Ocupando o latif煤ndio do saber A hist贸ria de uma educadora do campo
Ocupando o latif煤ndio do saber A hist贸ria de uma educadora do campo
Eliane de Souza Saraiva
Projeto Experimental Curso de Comunicação Social – Jornalismo da Terra Universidade Federal do Ceará Coordenadora do Curso de Jornalismo da Terra Márcia Vidal Nunes Professora Orientadora Klycia Fontenele Autoria Eliane de Souza Saraiva Capa Renan Campêlo Projeto Gráfico Renan Campêlo Diagramação Renan Campêlo Fotografias Eliane de Souza Saraiva Arquivo pessoal Francisca Gomes Paixão Fortaleza - Ceará 2013
[...] não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco. Como impossível seria sairmos na chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar. Não posso ser professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo. (Paulo Freire).
Dedico este livro aos meus filhos, Cristopher e Lariane, por tornarem minha vida mais intensa e prazerosa ao nascerem nesse período de faculdade. À Francilene Caetano, melhor amiga que eu já tive, cuja amizade eu não soube preservar. Ao meu esposo Edson Martins, companheiro nos momentos de dissabores e de alegrias, parceiro de sonhos e expectativas.
AGRADECIMENTOS Agradeço, prioritariamente, a Deus, por permitir minha existência nesta Terra, por ter me ensinado que eu deveria recompensar a indiferença e o desprezo com o amor ao próximo. Ao meu pai, Mariano Saraiva, pelas críticas que recebeu ao enviar os filhos à escola em vez de ao roçado; pelas conversas reconfortantes na madrugada, pelo cuidado e dedicação aos meus filhos para que eu pudesse continuar estudando. Agradeço à minha mãe, Iracilda Saraiva, por apoiar minhas escolhas e pela presença constante. À Klycia Fontenele, minha orientadora, pelos conselhos, sugestões e estímulos, a quem devo muitos aprendizados, desde quando fui sua aluna na disciplina de Teorias do Jornalismo. Ao Renan Campêlo, por diagramar com tanto empenho este livro-reportagem, pela criatividade e disposição em fazer as alterações gráficas por mim solicitadas. A todos os colegas do curso de jornalismo, especialmente Raquel Luz, Marilene Nascimento, Ioneide Nunes, Genilda Rocha, Aline Oliveira, Sheila Rodrigues, Genevando Santos, Marcelo Matos e Neuber Amador, amigos com quem compartilhei dúvidas, anseios e alegrias. À Márcia Vidal Nunes, pela competência, comprometimento e pela resiliência como coordenadora do Curso de Jornalismo da Terra.
A todos os professores do Curso de Jornalismo da Terra, em especial, Ronaldo Salgado, pela amizade e dedicação à nossa turma, por despertar em mim o desejo de escrever, de dizer com palavras escritas o que não sei dizer oralmente. Ao Érico Araújo Lima, que por trás de um sorriso tímido, transborda-se em inteligência, desprendimento e solicitude; agradeço-o pelas sábias críticas aos meus textos. Ao MST e Via Campesina, pela ousadia e coerência capazes de provocar mudanças na vida de milhões de brasileiros, pelas incessantes lutas empreendidas a favor da libertação dos camponeses sem-terra e da garantia de seus direitos. À Luciene Alves e a Raimundo Patrício, pelas longas horas de entrevistas, pelas memórias e pensamentos que me possibilitaram conhecer com profundidade o trabalho dos educadores de jovens e adultos do Assentamento Novo Horizonte. Por fim, agradeço imensamente à Francisca Gomes Paixão (Dona Cilene), cujas memórias são retratadas neste livro, pelos diálogos intermináveis nos fins de tarde e fins de noite, por compartilhar comigo suas histórias de vida, suas angústias, alegrias, desejos e esperanças.
SUMÁRIO
Apresentação.................................... 15 Capítulo 1 ........................................ 23 (Novo Horizonte: a vida recomeça) Capítulo 2 ........................................ 39 (Os ofícios de Dona Cilene) Posfácio............................................ 83 Entrevistas........................................ 86 Notas..................................................87 Referências....................................... 89
DONA CILENE
Inquietações
PREFÁCIO
Existem homens que lutam um dia e são bons. Existem homens que lutam um ano e são muito bons. Porém, existem os que lutam toda a vida. Esses são imprescindíveis. (Bertolt Brecht).
E
ste livro fala de amor, amor pelas letras, pela vida. Cheguei ao Assentamento Novo Horizonte ao entardecer do dia 11 de janeiro de 1998, porém, meu pai e meu irmão mais velho vieram na madrugada da ocupação, em 22 de julho do ano anterior. Em janeiro de 1998, já tínhamos a posse da terra, mas ainda morávamos em pocilgas e em outras dependências da fazenda. Cerca de dez famílias se acampavam debaixo de um mesmo galpão de criação de porcos, ocupando três ou quatro pocilgas. Nos dias de trabalho coletivo, 120 homens se aglomeravam às 6h30min da manhã, em frente ao segundo galpão, onde minha família morava. Doze fileiras de dez trabalhadores se organizavam para ouvir os encaminhamentos do dia, repassados por Geraldo Alves da Rocha, o Geraldim. Utilizávamos banheiros de palha, fogo à lenha, energia elétrica com gambiarra. Todas as manhãs, nós nos dirigíamos ao rio para buscar água e tomar banho e, frequentemente, faltávamos à escola, atacados por doenças virais ou disenteria. Nós, crianças, percorríamos todos os ambientes da sede da antiga fazenda Cágado Boqueirão. Entrávamos nas assembleias, nas primeiras salas de alfabetização de jovens e adultos e em tantos outros espaços e momentos coletivos da nova comunidade. Presenciei e experienciei todos esses momentos, vividos nos primeiros meses após a desapropriação da terra. No entanto, não recorri apenas à própria memória para reconstruir os fatos contaDona Cilene. | Foto: Eliane Saraiva.
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dos neste livro. Para contar a história do Assentamento Novo Horizonte, eu procurei ouvir, além de lideranças da época, a voz de pessoas simples, daqueles que moraram na fazenda, que empreenderam as primeiras lutas pela desapropriação do latifúndio, que participaram da ocupação e ajudaram a promover a organicidade interna da comunidade após a imissão de posse da terra. Quase todas as histórias escritas do Assentamento a que tive a oportunidade de ler me repassaram uma visão romanesca sobre o nascimento da comunidade. A análise de documentos e a captação de informações, a partir de novas fontes me possibilitou recriar outra narrativa, diferente das que costumava ouvir por algumas lideranças. É esta a história que compõe o primeiro capítulo deste livro-reportagem. Necessária para que se conheça o lugar onde vive dona Cilene, a personagem central deste livro.
Mas, segundo meu pai, o ensino e a administração dela eram precários, por isso, transferiu-me para a escola do povoado vizinho, pertencente ao município de Umirim-CE. Aos 11 anos, minha vida se resumia ao convívio familiar e à vivência na escola. Foi assim até aos 15 anos, quando conheci o MST e me envolvi com as atividades comunitárias do Assentamento Novo Horizonte. Em janeiro de 2004, tornei-me secretária da Associação Comunitária do Projeto de Assentamento Novo Horizonte. Nesse período, constatei que muitos jovens, adultos e idosos permaneciam analfabetos, mesmo após o Assentamento ter recebido uma quantidade significativa de projetos de educação de jovens e adultos desde 1998. A maioria dos assentados só sabia assinar o nome. De abril de 2006 a abril de 2008, atuei como educadora de jovens e adultos do 1º Segmento (1ª a 4ª série) pela parceira formada entre o Movimento Sem Terra (MST), Universidade Estadual do Ceará (Uece) e Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Eu desejava tornar-me educadora. Por três motivos: primeiro, conhecendo a pedagogia adotada pelo MST, acreditava que, de fato, reduziria o analfabetismo na comunidade e obteria resultados importantes para o desenvolvimento do Assentamento; segundo, ser educadora era um sonho de infância, seria prazeroso executar tal ofício e, terceiro, R$ 320,00 na época, para mim, era uma fortuna! Foram dois anos de esperanças e frustrações. Para começar, eu não podia dar aulas na casa dos meus pais, porque só tínhamos quatro cadeiras e era uma casa apertada. Fui ensinar na casa de um casal de educandos. Como retribuição, pagava metade do valor da energia elétrica da residência. No início, eu não podia comprar uma lousa. Arrimava, na parede, uma tábua com quase dez metros, apoiada sobre o assento de uma cadeira e me ajoelhava para escrever na lousa improvisada.
Por que falar sobre experiências educacionais versus analfabetismo? Este é um tema que me inquieta. Desde muito pequena, o ato de educar, a busca pelo conhecimento, a permanência de práticas pedagógicas ultrapassadas nas escolas, a frustração e a negligência de alguns professores, a deficiência no ensino público, todos esses fatores têm me suscitado inquietações, revoltas e lágrimas. Eu tinha 11 anos quando nos mudamos para Novo Horizonte. Assim como outros estudantes, filhos de sem-terra, eu temia que não houvesse escola na nova terra. Em maio de 1997, quando meu pai chegou à nossa casa, após uma reunião no Salão Paroquial em Tururu-CE e nos disse que iríamos embora em breve, chorei porque não queria abandonar a escola. Adorava estudar na Escola de 1º Grau Anselmo Ferreira de Sales, para onde eu fora transferida aos nove anos, para repetir a alfabetização. Na verdade, havia uma escola a seis metros da minha casa. 16
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Mas nada disso me incomodava. Os problemas verdadeiros vieram depois. Por mais que tentasse, não conseguia manter os educandos em sala. Afastavam-se por motivos banais. Chateavam-se com a dona da casa e não queriam mais frequentar as aulas ou ficavam em casa, assistindo à “novela das sete”... Mas, havia educandos na turma que sabiam somar, subtrair, conheciam todo o alfabeto. Sabiam que D-A é DA, S-A é SA... mas, não sabiam ler. Por isso, separei os educandos que já sabiam ler, escrever e que acompanhavam os conteúdos do 1º segmento, daqueles que ainda estavam em fase de alfabetização. Passei a dar aulas cinco ou seis dias na semana, em duas casas diferentes e, às vezes, no fim de semana. Utilizando as palavras geradoras como prática pedagógica cotidiana, eu me comovia ao ver educandos, que se diziam analfabetos, lendo e formando palavras com as tarjetas que eu colava na parede e retirava ao término da aula. Liam manchetes de jornais, títulos de livros com tamanha alegria. Emocionavam-se a cada novo aprendizado. Por outro lado, as pessoas que já sabiam ler tinham menos interesse em frequentar as aulas. Nos últimos meses do projeto, houve evasão, baixa frequência e desinteresse por parte desses educandos. Nessa fase, eu saía de casa, às vezes, atrasada, depois das 19h. Cabisbaixa, eu caminhava, lentamente, os 150 metros até a casa onde dava aula. As lágrimas rolavam pelo meu rosto. Chorava porque sabia que apenas três educandos estavam à minha espera. Isso era tão triste, quanto vergonhoso. Na verdade, a maioria das pessoas matriculadas na minha turma frequentava as aulas, porém, esporadicamente. Desse modo, elas não conseguiam acompanhar a sequência dos conteúdos e os desdobramentos dos temas geradores. Frequentemente, eu as visitava, insistia para que fossem mais assíduas. Comprava lanche sempre que podia, mas não adiantava. No dia do bolo com
refrigerante estavam presentes, mas já faltavam no dia seguinte. Em abril de 2008, fizemos a festinha de encerramento da turma no Galpão (Salão Comunitário do Assentamento). Convidei todas as pessoas matriculadas na turma, desde os que evadiram no início do projeto aos sete que permaneceram até o fim. Minha missão havia chegado ao fim. Poucas razões havia para se comemorar, porém. O analfabetismo ainda persistia e os alfabetizados não queriam ou não tinham condições de dar continuidade aos estudos. Entretanto, três educandos que estavam começando a ler me presentearam com o desejo de continuar estudando. Para eles, dei aulas por mais dois meses, após o encerramento da turma... Trabalhar como educadora de jovens e adultos foi uma experiência dolorosa e, contraditoriamente, prazerosa, porque estava vivendo o sonho de ser educadora. Hoje, sei que não fui a única a passar por essa experiência. Conheci pessoas que passaram por frustrações, sentiram a mesma dor que eu senti e não se acomodaram. É por essas pessoas que tenho respeito, é por elas, que me propus a escrever este livro. A ideia de um livro-reportagem No decorrer de 16 anos desde a criação do assentamento, dezenas de turmas de alfabetização e de EJA (Educação de Jovens e Adultos) surgiram nas três vilas que formam Novo Horizonte. Vila Nova, Vila Central, Vila das Carnaúbas, em todas elas houve turmas de alfabetização para adultos funcionando na casa de famílias assentadas. No entanto, o analfabetismo muito pouco foi reduzido na comunidade, o que me suscitava a inquietação de descobrir, conhecer, compreender o porquê da persistência dessa conjuntura. E não era apenas porque eu fazia parte da comunidade, mas porque se tratavam de ações educacionais que, por razões diversas, 19
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eram demasiadas falhas. Ora queria saber de quem era a culpa, ora compenetrava-me de que não havia culpados, mas vítimas do velho e atual sistema educacional brasileiro. Estudando Comunicação Social - Jornalismo, foi possível obter o embasamento teórico que me permitiria fazer a reconstrução da realidade que eu desejava conhecer em profundidade e transmiti-la ao público. Para tal propósito, nada mais apropriado que um livro-reportagem, ainda que fosse como projeto experimental de conclusão de curso. Referenciei-me nas palavras do jornalista Edvaldo Pereira Lima (2009) ao afirmar que, no livro-reportagem, o número e a qualidade dos detalhamentos enriquecem a narrativa para um grau de informação idealmente superior ao dos veículos cotidianos. Além de favorecer o aprofundamento intensivo, vertical, que alimenta o leitor de informações sobre causas e consequências, efeitos e desdobramentos, solidificando a real compreensão do tema e de sua precisa inserção no contexto contemporâneo. Minha pretensão era reconstruir a história das turmas de educação de jovens e adultos, das diversas parcerias, que funcionaram de janeiro de 1998 a dezembro de 2012, no Assentamento Novo Horizonte. Mas, logo esbarrei em dois obstáculos. Primeiro, o meu envolvimento na comunidade. Minha participação como educadora de um desses projetos poderia comprometer a história que eu estava decidida a escrever. Segundo, a maioria dos ex-educandos e ex-educadores não queriam se identificar, enquanto outros, ao me relatar certos fatos, pediam-me que eu os omitisse. Assim, tive que abrir mão da história que pretendia contar, da maneira que queria contar. Mas não abandonei a questão do analfabetismo e da Educação de Jovens e Adultos. Em 2012, visitei as três turmas do Programa Brasil Alfabetizado que funcionavam em Novo Horizonte. Entrevistei alfabetizadores e educandos. Numa dessas turmas, presenciei um ex-
-educador matriculado e frequentando pontualmente às aulas com a esposa, que também era alfabetizada. “Não custa nada a gente ajudar os outros, deixar a novela de lado e ir pra essa escola da noite. A gente estuda pra ajudar a menina a manter o trabalho. Ela precisa.”, contou-me a esposa do ex-educador. Conheci de perto a história de uma educadora que transformou a sala de jantar num espaço lúdico, atraente, com livros didáticos e paradidáticos, exposição de números e letras em diversas formas e tamanhos, cartazes, painéis, etc. Visitei a turma dela inúmeras vezes, vi-a elaborando o plano de aula, vi o esforço e a dedicação que empenhava para alfabetizar os dez educandos. Mas, ao final do projeto, ela recebeu apenas cinco bolsas-salário pelos oito meses que trabalhou. Depois de ouvir tantos relatos, uns contundentes, cheios de remorso, de culpa, outros, reconfortantes, cuja honestidade os levou a se doar ao ofício de educar, transformando as duas horas de aula diárias no estudo rigoroso dos conteúdos e, sobretudo, nos diálogos socializantes e no compartilhamento das vivências do campo... Foi quando cheguei à casa de uma ex-educadora. Nunca antes havia frequentado sua casa, eu a conhecia como a mulher que revendia produtos da Avon. Nada mais sabia sobre sua vida. Decidi, então, escrever sobre a trajetória educacional de Francisca Gomes Paixão (Dona Cilene). Mulher Sem Terra, camponesa, educadora, ex-professora da educação infantil e da educação de jovens e adultos. Movida mais pela paixão ao ensino que pelas necessidades financeiras, Dona Cilene entregou-se ao ofício de alfabetizar os companheiros de assentamento, tentando libertá-los do analfabetismo, preparando-os para ocupar o latifúndio do saber. É sobre esta mulher e seu amor pelas letras que trata meu livro.
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CAPÍTULO I NOVO HORIZONTE: A VIDA RECOMEÇA NA NOVA TERRA Sim, é por amor É por à vida que marchamos nas madrugadas de lua nova Levando nos braços a fúria das tempestades Prontos a resgatar a terra que nos tomaram (Zé Vicente)
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quatro quilômetros da zona urbana de Tururu, cidade recém-emancipada em 1987, está a fazenda Cágado Boqueirão. Propriedade da empresa Companhia Brasileira de Ração (CBR), é a maior fazenda do município de Tururu, no Litoral Oeste do Ceará, distante107 quilômetros de Fortaleza. No final da década de 1980, o latifundiário José Flávio Costa Lima, novo dono da CBR, faz grandes investimentos no negócio e contrata a mão de obra das 35 famílias moradoras da terra a fim de garantir os índices de produtividade desejados pela empresa. Com vasta produção agropecuária, 450 hectares de cajueiros e 100 de bananeiras, fruticultura irrigada e extensa criação de aves e porcos, a fazenda ocupa uma área de 2.620 hectares, entre os limites de Umirim e Itapipoca. Já no início dos anos 1990, a fazenda passa a importar caminhões de frutas todas as semanas. A venda de suínos criados nos grandes galpões é a principal fonte de lucro do proprietário. Entretanto, o progresso da propriedade rural dura pouco. A partir de 1993, o negócio agropecuário começa a declinar em decorrência da má aplicação dos investimentos. O valor das despesas supera o faturamento da empresa. Atolada em dívidas, a CBR não consegue pagar os funcionários. Revoltados, eles abandonam os serviços na fazenda. 22
Francisca Maria (Mônica), filha de Dona Cilene (à esq.), Dona Cilene (ao centro) e a sobrinha, Dioneide Farias (à dir.) | Foto: Arquivo Dona Cilene.
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Nos anos seguintes, a insatisfação dos trabalhadores é geral. Decidem não trabalhar mais para o proprietário. Muda toda a conjuntura com o declínio do empreendimento, cujo progresso iminente esvai-se pelos ares em pouquíssimos anos. Sem terra e sem teto, as famílias de moradores e de ex-funcionários permanecem na fazenda, mas apenas cultivando leguminosas para sua subsistência. Em 1994, Francisco Mota Sobrinho, ex-gerente da fazenda, articula os trabalhadores rurais da comunidade e, juntos, buscam o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Itapipoca, Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Tururu e de lideranças locais para ajudá-los na apropriação legal da terra. No mesmo ano, iniciam as primeiras lutas na intenção de tornar as terras improdutíveis em área de reforma agrária, mesmo sem compreenderem, de fato, a amplitude das mudanças que isso acarretaria em suas vidas. A falência da CBR e as reivindicações dos trabalhadores são comentadas por toda a cidadezinha de menos de 10 mil habitantes. Entretanto, o poder e a influência que Flávio Lima detém na região garantem-lhe a audácia de ignorar o apelo das entidades unidas para defender os trabalhadores. O descontentamento coletivo une os antigos moradores da comunidade que, organizados, continuam morando e cultivando alimentos nas terras da fazenda. Inquilinos em terra proibida, não tem opção. Poderiam arrendar outras áreas para plantar roçados, mas onde iriam morar? Nasceram nesta terra... Nela cresceram, nela construíram suas moradias de barro, nela aprenderam a lavrar a terra. Manter-se unidos é questão de sobrevivência. Começa, então, uma série de conflitos de interesses entre os trabalhadores e os donos da terra. Religiosos da CPT se comprometem com as lutas da comunidade, orientando os agricultores locais e ex-funcionários a procurar os órgãos responsáveis por
seus direitos: o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tururu (STR de Tururu) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Certa tarde, os trabalhadores se reúnem com representantes da CPT, às escondidas, no pequeno povoado de Riacho Trairi (no limite da propriedade com o município de Umirim). A Comissão designa o jovem Geraldo Alves da Rocha, o Geraldinho, para organizar e liderar o grupo de trabalhadores. Apesar da voz pausada, gaguejante, Geraldo se manifesta durante toda a reunião enquanto os demais permanecem calados, omitindo as perguntas das respostas que buscam. Por isso, é o escolhido. Seriedade e humildade são os pontos fortes do caráter de “Geraldim”, como é conhecido. De forma transparente, ele passa a ser a ponte entre os trabalhadores e as entidades que os representam. Com a ajuda da CPT e do STR de Tururu, não tardam a procurar a Superintendência Regional do Incra no Ceará, para solicitar uma vistoria na área. Começa a luta pela desapropriação da fazenda. Entretanto, os técnicos do Incra constatam que a terra não pode ser desapropriada por dois motivos: algumas atividades agrícolas permanecem funcionando (o fazendeiro contrata trabalhadores de fora para podar e roçar os cajueiros) e a quantidade de famílias é insignificante para justificar a desapropriação da fazenda1. – Para desapropriar uma área com mais de 2 600 hectares, como essa, são necessárias umas 120 famílias, porque o módulo fiscal2 do nosso município é de 22 hectares por família. – explica Geraldinho em reunião com os trabalhadores. – Geraldim, só temos 35 famílias morando na propriedade. Não dá pra desapropriar ainda. O jeito é arranjar mais gente! – propõe Francisco Mota. Três anos depois, em 1997, o Movimento dos Trabalhadores 25
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Rurais Sem Terra (MST) obtém informações sobre a situação da fazenda Cágado Boqueirão e se junta às outras entidades de defesa dos direitos dos camponeses para executarem as ações de contraposição à ineficiência do governo em fazer reforma agrária. A partir de então, o MST passa a coordenar as atividades de articulação dos agricultores sem terra; entrega-se à missão de pressionar o Incra a tomar providências diante da opressão sofrida pelos trabalhadores. Começa, então, o trabalho de base3 em cinco municípios da região norte do Ceará: Amontada, Itapipoca, Itapajé, Umirim e Tururu. Cinco militantes explicam, ouvem, argumentam e tentam convencer famílias de agricultores arrendatários a participar da luta que lhes garantiriam um pedaço de terra para cultivar. Mesmo vivendo na miséria, muitos sem-terra se recusam a entrar na luta. Por isso, os militantes percorrem várias comunidades camponesas da região, inclusive os subúrbios das cidadezinhas vizinhas. Depois de cerca de quatro meses, 93 famílias de trabalhadores rurais sem terra decidem participar da ocupação da fazenda Cágado, já abandonada pelo proprietário. Enquanto o gerente consome seus dias no balanço da rede na varanda do casarão da fazenda, reuniões são realizadas às escondidas, estratégias para ocupar a terra são planejadas. Incertezas e temores conturbam a mente dos pacatos agricultores. Na madrugada de 22 de julho de 1997, homens, mulheres e crianças se amontoam em frente à entrada da propriedade que já não cumpre sua função social4. Militantes do MST organizam o povo e, em meio a gritos de ordem e euforia, arrebentam o cadeado da fazenda. Acendem fogueiras para iluminar a escuridão que os cerca por todos os lados. No chão coberto de mato seco, não há onde repousar. Das 2h às 5h da manhã, corpos e mentes não descansam. E continua chegando sem-terra até o amanhecer. Ao clarear o dia, começa o mutirão de limpeza nos cinco
galpões de criação de porcos. As moradias de suínos agora são moradias humanas. Banheiros de palhas de coqueiros são construídos às pressas. Equipes são formadas: segurança, alimentação, infraestrutura, saúde, coordenação. No mesmo dia, grupos de trabalho começam a preparar a terra para o cultivo. Já são 280 trabalhadores organizados.Instalado o acampamento, aparecem oficiais de justiça a procura do “cabeça”. – Aqui não tem cabeça, não. – é a resposta de todos. Ameaças de despejo amedrontam os acampados que, além do medo da polícia, são criminalizados pelos habitantes do município. Porém, movidos pelo desejo de libertar-se da privação de direitos fundamentais ao ser humano, como moradia, terra e água (alimento), enfrentam o preconceito da sociedade tururuense e resistem às ameaças de desocupação. Em assembleia, decidem como proceder diante da ameaça de despejo: – Se a polícia chegar pra botar a gente pra fora, a gente sai. Vamos todos pra debaixo do cajueirão da agrovila. Quando a polícia for embora, a gente volta pra cá. Para a felicidade coletiva, a sentença judicial do despejo é anulada. O governador Tasso Jereissati e a superintendência regional do Incra se comprometem a desapropriar a área o mais rápido possível. O proprietário não oferece resistência ao negociar a terra. Cinco meses depois, em 22 de dezembro de 1997, a fazenda Cágado Boqueirão é desapropriada. A área de 2.620 hectares da extinta CBR recebe o nome de Novo Horizonte. A partir desse momento, o MST conduz o processo de organicidade do assentamento. Coletivismo, companheirismo, solidariedade e respeito às decisões tomadas pela maioria são princípios do MST incorporados pelos assentados para nortear as formas de socialização, cultivo da terra e organização interna do assentamento. As 120 famílias cadastradas no Incra são divididas em grupos chamados núcleos de base: 12 núcleos de 10 famílias. Em 27
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cada grupo, são eleitos dois assentados para coordenar e estruturar suas respectivas famílias. São eles que formam a Coordenação Geral do Assentamento, responsável por deliberar sobre questões que envolvem o bem-estar da coletividade. Após a desapropriação, aproximadamente 80 famílias residem nas pocilgas, sem nojo, sem pudor. Muitas crianças e adultos adoecem de disenteria e verminoses nesse período. Quinze famílias instalam-se nas casas da agrovila. Outras ocupam o almoxarifado e demais dependências da sede da antiga fazenda. Entretanto, em muitos lares, a família se divide durante o período de ocupação e construção das casas: os homens trabalham no assentamento enquanto esposas e filhos continuam morando nas comunidades de origem. Em 1998, os assentados criam a Associação Comunitária do Assentamento Novo Horizonte (ACOPANH) e elegem o primeiro presidente, Geraldo Alves da Rocha, o Geraldim, para um mandato de dois anos. Terra conquistada, a luta agora é por moradia e custeio para a produção. Em julho de 1998, as casas começam a ser erguidas. Nos anos seguintes, projetos coletivos e ações comunitárias, de diversas áreas, reconstroem a vida das 120 famílias assentadas. Camponeses e suburbanos, que acreditaram na força da união dos sem terra, agora povoam a terra conquistada, livres da opressão do latifúndio. O compromisso e a luta de lideranças comunitárias, bem como, as mulheres e homens comprometidos com a consolidação da reforma agrária são fundamentais para o desenvolvimento político e social de Novo Horizonte. Ainda que alguns assentados tenham se acomodados e se recusem a participar das lutas a favor dos avanços do assentamento Novo Horizonte, todas as famílias usufruem dos benefícios conquistados pela associação comunitária. As conquistas da comunidade são coletivizadas como no princípio da formação do
assentamento. Hoje, 16 anos após a imissão de posse da terra, Novo Horizonte continua organizado em 12 grupos de 10 famílias, o que facilita as decisões e o trabalho coletivo. As instâncias políticas ainda seguem o modelo de organicidade do MST. Os problemas e desafios inerentes à vida comunitária são discutidos na Reunião da Coordenação Geral, que ocorrem sempre às quintas-feiras. A Direção da ACOPANH e cidadãos interessados pelas questões a serem debatidas na ocasião também são convocados a participar. O que não se resolve na reunião é encaminhado para as reuniões dos núcleos de base, logo no dia seguinte. As decisões tomadas nos núcleos são levadas para aprovação na Assembleia Geral Ordinária, realizada no primeiro sábado de cada mês. Da desapropriação da terra, em julho de 1997, aos dias atuais, 120 famílias de trabalhadores rurais sem-terra tentam recomeçar a vida em Novo Horizonte. São assentados, filhos de assentados e agregados. Todos reconstroem sonhos e projetos de vida. Abandonam as práticas individualistas e assumem novos valores, novas formas de cultivar a terra e de viver em sociedade. Depois de ocupar e resistir, é hora de produzir, como diz o grito de ordem tantas vezes exclamado nas primeiras lutas da comunidade. Produzir alimentos de qualidade, produzir remédios, produzir normas de convivência, produzir cultura e conhecimento. Ocupando o latifúndio do saber Atualmente, o Assentamento Novo Horizonte permanece com 120 famílias assentadas, totalizando 600 pessoas. Após 16 anos de formação da comunidade, estima-se que um terço da população adulta e idosa é analfabeta. Entretanto, a semente da luta pela ocupação do latifúndio do saber foi plantada um mês após a conquista definitiva da terra, em janeiro de 1998. 29
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Desde então, Novo Horizonte tem sido beneficiado por diversos projetos de escolarização de jovens e adultos, das mais variadas parcerias: Alfabetização Solidária, Brasil Alfabetizado, BB Educar, Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e Educação de Jovens e Adultos (EJA/Prefeitura Municipal), entre outros. Tudo começa no final de dezembro de 1997, poucos dias após a desapropriação da fazenda que deu origem a Novo Horizonte. Na ocasião, quatro assentados são convidados para participar do Curso de Capacitação dos Educadores de Jovens e Adultos do MST no Assentamento Lagoa do Mineiro, no município de Itarema-CE. O curso aconteceria no período de 5 a 15 de janeiro de 1998. Na época, a maioria dos jovens e dos adultos da comunidade tinha baixo nível de escolaridade. Aos interessados em participar do Curso de Capacitação de Educadores exige-se que tenham cursado pelo menos as cinco primeiras séries do Primeiro Grau. Por isso, Josefa Acácio (Dona Zefinha), Raimundo Aristeu, Elidiane Albuquerque e José Mota são escolhidos em assembleia geral para receber a formação pedagógica para alfabetizar os camponeses da comunidade. Com turmas em assentamentos de 32 municípios do estado do Ceará, o curso de Alfabetização de Jovens e Adultos nos Assentamentos de Reforma Agrária teria duração de 26 semanas e carga horária de três horas diárias. O projeto se consolidara, a partir do acordo firmado entre Governo, sob a administração de Tasso Jereissati, Secretaria da Educação Básica do Estado do Ceará e o Movimento Sem Terra, representado pela Associação Nacional da Cooperação Agrícola (Anca). Em todo o estado, as aulas de alfabetização de jovens e adultos iniciam no dia 16 de fevereiro de 1998. Em Novo Horizonte, é tamanha a esperança dos trabalhadores rurais. Não precisariam
mais “meter o polegar” na tinta azul para “assinar” os livros de atas e de presença nas assembleias, tão corriqueiras após a criação da ACOPANH. Empolgados com a missão de reduzir o analfabetismo na comunidade, sem ter dimensão da complexidade do processo de alfabetização de jovens e, principalmente, de adultos e idosos exaustos após o dia de labuta sob o sol escaldante, alfabetizadores acreditam que vencerão a primeira batalha contra o analfabetismo local. Nos primeiros dias de aula, a animação é total. Enquanto a criançada brinca pelos arredores dos galpões, pais e mães de família se encaminham para o galpão de reuniões ou alpendre da secretaria da Associação. Mais importante que levar caderno e lápis é não se esquecer da cadeira, porque ainda não há cadeiras no local. Nas reuniões e assembleias, homens e mulheres sentam-se no piso morto do galpão, mas para estudar é preciso sentar de forma mais confortável. Diariamente, os jovens educadores elaboram o plano de aula, completinho, conforme aprenderam na capacitação: Mística na acolhida, memória da aula anterior, retomada da prática (dever de casa), motivar o novo (introdução de novos conteúdos), atividades de classe, assinatura do caderno de frequência e avaliação diária. Fundamentada nas concepções teóricas e metodológicas de Paulo Freire5 e Emilia Ferreiro6, a metodologia adotada nas turmas de alfabetização relaciona os conteúdos curriculares às experiências de vida e visão de mundo dos camponeses. A interdisciplinaridade e a pregação de valores morais e éticos, como responsabilidade, honestidade e lealdade favorecem o diálogo e a interação entre os educandos e o educador. A leitura de mundo precede a leitura da palavra escrita. As palavras geradoras7 conduzem o processo de alfabetização. 31
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Uma vez por mês, a coordenadora de turmas visita a sala de aula e observa a desenvoltura dos educadores aplicando a metodologia proposta no curso de alfabetizadores. – Eu faço o plano de aula todos os dias, em folhas de papel ofício. Começo a aula com uma mística, cantamos músicas do Movimento... Faço dinâmicas, brincadeiras. Depois tem a memória do dia anterior, o dever de casa, o motivar o novo, quer dizer, a atividade de classe e, no final, a avaliação do dia. A gente transforma a nossa realidade em palavras e temas geradores. – descreve Dona Zefinha.
terra para cultivar saberes, em escolas rurais ou urbanas. Mas, das 13 professoras de Novo Horizonte, que hoje trabalham na rede pública municipal de ensino, nove começaram sua trajetória educacional como alfabetizadoras de jovens e adultos. Descobriram a vocação do magistério – que casou com a facilidade de obter um emprego próximo de casa – ensinando o abecedário para trabalhadores rurais adultos e idosos. “Como não tem outro trabalho por aqui, o jeito é ser professor.” é o que se ouve com frequência, tanto em Novo Horizonte quanto em outras comunidades do município, por alguns educadores de jovens e adultos e professores da rede pública municipal, frustrados com os desafios do ofício. Porém, há aqueles que amam o que fazem, por isso se comprometem, estudam e se aperfeiçoam. Dedicam-se inteiramente ao ato de educar, de alfabetizar, formar crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. É a vida de três destes educadores comprometidos que apresentamos neste livro Após as primeiras turmas de alfabetização de jovens e adultos chegar à comunidade, nos anos de 1998 a 2001, 30 agricultores analfabetos, aproximadamente, deixaram de aplicar o polegar nas atas das assembleias e em documentos da associação. Como uma criança que aprende a desenhar as letras do alfabeto, imprimiam no papel os sinais gráficos do próprio nome. Mas, ainda hoje, há aqueles que não desenvolveram sua assinatura, embora tenham frequentado turmas de alfabetização para adultos. Nos últimos anos, os projetos de escolarização de jovens e adultos em Novo Horizonte não conseguem alcançar os mesmos resultados observados nos primeiros anos de assentamento. Poucas pessoas estão sendo alfabetizadas – em média, uma por turma. Os educandos com mais de 40 anos queixam-se de cansaço, da dificuldade de enxergar, de dores de cabeça e, desmotivados, evadem da sala de aula. É comum alguns educadores se frustra-
*** Neste ano de 2013, há 23 educadores no Assentamento Novo Horizonte atuando dentro e fora da comunidade. Todos do sexo feminino. São 13 professoras de educação infantil e ensino fundamental – a maioria ainda cursando licenciatura. Quatro jovens com nível médio trabalham na educação suplementar de crianças no Centro Educacional Paulo Freire, mantido pela Associação Amigos do Brasil (Associazione Amici del Brasile Onlus)8. E em menor parte, existem as educadoras sem formação acadêmica, meninas jovens que se lançam como alfabetizadoras dos projetos de escolarização de jovens, adultos e idosos, porque não veem uma oportunidade de trabalho melhor dentro do assentamento. Há, também, alguns jovens, aspirantes a professor, que, voluntariamente, dão aulas de preparação para provas de vestibular, Enem e concursos públicos. Além de monitores da biblioteca comunitária que trabalham com seminários de leitura, oficinas de literatura e atividades ligadas à educação infantil. Recentemente, alguns professores abandonaram o assentamento porque não precisavam mais de terra, mas de escolas onde pudessem exercer a nova profissão. Assim, deixaram de cultivar a 32
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rem logo nos primeiros meses dos projetos de alfabetização ou de EJA, devido à falta de perspectivas de aprendizagem da maioria dos educandos e à baixa frequência em sala, mas, não abrem mão da turma por questões financeiras. Por isso, não é fácil encontrar um adulto que declare ter aprendido realmente a ler e a escrever nesses últimos anos. Hoje, sem insistência, poder de persuasão ou amizade, dificilmente se consegue formar uma turma de alfabetização de pessoas adultas em Novo Horizonte. Aqueles, que já sabem ler e escrever razoavelmente, acreditam já saberem o suficiente. Quase todos os assentados analfabetos descreem de suas potencialidades de aprendizagem, por isso, não têm interesse em participar dos novos projetos de escolarização de jovens e adultos que chegam à comunidade. Na maioria das vezes, matriculam-se nas turmas de alfabetização ou de EJA com o propósito exclusivo de garantir um “empreguinho” para um filho ou um amigo. Assim, na hora de formar uma turma, o futuro educador procura vizinhos, parentes e pessoas com quem tem afinidade para matricular-se na turma que irá assumir, porque o número de pessoas realmente interessadas em estudar não é suficiente para formar uma turma com 12 ou 20 matrículas. Desse modo, meia dúzia de educadores comprometidos com a educação dos moradores da comunidade desdobra-se ao máximo para manter a turma funcionando, para alfabetizar seus vizinhos, parentes e amigos. Utilizam uma metodologia participativa com base no diálogo, introduzindo novos conteúdos partindo dos conhecimentos e experiências dos educandos; estimulam a presença dos educandos com sorteios, bingos, festinhas comemorativas, lanches. Visitam-nos quando faltam mais de duas vezes consecutivas e levam-lhes atividades para recuperar as aulas perdidas. E ainda assim, nem sempre têm o resultado que esperam, porém, esses educadores, minoria na comunidade, não se acomodam, não perdem o entu-
siasmo, porque, embora os educandos permaneçam ignorando as regras da escrita alfabética ao término do projeto de alfabetização, sabem que eles adquiriram outros conhecimentos importantes para a vida em sociedade. Portanto, apesar das contrariedades e dos fracassos das iniciativas de erradicação do analfabetismo no Assentamento Novo Horizonte, todos os camponeses, alfabetizados ou não, reconhecem que a participação nas turmas de educação de jovens e adultos é significativa para seu desenvolvimento pessoal, social e cultural, não apenas para enriquecer os conhecimentos adquiridos na infância ou juventude. Porque, ainda que não aprendam a ler palavras, a escrever seus pensamentos, juntos, no diálogo mediado pelo educador em sala de aula, aprendem a ler o mundo. Aprendem a dizer o que pensam, a transformar a realidade. Aprendem a construir o futuro que desejam para si e para as gerações futuras.
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Os descaminhos da Educação de Jovens e Adultos Desde 1998, quando foi desapropriado, o assentamento Novo Horizonte, no município de Tururu-ce, recebe vários projetos de educação de jovens e adultos: Alfabetização Solidária, Brasil Alfabetizado, 1º Segmento/Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), entre outros. Entretanto, não é fácil encontrar um adulto que assuma ter sido alfabetizado nestes últimos anos. Ainda é muito comum o uso de impressões digitais nos documentos da associação comunitária, inclusive por pessoas cujo nome consta em listas de matrículas dos projetos Brasil Alfabetizado e Alfabetização Solidária. Percebe-se que o funcionamento de turmas de EJA na comunidade não tem resultado em avanços significativos para acabar com o analfabetismo dos agricultores da comunidade. Pode-se comprovar que muitos educadores não têm compromisso com a causa da alfabetização dos indivíduos que não foram alfabetizados na infância ou juventude. Educadores afirmam, sem pudor, que o importante é estar em sala de aula todos os dias e receber a remuneração ao final do mês. Problemas frequentes, como falta de material didático, atraso na remuneração dos educadores, impontualidade (vez por outra alegam algum pretexto para não dar aula), falta de seriedade e compromisso com o exercício da função de alfabetizador são comuns em Novo Horizonte.
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Verifica-se, por parte dos coordenadores desses projetos, certo desleixo e indiferença às contradições nas formações das turmas. Existem pessoas matriculadas simultaneamente em projetos distintos, estudantes do ensino médio ocupando vagas que se destinam a não alfabetizados, irregularidades no preenchimento da frequência dos educandos e constante evasão escolar. Observa-se que as causas da evasão escolar vão além dos fatores de ordem social, política e econômica: práticas didáticas ultrapassadas, a falta de planejamento e de metodologias adequadas, comprovadamente, desestimulam os estudantes. Em Novo Horizonte, verifica-se que quando o projeto é concluído, turmas formadas por 20 matrículas se resumem a três ou quatro educandos, geralmente parentes do educador. De fato, os recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), destinados às Políticas Públicas de Educação de Jovens e Adultos, são insatisfatórios. É consenso de todos que tais investimentos devam ser aplicados com mais rigor. As secretarias de educação municipais e estaduais, por vezes, atuam inoperantes na administração e fiscalização dos projetos de alfabetização. Não se sabem, também, quais os critérios estabelecidos para selecionar os educadores, cujo desempenho dificilmente é avaliado, ainda que haja capacitações permanentes. Tudo isso é preocupante. Afinal se os projetos de EJA não atingem seu objetivo intrínseco – a erradicação do analfabetismo – os investimentos das ONGs e do Governo se converterão a mero desperdício de dinheiro. 37
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CAPÍTULO 2 OS OFÍCIOS DE DONA CILENE Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (Paulo Freire).
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em pressa, ela olha o relógio de pulso, faltam poucos minutos para os vizinhos começarem a chegar. Com os cabelos ainda molhados, pingando sobre a malha preta do vestido, leva as cinco cadeiras empilhadas para o terreiro, arrumam-nas em semicírculo. Inclina-se sobre as poltronas de plástico brancas, limpando-lhes a poeira com um pano de prato. Ao erguer o corpo pequeno e robusto, fita o céu estrelado. Tranquiliza-se: não vai chover hoje à noite, não antes das 21h. Volta para a cozinha. O cheiro de café quentinho dissipa-se pelo recinto familiar. A filha acabara de coar o café e enchia as duas garrafas térmicas. Hoje, haverá suco com bolacha. Mas os adultos não dispensarão o “cafezinho nosso de cada dia”. Passa das sete horas da noite. É comum o atraso. Os homens chegaram há pouco tempo do roçado, estão cansados. Capinaram o dia todo na expectativa de colherem o milho verde já no mês seguinte. As mulheres esperam o baião secar para vir à aula. As crianças, acompanhantes ou “substitutas” dos pais, não perderão a merenda preparada por Mônica, a caçula de Dona Cilene. Chegam correndo e se apossam das poucas cadeiras que cercam a apertada varanda. A anfitriã pede calmamente que desocupem as cadeiras. Há espaço para a meninada na calçada, nos parapeitos. Aos poucos, os vizinhos vão chegando e sentando. Não há assento para todos. Mas a dona da casa não tem vexame, pede a filha para ajudá-la a trazer as cadeiras de madeira da mesa da cozinha. Todos se acomodam como podem para mais um dia de estu38
Dona Cilene na juventude | Foto: Arquivo Dona Cilene.
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dos. A sala de aula é no terreiro. Ninguém reclama da estrutura do ambiente escolar. É a mesma de tantas outras turmas de alfabetização de jovens e adultos que participaram. A educadora reconhece que o espaço é inadequado. Poderiam estudar no Galpão: salão espaçoso, lâmpadas fluorescentes, ventiladores. E com a sobra das 120 cadeiras compradas para cada assentado acomodar-se nos dias de assembleia, até as crianças teriam onde sentar. Mas Dona Cilene tinha suas razões para transformar o terreiro de casa em sala de aula, os próprios alunos decidiram onde queriam estudar. Quanto mais próximo, melhor. Ela sabia como convencer os coordenadores de turmas: – Eles só vêm estudar aqui, porque é perto de casa. O que eu vou fazer no Galpão? Ficar sozinha lá? Olha, se você vai pra uma sala de aula e não tem aluno, você não pode fazer o seu trabalho. Noite fria de março, homens e mulheres camponeses se reúnem na casa 09 de Vila Nova, que junto com as Vilas Central e das Carnaúbas formam o assentamento Novo Horizonte. Dona Cilene, a educadora, prepara-se para entrar em ação com o plano de aula preparado no finalzinho da tarde. – Vamos começar?! Todos ficam de pé para a oração do Pai Nosso. Entusiasmados, esperançosos. É assim que se sentem os camponeses da Vila Nova, na segunda semana de março de 2006. Matriculados na turma de Dona Cilene, nem todos pretendiam, de fato, estudar. Mas aceitaram o convite. “E por que não? Se não aprendessem a ler, pelo menos estariam ajudando a amiga a manter o trabalho.”. Entregaram seus documentos à vizinha para serem xerocados, dados copiados e matriculados como alfabetizandos da Alfabetização Solidária (Alfa Sol). No primeiro dia de aula, gostaram. Convidados a voltar no dia seguinte, não podiam recusar. A aula fora divertida, dinâmica, nem tiveram que copiar nada no caderno. Vieram o segundo dia,
o terceiro, o que restava da semana. Na segunda semana, o entusiasmo era o mesmo. Tinha até merenda, um atrativo que não se via em outras turmas. Mulher baixinha, morena forte, Dona Cilene é uma catadora de desafios. Não se queixa das dificuldades, busca alternativas. Ousada, gosta de experimentar o novo, adaptar-se às exigências do presente. Assumir uma turma de alfabetização de jovens e adultos é uma experiência nova que se somará a outras de igual importância na sua trajetória educacional. Depois de sete anos sem administrar uma sala de aula, a senhora Cilene recebe a atribuição de alfabetizar adultos: seus amigos, vizinhos, companheiros de assentamento. Uma oportunidade de aprendizagem conjunta, de novas práticas, de socialização de saberes. Ensinar e aprender. Voltaria a fazer o que mais gostava dentre várias tarefas que desempenhava para o sustento do lar e para o desenvolvimento da comunidade. Foi por escolher fazer parte desta nova comunidade de trabalhadores rurais sem terra que renunciou ao ofício de professora, mas não deixou de ser educadora, não permitiu que o amor pelo ensino escapasse-lhe das entranhas. Durante dez anos, foi professora de alfabetização e educação infantil num povoado da cidade de Umirim. Abriu mão do emprego para vir morar no Assentamento Novo Horizonte, em Tururu. Com o salário atrasado, pediu demissão em dezembro de 1999, ficando sem receber pelos últimos oito meses trabalhados. Por uma década, conciliou a agricultura com o magistério. Nos anos dedicados à educação infantil, alfabetizou sobrinhos, irmãos, filhos de amigos e de moradores próximos. Alfabetizou todos os filhos. Porém, não consegue esquecer-se de sua maior frustração: – Alguns dos meus filhos não tiveram o mesmo interesse de estudar que eu tive. Mas não foi por falta de incentivo. A única 41
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coisa que podemos deixar para os filhos é a educação. Dos meus oito filhos, apenas os dois mais novos concluíram o Ensino Médio. Os outros deixaram de estudar para trabalhar, porque onde eu morava não tinha trabalho para eles. E nem aqui.
aplicada, a primogênita de Seu José aprende a ler e a escrever soletrando, repetindo as partículas fonêmicas da carta de ABC que ganhara de presente dos pais. Antes de interromper os estudos, aos 13 anos, frequenta três escolas. A partir da 2ª série, começa a estudar num colégio, a cerca de 1 km de casa. Agora sabe ler, não precisa repetir maquinalmente o “ta, te, ti, to, tu” ou o “cra, cre, cri, cro, cru”... A professora é exigente. É preciso ler, reler e ler de novo, estudar a lição, decorá-la. Tarefas simples para uma aluna esforçada. Porém, as tarefas difíceis aparecem gradualmente. Após a lição, vem o estudo do vocabulário. A professora lista no quadro as palavras desconhecidas: – Tá aqui. A lição de amanhã é essa. Vocês vão ter que responder às minhas perguntas. Amanhã, vamos ver quem estudou. E quem não estudar... Já sabe! E os alunos sabem bem disso. Quem não aprender o significado de cada uma daquelas palavras não tem como fugir da palmatória na próxima aula. Por isso, Cilene estuda a lição, direitinho. A palmada pode ser um incentivo coercivo para ela, pois entende que precisa se esforçar. E se esforça! Não teme a palmatória pela dor que esta pode causar, mas fica assombrada com o medo de errar. Passado o momento de tensão, a menina vai brincar com os colegas, correndo pelos arredores do colégio. Este é o melhor momento, o tempo que Cilene tem para se entreter. Como filha mais velha, é obrigada a cuidar dos irmãos menores, enquanto a mãe costura ou acompanha o marido à roça. É assim com todas as meninas das redondezas. Em casa, a educação é rígida, o respeito aos pais se traduz em obediência. Dona Maria é firme ao conciliar a educação que os filhos recebem na escola com os ensinamentos de bons modos, com a prática de valores sociais que auxiliem na formação integral de seus rebentos. Costuma dizer aos filhos que existe hora
*** Depois de ter vivido mais de meio século no campo, na terra fresca, Dona Cilene ainda cultiva o sonho de atuar como protagonista da educação do campo. Termo desconhecido por ela, mas vivenciado em suas práticas diárias, na sala de aula. Gosta de participar da vida política da comunidade, entende que a educação das pessoas deve estar atrelada aos elementos que compõem o contexto social em que estão inseridas. Não foi preciso que nenhum teórico lhe explicasse isso. Aprendeu que a educação formal de um indivíduo também se dá através de experiências vividas, conhecimentos adquiridos coletivamente, incorporados pela cultura. Educadora esquecida, professora demitida, poucos sabem os caminhos que Dona Cilene percorreu. As barreiras que teve de ultrapassar para materializar o seu sonho de educadora infantil, educadora popular. Alfabetizadora de jovens e adultos. Filha do casal de agricultores Maria Rodrigues dos Santos e José Rodrigues Gomes, Cilene nasceu Francisca Gomes Paixão, no dia 06 de março de 1962, na casinha de taipa dos pais, em Pedregulho, povoado situado a 9 km da zona urbana de Umirim. Curiosa, ávida por descobertas, Cilene começa a estudar aos oito anos. A escolinha é perto de casa, na sala de estar da casa da vizinha. Conhece a cartilha do ABC e a tabuada com a vizinha professora. Depois de tanto exercitar o “método ABC, ensino prático para aprender a ler”, já decifra as primeiras palavras que a professora escreve no quadro: vida, casa, vela, pato, dado... Aluna 42
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para tudo: hora de brincar, hora de comer, hora de fazer a tarefinha da escola, hora de ajudar os pais. Porém, a hora de brincar é curta demais para uma menina em tenra idade. Então, a estudante aproveita muito bem o tempo do recreio: “trancilim”, pula corda, pega-pega são as brincadeiras favoritas da molecada antes e no intervalo das aulas. Cilene tem o desempenho e o comportamento que todo professor almeja em seus alunos. Amável com a professora e os colegas, ajuda-os a fazer os exercícios, tenta explicar-lhe o conteúdo incompreendido. Não apreende os cálculos matemáticos facilmente, por isso se esforça mais, estuda mais. Mesmo não aprendendo a efetuar com precisão as operações matemáticas de divisão e multiplicação, ela assimila as noções básicas da disciplina que lhe seriam úteis anos mais tarde. Quando não há mais estudo para a filha nas proximidades de casa, Dona Maria a transfere para outra escola, a 3 km de Pedregulho. Cilene e os irmãos passam a sair de casa ao meio dia. Caminham por quase uma hora até chegar à escola. Os pais, Seu José e Dona Maria, cultivam a terra, extraindo dela a subsistência da família de dez pessoas. Comprar todos os materiais escolares de que os filhos precisam é uma necessidade não saciada. Entretanto, sacrificam a renda familiar para presentear a primogênita com um livro didático, que ela preservaria por toda a vida. Adolescente, Cilene acorda cedo para ir ao riacho lavar roupas ou buscar água. Ao aflorar no horizonte os primeiros raios solares, Cilene põe uma cabaça em formato de pera na cabeça, sobre uma rodilha de pano velho e segue rumo ao poços cavados na terra prestes a esturricar. Em passos alargados, sobre os pedregulhos do caminho, apressa-se para chegar logo em casa, aí se desequilibra e... splaaft! A cabaça se divide em cacos pelo chão, derramando o líquido tão escasso. Ao chegar de mãos vazias, a
surra é certa. De tantas brincadeiras que as crianças camponesas se ocupam, uma das preferidas de Cilene é brincar de escolinha debaixo de um cajueiro. Ser a professora das amigas do povoado. Entretenimento de igual prazer para a estudante é brincar de casinha. Os irmãos vão ao mato, cortam quatro varas grossas, enfiavam-nas no chão arenoso, formando os pilares da casa. O teto é coberto com galhos e ramos verdes. O chão é limpo com vassoura de palha seca, está construída a casinha. Só restam as panelas, o fogo e o principal: a comida. Isto a irmã mais velha providencia “pegando emprestado” na casa da mãe. Como toda menina na época, Cilene também adora brincar de boneca. Dona Maria, costureira e bordadeira, confecciona bonequinhas de pano para as filhas. Mas as meninas, teimosas, preferem uma boneca à sua maneira. Boneca de pano não pode comer, tomar banho. Então, catam um sabugo grosso de espiga de milho, amarra-lhe tiras de vários tecidos coloridos e montam uma verdadeira boneca camponesa. Ao concluir a 5ª série, Cilene interrompe os estudos. Para continuar na escola, precisa se deslocar para outra escola, muito distante do povoado onde mora. O projeto de vida se inviabiliza. Desde logo intui o quanto sentiria falta do ambiente educacional. Seus irmãos também cessariam os estudos em pouco tempo. Apenas uma irmã concluiria o então 1º grau (hoje, ensino fundamental). *** Fase de encantamento, afloração de sentimentos pueris; período de criatividades e descobertas. Infância. Longa para alguns seres, em tantos outros, interrompida. A puerilidade é ultrapassada pela adolescência. O tempo flui incessante, implacável pela 45
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órbita terrestre. A vaidade, as paixões, os anseios irrompem no coração do indivíduo em mutação. A menininha de Dona Maria vira mocinha. Cilene cresce. Começa a sair à noite para as novenas do mês de maio. Participa dos festejos juninos, torna-se madrinha, maninha e prima ao pular a fogueira de São João. Diverte-se brincando de “Cai no poço” com as amigas e os rapazes de Pedregulho e Escondido. Aos sábados, não perde as tertúlias na casa do tio. Remexe-se toda ao som da vitrola, tocando um disco de forró. Arrasta os pés pra lá e pra cá, sem cansar. Numa dessas noites de tertúlia, Cilene conhece Didi, filho de Maria Pascoal, muito conhecida na comunidade de Açudinho. Rapaz alto, magro, pele clara, porém, avermelhada pela recepção contínua de sol nos dias de labuta na terra. Didi não oscila em pedir a filha do Seu José em namoro. Pouco mais de um ano, cansado de andar léguas a pé para manter o convívio com a namorada, Didi decide atenuar a distância e efetivar o relacionamento: pede Cilene em casamento. No dia 15 de setembro de 1979, aos 17 anos, Francisca Gomes dos Santos casa-se com Expedito Alves Paixão, e troca o sobrenome da mãe pelo do marido. Didi constrói uma casinha de barro no terreno que a esposa ganhou de herança da avó, próximo à residência da sogra, onde morariam por 18 anos, até se mudarem para o assentamento Novo Horizonte. A prole começa a se formar. Na casinha de três cômodos, iam se acomodando em redes. Depois de todos os filhos nascidos, eram dez pessoas espremidas no lar do casal de agricultores. Em 1988, a senhora Cilene tem a oportunidade de trabalhar naquilo que tanto sonhara na infância. Oferecem-lhe um emprego de professora. Luiza Ferreira, líder da comunidade, indica Dona Cilene para trabalhar na escola do Escondido, localidade adjacente.
– Mas eu só estudei até a quinta série. – ela retruca. – Não tem problema, ninguém aqui estudou mais do que isso. E você vai ensinar só o pré e a alfabetização. A senhora Cilene tem agora 26 anos, interrompeu os estudos muito cedo. Já esqueceu muito do pouco que aprendera, muita coisa se perdeu na memória. Sem a prática da escrita, leitura constante, terá que se preparar, antecipadamente, estudar os conteúdos curriculares que instruirá aos alunos. Porém, uma certeza a tranquiliza: “Pra ser uma professora é preciso estudar; se alguém vai ensinar, vai aprender também.”. Dona Cilene aceita, de imediato, o emprego. Entrega-se ao desafio. Lecionando, Dona Cilene adquire novos saberes; relembra conceitos; apreende conteúdos; procedimentos metodológicos diferentes dos que conhecera quando aluna. Reconstrói os conhecimentos ocultados na memória pelos anos dedicados exclusivamente à família. Sem formação acadêmica e nem experiência no magistério, Dona Cilene não acompanhou as mudanças ocorridas nos últimos anos no campo da pedagogia. Por isso, nas primeiras aulas ministradas, utiliza-se de conteúdos e metodologias que aprendeu quando estudava. Mas, a didática presenciada, vivida nos tempos de escola está ultrapassada, já não se permitem palmatórias, agora já não se alfabetiza soletrando C-A=CA, S-A=ZA = CASA. A participação da educadora nos planejamentos e encontros de professores em Umirim fornece-lhe subsídios para consolidar suas ações didáticas e logo se adapta às novas práticas pedagógicas da década de 1980. O colégio Francisco Ferreira Braga, na localidade de Escondido, foi construído pelos moradores da comunidade, possui duas classes, numa acontecem as aulas da escola e, na outra, a creche Casinha Feliz. Na sala destinada à escola, Dona Cilene dá aulas para o pré e a alfabetização, em turma mista. Enquanto isso, os 47
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filhos pequenos – que ainda não frequentam a escola – ficam com Carlene, a filha mais velha. Os maiores acompanham a mãe ao colégio. Ao final do ano, a maioria dos alunos de Dona Cilene é aprovada para a 1ª série; já sabem ler palavras, soletrando. Alunas escrevem relatos, cartas, frases sobre a experiência de aprendizagem e convivência com a jovem professora. Como não se emocionar? Como inibir um sorriso de contentamento transmutar-se em lágrimas a descer pelo rosto? Agradecimentos, promessas de saudades vindouras... A carta da menina Adriana comove, reforça o desejo de congraçar sua essência de lavradora ao ofício de professora: “Tia Cilene, aprendi a ler e a escrever com a senhora!”. Durante os próximos cinco anos, a professora aprende a combinar a agricultura de subsistência, cultivo em terra alheia, com a efetivação do sonho de educar. Alfabetiza crianças de Escondido e comunidades circunvizinhas. Em 1993, a prefeitura de Umirim lança um concurso público para professores da rede municipal de ensino. Há uma única vaga destinada à escola. Dona Cilene não hesita em participar do concurso, quer assegurar a efetivação da nova profissão. Porém, seu desempenho na prova, coloca-a em 2º lugar. Erinalda Ferreira, neta de Luíza Ferreira, é classificada em 1º lugar para professora da escola. Então, formam-se duas turmas mistas de alunos, uma no período da manhã e outra à tarde, abrangendo, assim, todas as séries escolares e alunos da escola. A conjuntura muda. Dona Cilene é obrigada a se afastar da escola. O futuro é incerto. Outras professoras reprovadas no concurso continuam trabalhando normalmente. Mas Dona Cilene é afastada, não há mais espaço para ela na escola. Por aproximadamente dois meses, aguarda uma posição do governo municipal. Será que sua carreira de professora chegou mesmo ao fim? Essa ideia lhe parece assustadora.
Na tarde de quinta-feira, 10 de fevereiro de 1994, Dona Cilene recebe, então, a visita inesperada de Valda Sales Teixeira, viúva do ex-prefeito João Alexandre Teixeira, e de Isabel Soares, responsável pelas creches do município. – Estou aqui para lhe propor um acordo. A senhora quer continuar trabalhando de professora, não quer? – pergunta a ex-primeira dama. Era o que mais desejava a jovem educadora. Sentia falta das crianças, das manhãs vividas em comunhão com os educandos. Fazendo o que gostava de fazer, conseguia dinheiro para comprar o material escolar para os filhos, chinelos, roupas e gêneros alimentícios que não produziam no roçado. Assustada, esperançosa, assente. – Pois, então, amanhã, a senhora vai à Uruburetama dar baixa na sua carteira de trabalho. A partir de agora, vai trabalhar na creche, de serviço prestado. Não se preocupe, a senhora vai receber todos os seus direitos. E ainda vai continuar empregada – assegura a senhora Valda. Dona Cilene aceita o acordo e, no dia seguinte, viaja para Uruburetama. Paga R$ 40,00 pela rescisão do contrato com a Prefeitura Municipal de Umirim. O salário de professora, mesmo com carteira assinada, não era suficiente para reformar e ampliar a moradia, tampouco construir uma casa melhor. O piso, de barro amassado, era irregular e as paredes, sem reboco. Quando bebês, os filhos comiam os bolões de barro que caíam da parede... A reforma do casebre fica para depois. Com o dinheiro que ganha do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do Seguro Desemprego – uma dinheirama para a família – Dona Cilene compra os bens de consumo desejados desde a época do casório: um fogão a gás para fazer o mingau dos meninos, uma cama de casal, mesa com cadeiras e um guar49
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da-roupa grande para que não fosse mais necessário guardar as roupas em caixotes de papelão. Também adquire mantimentos de sobra, incluindo os alimentos preferidos dos filhos. Todos serão, enfim, bem alimentados nos próximos dias.
Certo dia, ao repartir a merenda para suas crianças, Dona Cilene se depara com uma aluna da escola, arrimada na ombreira da porta de sua sala, com olhos desejosos, a observar a meninada da creche deglutindo bolacha com suco. Com a diligência de uma mãe, a educadora oferece-lhe uma mão cheia de bolachas. A estudante volta para a classe sorrindo de boca cheia. Num instante, Erinalda dirige-se à Dona Cilene e lhe solta descomposturas reprovando a atitude da professora. – Só os alunos matriculados na Casinha Feliz têm direito a essa merenda. Essa bolacha que você deu pra minha aluna, na verdade, é dos meus filhos, que eu não mando pra creche. Eles é que deveriam estar comendo essa merenda – argumenta Erinalda. – A senhora, Dona Cilene, não sabe administrar nem a merenda escolar que tá na sua responsabilidade! – A menina tava com fome. E eu não sovino comida a ninguém. Se você não manda seus filhos pra creche, não pode reclamar se eles não comem – responde, calmamente, Dona Cilene. Cenas como essas são comuns. Porém, após esse incidente, Dona Cilene hesita em permanecer trabalhando ali. Dias depois, procura a Secretaria de Educação do município e manifesta seu descontentamento causado pela impertinência da professora da escola; e a vontade de se destituir da função na Casinha Feliz. Porém, as circunstâncias estão a favor da educadora, que é convencida a permanecer na creche, enquanto Erinalda recebe advertência da secretária. Sempre solícita e solidária com os vizinhos, Dona Cilene é um exemplo de humildade e presteza. De religião Evangélica, é uma mulher inspirada pela fé num Deus Todo poderoso, cuja ação divina, guia seus passos na solidariedade para com seus semelhantes. – Para você conseguir alguma coisa na vida tem que ter humildade e fé em Deus. Primeiramente, fé em Deus. É preciso ter
*** Dona Cilene assume uma turma de reforço escolar na creche Casinha Feliz. Trabalhando de serviço prestado, tem o salário reduzido quase pela metade, perde o direito a salário maternidade, salário família, décimo terceiro. Entretanto, cada vez mais dedicada, paciente e afetuosa com as crianças, não relaxa no cumprimento dos deveres de transmitir conhecimentos, compartilhar aprendizados, de preparar crianças para decodificar os signos da linguagem escrita, sobretudo, para uma vida harmônica em sociedade. Toda manhã, os filhos a acompanham até a creche. É lá que eles merendam e almoçam. Na creche, a merenda é constante, ao contrário da escola Francisco Ferreira. Estranhamente, os dois estabelecimentos educacionais funcionam no mesmo prédio. Porém, felizes são aqueles que estudam na Casinha Feliz, onde a alimentação é regular, farta e distribuída com uma dose de afeto por Dona Cilene. Quando falta merenda na escola, os estudantes comem com os olhos aquilo que os amigos saboreiam do outro lado. Frequentemente, Erinalda, única professora da escola, implica com a educadora da creche, fazendo-a sentir-se desconfortável, incapaz, reprimida. Embora magoada com as atitudes desdenhosas da colega, sem entender as motivações dela, Dona Cilene não perde a compostura, é uma educadora, deve dá exemplos aos educandos. 50
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fé e amar ao próximo como a si mesmo. Porque Deus é tudo na nossa vida – infere a educadora. No final da década de 1990, Dona Cilene é designada pelos pastores da Igreja Presbiteriana de Fortaleza para fazer um trabalho social na comunidade: ministrar aulas de reforço para as crianças. Atendendo os estudantes em casa, ganharia R$ 70,00 por mês de ajuda de custo. Aceita o convite, prontamente. Apesar da harmonia com a natureza, a tranquilidade e o companheirismo no campo, a vida pode ser difícil. Durante o inverno, os camponeses apanham água para beber em pequenas cacimbas, buracos cavados no chão, perto de casa. Porém, no período de seca, a comunidade é abastecida pelo carro pipa que despeja o líquido no poço de um morador, a 2 km da casa de Dona Cilene. Pouca água para muitos sedentos. É preciso correr se não quiser ficar sem água. Para lavar roupas a dificuldade ainda é maior. Precisam caminhar até uma légua para encontrar água e, sem alternativas, Dona Cilene e o marido atravessam de bicicleta o município vizinho para lavar roupas no Rio Mundaú, na divisa dos municípios de Tururu e Itapipoca. Assim, ainda que trabalhasse na Creche, pela manhã e à tarde, em casa, com o reforço escolar, não ganhava o bastante para suprir as necessidades básicas da família. Em terras arrendadas, Didi e os filhos mais velhos cultivam mandioca, jerimum, milho, feijão e outras leguminosas em troca de uma porcentagem considerável da colheita, entregue ao proprietário. No entanto, devido à irregularidade e escassez das chuvas, a produção é insignificante para alimentar os oito filhos. Para complementar a renda, a professora se dispõe a revender produtos da Avon. Nos horas de folga, sai às residências das amigas para oferecer produtos de perfumaria e higiene pessoal.
Final dos anos 1990. Ainda não há energia elétrica em muitas comunidades rurais do interior do Ceará, tampouco água encanada. Pedregulho é uma delas. À noite, as casas são iluminadas pelas chamas esmorecidas da lamparina à base de querosene. A água, cada vez mais escassa, encontra-se a quilômetros de casa. Transporte particular é luxo. Quem não possui bicicleta, desperta antes das 4h da manhã e anda uma légua e meia a pé para chegar à zona urbana do município de Umirim. No entanto, os moradores não pretendem abandonar a comunidade que ajudaram a construir; onde nasceram, criaram suas famílias, absorveram e adaptaram a cultura de seus antecessores. Pertencem a esse lugar. Ainda que as dificuldades do dia a dia no campo sugam, gradualmente, as suas energias vitais, tornando-os agricultores precocemente exaustos, não alimentam o desejo de irem à procura de novos horizontes. Exceto, Seu Didi e a esposa. O casal almeja garantir um futuro menos penoso para os filhos. Esperam que concluam os estudos e, se preferirem a labuta na terra, que esta seja própria. Sonham com um lugarzinho no campo, com água em abundância, noites mais claras e, sobretudo, terra livre. Dividir uma parte do que produzem para alguém que não cultiva a terra, não trabalha; não lhes parece justo. A paixão pela educação é um sentimento nutrido por Dona Cilene desde o tempo em que brincava de escolinha com os irmãos debaixo de uma árvore. Com desalento, afastou-se da escola para se dedicar aos filhos e ao marido. Embora a labuta diária na terra não lhe incomode, nenhuma atividade que tenha feito lhe confere maior prazer do que ensinar, transferir, permutar, compartilhar suas experiências e saberes. Finda o ano de 1999, o século XXI se aproxima. Dona Cilene, aos 37 anos, encontra-se agora diante de um dilema: Permanecer no trabalho de professora contratada, sem previsão de receber o mísero salário que atrasa invariavelmente ou se mudar de vez
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para a casa de tijolos recém-construída no Assentamento Novo Horizonte, onde a terra é coletiva, farta e fecunda. O desejo por melhor qualidade de vida fala mais alto. Ao concluir as atividades escolares referentes ao ano letivo, Dona Cilene pede demissão do trabalho e se prepara ansiosa para a mudança. Depois de 18 anos próxima aos pais, agora está de partida. É chegado o dia. Didi já está na nova casa, lavrando a nova terra. Reuniões, assembleias, trabalho coletivo o mantém ocupado em Novo Horizonte, enquanto mulher e filhos permanecem em Pedregulho. Ele bem que insistiu para que viessem antes, mas a esposa resistiu, oscilando entre a conquista da terra e o magistério. Mas agora ela está decidida. Faria uma surpresa ao marido. Freta o carro que transporta os estudantes da localidade ao centro de Umirim para levar a mudança. Vinte e um de dezembro de 1999, último dia de aula do ano. Quando o pau de arara é esvaziado de alunos, ao entardecer, dirige-se ao casebre de Dona Cilene. Todos os bens que possui são jogados na carroceria do automóvel. O filho Dodô se recusa a abandonar o seu torrão natal. Segura com força a caixa com suas roupas, impedindo que a mãe a ponha no carro. Ela toma as roupas do garoto e coloca junto da mudança. Inútil. Ele não quer ir para a terra desconhecida. A mãe permite que ele fique morando com a avó. Quando Dona Cilene se despede das amigas, o marido chega. Pega a chave da porta, abre a casa e, em silêncio, adentra o olhar pela casa vazia. Deseja que nunca precise voltar. Entre lágrimas teimosas e abraços espremidos, a família se despede de parentes, amigos e vizinhos. Desolados pela separação, porém felizes pela esperança de que o assentamento de reforma agrária lhes traga uma vida serena e exitosa, comprimem-se no pau de arara e seguem no rumo da antiga fazenda Cágado. ***
Rio perene próximo, água encanada, energia elétrica, terra fértil, acesso a transportes (linha de ônibus intermunicipal), casa de alvenaria, plantação de cajueiros no quintal, um lugar ideal para se viver no campo. Dona Cilene não se arrependera de abrir mão do sonho de ser professora em detrimento do projeto de vida na terra livre. – Lá, é um paraíso, tem água, tem terra, tem tudo o que a gente precisa. – diz, entusiasmada, para as amigas de Pedregulho. Nova terra, Novo Horizonte, a vida se renova. No entanto, Dona Cilene sente falta do calor humano, das conversas de fim de tarde com as vizinhas, dos pequenos lhe chamando: “Tia, olha aqui o meu dever, vê se tá certo”. Mas não é mulher de lamentações. Disposta a encarar novos desafios, candidata-se ao cargo de secretária da ACOPANH em janeiro do ano 2000. Eleita para um mandato de dois anos, começa a trabalhar voluntariamente nas segundas, terças e sábados, na secretaria da Associação, exercendo a função de secretária e tesoureira da adutora. Nos primeiros dias, sente-se perdida diante das atribuições que deve desenvolver. Mas, com serenidade, assegura para a família que aprenderá este ofício: – Você não nasce sabendo. Você só aprende se praticar. E eu vou aprender. Quando chega à Associação, ignora como preencher um recibo, secretariar uma reunião, elaborar uma pauta, escrever a ata de uma assembleia... Mas, aprende o necessário para desempenhar as suas atividades de secretaria-tesoureira, com o colega da direção da ACOPNH, Manoel Aristeu, ex-dirigente do MST. Durante o dia inteiro, sozinha na sede do Assentamento, espera que os assentados venham pagar a conta de água da adutora. Há dias em que ninguém aparece. Mas lá está Dona Cilene, tentando cumprir com o seu dever, enquanto a filha Edilene cuida dos afazeres domésticos. 55
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Uma vez por semana, a ex-professora viaja para Umirim. Acorda cedo. Às 6h já está à espera do Brasileiro (ônibus que faz a linha Canaã-Fortaleza) debaixo do “Cajueirão da Dona Cícera”, na Vila central. Vai estudar, concluir o supletivo do 1º Grau. Entrou no curso por orientação da Secretaria de Educação de Umirim. Embora fosse professora de educação infantil, era necessário possuir diploma de 2º Grau. Pretende terminar os estudos, fazer outro supletivo, quem sabe até uma faculdade?! Em Novo Horizonte, a acessibilidade a transportes facilitou muito a vida de Dona Cilene. Só paga R$ 2,00 por dia para ir ao município vizinho, onde estuda desde o ano anterior. A filha Mônica, que trabalha de doméstica em Fortaleza, divide com a mãe os R$ 120,00 que ganha mensalmente. Com a ajuda financeira da filha e o que arrecada revendendo perfumes da Avon, paga as despesas escolares.
– A gente tem que tirar um tempo para aquilo que é importante. Às vezes, a gente é que pensa que não dá tempo. Mas tem tempo para tudo – declara. Em meio a tantas tarefas diárias na agricultura, na secretaria da Associação, na escola, Dona Cilene reserva um tempo para praticar uma atividade prazerosa, mas humanitária. Convoca as crianças da Vila Nova para participarem de aulas de reforço em sua própria residência. Quando veio embora, trouxe para o Assentamento as três mesinhas e 12 cadeiras do projeto de reforço escolar da Igreja Presbiteriana, que desenvolvia em Pedregulho. Possui os recursos estruturais para montar a Escolinha. Porém, falta a sala. A casa é pequena, precisa de um espaço que caiba uma dezena de alunos. Dá um jeito. Improvisa. Monta a sala de aula particular sob a copagem de um cajueiro. Como remuneração, receberá a satisfação de alfabetizar outra vez. A educadora atua na tentativa de qualificar, explanar, reforçar o conhecimento que os alunos adquirem na escola do Assentamento. Porém, algumas crianças, como Patrício, Suzana, Mayara, Mariana e Jéssica ainda não frequentam a escola. Por isso, todo educando recebe atenção especial, conforme sua necessidade de aprendizagem. Para os alunos de três, quatros anos, a professora ensina as letras do alfabeto, as cores, os números. Estimula-os a desenhar, pintar, copiar. A aula inicia sempre com uma oração como o “Pai Nosso” ou outra feita espontaneamente no momento; depois vêm as músicas, as historinhas, os exercícios no caderno. Após a tarefinha pronta e conferida pela professora, a molecada desfruta do lanche doado e preparado pela professora. Sempre que possível, Dona Cilene compra algo para dar de merenda aos educandos. Escolinha particular, comunitária, mantida pelo altruísmo e amor pelo ato de educar. Ocupação divertida, no final da tarde. Tudo parecia está bem na vida da ex-professora. Mas algo
*** Revendedora, raspadeira de mandioca, criadora de galinhas, colhedora de legumes, agricultora. Dona Cilene não se opõe a exercer nenhuma atividade manual necessária para prover as necessidades básicas do lar. Em casa, todos ajudam todos, tudo o que um membro familiar adquire é compartilhado, dividido. Mas, para Dona Cilene, falta algo. Anseia sentir novamente o prazer de dar aulas. Um prazer independente do dinheiro. Um prazer de ver o sorriso de uma criança ao ser elogiada por uma tarefa cumprida, a leitura de uma frase, uma palavra redigida, um desenho colorido, pintado com força. Reconhece, porém, que apenas duas coisas são necessárias para fazer aquilo que adora fazer: tempo e disposição. Por ser um reflexo de seu estado de espírito, disposição não lhe falta. E tempo, a agricultora sabe bem como administrar: 56
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a angustia, abatendo-lhe o espírito. Nesse mesmo período, Dona Cilene se desentende com o marido. Didi sai frequentemente para beber, perde a noção, não responde por suas palavras, comete ações impensadas, frívolas, quando está sob o efeito do álcool. Mesmo com a compreensão e a insistência da esposa, não tem conseguido se libertar do vício. Magoada, Dona Cilene vai embora. Volta para Pedregulho com os filhos, decidida a não restabelecer o casamento se o esposo continuar bebendo e abusando em casa. Assim, subitamente, a Escolinha de Dona Cilene é fechada. Alguns alunos ficam sem estudar, pois não tem idade para se matricular na escola do Assentamento, Centro Educacional Agrinord. Mayara, Mariana e a prima Jéssica, as alunas mais assíduas da Escolinha, são as crianças que mais se entristecem com a partida de Dona Cilene. Pedem ajuda a um adulto e escrevem uma cartinha para a educadora, agradecendo-a pelo que têm aprendido com ela, exprimindo a saudade que sentem dela e de suas aulas. Da primeira professora não se esquece. Para uma pessoa tão serena e dedicada ao lar, a mágoa se dissolveria em pouquíssimo tempo. Em menos de um mês, Didi procura a esposa. Cara pálida, abatido, arrependido. Dona Cilene perdoa o marido e volta para casa. Porém, ele só deixa de beber anos mais tarde. De volta ao Assentamento Novo Horizonte, reativa a Escolinha. Informada sobre a possibilidade de concluir os estudos por meio de um supletivo realizado no próprio município, não perde tempo. Matricula-se no Telecurso 2000, do Programa Tempo de Avançar, da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc). Abandona o curso em Umirim, para estudar à noite, na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Luíza Bezerra de Farias, no Centro de Tururu. Assim, conclui o Ensino Fundamental em dezembro de 2000, e o Ensino Médio, em abril de 2002, aos
40 anos. Nos anos de 2000 e 2001, Dona Cilene dedica-se, prioritariamente, ao trabalho voluntário na Associação e ao Telecurso, na sede de Tururu. Nos dias que atende na secretaria da ACOPANH, volta para casa esbaforida, com medo de se atrasar e perder a condução. Logo que começou a estudar, não havia transporte. No “Titanic”, ônibus que transportava os alunos do Distrito de Cemoaba para a Escola Estadual, não cabia mais ninguém; não parava em Novo Horizonte. Quem quisesse estudar na cidade à noite, que fosse a pé ou de bicicleta. A solução foi juntar os estudantes da comunidade e combinar de irem juntos de bicicleta. Outras vezes, tiveram que ir a pé, 50 a 60 minutos de caminhada até a escola. Chegavam ao Assentamento às 23h, ouvindo os latidos irritantes de cães que, de vez em quando, avançavam sobre os caminhantes noturnos. Procurado para resolver a situação dos jovens e adultos, estudantes do Programa Tempo de Avançar, o então prefeito, Pedro Domingos de Sousa, argumentou que apenas os alunos do ensino regular tinham direito a transporte. Somente depois que estudantes de todas as localidades do município se mobilizaram em frente à residência do prefeito, a solicitação de transporte escolar, para o turno da noite, foi deferida. De todas as comunidades rurais sairiam trabalhadores em paus de arara para concluir o Ensino Básico, interrompidos na infância ou adolescência. Ao parar na Vila Central, o carro do Seu Milton já está com a traseira baixa. O veículo antigo mal suporta o peso. Dona Cilene, a cunhada e outros jovens estudantes sobem a escadinha da carroceria e se acomodam no banco de madeira. Será o transporte escolar que usufruirão pelos dois anos de estudos na cidade. Em 2002, com diploma de Ensino Médio em mãos, a ex-professora Dona Cilene compenetra-se de que ainda não tem os requisitos suficientes para voltar a lecionar na Educação Infantil. 59
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Talvez não volte mais para uma sala de aula... Talvez sua trajetória na educação tenha chegado ao fim. Cursar uma faculdade de Licenciatura em Pedagogia, exigência necessária para exercer a profissão almejada, está além de suas possibilidades.
tarefa impossível nas dadas circunstâncias. Inexperiente, porém, firme e responsável na execução de suas atribuições, a jovem entusiasta não obtém o êxito ansiado. Ao término do projeto não consegue alfabetizar os educandos, como se propôs. No entanto, desperta neles a vontade de continuar “estudando”, frequentando um espaço de convivência e aprendizados como aquele organizado pela educadora. Em 2006, é a vez de Dona Cilene. Em continuidade ao projeto da Alfa Sol, do qual a filha participara, assume uma turma de alfabetização de jovens e adultos no Assentamento. O primeiro passo é sair de casa em casa, perguntando aos vizinhos se querem e se permitem matricular-se para estudar à noite. – Dessa vez não vou dá meu nome não. O que eu tinha de aprender, já aprendi. – Mas, Dona Raimunda, não diga uma coisa dessas. Claro que aprende – responde Dona Cilene, tentando persuadir a amiga. – Coloque seu nome. A senhora vai o dia que puder. Vai nos primeiros dias, se não gostar... Bem, se a senhora gostar, continua indo. Para voltar a sentir a emoção de ensinar a leitura, a escrita, aritmética, Dona Cilene recorre às suas relações de amizade e companheirismo com os trabalhadores rurais. Todos os 20 educandos matriculados na turma da Alfa Sol são moradores da Vila Nova, parentes ou amigos próximos. Alguns são jovens que interromperam os estudos no Ensino Fundamental, portanto, já alfabetizados. Antes de começar a lecionar para jovens e adultos, Dona Cilene participa da formação de alfabetizadores da Alfa Sol, em Fortaleza. Durante o evento, ouve as orientações dos instrutores atentamente, imaginando como irá materializar aqueles conceitos até agora desconhecidos. Anota tudo o que ouve: nome dos professores, colegas, cidades de onde eles vieram, os procedimentos
*** Mônica, a mais nova das filhas de Dona Cilene e Didi, consome os anos de sua adolescência na capital, trabalhando de faxineira, babá, executando todo tipo de trabalho doméstico que lhe aparece. É tratada com afeição e respeito pelos patrões, porém, mal remunerada. Reconhece ser necessário construir outro futuro para si. Precisa retomar os estudos, interrompidos por horas e horas dedicadas aos cuidados das residências de famílias abastadas. Finalmente, decide-se. Volta para a família no Assentamento Novo Horizonte. Seguindo o exemplo da mãe e amparada pelos conselhos dela envolve-se com as atividades políticas da comunidade. Candidata-se a vice- presidente da ACOPANH em 2003 e, com a renúncia do presidente, Raimundo Patrício, em maio de 2004, assume a presidência da associação comunitária durante o restante do mandato. Em 2005, Mônica recebe um convite para formar uma turma de alfabetização de jovens e adultos, parceria da Prefeitura Municipal de Tururu e Alfabetização Solidária. Embora não possua o Ensino Médio Completo, é concedida a ela a incumbência de ministrar aulas para adultos, jovens e idosos da comunidade, analfabetos. Suas aulas expositivas, porém, dialogadas, são bem aceitas pelos adultos, que se enternecem com o dinamismo, o carisma e o empenho da educadora. Tendo a mãe como consultora, o desafio de lecionar é vencido. Vencer o analfabetismo, porém, parece-lhe 60
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que deve adotar para ministrar suas aulas, as dicas para cativar os alunos. Está tranquila, o trabalho não lhe parece difícil. Sua preocupação maior é ausência e a evasão dos educandos, problemas vivenciados na comunidade em todas as turmas de escolarização de pessoas adultas. No dia 01 de março de 2006, Dona Cilene retorna a vivenciar as práticas educacionais abandonadas sete anos atrás. Entretanto, os agentes envolvidos nesse processo de ensino e aprendizagem trazem consigo experiências, aprendizados, frustrações e desesperanças que moldarão a didática aplicada pela educadora. Novos sujeitos, uma mesma necessidade: a apropriação do sistema de escrita alfabética. Novos métodos, novos conteúdos para quitar uma velha dívida social: o analfabetismo que ronda o assentamento. Todos os dias, ao anoitecer, Dona Cilene espera, ansiosamente, no alpendre de casa, vizinhos, educandos da Alfa Sol. Dos 20 matriculados, vêm apenas 15. Muitos não tinham pretensão de estudar ao se matricular. Seus nomes são convertidos em números que completam a quantidade exigida de alunos para cada turma, recurso adotado por quase todos os educadores de jovens e adultos – com exceção de um ou dois alfabetizadores – que atuaram na comunidade. Dona Cilene não fugiu à regra. Era a única solução para voltar à sala de aula como educadora. Logo de início, percebe o quanto a merenda escolar influencia na frequência de educandos em detrimento do interesse pelo saber. As crianças insistem para que seus pais abandonem a novela, o descanso, a preguiça e saiam para a “escola da noite”, na casa de Dona Cilene. Dinâmicas de grupo, brincadeiras, conversações livres, premiações, comemorações. De tudo um pouco faz a educadora para manter a sala de aula funcionando, para estimular a presença dos agricultores nas suas aulas. Em novembro, término do projeto, metade da turma ainda
participa das aulas. Alguns desistiram no início, outros (com grau de escolaridade superior aos demais) nunca frequentaram. Missão cumprida? Tarefa executada? A verdade é que mais de 50% dos educandos continuam totalmente analfabetos. Porém, a educadora sente-se satisfeita pela diferença que fez na vida de meia dúzia de camponeses que ignoravam não apenas a escrita alfabética, mas o próprio alfabeto. Agora assinam o nome, conhecem letras e números. A educadora tem a impressão de que o tempo foi curto: duas horas por dia, quatro dias por semana, oito meses de aulas dadas no terreiro de casa: – Tem alunos que aprendem a ler e a escrever em seis meses, mas as pessoas têm capacidades diferentes. Cada um tem a sua capacidade. Além do mais, faltam muito; se frequentassem todos os dias conseguiriam aprender. Mas eu digo sempre aos meus educandos: Nunca é tarde para aprender. *** No final de novembro de 2010, a irmã caçula de Seu Didi, Ângela Paixão, numa visita às irmãs, moradoras da Vila Nova, encontra-se com Dona Cilene e faz-lhe um convite irrefutável: – Cilene, a senhora quer formar uma turma de alfabetização de jovens e adultos aqui em Novo Horizonte? Eu fui chamada para formar uma turma dessas no Açudinho, mas eu já trabalho dois horários pela prefeitura. Não vai dá pra mim. Se a senhora quiser, é só falar com o Raimundo Nonato, secretário do padre. É um projeto da Igreja, mas eu ouvi falar que é muito bom. Como recusar? É uma nova oportunidade que a vida lhe oferece para continuar fazendo o que gosta, compartilhando suas experiências com seus pares. Desde 2006, está afastada da sala de aula. Mas o anseio e a paixão pela arte de lecionar permanecem 63
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vívidos em seu coração. – Eu quero! Eu gosto de ensinar! Se não tiver problema por eu ser evangélica... Pode deixar, que eu vou formar a turma! Já no dia seguinte, Dona Cilene vai à casa do pároco da cidade e procura por Raimundo Nonato Sales, coordenador local do projeto de alfabetização. Demonstra que está muito interessada em assumir uma turma de educação de jovens e adultos na comunidade. Porém, é questionada sobre sua escolaridade: – Não, minha senhora. Só quem terminou o Ensino Médio pode ser professor dessas turmas. A senhora fez até qual série? Garantindo ter os requisitos necessários para assumir a turma de alfabetização, Dona Cilene aguarda a visita do coordenador local do Programa Brasil Alfabetizado à sua casa. Raimundo Nonato, coordenador local, solicita, então, documentos e certificados da educadora e incumbe-lhe a responsabilidade de recolher as cópias dos documentos dos educandos que serão matriculados. Dona Cilene consegue dez educandos da Vila onde mora para formar uma turma de alfabetização de jovens e adultos do convênio formado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), do Ministério da Educação e Pastoral da Educação da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dias depois, Dona Cilene viaja para Fortaleza com outros educadores do município para participar da formação inicial do Programa Brasil Alfabetizado. Com o sugestivo tema: “Cidadão de Fé, protagonista do Amanhã”, a I Capacitação de Alfabetizadores de Jovens e Adultos, realizada pela Pastoral da Educação Regional Nordeste I e Secretaria de Educação do Estado do Ceará, acontece no período de 13 a 18 de dezembro de 2010. Como de costume, Dona Cilene anota tudo o que vê e ouve durante a capacitação. Num caderninho confeccionado com fo-
lhas de papel formato ofício, copia as frases de Paulo Freire inscritas em cartazes nas paredes. Atenciosa, observadora, não se esquece de datar as atividades do evento. Pergunta e anota o nome e a cidade das colegas educadoras. Troca contatos. Concentrada, registrando no caderninho as orientações da formadora, levanta-se de um sobressalto quando o celular toca na bolsa apoiada sobre as coxas. Retira-se da sala. Ligação da Secretaria de Saúde de Tururu: sua cirurgia está marcada para o dia 15 de janeiro próximo. Será submetida à operação para retirada de cálculos biliares na vesícula. Finalmente, suas dores cessarão. Terá sua saúde de volta. Mas, e as aulas? Volta para a cadeira, preocupada. Quem a substituirá na sala de aula, após a cirurgia? As filhas já não moram mais em casa. Acanhados, os filhos rapazes não levam muito jeito para a atividade. E embora haja muitas meninas dispostas a substituí-la, estarão ocupadas no início de 2011: oito turmas do Brasil Alfabetizado (convênio com a prefeitura) serão abertas. Como a educadora substituta procederia em sala de aula? Agradaria os educandos? Suas preocupações acabam quando chega ao Assentamento. Conversando com as vizinhas sobre o assunto, fica sabendo que Daniele Santos, também moradora da Vila Nova, havia assumido uma turma do Brasil Alfabetizado, da parceria Seduc/CNBB, no ano anterior. Daniele dava aulas em Novo Horizonte, em nome de uma funcionária da Prefeitura, que não conseguiu formar uma turma do programa na cidade, por falta de alfabetizandos. A alfabetizadora titular recebia a remuneração e dividia com Daniele. Dona Cilene decide fazer-lhe uma proposta semelhante. Sem nenhuma objeção, Daniele Santos se dispõe a substituí-la por um mês e receber R$ 125,00, 50% do salário da educadora. No dia 03 de janeiro de 2011, recomeça uma nova etapa da trajetória de Dona Cilene pelos caminhos da educação. A varan65
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da, ampliada recentemente, ao lado esquerdo da casa, transforma-se em sala de aula, parapeitos em carteiras escolares, amigos e parentes em alunos. Um quadro de giz, uma mesa-birô, cadeiras de madeira e um velho sofá estruturam a nova sala de aula. A luminosidade das lâmpadas fluorescentes transborda pelos peitoris do alpendre, iluminando o terreiro, pátio da criançada. A visão turva dos educandos carece de claridade máxima, por isso, a anfitriã substituiu as lâmpadas. Assim como faz com o plano diário, a educadora prepara o ambiente escolar pensando nas necessidades de cada um dos educandos. Homens sentam-se nos parapeitos, mulheres no sofá, nas cadeiras. Atividades escritas e orais variam conforme o conhecimento e a necessidade de aprendizagem do educando; o material didático extra (cópias, canetas, cartolinas, textos soltos) também é distribuído de acordo com a habilidade e o desempenho do educando. A educadora se apronta cedo para recebê-los. De cabelos soltos, saia jeans à altura do joelho e camiseta do Programa Brasil Alfabetizado, espera pelos educandos ao lado do portãozinho de ferro. Cumprimenta-os com ar de seriedade. Mesclam-se em seu olhar autoridade e ternura. Neste momento, deixa de ser esposa, cunhada, amiga; é simplesmente educadora, alfabetizadora de adultos. Nove educandos comparecem ao primeiro dia de aula. Após a oração sagrada do Pai Nosso, a alfabetizadora explica como será a metodologia utilizada no projeto de alfabetização e entrega o material didático a cada um dos educandos. Por fim, avisa que terá que se afastar por uns dias para se recuperar da cirurgia que fará no dia 15 de janeiro. – E quem vai ficar no lugar da senhora? – A Daniele. Ela vai me substituir, mas é por pouco tempo. – E onde a gente vai estudar? Na casa dela? – pergunta Rai-
munda Viana, incomodada com a futura mudança de educadora. – A Daniele vai ensinar aqui mesmo. Quando eu tiver melhor, vou ficar aqui fora observando. E vai ser por pouco tempo. – repete. Antes que a turma se distraia, a educadora muda o foco da conversa: – Vamos começar logo? Tem muita coisa para a gente estudar hoje! Vamos ler, refletir, produzir texto... – Já? No primeiro dia? Desse jeito, quem é que não aprende? – brinca Auzenir. – Oh, nossas aulas vão ser muito boas! Vamos trabalhar com a metodologia de Paulo Freire... Nossas aulas vão ser baseadas em temas geradores. O que quer dizer isso? Quer dizer, temas, assuntos que têm a ver com a nossa vida, o nosso dia a dia, a nossa realidade. Educadora do Brasil Alfabetizado, Dona Cilene acredita que o conhecimento e a análise da realidade vivenciada no momento pelos camponeses os motivarão a frequentar as aulas regularmente. Sabe o quanto eles gostam de se expressar, ser voz no meio do povo, ser protagonistas do amanhã que se constrói hoje. As práticas comunitárias no Assentamento Novo Horizonte possibilitam tais experiências, mas somente em pequenos grupos como um núcleo de base ou uma sala de aula, os agricultores sentem-se à vontade para dizer o que pensam e o que querem para a comunidade. Dona Cilene está entusiasmada, agora, sabe como utilizar a metodologia participativa do Ver, Julgar e Agir. Idealizada pela Pastoral da Educação da Igreja Católica, a metodologia auxiliaria a educadora na arte de ensinar jovens e adultos a ler e a escrever, a partir da análise da realidade. Na etapa do Ver, estudariam para conhecer, reconhecer a realidade do Assentamento, do município, da região; em Julgar, questionariam, analisariam a conjuntura atual; e na última etapa, Agir, apontariam propostas de ações 67
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para mudar a realidade que os inquieta. A educadora associaria os temas geradores – Pedagogia de Paulo Freire – à metodologia proposta pela Pastoral da Educação. Para facilitar e qualificar o trabalho dos alfabetizadores do Brasil Alfabetizado, a Pastoral da Educação, entidade formadora do programa (na parceria com a Seduc), elabora uma apostila com 16 temas geradores, associados a 16 gêneros textuais. A maioria dos temas propostos faz parte do cotidiano de Novo Horizonte como vida (autobiografia), economia (lista), política (cordel), trabalho (anúncios classificados), saúde (receita). Outros, porém, são pouco comentados nos ambientes de discussão da comunidade, como segurança (notícia), rodovias (frases de para choque de caminhão) e diversão (piada). No entanto, são temas e gêneros textuais concebidos para orientar as práticas pedagógicas na aquisição do sistema de escrita alfabética por jovens e adultos durante os meses de duração do projeto de alfabetização. Os temas geradores e respectivas famílias silábicas são distribuídos ao longo dos oito meses, dois temas para cada mês. Ao alfabetizador, cabe planejar as atividades concernentes a cada tema e promover um momento de interação entre os educandos para digerir os conhecimentos a eles relacionados. O projeto de Alfabetização e Letramento – Cidadão de Fé, Protagonista do Amanhã, criado pela Pastoral da Educação da CNBB, Regional Nordeste I, propõe 16 descritores (objetivos) de Leitura e Escrita, desde identificar letras do alfabeto a ler frases em voz alta ou localizar informações explícitas em frases. Na Matemática, também são 16 objetivos a serem alcançados pelos alfabetizandos durante os oito meses, começando por realizar contagens de pequenas quantidades e por fim, resolver problemas envolvendo adição e subtração. Dona Cilene sabe que não será fácil alfabetizar essa turma, ainda que seja tão pequena, pois há educandos que não conhecem
o alfabeto e que, provavelmente, faltarão muitas aulas. E quanto à matemática, está despreocupada: quase todos os educandos sabem ler e escrever números, resolver problemas envolvendo adição e subtração, efetuar multiplicações quando o multiplicador é um número natural menor do que 10; dividir por dois, por três, contar dinheiro em cédulas ou moedas etc. Promover a alfabetização e o letramento daqueles que não tiveram a chance de estudar na infância ou adolescência, esse sim, é o desafio da educadora. Desde o primeiro dia de aula, pretende preparar a turma para as avaliações do Programa Brasil Alfabetizado. Serão duas avaliações, uma no início e outra ao término do projeto. Difícil vai ser convencer a turma a fazer as provas na Escola Estadual de Ensino Médio Luíza Bezerra de Farias, no centro da cidade. Mas isso é assunto para se pensar mais tarde. Agora é preciso estimular a participação e a frequência dos educandos. Como não há merenda por conta do projeto, a educadora já aprontara o cafezinho antes de iniciar a aula. Às 20h, dá uma pausa para o intervalo. É hora do café com bolo. – Mas não vão se acostumar, hein! Não vai ter bolo todo dia! – adverte a educadora. – Pois quando tiver merenda me avisa que eu venho! – brinca um educando. – Amanhã, tem uma surpresa! Quem vem pra aula? – pergunta a educadora, querendo assegurar a presença de todos os matriculados no dia seguinte. E consegue o intento: nas duas semanas seguintes, a maioria dos educandos comparece regularmente às aulas. No entanto, chega o dia de a educadora se operar. Daniele assume a turma. De dentro do quarto, Dona Cilene ouve a voz firme de Daniele explicando aos educandos como se faz a tarefa. Sente vontade de ir lá fora, ver como estão se portando seus alunos. Mas é preciso repouso para se recuperar. Duas semanas depois, quando 69
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o corte cirúrgico começa a sarar, vai para a varanda, senta-se ao lado dos educandos e ajuda a educadora substituta a ministrar a aula. Explica, sugere, indaga. Ainda não pode se levantar para acompanhar os educandos de perto, como costuma fazer, por isso, precisa que Daniele a subsitua por mais tempo. Entretanto, em algumas aulas, Daniele não comparece. Acostumados a virem todos os dias, os educandos se aborrecem. Aqueles que faltam com frequência também ficam chateados: – É difícil a gente vir, e quando vem não tem aula! Dona Cilene toma uma decisão. Chama o filho Washington e determina: – Meu filho, agora é você quem vai dá aula. Você já terminou os estudos, pode ensinar. A Daniele tá faltando muito, o pessoal não tá gostando, desse jeito eu vou acabar perdendo a turma. – Mas, eeeu! Eu não sei dar aula, não, mãe! – Sabe! E se não sabe, aprende! Ninguém nasce sabendo! E eu vou ficar te ajudando. O que eu não posso é levantar o braço para escrever no quadro, ficar em pé o tempo todo olhando se alguém tá precisando de ajuda para fazer a tarefa, essas coisas. Washington ajuda a mãe a ministrar as aulas do Brasil Alfabetizado até que ela restabeleça a saúde. Numa sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011, Dona Cilene reassume de vez a sala de aula. Atenciosa e solícita, ela reanima a turma com seu carisma, instiga os companheiros alfabetizandos a entregarem-se à luta contra o analfabetismo.
as formas. A maior parte da turma não janta antes de ir à aula, por isso, a merenda é importante para que permaneçam na classe até o término da aula. Afinal, de barriga vazia, não se tem ânimo para estudar depois de um dia cansativo de trabalho. Além do cafezinho diário, a educadora cozinha macaxeira, batata doce, faz tapioca, bolo de fubá e quando pode, compra bolacha ou bolo para a merenda dos seus alfabetizandos. Comprometida com o trabalho que desempenha, a educadora não mede esforços para garantir o bem-estar da turma: em março de 2011, reserva uma parte de sua ajuda de custo para comprar uma mesa e quatro cadeiras de plástico a fim de acomodar melhor os alunos. Com as cadeiras novas na sala, os estudantes não precisam mais se sentar nos parapeitos. Agora, os peitoris são os braços das cadeiras. Bingo nas sextas-feiras, festinhas de aniversário dos educandos, festinha do Dia das Mães, sorteios de caixa de chocolate são eventos realizados pela educadora para injetar ânimo e motivação aos alunos. Presenteia todos os educandos que fazem aniversário no período do projeto. Sabonetes, perfumes, batons, roupas, kits de produtos da Avon são os presentes mais comuns dados pela educadora. Em maio, realiza a Festinha do Dia das Mães com direito a bolo, refrigerante e uma xícara de louça para cada uma das seis mães da turma. Ao final de cada mês, a educadora preenche um relatório com comentários sobre a frequência dos educandos, os avanços da turma e as dificuldades de aprendizagem. Antes de enviar o relatório para ser entregue à Pastoral da Educação, manda tirar-lhe uma cópia. Fica com uma cópia a fim de conferir os avanços da turma no decorrer do projeto. No entanto, as dificuldades não são superadas durante o período do projeto de alfabetização. Educandos com problemas na visão, dificuldade de compreensão e produção de textos pela maior parte dos alunos obstaculizam o
*** Ao receber o primeiro “salário”, Dona Cilene repassa a metade para Daniele, como haviam combinado. Com o dinheiro que resta compra bolo e refrigerante para o lanche da turma naquela noite. É preciso incentivar a participação dos educandos de todas 70
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êxito da turma, o que entristece a educadora. Todos os meses, Dona Cilene elabora uma avaliação escrita para ser aplicada aos educandos. Não é uma exigência do Programa Brasil Alfabetizado, mas uma forma de detectar os avanços e as limitações dos educandos na leitura e na escrita. Mensalmente, Dona Cilene participa do encontro dos alfabetizadores do projeto, no Salão Paroquial, no centro da cidade. Lá, são planejados os temas, as palavras geradoras e distribuídas as respectivas famílias silábicas entre os dias de aula do mês. Em casa, a educadora prepara o plano diário, à tardinha, antes de sair pela vizinhança para revender produtos de higiene e de beleza. Nas tardes de sexta-feira, junta-se às educadoras do Brasil Alfabetizado (Prefeitura) para realizar o planejamento semanal. A metodologia adotada pelas colegas não é a mesma, porém, as ideias, a troca de experiências e a interação no grupo de educadoras fomentam os ânimos de Dona Cilene. A educadora extrai o que de mais relevante há nas reuniões de planejamento semanal e adapta algumas atividades propostas pelas colegas à realidade de sua sala de aula. O empenho de Dona Cilene é recompensado pela frequência dos educandos. Se no mesmo período de 2011, turmas do Brasil Alfabetizado funcionam na comunidade com dois ou três alunos, na turma de Dona Cilene oito educandos participam regularmente das aulas. Com duas faltas consecutivas, a educadora vai à casa deles, pergunta por que faltaram, de que precisam, e já prepara uma tarefinha extra para recuperar a aula perdida. Depois de incentivar a presença constante dos educandos, é necessário despertar o interesse pelo conhecimento, atiçar o desejo pela aquisição e prática da leitura. Por isso, Dona Cilene, introduz novos conteúdos levando em conta as experiências e os conceitos já arraigados na mente dos educandos. Dá e sugere exemplos. Incita a socialização de opiniões entre os educandos.
Deixa que falem sobre seus problemas, seus sonhos, o trabalho e a produção no roçado, a seca, as contrariedades da comunidade. No momento da atividade escrita, a educadora escreve as questões na lousa para aqueles que já sabem copiar. Em seguida, recolhe os cadernos dos demais. Enquanto os alunos já alfabetizados escrevem e respondem a tarefa, a alfabetizadora copia nos cadernos dos outros, tarefas mais simples, concernentes com o desempenho e os saberes de cada um. Isso somente quando a atividade planejada pela educadora não consta no Manual do Alfabetizando, material didático do projeto. Para encaminhar as tarefas extras, Dona Cilene manda xerocar as atividades. Perde-se muito tempo copiando os enunciados das questões na lousa ou nos cadernos dos alunos. *** Na primeira semana de setembro de 2011, dos 10 educandos matriculados na turma de Dona Cilene, nove participam da festinha de encerramento da turma. Uma única evasão acontece: a do genro de Dona Cilene, Erialdo Braga, que se mudara com a família para outra cidade. Entretanto, cinco pessoas que frequentaram as aulas continuam analfabetas. De janeiro a setembro, a educadora empenha-se inteiramente na alfabetização dos companheiros de assentamento, em especial, da amiga Graça Teixeira. Mas a aluna não consegue aprender a ler. Nada é em vão, porém. Ao final do projeto, a agricultora já silaba pequenas palavras, sem encontros consonantais e escreve, sozinha, o próprio nome com letras legíveis, bem desenhadas. Raimundo Pinto, educando faltoso, ainda não silaba, não soletra, apenas copia, repete as famílias silábicas no caderno. Outros três educandos de Dona Cilene ainda não leem e nem escrevem. Por outro lado, os quatro educandos alfabetizados já chegaram à 73
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turma no nível alfabético, lendo e escrevendo palavras e frases. Agora, escrevem pequenos textos. Leem com melhor fluência. O tempo acabou. Oito meses já se passaram. Só resta a esperança de uma nova turma de educação de jovens e adultos em Novo Horizonte. Novas tentativas de alfabetização poderão ser mais frutíferas. Dona Cilene acredita ser imprescindível a continuidade da ação alfabetizadora na comunidade. Não alfabetizados, não letrados, porém, conhecedores e questionadores da realidade que os envolve, assim tornaram-se os camponeses ao estudar com Dona Cilene. Ao final da jornada de oito meses, já sabem ler, questionar, analisar o contexto histórico em que vivem. Estão decididos a escrever as linhas que restam de suas histórias de trabalhadores sem-terra, camponeses assentados. Deixam de ser sem-terra para se tornarem Sem Terra, com iniciais maiúsculas. Sem Terras protagonistas do amanhã. Mas, a missão de Dona Cilene ainda não chegara ao fim. Modesta, amável, complacente, sente-se e age como educadora ao falar, dizer o que pensa, ao instruir uma amiga, aconselhar um jovem, ao se comunicar com um adulto ou uma criança. Talvez, porém, não volte a assumir uma sala de aula. Mas tem vontade de continuar, de tentar de novo. Tentar alfabetizar. Tentar educar, comungando saberes distintos, compartilhando conhecimentos construídos por meio de experiências coletivas. Por amor, por prazer, não apenas pela remuneração, porque pela bolsa-salário não valeria a pena. Entretanto, houve, sim, o tempo em que o valor do salário era principal motivação para Dona Cilene conduzir uma sala de aula: nos primórdios de sua trajetória educacional, quando a miséria desolava a vida dos camponeses da comunidade onde morava na década de 1980.
No primeiro semestre de 1988, as campanhas eleitorais começam a se efervescer pelo país. Em Umirim, candidatos e seus aliados percorrem as estradas esburacadas dos lugarejos mais esquecidos, porém, visitados a cada dois anos por pessoas que prometem mudar a vida dos habitantes desvalidos. A população só precisa ajudá-los marcando um X na chapa da mudança e será “recompensada”... Em abril de 1988, Dona Margarida, vereadora de São Luís do Curu, encontra-se com Dona Cilene prestes a dar a luz ao sexto filho. A par das dificuldades de locomoção das mulheres gestantes de Pedregulho a Umirim, num momento como este, Dona Margarida convida a amiga Cilene para se hospedar em sua casa até o nascimento do bebê. A dona de casa hesita a princípio, pois dera a luz aos cinco filhos em casa. Seria realmente necessário procurar um hospital desta vez? Quem cuidaria dos filhos enquanto estivesse fora? Preocupado com o bem-estar da esposa, o marido Didi se dispõe a cuidar das crianças durante o período em que a esposa estiver fora. Didi está sem trabalho até o período de brocar o próximo roçado. Depois de onze meses trabalhando na Esmaltec, em Fortaleza, volta para a vida tranquila no campo. Mas chega tarde. Roçado agora só em 89, não há mais tempo para preparar o solo para o plantio. E a chuvas passarão em breve. Enquanto isso, poucos dias antes de Dona Cilene viajar para São Luís do Curu, Conceição9, vereadora de Umirim, muito estimada pela população da zona rural, visita os moradores de Pedregulho e recolhe o título de todos os “seus eleitores”. No dia 23 de abril de 1988, depois de doze dias aguardando o momento do parto na residência da vereadora do município vizinho, Dona Cilene sente as primeiras contrações. Levada pela amiga ao hospital municipal da cidade, poucas horas depois nasce Wagner, um bebê alvinho como o pai. No dia seguinte, quinta-
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-feira, Dona Cilene volta para casa. *** Início de 1988, ano eleitoral. De segunda a sexta-feira, às três horas da tarde, crianças, portadores de deficiência e algumas mães acompanhadas de bebês transbordam pelas paredes de barro amassado da moradia de Dona Cilene. Acostumados a não mais que três refeições diárias, o cheiro de caldo de galinha inquieta os famintos, ansiosos pela distribuição da sopa industrializada. Com canecos e colheres em mãos, esperam pelo sopão que fervilha na lata de querosene transformada em panela. Num dia sopa e no outro mingau, ambos feitos à base de massa pronta. Numa panela, mistura-se a massa com água, coloca-se a panela na fornalha do fogo à lenha, espera-se até ferver e está pronta a sopa! Está pronto o mingau que a meninada adora. Assim, faz Dona Cilene durante cinco dias da semana. Voluntariamente, prepara e distribui a merenda aos mais necessitados da comunidade. Só interrompe o trabalho comunitário quando a merenda falta. Ao se ausentar de Pedregulho no final da gestação do sexto filho, no dia que retorna ao lar com o recém-nascido, já chega preocupada com a falta da merenda. Contenta-se ao saber que a vereadora Conceição já trouxe a merenda de Umirim. No dia 25 de abril de1988, um dia após voltar do hospital de São Luís do Curu com o bebê, Dona Cilene pede aos filhos para irem à casa da vereadora buscar as massas de preparar o sopão e o mingau. A merenda comunitária é coordenada pela primeira dama, Sônia, esposa do prefeito Chiquinho do Povo. Todos os meses, Conceição recebe a merenda da primeira dama e a guarda em casa até Dona Cilene enviar alguém para buscá-la. – Eu tive muita sorte por essa merenda já ter chegado. Vai ter 76
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comida de novo pras minhas crianças e para eu comer de resguardo... Eu e a meninada toda! – exclama Dona Cilene. – Mas tem que chamar alguém para te ajudar a preparar. – aconselha o marido. Na tarde do mesmo dia, quando a irmã vem visitá-la, Dona Cilene pede-lhe ajuda para preparar a merenda das crianças a partir da segunda-feira seguinte. Capaz de se alegrar com pequenas coisas e suportar desesperanças sem desespero, Dona Cilene estava feliz com o nascimento do bebê e aliviada pelo marido ter abandonado o emprego e voltado para casa. Com a casinha sempre abarrotada de gente de todos os tamanhos, tagarelando, chorando, gargalhando, não havia espaço para silêncios e nem reclamações. Domingo de manhã, família toda reunida no casebre apertado, a vereadora Conceição aparece de surpresa. Mas não vem para desejar felicidades ao bebê... Depois de um bom dia, vai direto ao seu assunto: – Dona Cilene, eu vim aqui buscar a merenda. Não vai dá pra senhora continuar cozinhando essa merenda aqui, não. – A merenda?! – pergunta Dona Cilene pasmada. – A merenda não pode mais ficar aqui, porque a sua casa é de taipa, não pode funcionar nessas condições. Não se entende a justificativa. A primeira dama sabia que a casa de Dona Cilene não era de alvenaria quando a encarregou de preparar e distribuir o sopão às crianças carentes... A vereadora continuou: – Vou levar a merenda pra casa do Reinaldo. A casa dele é de tijolos, pode receber melhor o pessoal. Mais tarde, ele traz o carro de mão e leva essa comida pra lá. Como contestar a decisão da vereadora? – Dona Conceição, pode mandar ele vir buscar que a gente entrega. 77
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– Por acaso, a senhora tirou algum pacote de massa dessa merenda? – pergunta Conceição. – Eu tirei, sim. Tirei um pacote de massa doce e um de massa salgada. – responde, constrangida, a dona de casa. – Fiz uma sopa e um mingau e tomei com meus filhos. Mas só tirei, porque tô de resguardo e tava precisando... Dona Cilene não entende a atitude da vereadora. Esta já não é a mesma mulher. Conceição era reconhecida por ser uma senhora generosa, amável, vereadora preocupada com os mais necessitados da comunidade. O que a transformara? De repente, Conceição faz a pergunta que está entalada na garganta desde que chegou: – Dona Cilene, eu fiquei sabendo que a senhora foi transferir o título pro São Luís do Curu. Isso é verdade? – Não, eu não fui transferir meu título, não! – replica Dona Cilene, revoltada. – E a senhora não sabe que fiquei na Dona Margarida porque ficava mais fácil pra eu ir pro hospital? – Pois eu já tô sabendo que a senhora não vai mais votar em Umirim nesse ano – continua a candidata. Receosa de um ou dois votos a menos, a vereadora Conceição se despe da sensatez, esquece-se dos próprios atos. Um mês depois, faz uma nova visita à agricultora. Vem devolver-lhe o título eleitoral recolhido antes de Dona Cilene viajar para São Luís do Curu. – Oh, Dona Cilene! Eu te devo desculpas. Eu nem lembrava que estava com o título da senhora! E ainda acreditei que a senhora tinha se transferido pro São Luís do Curu. Eu tô muito envergonhada. Não se pode voltar atrás, não é mesmo? Dona Cilene não consome o seu tempo com ressentimentos. Raiva, mágoa, decepção, sentiu no momento. Sentiu-se injustiçada e teve raiva quando sua mãe teve que abandonar uma cirurgia que faria na Santa Casa, em Fortaleza, para vir visitá-la, preocu-
pada com o bem-estar da filha e dos netos. Decepcionou-se com o vizinho, inventor do boato sobre a transferência eleitoral, e com a vereadora, a quem admirava. Porém, remoer os erros próprios e os alheios não é típico de sua personalidade. – Esquece isso, Dona Conceição, já passou. – responde Dona Cilene. *** Luiza Ferreira, amiga de Dona Cilene e líder da comunidade, revolta-se com a atitude da candidata à vereadora ao exonerar Dona Cilene do preparo e distribuição de merenda às crianças de Pedregulho. Compadece-se com amiga e promete que vai ajudá-la. Presenciava o cuidado e o carinho com que a agricultora tratava as crianças, os enfermos e os deficientes. Sem soberba, presunção ou superioridade. Sabe que do sopão também se alimentavam Dona Cilene e os cinco filhos. Agora, de resguardo e com um bebê recém-nascido, a família carece de comida. Não há reserva de alimentos, como nos anos anteriores em que Seu Didi, a esposa e os filhos maiores cultivavam milho, feijão, arroz e mandioca na roça, em terras alheias. Pelo trabalho voluntário, Dona Cilene recebia o carinho e o respeito da gurizada e das famílias da comunidade, todas, inclusive a dela, despossuídas dos bens básicos à sobrevivência. Enternecia-se toda ao ver o sorriso dos pimpolhos na hora de receber um copo de mingau, um prato de sopa fina. Escancarava a casa de taipa para os vizinhos e moradores de Pedregulho. Agora, é para a casa do Reinaldo que se dirige a meninada com um caneco na mão. É lá que enchem a barriga de mingau ou de sopa antes de brincarem correndo pelas estradas e becos pedregosos. O anfitrião pede à Dona Cilene que também envie os filhos para tomar o sopão. Mas as crianças se recusam. 79
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Alguns meses depois, Dona Sônia, primeira dama do município, descobre que a vereadora Conceição retirou os alimentos da casa de Dona Cilene e entregou nas mãos de seu cabo eleitoral. Contrariada, a esposa do prefeito interrompe, então, o envio de merenda para a comunidade de Pedregulho. Em agosto de 1988, ao perceber a necessidade de mais um educador na escola da comunidade de Escondido, Luíza Ferreira convida a neta Erinalda para ajudar a professora Francisca Duarte, a Chiquinha, assumindo o cargo de professora alfabetizadora. Mas a jovem não está interessada. Por enquanto, não quer ensinar crianças. Então, Luíza Ferreira lembra-se de Dona Cilene. E por que não? A mulher estudou até a quinta-série, gosta e sabe lidar com crianças, está passando por necessidades, às vezes, nem tem o que comer, precisa comprar leite diariamente para o filho de quatro meses. Sim, Dona Cilene pode ser a nova professora. Foi assim que Dona Cilene tornou-se professora. Pela necessidade educacional das comunidades rurais de Pedregulho e Escondido. Motivada mais pela necessidade financeira do que pelo desejo de mudar de profissão. Na infância, é verdade, aspirava tornar-se professora, porém, à cultura da terra, ao cultivo de alimentos dedicara sua vida em comunhão com o esposo. Já não pensava na possibilidade de ser professora, não acreditava que, com escolaridade tão baixa, seria possível concretizar o sonho infantil, adormecido pelas contrariedades da vida, e ainda ali, pertinho de casa. Mas Deus, Aquele em Quem crê e confessa seus dissabores e aspirações reservava-lhe este presente. Tornar-se professora. Ser professora. Viver professora. As primícias da trajetória educacional de uma camponesa pobre nascem na Escola Francisco Ferreira Braga, a nove quilômetros do município de Umirim, no semiárido cearense. Dona Cilene redescobre a vocação. A construção do conhecimento de homens e mulheres do campo, desde a mais tenra idade, torna-
-se o seu sonho profissional, a sua missão. Por amor. Com amor. Assim desenvolve o ato de educar em diferentes ambientes e momentos de sua vida.
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uitas vezes ouvi dizer que, nunca mais seremos os mesmos, após lermos um livro. Sim, é verdade. A leitura alimenta-nos de informação e conhecimento e por isso é capaz de nos transformar, nos libertar (ou nos escravizar). Mas o que ocorre conosco após a concepção de um livro? Também não seremos os mesmos, pois ao escrever um livro somos transformados pelas experiências obtidas, pela seleção de palavras e expressões no nosso ínfimo glossário interior, pela dor que sentimos quando suprimimos do texto aquilo que queremos dizer e não sabemos como – ou simplesmente não podemos dizer. Já não seremos a mesma pessoa depois das descobertas e aprendizados que adquirimos, depois das diferentes leituras de mundo e de textos que, tantas vezes, apagam nossos conceitos hipotéticos, estereótipos e generalizações. Este livro-reportagem nasceu da necessidade de conhecer e expor uma realidade sobre a qual eu possuía certas pressuposições, pois, além de deter vagas informações acerca do assunto, era comum eu ver e ouvir declarações de algumas pessoas envolvidas nesse contexto. Entretanto, muitas outras pessoas eu nunca ouvira antes, apenas sabia qual trabalho desenvolviam para subsistir a família, de que forma se envolviam com a organicidade interna da comunidade e, na maioria dos casos, se eram analfabetos ou não. Porém, sobre as suas opiniões, ideais, projetos de vida, experiências educacionais e/ou comunitárias antes e depois de chegarem ao Assentamento Novo Horizonte, eu desconhecia totalmente. Somente através do diálogo informal e entrevistas planejadas eu pude despir-me dos conceitos fundados em pressupostos e fundamentar as histórias escritas neste produto jornalís82
Dona Cilene ao lado de uma professora do Telecurso, em abril de 2002. | Foto: Arquivo Dona Cilene.
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tico experimental. A história da personagem-protagonista deste livro foi, com certeza, a parte mais fácil de ser escrita por ter linguagem predominantemente narrativa, porém, foi a parte que mais me custou tempo e dedicação. Foram muitos encontros com a entrevistada, muitas conversas interrompidas com visitas, telefonemas, atenção aos filhos e netos. Muitas leituras de papéis guardados há anos pela ex-educadora. Logo na primeira entrevista, Dona Cilene me mostrou apostilas, livros, certificados, documentos, cartinhas de ex-alunas, além dos cadernos de planos de aula, inclusive, da época em que trabalhava na creche “Casinha Feliz”, na década de 90. Ela emprestou-me parte desses documentos para que eu pudesse analisá-los melhor em casa, o que facilitou a contextualização e datação dos fatos sobre a sua história de vida. Difícil mesmo foi conciliar o tempo que eu dispunha para realizar as entrevistas com o tempo de Dona Cilene. Eu trabalhava à tarde e estudava à noite, na cidade vizinha. Restava-me o período da manhã. Mas seria muito inoportuno entrevistá-la nesse momento, sem contar que dificilmente ela estaria em casa. Então, eu perdia as aulas da faculdade, deixava os meus filhos com meus pais à noite e, depois das 20h ia de bicicleta para a Vila Nova, ouvir as memórias, opões e realizações de Dona Cilene. Costumo ser indecisa. Entretanto, quando Dona Cilene narrou sua experiência como educadora infantil e alfabetizadora de jovens e adultos, não hesitei. Ela fascinava-me com sua modéstia, solicitude e preocupação com os outros. Falava como se ainda exercesse o ofício de mestre. Impossível não gerar empatia a quem a ouvisse. Naquele momento, decidi que escreveria o perfil da educadora. Assim, foi necessário fazer um recorte da sua história, enfocando as suas práticas educacionais e amor pelos companheiros de caminhada. Contudo, não pude deixar de mencionar
fatos importantes de sua vida pessoal, como suas brincadeiras de infância, trabalhos comunitários e vivências no campo. Sergio Vilas Boas (2003) afirma que o perfil cumpre o importante papel de gerar empatias. Para o autor, a empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiríamos se estivéssemos nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo perfilado. Conforme Vilas Boas, a empatia nos possibilita produzir um perfil jornalístico, compartilhando as alegrias e tristezas do nosso semelhante, imaginando e transcrevendo as situações de acordo com o ponto de vista do interlocutor. A empatia também facilita o autoconhecimento de quem escreve e de quem lê, acredita o jornalista. Eu nunca havia lido sobre perfis, tampouco escrito o perfil de alguém. Escrever este perfil, contando a trajetória educacional de Dona Cilene, foi um dos aprendizados mais importantes que obtive no curso de Jornalismo. Foi um experimento que me permitiu o autoconhecimento de meu potencial e de minhas limitações na produção jornalística. Elaborar pautas, ler, reler, entrevistar, conversar, transcrever longos áudios, selecionar fatos, opiniões, palavras, escrever, excluir, corrigir, refazer, reaprender... Alegrar-se, comover-se, condoer-se... Estes são os verbos da consumação de minha primeira experiência na arte de escrever um livro-reportagem literário. Um livro que conta a história de uma educadora do campo e descreve a luta de um povo por terra e educação.
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ENTREVISTAS
NOTAS
Francisca Gomes Paixão Francisca Luciene Alves de Sousa Francisca Maria Gomes Paixão Francisco Ezequiel dos Santos Francisco Mota Sobrinho Geraldo Alves da Rocha Isa Mayara Félix de Sales Josefa Acácio de Sousa Manoel Aristeu de Assis Mariano Alves Saraiva Raimundo Nonato Patrício Teixeira
1 - “O procedimento legal da desapropriação de terras existe na legislação brasileira desde a Constituição do Império de 1824, subordinada ao princípio da necessidade ou utilidade pública.”. Após a Constituição de 1988 e a aprovação da Lei Agrária de 1993, “as atuais regras para a realização de desapropriações por interesse social para fins de reforma agrária estabelecem apenas a possibilidade de desapropriação das grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais) que não atendam aos critérios mínimos de produtividade definidos pelo Incra para as diferentes regiões do país: Grau de Utilização da Terra (GUT) acima de 80%, considerando o conjunto dos usos (lavouras, pastagens naturais e plantadas, exploração florestal); Grau de Exploração Econômica (GEE) acima de 100%, o que significa superar as produtividades mínimas por hectare.”. 2 - O módulo fiscal representa uma unidade de medida instituída pelo Incra para indicação da extensão mínima das propriedades rurais consideradas áreas produtivas economicamente viáveis, o que depende do município em que cada uma está localizada. 3 - O trabalho de base se concretiza nas ações políticas de conscientização e mobilização de uma comunidade, de um povo, realizadas pelos militantes de movimentos e organizações sociais. 4 - “No tocante à propriedade rural, o art. 186 da Constituição de 1988 estabelece que a função social é cumprida quando atende, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: 1) aproveitamento racional e adequado; 2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”. 5 - Paulo Freire é um dos mais importantes educadores do século XX e um dos mais expressivos pensadores do nosso tempo. Nascido em 19 de setembro de 1921, é o criador de uma autêntica teoria do conhecimento e autor de cerca de 40 obras, traduzidas em mais de 20 idiomas. A metodologia proposta por Paulo
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Freire obedece às normas metodológicas e linguísticas, mas, desde o princípio dos anos 1960, Paulo Freire e sua primeira equipe de educadores nordestinos trabalhavam na criação de um novo sistema de trabalho na alfabetização e na educação continuada de jovens e de adultos. Eles sabiam que os velhos modelos de alfabetização, baseados em cartilhas e em trazer para o mundo do adulto, formas de trabalho didático com crianças, em nada correspondiam às ideias de uma educação libertadora. Formar pessoas educadas e conscientes exigia outra compreensão do processo ensino-aprendizagem do educador-alfabetizador para o educando-alfabetizando. 6 - Emilia Ferreiro nasceu na Argentina em 1937. Atualmente, reside no México, onde trabalha no Departamento de Investigações Educativas (DIE) do Centro de Investigações e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México. Ferreiro não criou um método de alfabetização, mas procurou observar em suas pesquisas, como se realiza a construção da linguagem escrita na criança. Os resultados de suas pesquisas permitem que, conhecendo a maneira com que a criança concebe o processo de escrita, as teorias pedagógicas e metodológicas apontem caminhos, a fim de que os erros mais frequentes dos alfabetizadores possam ser evitados. 7 -“Emergindo todas através da pesquisa das falas cotidianas das pessoas do lugar, convertidas na primeira escrita do método, capazes de codificarem, como símbolos da língua, as situações mais significativas da vida coletiva da vida de quem lhes fala, as palavras geradoras devem conter todos os fonemas da Língua Portuguesa e devem incluir todas as dificuldades de pronúncia e escrita (s, ss, ç, ch, x, lh e outros terrores gramaticais)”. 8 - A Associazione Amici del Brasile Onlus foi fundada na Itália em 1994 pelo Pe. Arnaldo Peternazzi. No Brasil, a entidade está juridicamente registrada como Associação Amigos do Brasil, desde fevereiro de 2002. No entanto, o trabalho social desenvolvido pela entidade teve início na década de 1980, em Uruburetama-CE, quando o padre Arnaldo Peternazzi esteve como missionário na Diocese de Itapipoca. Constituída para fins de promoção do desenvolvimento e bem-estar social, tem como finalidade garantir os direitos básicos de crianças e adolescentes dos municípios cearenses de Tururu, Uruburetama e Aquiraz. 9 - Conceição é um nome fictício.
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REFERÊNCIAS AAB, Associação Amigos do Brasil. Disponível em: <www. solidarietaitaliana.org/?pg=resultadoentidade&id=344>. Acesso em: 25 de outubro de 2013. ANTUNES, Celso. Professores e professauros: reflexões sobre a aula e práticas pedagógicas diversas. Petrópolis: Vozes, 2010. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 2006. ________. Paulo Freire, educar para transformar: fotobiografia. São Paulo: Mercado Cultural, 2005. Centro de Referência Educacional/Consultoria e Assessoria em Educação: Emilia Ferreiro. Disponível em: <http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/site/ documentos/espaco-virtual/espaco-alfabetizar-letrar/lecto-escrita/teorias-teoricos/emilia%20-%20ferreiro.pdf>. Acesso em 30 de outubro de 2013. EMBRAPA, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Variação Geográfica do Tamanho dos Módulos Fiscais no Brasil. Disponível em: <http://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/949260/1/doc146.pdf>. Acesso em 30 de outubro de 2013.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004. _______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2011. MOTTA, Márcia (org). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 4ª edição, Barueri: Manole, 2009. VILAS BOAS, Sergio. Perfis e como escrevê-los. 2ª edição, São Paulo, Summus Editorial, 2003.
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ulher baixinha, morena forte, Dona Cilene é uma catadora de desafios. Não se queixa das dificuldades, busca alternativas. Ousada, gosta de experimentar o novo, adaptar-se às exigências do presente. Assumir uma turma de alfabetização de jovens e adultos é uma experiência nova que se somará a outras de igual importância na sua trajetória educacional. Depois de sete anos sem administrar uma sala de aula, a senhora Cilene recebe a atribuição de alfabetizar adultos: seus amigos, vizinhos, companheiros de assentamento. Uma oportunidade de aprendizagem conjunta, de novas práticas, de socialização de saberes. Ensinar e aprender. Voltaria a fazer o que mais gostava dentre várias tarefas que desempenhava para o sustento do lar e para o desenvolvimento da comunidade. Foi por escolher fazer parte desta nova comunidade de trabalhadores rurais sem terra que renunciou ao ofício de professora, mas não deixou de ser educadora, não permitiu que o amor pelo ensino escapasse-lhe das entranhas.