conhecer a sua história. Os irmãos contam as graves dificuldades em que se encontram no Rio, privados enfim de qualquer recurso econômico. Teresa Cristina, tendo intuído, evidentemente, as qualidades dos jovens funileiros, mantém-nos junto à corte. Pouco depois, o imperador os encarrega de substituir as grandes e pesadas moedas de bronze em circulação por outras menores e mais elegantes. Os Farani realizam o trabalho com tal zelo e competência, a ponto de tornarem-se, em breve, os ricos e paparicados cunhadores da casa da moeda imperial (Napoli, 1911; Cenni, 1960; Tancredi, 1985). Após algum tempo, Teresa Cristina os reenvia a Nápoles para que se especializem, posteriormente, como ourives. De volta ao Rio, em 1846, os irmãos Farani abrem uma joalheria, primeiro na rua dos Ourives (hoje rua Miguel Couto), e depois em um edifício próprio na centralíssima e “parisiense” rua do Ouvidor, que se torna, por mais de 30 anos, a joalheria predileta da elite carioca. Os dois se tornam, enfim, os joalheiros ofi-
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Comuna situada na Província de Salerno, região da Campânia, sul da Itália.
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Domenico Farani (Sapri, 1818 – Rio de Janeiro, 1898) e Cesare Farani (Sapri, 1820 – Petrópolis, 1907) chegaram no Rio pela primeira vez em 1845 (BELLI; NAPOLI, 1911).
ciais da corte imperial. Teresa Cristina e D. Pedro, confirmando o grau de intimidade atingido com os ex-funileiros de Sapri, batizam o primeiro filho de Domenico Farani (Napoli, Belli, 1911; Vanni, 2000). Os desenvolvimentos posteriores do sucesso econômico dos Farani abrem uma janela sobre o futuro desenvolvimento urbano da capital. Os irmãos, de fato, começam a dedicar-se aos negócios imobiliários e à indústria das construções: realizam importantes intervenções nos bairros de Botafogo, onde abrem oito novas estradas – entre as quais, Catete, Glória, Laranjeiras, Santa Teresa e Catumbi, promovendo pela primeira vez a construção de ruas largas, praças e jardins em uma época ainda caracterizada pelas vielas estreitas da cidade colonial. Com seu trabalho, portanto, começa a declinar o privilégio de que tinham gozado até então os arquitetos e os construtores portugueses (Mazzini, 1905; Napoli, Belli, 1911; Cenni, 1960; Vanni, 2000). Nesse ínterim, Teresa Cristina formaliza e finaliza a sua atenção aos italianos presentes no Rio, promovendo a constituição, em 1854, de uma Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro. Dirigem-na dois médicos: o bolonhês Cesare Persiani e o lígure Luigi Vincenzo De Simoni, o cientista e literato que, em seguida, teria recebido e celebrado Adelaide Ristori. Não se pode deixar de observar o fato de que a sociedade é qualificada como “italiana” bem antes da unificação política da Península, dando forma organizada, em todo caso, aos sentimentos que animavam os autores do jornal A Íris Italiana, que começava a ser impresso no Rio, naquele mesmo ano de 1854, por iniciativa de Alessandro Galleano Ravara, jornalista e poeta18. O jornal já manifestava uma clara consciência programática: Até agora, a língua italiana foi ofensivamente negligenciada, e devemos apenas à nossa supremacia musical, se hoje em dia essa pode despontar nessa terra amada pelo 18
O periódico se apresenta como “jornal hebdomadário”, que “trata da língua e da literatura italiana; se ocupa dos teatros; dá notícias políticas e comerciais; e contém um apêndice de variedade, novelas, dramas e poesia”, com o objetivo de melhorar a instrução da juventude [e] propagar uma língua que tanto prazer dá ao espírito através de suas harmonias”. No lugar do fundador Galleano Ravara, morto durante uma epidemia de cólera, entrará o engenheiro Pietro Bosisio (SERGI, 2010; TRENTO, 2011; BELMONTE, 2011).
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sol, onde ela há de criar raiz por conta dos cuidados dos ativos amantes do belo, os quais lutarão para que o classicismo dos nossos autores imortais não resulte inferior ao amor pelo romantismo francês, do qual, até esse momento, aproxima-se apenas a juventude estudiosa das duas Américas. (PICCAROLO, 1922)
As páginas de A Íris Italiana propõem continuamente a identificação dos “italianos” com a cultura e com as “belas artes” (Belmonte, 2011), compartilhando plenamente as predileções, as intenções e os projetos da imperatriz Teresa Cristina, à qual, não por acaso, é oferecido um álbum de poemas de Galleano Ravara, traduzidos por Luigi De Simoni (Piccarolo, 1922). A imperatriz aprecia a homenagem e, a partir do segundo número, A Íris Italiana é publicada sob o patrocínio do imperador, o qual, por outro lado, para satisfazer sua consorte, não hesita em financiar, desde o início, com uma substanciosa contribuição de 400 contos de réis, a Sociedade Italiana de Beneficência. Do ato constitutivo da sociedade, de 17 de dezembro de 1854 — que foi, então, celebrado curiosamente no Consulado do Reino de Sardenha (ativo no Rio desde 1847) — participam também os joalheiros da corte, Domenico e Cesare Farani, e muitos outros italianos “ilustres” do Rio, num total de 35 sócios-fundadores (Vanni, 2003)19. É o ponto de partida de uma sociedade de elite que, na comunidade italiana do Rio, terá vida longa e, mais tarde, coexistirá com um associacionismo de caráter popular, requisitado e imposto por uma imigração italiana que assumirá dimensões de massa nos últimos trinta anos do século XIX. Também na nova fase, que se abre com o começo da política populacionista desejada por D. Pedro II — a partir de uma lei de 1867 que contém o regulamento das colônias agrícolas e que prepara o caminho para os recrutamentos de colonos na Itália —, se evidenciam o compartilhamento e a participação ativa de Teresa Cristina. Como no episódio do recrutamento de 19
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Cesare Persiani e Luigi Vincenzo De Simoni foram apoiados, na direção da Sociedade, pelo médico Luigi Bompani, por C. Bonini (talvez o engenheiro Cristoforo Bonini), por G.M. Caffarena e por um dos irmãos Farani. Ver: La costituzione della Società Italiana di Beneficenza e il verbale della prima adunanza (17 de dezembro de 1854). In: Il Fanfulla, São Paulo, 16 de dezembro de 1954.
cinquenta famílias de Modena, na região da Emília Romanha, no norte da Itália, destinadas, em 1874, à colônia de Porto Real, não muito distante da cidade do Rio, no vale do Paraíba, onde, trinta anos mais tarde, residem 1.100 italianos (Mazzini, 1905). Teresa Cristina submete a operação à arrojada Adelina Malavasi, de Modena, que frequentava a corte brasileira com seu segundo marido, o flautista Alfonso Malavasi, e tinha estabelecido uma relação de particular familiaridade com a imperatriz. A mulher, então, por disposição de Teresa Cristina, vai a sua cidade de origem, Concordia sulla Secchia, onde recruta os colonos e os conduz, em seguida, ao Rio (Osti Guerrazzi, Saccon, Volpato Pinto, 2002). Em conclusão, é com a ação conjunta de D. Pedro II e Teresa Cristina que inicia a imigração italiana em massa, direcionada, principalmente nos anos setenta do século XIX, às regiões rurais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Do justo reconhecimento a respeito de Teresa Cristina, haverá novamente plena unanimidade na comunidade italiana do Rio, no início do novo século, em pleno Brasil republicano. Em um fascículo especial do bissemanal Il Bersagliere, afirma-se que as origens da “colônia italiana no Rio de Janeiro” remontam ao casamento do imperador com a princesa napolitana: “somente depois da vinda da jovem imperatriz, começava de fato a se falar, pela primeira vez aqui, de uma colônia italiana”20. Muito mais tarde, em 1954, na ocasião do centenário da fundação da Sociedade Italiana de Beneficência, celebrada como “a mais antiga associação italiana do Brasil”, num número de 8 páginas de Il Fanfulla, o jornal italiano mais importante e longevo de São Paulo, se dirá que, “com a chegada da esposa napolitana do imperador D. Pedro II, começou a se estabelecer aquela rede de amigos e parentes que caracteriza a nossa emigração”. Já entre os componentes do séquito real, figuravam cortesãos, amigos, pessoas de confiança que, tendo se estabilizado na nova terra, formaram uma espécie de círculo em torno da gentil Soberana. [...] Os seus hábitos, 20
La colonia Italiana in Rio de Janeiro. In: Il Bersagliere, Rio de Janeiro, número especial de 5 de maio de 1906.
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os seus costumes, demonstravam que Nápoles estava sempre em suas memórias. Foram, assim, abertas as portas à imigração italiana no Rio de Janeiro, chegando, a cada ano, exíguas levas que se compunham, em sua maior parte, de pequenos comerciantes, profissionais e especialistas de alguns ramos da indústria, sendo os primeiros núcleos oriundos, na maioria, do sul da Itália21.
3 | Il Fanfulla de São Paulo dedica um suplemento especial de oito páginas à Sociedade Italiana de Beneficência do Rio de Janeiro, por ocasião do centenário de sua fundação (16 de dezembro de 1954)
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D’AMATO, T., La commemorazione del centenario della fondazione della Società Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso di Rio de Janeiro. In: Il Fanfulla, São Paulo, 16 de dezembro de 1954.