Vamos fazer uma sacanagem gostosa_Preview

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Vamos fazer uma sacanagem gostosa?

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45ª Prova – Káthia 23/fev/2017

Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança

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5ª Prova – Káthia 23/fev/2017

Victor Hugo de Souza Barreto

Vamos fazer uma sacanagem gostosa? Uma etnografia da prostituição masculina carioca

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45ª Prova – Káthia 23/fev/2017

Copyright © 2013 Victor Hugo de Souza Barreto Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Coleção Biblioteca, 83

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Direitos desta edição cedidos à Eduff Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-900 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.editora.uff.br - faleconosco@eduff.uff.br

Impresso no Brasil, 2017. Foi feito o depósito legal.

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5ª Prova – Káthia 23/fev/2017

Agradecimentos ou o “pagamento” Na dinâmica do negócio da prostituição, o pagamento costuma ser a sua última parte. Após a conquista, após o acordo do que vai ser realizado durante o programa e após a prática sexual efetiva, cumpre-se o que foi acordado com o pagamento dos serviços prestados. Aqui, me parece justo acontecer o contrário. O pagamento virá antes de efetuarmos o programa. Começarei pelo fim, pelo meu “pagamento” àqueles que me ajudaram e foram importantes na realização deste trabalho, que nasceu a partir da minha dissertação de mestrado defendida em abril de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF. Espero que a simples menção de seus nomes aqui seja vista como sinceros agradecimentos. Em primeiro lugar, agradeço a todas as pessoas que se dispuseram a participar desta pesquisa, aos gerentes das saunas, aos garotos e aos clientes do negócio da prostituição que, mesmo a contragosto, algumas vezes, compartilharam comigo seu tempo, suas histórias, seus desejos e suas práticas. Agradeço ao meu orientador, Antônio Rafael Barbosa, que devido a minha insistência aceitou orientar um trabalho com um tema difícil e espinhoso como este. Seus cursos, a que assisti desde a graduação em Ciências Sociais, me incentivaram e estimularam a persistir na incrível experiência que uma etnografia proporciona. Ao CNPq, pelo apoio financeiro necessário a este trabalho. Às professoras Ana Claudia Cruz da Silva e Soraya Silveira Simões, pelas contribuições importantes nos comentários feitos durante a qualificação desta pesquisa e durante outros encontros.

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Aos professores, funcionários e colegas pesquisadores do Nufep/UFF, agradeço pela socialização acadêmica, pelo apoio, pelo compartilhamento de ideias e pela guinada definitiva em direção à Antropologia. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, em especial Edilson da Silva, Tânia Stolze, Jair Ramos e Laura Graziela, pela oportunidade de desenvolver pontos sobre a pesquisa em suas disciplinas. Da mesma forma agradeço aos outros alunos do programa, com quem convivi nos dois curtos anos de mestrado. Um especial agradecimento a Verlan Neto, com quem troquei as primeiras ideias e que me emprestou textos, fichamentos e trechos da sua dissertação. Agradeço a minha mãe, a minha avó e aos outros familiares que, apesar de não conseguirem entender para que serve o que eu estudo e o porquê de eu precisar de tantos livros (que ocupam demasiado espaço), sempre apoiaram incondicionalmente as minhas escolhas. A Fabio Medina e Gustavo Nascimento pelas discussões iniciais. A Jôse Sales, que me ajudou a “apagar um incêndio” quando precisei. Aos grandes amigos Alessandra Freixo, Eric Macedo, Flavia Medeiros, Rômulo Labronici e Vânia Nascimento (os três últimos, companheiros de mestrado), que acompanharam de alguma maneira o processo desta pesquisa. Agradeço pela simples presença, seja em uma mesa de bar, numa sala de aula, nas viagens de congressos ou como companheiros de trabalho. Às amigas de sempre, Ana Pires, Luciana Ramos, Renata Raeder e Virginia Bittencourt, por continuarmos juntos nos nossos percursos. E a Nei Fonseca, grande presente, pela preocupação, pelo apoio, pela paciência, pela torcida.

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Baby Dê-me seu dinheiro que eu quero viver Dê-me seu relógio que eu quero saber Quanto tempo falta para lhe esquecer Quanto vale um homem para amar você Minha profissão é suja e vulgar Quero pagamento para me deitar Junto com você estrangular meu riso Dê-me seu amor que dele não preciso Baby Nossa relação acaba-se assim Como um caramelo que chegasse ao fim Na boca vermelha de uma dama louca Pague meu dinheiro e vista sua roupa Deixe a porta aberta quando for saindo Você vai chorando e eu fico sorrindo Conte pras amigas que tudo foi mal Nada me preocupa de um marginal Zé Ramalho – Garoto de aluguel [Taxi boy]

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Sumário Prefácio Uma etnografia das derivas do desejo, 13 María Elvira Díaz-Benítez

Apresentando o programa, 21

Chegando à sauna com Rodrigo, 21 A conformação dos meus interesses de pesquisa, 25 Um conjunto de questões em torno das relações entre sexualidade e subjetividade, 27 Produção de subjetividade, 28 O dispositivo da sexualidade,

Percurso etnográfico, 32 Estrutura do texto, 38

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Chegando à sauna, 41

A prostituição masculina na cidade, 41 A constituição de espaços de homoerotismo, 42 Dos banhos públicos às saunas, 46 Prostituição x pegação, 55 A sauna: uma descrição densa, 56 Os critérios para a escolha, 63

Encontrando o boy, 65

Mercadoria e sedução, 65 Boy, 67 Identidade e singularidade, 67 Um “perfil”?, 69 “Para cliente ver”, 70 A família, 71 A profissão da “vida real”, 73 A cor que se deseja, 76 O cuidado do corpo, 77 Boy de rua x boy de sauna, 79 Uma profissão?, 81 Dos motivos e objetivos, 82

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O negócio do programa, 93

Prostituição masculina x prostituição feminina, 93 Homo, hétero ou bi?, 98 Conflitos, 102 Técnicas corporais no sexo pago, 104 O preço do gozo, 110

Fazendo o “programa”, 117

A prostituição masculina como tema de pesquisa, 117 Estratégias de aproximação, 119 Percurso do pesquisador e algumas dificuldades, 121 Pagar ou não pagar?, 124 “Boy por um dia”, 127 E o sexo no campo?, 129 Coda, 133

Concluindo o programa, 137 Referências, 141

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Prefácio Uma etnografia das derivas do desejo María Elvira Díaz-Benítez

Logo no título, Victor Hugo Barreto faz um convite difícil de rechaçar: o de um programa sexual, de uma “sacanagem gostosa”. Para tal, enveredou por derivas e itinerâncias, acompanhou os sujeitos em seu nomadismo e aprendeu os códigos do estar num universo de interações flutuantes e fluidas. O resultado? Um trabalho de pesquisa sério que certamente vem para contribuir às análises que, na antropologia, interessam-se pelas temáticas de gênero, sexualidade, mercado, processos de subjetivação, carreira, marcadores sociais da diferença, interação, espacialidades e antropologia urbana ou, então, organização sexual da cidade. Li a etnografia do Victor Hugo ao mesmo tempo que avançava na leitura de O orgasmo e Ocidente. Nesse livro, seu autor, Robert Muchembled (2008), realiza uma história do prazer desde o século XVI até metade do século XX. Foi assim que na minha mente se fusionaram os dois escritos de uma forma inusitada, e, enquanto visitava junto com Victor as saunas cariocas e seus meandros de prazer, pensava em Claude Le Petit, jovem poeta francês autor do Le Bordel des Muses ou les Neuf Pucelles Putain, cujo primeiro verso, lembra-nos Muchembled, é: Trepar pelo cu, trepar pela boceta, trepar o céu e a terra, trepar ao diabo e ao trovão, e ao Louvre e ao Montfaucon

Por sua ousadia literária, Claude, de 23 anos, foi condenado a pedir desculpas em público na porta da igreja de Notre-Dame e,

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logo, a ser queimado vivo na Praça de Greve. Após apelar, o poeta conseguiu uma “atenuação do suplício”: seria “discretamente estrangulado” antes de sua pele ser consumida pelas chamas. Isso aconteceu no dia 1o de setembro de 1662. Com Muchembled (2008) entendemos que uma história dos desejos e prazeres carnais no Ocidente é, na verdade, uma história das proibições e dos constrangimentos. Se entre os séculos XVI e XVII o prazer parecenos ser atingido apenas por meio da pena e da dor, e as proibições vinculam prazer com pecado levando à fogueira transgressores como Claude, os séculos seguintes denunciam ciclos de aparente estiramento da liberdade dos costumes – surgindo, por exemplo, a era pornográfica –, seguidos pela entrada em cena dos puritanismos vitorianos que arrastaram uma renovada onda de interdições. Já aprendemos com Michel Foucault o poder das ciências e dos saberes no século XIX para encapsular desejos em diagnósticos, para colocar a sexualidade em discurso como modo de apreendê-la. À sua maneira, esses autores nos mostram os modos como desejos e prazeres se tornaram objeto de normas que evoluíram em perspectivas morais. O que é esse escuro objeto chamado desejo? Não é exatamente a pergunta que o Victor se faz. Mas é uma questão filosófica que veio à minha mente lendo seu trabalho. Não foi acaso com Platão que aprendemos que o desejo é falta? Não me refiro a desejo sexual, senão a desejo como aquilo que os humanos desejam porque disso são carentes, uma ausência do ser, isto é, o Ser existe, mas é carente. Mais do que carente, o Ser de Platão é incompleto e é dali que nasce o desejo. O seu desejo é “Ser”. Há um vácuo que o leva a desejar, uma espécie de inconformismo, uma ferida que não sangra, mas incomoda, uma procura por algo que só consegue atingir por meio de fragmentos. A sublimação do prazer de diversas religiões por nós conhecidas seria um esboço dessa ferida? Falo isso, porque fico pensando o quanto o desejo tem sido interpretado como um “mal” (lembro novamente que não estou falando exclusivamente de desejo sexual), como algo que deve ser extirpado no caminho pela felicidade. Porque, de algum modo, o desejo é ameaçador: ele nos lembra o que não possuímos e a não possessão pode nos 14

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tornar infelizes. O desejo é, ainda, o propulsor do poder, seu risco consiste nos efeitos do poder no governo de nossas vidas. É com Freud que apreendemos a ideia da prevalência de um desejo inconsciente como instigador dos sonhos. O desejo seria uma força impulsora do psíquico. O princípio do prazer reina no inconsciente e tenta realizar o prazer fazendo abaixar a tensão psíquica. É o princípio de realidade que forma nossa personalidade enquanto precisamos “domesticar” o princípio do desejo. O desejo como prazer ou energia sexual tomou em Freud o nome de libido. E esse tipo de desejo poderia ser mapeado na história do prazer de cada indivíduo. Mas ele não existe sem seus perigos iminentes: o risco estaria na possibilidade de o indivíduo cair na fixação que pode levar às perversões, ou, então, no recalque, que deflagra as neuroses e, dali, os complexos do desejo entram em cena: o Édipo ou amor impossível, e a castração ou o desejo que é falta. Desejo é falta. E o que dizer de Lacan que via a castração como aquilo que, de fato, regula o desejo? Essa visão do desejo correlata à falta ou ausência não encontra eco no pensamento de outros autores, tais como, Gilles Deleuze e Felix Guatari (1976). Para eles, o desejo não é a representação de um objeto ausente ou faltante, mas uma atividade de produção, uma experimentação incessante. O desejo é produtor de realidades, uma força que impulsiona a máquina subjetiva, que nos leva a produzir. Em suma, ele não é falta, mas criação, carrega intensidades e devires, o desejo de nada carece. Se estou falando sobre essas visões acerca do desejo, ora como falta ora como produção, é porque ambas aparecem combinadas nos relatos que Victor Hugo recolheu em campo e em sua análise, especialmente quando ele questiona: por que os rapazes decidem fazer programas e por que os clientes os procuram? As respostas oscilam entre essas possibilidades. Aquelas que dizem respeito à ausência, falta de dinheiro, falta de outro tipo de emprego e/ou de certas condições materiais que podem ser supridas mediante o negócio do michê, ou, então, aquelas que falam de produção, gosto, prazer, procura de sacanagem, busca de vivências outras. 15

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Nessa etnografia, encontramos um olhar antropológico preocupado com o lugar do sexo na construção de sujeitos, que acredita que as práticas sexuais representam um lugar-chave para o entendimento das subjetividades. E ele se pergunta: no final das contas, quem são esses sujeitos? Onde eles estão? Que significados eles dão a suas sexualidades e ao desejo no exercício do fazer programa? Na medida em que o autor vai desvendando os meandros desses desejos, vai mostrando as suas complexidades. Ele, como Perlongher (1987), menciona uma narrativa recorrente entre os boys: eles não possuem desejos homossexuais. O que a sua atividade teria a informar sobre seus desejos e orientação sexual? Nada, no caso de muitos. Um dos rapazes diz: Ter uma ereção ou não, sentir tesão na hora do sexo, quando os estímulos te fazem “funcionar”, não quer dizer que seja gay, um ET, uma entidade ou o coelhinho da Páscoa. Eu continuo sendo o mesmo de sempre. Apenas fiz meu corpo e pênis reagirem à situação. Seja ele com um homem ou uma mulher.

Experiências como essa nos convidam a aceitar que não existem linhas causais diretas entre sexo, gênero, representação de gênero, prática sexual, fantasia e sexualidade. Sobre isso, Judith Butler (2003) insistiu exaustivamente. Parte do que constitui a sexualidade é aquilo que não aparece, o que não é visível. Assim, tanto as saunas como a sexualidade que esse espaço possibilita habitariam uma zona porosa entre o explícito e o velado ou entre o que se revela e o que se dissimula. Esse jogo de dupla face configura os modos como os fluxos de desejo são produzidos nesse território existencial. Talvez essa seja a melhor definição de uma sauna: território existencial em que se ativam os desejos e que atravessa os sujeitos em sua potência criativa para a produção de intensidades. As saunas são espaços para o erotismo, e esse é um dispositivo de energia vital. São territórios aos quais confluem sujeitos na expectativa de viver experiências intensas de prazer. São lugares para a troca de vontades, para a negociação das fantasias. 16

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A fantasia faz parte daquilo que não é visível na sexualidade. Ela possibilita a criação de corpos fluidos que, às vezes, nesse contexto de interação, obtêm seus significados não pelo que “são”, mas por aquilo que evocam. “O boy não existe como pessoa, só existe como fantasia do cliente”, diz um gerente de sauna. A fala de um entrevistado de Perlongher (1987) que Victor Hugo cita, “[…] quando eu estou pagando um michê não estou pagando uma pessoa, estou pagando uma fantasia”, parece também corroborar não só o caráter teatral que a prostituição possui, como afirma o autor, mas o quanto a sexualidade pode ser um universo de negociação e desestabilização de convenções de gênero e corporalidade. Agora, isso não significa que as saunas sejam territórios necessariamente subversivos. Nossos desejos e fantasias são socialmente construídos, são produzidos em e submetidos a constrangimentos sociais e forças controladoras ora psíquicas, ora políticas ou econômicas, que acabam por desvendar a força com a qual os marcadores sociais da diferença – de gênero, classe, raça e sexualidade – atuam na produção tanto de sujeitos, como de expectativas e erotismos. Não é à toa, como bem mostra o trabalho de Victor Hugo, que a masculinidade é tão relevante e almejada nesse universo. Uma masculinidade que se constrói no papo, nos jeitos, nas poses, nos objetos que o corpo porta e que se consome nos atos e nas fantasias. Assim, entendemos que, se as saunas são territórios que vendem fantasias, a principal fantasia que se compra leva o nome de masculinidade, que não poucas vezes é racializada. Em suma, as saunas, em certa medida, demonstram o quanto as derivas do desejo – esse desejo como força que produz e potencia intensidades – existem no meio do reconhecimento de certos roteiros (o desejo é roteiro, diria Gagnon (2006)) e direcionam seus fluxos no sentido da negação de certos marcadores que se apresentam como indesejáveis. Se aceitarmos esse último enunciado, podemos inferir que o desejo, nas práticas de prostituição, é produção e também negação.1 Há, ainda, outros dados interessantes na etnografia em relação ao que se revela e o que se dissimula e sobre o quanto 1

Uma negação outra que, obviamente, não levaria os nomes de castração ou de recalque.

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isso está relacionado com gênero, sexualidade e processos de singularização. Do lado do que se revela, os objetos. Num espaço onde os sujeitos vestem apenas uma toalha, acessórios como brincos, piercings, pulseiras, bonés ou relógios auxiliam na diferenciação dos corpos – fundamental em uma interação baseada na captação de clientes – e simultaneamente informam sobre a orientação sexual e a performance de gênero de seu portador. Por exemplo, o uso de uma aliança pode levar à interpretação de que o sujeito é casado e, portanto, além de ser “hétero” deve ser “macho”, potencializando seu capital simbólico nesse universo. Isso fala também da agência dos objetos, tema que muito interessa à antropologia contemporânea. Do lado do que é velado, os fluidos: o sêmen como secreção corporal enormemente identificada socialmente com a masculinidade. Se em relações entre homens que fazem sexo com homens não é raro encontrar que a negociação das disposições ativo/passivo por vezes se traduza em quem ejacula e em quem não2 e na pornografia a ejaculação seja vendida como um espetáculo de masculinidade que precisa ser exibido, demonstrado e reiterado, no negócio do desejo na prostituição o sêmen toma outras derivas. Se o gozo do cliente é o principal objetivo nos programas, como aparece o gozo do boy nesse contexto?, pergunta-se o autor. A ejaculação do boy é eficaz na captura de um cliente e na demonstração de seu bom desempenho, mas simultaneamente diminui a capacidade de ele se relacionar com novos clientes e, assim, de permanecer ativo por mais tempo em uma jornada de trabalho e de aumentar seus lucros. Desse paradoxo surge o agenciamento de técnicas para a contenção do fluido e a consequente manutenção da excitação com estratégias de simulação para revelar aquilo que nesse negócio deve ser revelado mesmo sem ser real. Talvez possamos dizer que o jogo consista não necessariamente em ver, mas em acreditar no que não se vê. Seja como for, a ejaculação, diz Victor Hugo, “transforma-se no negócio da prostituição masculina numa das práticas mais raras 2

Ou em quem ejacula de modo ativo (penetrando) e quem ejacula de modo passivo (se masturbando).

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e caras”, que, como os objetos (e mais ainda), tornam-se uma potência afetiva, tendo a possibilidade de afetar os corpos. Objetos, usos do corpo, performances de gênero e de raça e narrativas são dispositivos utilizados pelos boys no ato de produzir o desejo no outro. Mas há algo ali de enorme importância: esses desejos se constroem no instante. Isto é, o instante é que faz com que um boy defina qual será a apresentação de si perante um cliente. Nesse espaço da sauna nem tudo pode ser antecipado. Os sujeitos reconhecem vários roteiros de aproximação, mas qual deles usar ou, ainda, como improvisar um novo roteiro irá depender de uma avaliação instantânea. Assim, proponho pensar que não se trata de uma questão de identidade, nem de teatralizações “mentirosas”, mas de fluxos de si que confluem de modo conjuntural e momentâneo a partir do desejo que se antecipa no outro. Para finalizar, gostaria de chamar a atenção para três pontos que me parecem relevantes no trabalho de Victor Hugo Barreto. O primeiro, o modo como ele mostra as saunas como espaços de sociabilidade. Se, por um lado, a prostituição mesma deve ser entendida como uma forma de sociabilidade, o espaço também se configura como cenário social para além do sexo. Isto é, também é para alguns homens o lugar de encontro com velhos amigos ou aquele que propicia o estabelecimento de novas amizades. Segundo, a etnografia nos ajuda a pensar naquilo que chamo aqui de “organização sexual da cidade”. Bairros e ruas que concentram saunas, pontos de táxi, motéis, pontos de pegação e outros estabelecimentos conformam uma rede efetiva de consumo e de afetos para a criação de territórios existenciais e dos sujeitos que por eles circulam. Territórios com seus códigos de comportamento que se revelaram como um universo rico de pesquisa sobre formas outras de interação humana. Terceiro, o quanto o autor investiu de modo sério numa temática de pesquisa que, não raro, coloca em questão a própria identidade do pesquisador. Esta observação é oportuna especialmente por estarmos atravessando uma etapa de retomada do conservadorismo que tem levado a críticas públicas grosseiras e apenas fundamentadas em moralismos 19

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dirigidas a antropólogos da área da sexualidade. Se os estudos sobre sexualidade encontraram um lugar legítimo na disciplina, desafiando o presságio feito por Carol Vance (1995) na década de 1980, hoje em dia as redes sociais possibilitam técnicas eficazes de acusação. A importante empreitada de entender o desejo e as práticas de prostituição masculina carioca levou Victor Hugo a se adentrar nesses territórios de um modo comprometido com a formulação de conhecimento, apreendendo os códigos e sinais, observando de modo flutuante, pois a ideia de uma observação participante em um contexto de prostituição levanta questões básicas: quais são os limites de nossa participação? É esta uma pergunta ética e metodológica da qual o autor não fugiu. Ao contrário, encarou-a como um desafio epistemológico, e a ela dedicou várias páginas de reflexão. Confesso-me uma entusiasta do trabalho de Victor Hugo Barreto e convido outros leitores a participarem do mesmo deleite. Rio de Janeiro, 9 de abril de 2016

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