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Emanuel Carlos
AAera era dos dosfestivais festivais na naMPB MPB
Este livro foi desenvolvido durante a disciplina DSG 1031, para o Projeto de Comunicação Visual do curso de Design da PUC - Rio, no período de agosto a dezembro de 2017. Professores Evelyn Grumach Suzana Valladares Vera Bernardes Miguel Carvalho Orientação Evelyn Grumach Suzana Valladares
Todo o conteúdo presente no livro, exceto imagens, foi retirado do portal: memoriasdaditadura.org.br
Dados Internacionais de Catalogação da Publicidade (CIP) Câmara Brasileira do Livro, RJ, Brasil Era dos festivais; MPB; A era dos festivais na MPB Rio de Janeiro: Editora Azul 44 páginas Dados Internacionais de Catalogação da Publicidade (CIP) Câmara Brasileira do Livro, RJ, Brasil
Emanuel Carlos
A era dos festivais na MPB
editoraazul
Introdução Tempos de Chico Buarque e Odair José. Os Mutantes e Os Incríveis. Dom & Ravel e Simonal. Roberto, e Elis, e Caetano, e Bethânia, e Taiguara, e Nara e Raul. Entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, quando o primeiro presidente civil tomou posse, após 21 anos de governo fardado, vimos minguar o amor, sumir o sorriso e murchar a flor cultivada com bossa nova e sua crença na modernidade e na leveza de espírito.
Manifestação popular conta a ditadura e a censura nos anos 60 no Brasil
A partir dos anos 1950, o Brasil passou por uma ebulição musical nunca antes vista, com um caldeirão de movimentos: bossa nova, jovem guarda, tropicalismo, música de protesto. Os festivais de música brasileira despertavam paixões no público, com vaias e aplausos calorosos. Mas, nos rebeldes anos 1960 e 1970, cantar virou atividade de risco, já que a censura baixava seu carimbo sobre aqueles que se insurgiam contra o regime. O protesto – palavra ampla, geral e irrestrita – trocava de categoria à medida que as causas mudavam. Protestava-se contra a repressão e contra a censura. Contra a guitarra elétrica – para a esquerda, um símbolo da traição do nacionalismo musical – ou a favor dela. Por Deus, com Deus ou contra Deus. Protestava-se também pelo direito a tomar uma coca-cola e pensar em casamento, saber da piscina e da margarina. Tempos de Chico Buarque e Odair José. Os Mutantes e Os Incríveis. Dom & Ravel e Simonal. Roberto, e Elis, e Caetano, e Bethânia, e Taiguara, e Nara e Raul. Entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, quando o primeiro presidente civil tomou posse, após 21 anos de governo fardado, vimos minguar o amor, sumir o sorriso e murchar a flor cultivada com bossa nova e sua crença na modernidade e na leveza de espírito. Envelhecemos com a jovem guarda. Devoramos a geleia geral da Tropicália e flertamos com a psicodelia lisérgica de um rock mutante, enquanto víamos assentar a sombra sonora de um disco voador. Barato total. Ai que vida boa, olerê. 6
Desse caldeirão sonoro, brotou a MPB, sigla que se traduz em uma música popular fundamentalmente eclética e socialmente reconhecida como “de qualidade”. Nunca se aplaudiu um artista como naquela época; mas também nunca se vaiou um artista como naquela época. Entre violões quebrados e esperanças equilibristas, recuperamos a voz e a liberdade. Ficaram as grandes canções para serem ouvidas, apreciadas e compreendidas.
Em noite de fúria, sob vaias, o cantor Sérgio Ricardo quebra violão no Festival.
A era dos festivais
A Jovem Guarda era vista com restrições por setores da crítica, uma vez que sua música era considerada alienada pelo público engajado, mais afeito, primeiro à bossa nova e, depois, às canções de protesto .
Até meados dos anos 1960, o brasileiro orgulhava-se de produzir e consumir música de qualidade, inclusive para exportação. Especialmente após a consagração da bossa nova e o surgimento de seu principal oponente, a Jovem Guarda, nos primeiros anos da década. Alegrava-se ao ver o cancioneiro nacional competindo em pé de igualdade, na programação das rádios, com o repertório estrangeiro. Além de orgulho e alegria, a música brasileira despertava sensações autênticas de patriotismo e pertencimento. Como se via na identificação de determinado repertório com seu público típico, frequentemente caracterizado como “turma” ou “tribo”: a juventude do banquinho e violão de um lado, a moçada do iê-iê-iê do outro. A novidade, na metade daquela década, foi o aparecimento de uma nova forma de se posicionar diante da música. Ao habitual sentido de pertencimento proporcionado pelos 7
3º Festival de música popular brasileira, organizado pela TV Record.
diferentes ritmos, pelas diferentes “turmas”, somou-se um engajamento inédito. Era uma disposição generalizada de fãs e ouvintes em defender, com urros e vaias, suas canções preferidas, seus artistas prediletos, seus ídolos musicais. Mais do que o momento político ou a violência policial que solapava o Brasil, o responsável por transformar a música popular em objeto de disputa e de calorosa torcida foi o modelo de espetáculos competitivos, criado em 1965 na TV Excelsior, que manteve a hegemonia da produção fonográfica brasileira até 1972: os festivais de música popular brasileira. Os festivais se firmaram como os maiores celeiros de músicas de vanguarda do Brasil. Foi por meio deles que despontaram artistas como Elis Regina e Edu Lobo (1965), Geraldo Vandré e Jair Rodrigues (1966), Gilberto Gil, Caetano Veloso, MPB 4, Milton Nascimento, Sidney Miller e Os Mutantes (1967), Gal Costa e Beth Carvalho (1968), Ivan Lins e Gonzaguinha (1970), entre outros. Em especial, por meio do Festival da Música Popular Brasileira, criado para a TV Excelsior e, a partir do segundo ano, produzido e exibido pela TV Record, e também do Festival Internacional da Canção Popular, o FIC, transmitido na TV Rio e mais tarde na TV Globo. Entre 1965 e 1975, outros festivais se espalharam pelo Brasil, como a Bienal do Samba, de 1968, e uma dúzia de festivais universitários, ao longo dos anos 1970. 8
Manifestação contra as torturas e assasinatos que estavam acontecendo.
Acima, Elis Regina interpretando Arrastão. Abaixo, vozeirão, alegria e carisma. O cantor Jair Rodrigues no Festival da MPB em 1966.
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TV Excelsior ApĂłs o sucesso dos primeiros programas de TV voltados para a mĂşsica, em especial Brasil 60, exibido na TV Excelsior e produzido pelo futuro autor de novelas Manoel Carlos, Solano Ribeiro achou que era o momento de criar um festival brasileiro.
1º Festival Nacional de Música Popular Brasileira | 1965 O produtor que idealizou os festivais da canção na TV brasileira, Solano Ribeiro, considerava que, todo ano, as rádios e gravadoras inundavam o mercado com os artistas e as músicas que tinham se destacado no Festival de Sanremo, na Itália, consideradas por ele uma “baboseira melosa”. Após o sucesso dos primeiros programas de TV voltados para a música, em especial Brasil 60, exibido na TV Excelsior e produzido pelo futuro autor de novelas Manoel Carlos, Solano Ribeiro achou que era o momento de criar um festival brasileiro. Definiu o júri: os poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari, o maestro Damiano Cozzella e o músico Amilton Godoy, do Zimbo Trio. Estabeleceu que a sede do festival seria o Guarujá, no litoral de São Paulo, onde o evento viraria assunto único durante semanas e poderia ser beneficiado pela aura de isolamento que já favorecia, na sua opinião, os festivais de Sanremo e de Cannes, na França. E conseguiu um patrocínio do braço têxtil da Rhodia, multinacional de origem francesa que, na época, investia pesado em desfiles de moda com as principais modelos do Brasil. Por interferência da Rhodia, foi preciso alterar os planos. Como cada eliminatória seria precedida por um desfile de moda organizado pela marca, interessava à Rhodia levar o festival para outras praças, incluindo capitais. Assim, optou-se por um formato itinerante, com eliminatórias no Guarujá (a primeira, em atenção a Solano), em São Paulo (no auditório da TV Excelsior), e em Petrópolis (no Hotel Quitandinha). A final aconteceria na noite de 6 de abril de 1965, no auditório da TV Excelsior, no Rio de Janeiro. Entre as 1.290 canções inscritas, seriam garimpadas pelo júri 36 para as três eliminatórias, 12 canções por noite. A grande final consagrou “Arrastão“, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, numa irrepreensível interpretação de Elis Regina. A cantora então era uma menina de 19 anos recém-chegada de Porto Alegre, que ainda foi premiada com o troféu Berimbau de Ouro de melhor intérprete. “Arrastão” reunia os principais elementos que viriam a ca12
Rhodia é o nome adotado no Brasil pelo grupo Rhône-Poulenc, baseado na França e com negócios no Brasil desde 1919. Em 4 de Abril de 2011 houve a aquisição pela empresa belga Solvay S.A. por €3,4 mil milhões.
Grupo tarara apresentando a música vencedora da primeira edição do festival
racterizar as canções de festival e transformá-las quase num gênero musical específico. Como se comprovaria ao longo dos anos seguintes, a canção bem sucedida precisava ter uma letra que transmitisse alguma mensagem sociocultural ou política; uma mensagem capaz de seduzir os ouvintes e transformá-los em torcedores. Uma melodia capaz de ser assimilada e acompanhada em coro pela plateia, ou que pelo menos a empolgasse. Um arranjo contagiante e surpreendente, apoiado em “sacadas” de efeito como alterações no tempo, no andamento ou na instrumentação, que levantasse a plateia, a ponto de arrancar aplausos ou gritos histéricos no meio de sua execução. E, finalmente, uma interpretação peculiar, teatral, que evidenciasse o carisma do intérprete e sua empatia com o público. Tudo isso estava sintetizado em “Arrastão”. A realidade de uma comunidade de pescadores sob a ótica poética e engajada de Vinícius de Moraes. A influência de Caymmi no híbrido de samba e marcha-rancho com inspiração jazzística de Edu Lobo. O arranjo virtuoso que combinava o suspense da primeira parte (“Ê, tem jangada no mar/ ê, hoje tem arrastão…”), com o lirismo da segunda (“Minha Santa Bárbara/ me abençoais…”), para culminar na desdobrada vibrante do compasso na entrada da segunda execução do refrão (“Pra mim/ valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim…”). E, finalmente, a presença cênica da Pimentinha, instruída pelo bailarino Lennie Dale a agitar os braços para trás. Já no dia 13
seguinte ao show, essa atuação lhe rendeu na imprensa o apelido de “Hélice Regina”, numa referência ao movimento de hélice que seus braços pareciam fazer. O sucesso de Elis fez com que a TV Record a contratasse, para apresentar o programa O Fino da Bossa, tornando-a a artista mais bem paga da TV brasileira.
Arrastão
As 5 vencedoras 1º Arrastão Edu Lobo e Vinícius de Moraes Interpretação: Elis Regina
2º Valsa do amor que não vem Baden Powell e Vinícius de Moraes Interpretação: Elizeth Cardoso
3° Eu só queria ser Composição: Vera Brasil e Mirian Ribeiro Interpretação: Claudete Soares
4° Queixa Composição: Sidney Miller, Zé Kéti e Paulo Tiago Interpretação: Ciro Monteiro
5º Cada vez mais rio Composição: Luiz Carlos Vinhas e Ronaldo Bôscoli Interpretação: Wilson Simonal
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Eh! tem jangada no mar Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão Eh! Todo mundo pescar Chega de sombra João Jôvi Olha o arrastão entrando no mar sem fim É meu irmão me traz Iemanjá prá mim Olha o arrastão entrando no mar sem fim É meu irmão me traz Iemanjá prá mim Minha Santa Bárbara me abençoai Quero me casar com Janaína Eh! Puxa bem devagar Eh! eh! eh! Já vem vindo o arrastão Eh! É a rainha do mar Vem, vem na rede João prá mim Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim Nunca, jamais se viu tanto peixe assim Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim Nunca, jamais se viu tanto peixe assim
2º Festival Nacional de Música Popular Brasileira | 1966
Porta Estandarte Olha que a vida tão linda se perde em tristezas assim Desce o teu rancho cantando essa tua esperança sem fim Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão Eu vou levando a minha vida enfim Cantando e canto sim E não cantava se não fosse assim Levando pra quem me ouvir Certezas e esperanças pra trocar Por dores e tristezas que bem sei Um dia ainda vão findar Um dia que vem vindo E que eu vivo pra cantar Na Avenida girando, estandarte na mão pra anunciar.
Naquele ano de 1966, enquanto a TV Excelsior fazia seu segundo e último festival, quase sem repercussão — e caminhava a passos rápidos para a falência, consumada em 1970 — a Record promovia a consagração do formato e o levava a um nível inédito de profissionalismo e repercussão. Conhecidos simplesmente como “Festivais da Record”, eles marcariam época na TV, fazendo com que, ainda em 1966, a audiência do canal batesse a da Excelsior e a da Tupi, e ajudariam a instituir o gênero MPB, expressão não usada até então.
As 5 vencedoras 1º Porta estandarte Geraldo Vandré e Fernando Lona Interpretação: Airto Moreira e Tuca 2º Inaê Vera Brasil e Maricene Costa Interpretação: Nilson 3° Chora céu Luiz roberto e Adilson Godoy Interpretação: Cláudia 4° Cidade vazia Baden Powell e Lula Freire Interpretação: Milton Nascimento 5º Boa palavra Caetano Veloso Interpretação: Maria Odete
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TV Record
Além de orgulho e alegria, a música brasileira despertava sensações autênticas de patriotismo e pertencimento. Como se via na identificação de determinado repertório com seu público típico, frequentemente caracterizado como “turma” ou “tribo”: a juventude do banquinho e violão de um lado, a moçada do iê-iê-iê do outro.
2º Festival da TV Record | 1966 Em apenas quatro edições, de 1966 a 1969, os Festivais da Record transformaram a música brasileira e cristalizaram dois dos gêneros musicais mais relevantes do século XX: as canções de protesto e o tropicalismo. Também desempenharam um papel sem precedentes na modernização da música popular brasileira. Ajudaram no processo de superação de rusgas anacrônicas como a campanha contra o uso de guitarras elétricas, empreendida até 1968 por setores da sociedade, e contribuíram para a valorização dos diferentes aspectos constitutivos da canção, da letra à melodia, do arranjo à interpretação. As duas primeiras edições foram especialmente revolucionárias. A primeira, em 1966, recebeu 2.635 inscrições e promoveu pelo menos dois monstros sagrados da MPB: o cantor Jair Rodrigues e o compositor Geraldo Vandré. “Disparada“, música de Vandré e Théo de Barros defendida por Jair, dividiu o primeiro prêmio com “A Banda“, marchinha de Chico Buarque interpretada por Nara Leão. Sua letra viril e emocionante, acoplada a uma harmonia com raízes sertanejas executada com perfeição pelo Quarteto Novo (num arranjo regional que incluía até o uso de uma queixada de burro), envolveu o público de tal maneira que até Chico Buarque, o adversário, passou a defendê-la. No dia da grande final, a imprensa noticiava a polarização entre as duas favoritas. Segundo uma piada corrente na época, o Brasil se dividia entre duas espécies: os bandidos e os disparatados, em referência aos títulos das duas canções.
A banda Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O homem sério que contava dinheiro parou O faroleiro que contava vantagem parou A namorada que contava as estrelas Parou para ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada sorriu A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor
Outubro de 1966: Jair Rodrigues canta Disparada, de autoria de Geraldo Vandré e Theo
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A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou A moça feia debruçou na janela Pensando que a banda tocava pra ela A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu A lua cheia que vivia escondida surgiu Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor Depois da banda passar Cantando coisas de amor
E Chico, para desespero da produção, fez circular pelos bastidores o aviso de que não receberia o prêmio sozinho. “A Banda” tinha suas qualidades, mas “Disparada” era superior, ele dizia. Muitos anos depois, Zuza Homem de Mello, técnico de som do Teatro Record em 1966, revelaria no livro A Era dos Festivais (2003) que de fato “A Banda” recebeu do júri uma pontuação maior do que “Disparada”, a vice, obrigando seus membros a jogar o resultado no lixo para anunciar o empate. Uma marmelada histórica, confirmada pelos envelopes com os votos dos jurados que, ao final da noite, lhe foram confiados por Paulinho Machado de Carvalho, o diretor da emissora, para que Zuza os guardasse em sua casa.
As 5 vencedoras 1º A banda Chico Buarque Interpretação: Nara Leão 1º Disparada Geraldo Vandré e Théo de Barros Interpretação: Jair Rodrigues 2° De amor ou paz Adauto Santos e Luís Carlos Paraná Interpretação: Elza Soares 3° Canção para Maria Paulinho da Viola e José Carlos Capinan Interpretação: Jair Rodrigues 4º Canção de não cantar Sérgio Bittencourt Interpretação: MPB4 5º Ensaio Geral Gilberto Gil Interpretação: Elis Regina 19
3º Festival da TV Record | 1967 O 3º Festival da Record, por sua vez, é considerado o melhor de todos os festivais pela maioria dos críticos e pesquisadores. A canção vencedora foi “Ponteio“, uma feliz parceria de Edu Lobo e Capinan, cantada por Edu e Marília Medalha, com instrumentação do mesmo Quarteto Novo, consagrado com “Disparada” no ano anterior. No entanto, a maior novidade do festival de 1967 foi levar ao palco as primeiras fagulhas do que viria a se tornar o movimento tropicalista. “Alegria, Alegria“, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque“, de Gilberto Gil, foram as duas canções mais surpreendentes daquela edição, e concentravam o que havia de mais revolucionário na proposta ética e estética defendida pela turma tropicalista. O movimento em si seria deflagrado oficialmente no ano seguinte, com a canção “Tropicália”, gravada no LP de Caetano, e principalmente com o álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que reuniu, além dos dois compositores baianos, Nara Leão, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan, Gal Costa e Os Mutantes. Tanto Caetano quanto Gil, no festival de 1967, subiram ao palco acompanhados por grupos de rock, devidamente armados com guitarras elétricas, prontos para serem vaiados pela patrulha antiamericanismos. O ousado arranjo feito por Rogério Duprat para “Domingo no Parque”, executado pelo grupo Os Mutantes, combinava instrumentos elétricos com ruídos que buscavam sintetizar os sons característicos de um parque de diversões. Já “Alegria,
Os Mutantes acompanham Gilberto Gil no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record
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Alegria”, com arranjo de Júlio Medaglia, adquiria a forma de uma marcha-rancho modernizada pela visionária instrumentação de um grupo de rock formado por argentinos radicados em São Paulo, os Beat Boys, cabeludos e essencialmente influenciados pelos Beatles. “Domingo no Parque” conquistou o segundo lugar, enquanto “Alegria, Alegria”, que começou sob vaias e terminou sob aplausos, faturou o quarto. O terceiro lugar ficou com “Roda Viva“, de Chico Buarque, num sofisticado arranjo feito e interpretado pelo MPB 4. “A gente quer ter voz ativa/ no nosso destino mandar”, dizia a mais politizada das canções premiadas naquele ano, sete meses após a ditadura criar a Lei de Segurança Nacional, que, entre outras disposições, proibia “insurreições” e “atividades subversivas”. O festival de 1967 teve outros momentos marcantes, como a presença de um deslocado Roberto Carlos, ou o histórico chilique de Sérgio Ricardo, que quebrou o violão e o arremessou contra a plateia ao ser vaiado enquanto tentava cantar a fraca “Beto Bom de Bola“. O mais competitivo de todos os festivais teve ainda Elis Regina, ganhadora do prêmio de melhor intérprete, defendendo a bela “O Cantador“, de Dori Caymmi e Nelson Motta; Johnny Alf com sua “Eu e a Brisa”; e Sidney Miller, vencedor do prêmio de melhor letra, cantando com Nara Leão a lírica “A Estrada e o Violeiro”, entre outros sucessos menos pontuados. Pelo menos uma injustiça seria cometida pelo júri naquela edição: dispensada ainda na fase classificatória, “Máscara Negra”, de Zé Kéti, não chegou a ser apresentada numa eliminatória, mas se tornou o maior hit do carnaval do ano seguinte.
Elis Regina ganhadora do prêmio de melhor intérprete.
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As 5 vencedoras 1º Ponteio Edu Lobo e Capinan Interpretação: Edu Lobo e Marília Medalha 2° Domingo no parque Gilberto Gil Interpretação: Gilberto Gil e Os Mutantes 3° Roda viva Chico Buarque Interpretação: Chico Buarque e MPB4 4º Alegria alegria Caetano Veloso Interpretação: Caetano Veloso e Beat Boys 5º Maria, carnaval e cinzas Luís Carlos Paraná Interpretação: Roberto Carlos e O Grupo
Marilia Medalha e Edu Lobo apresentam Ponteio, música campeã da 5ª edição do festival.
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Ponteio Era um, era dois, era cem Era o mundo chegando e ninguém Que soubesse que eu sou violeiro0 Que me desse o amor ou dinheiro... Era um, era dois, era cem Vieram prá me perguntar: “Ô voce, de onde vai de onde vem? Diga logo o que tem Prá contar”... Parado no meio do mundo Senti chegar meu momento Olhei pro mundo e nem via Nem sombra, nem sol Nem vento... Quem me dera agora Eu tivesse a viola Prá cantar...(4x)
Era um dia, era claro Quase meio Tinha um que jurou Me quebrar Mas não lembro de dor Nem receio Só sabia das ondas do mar... Jogaram a viola no mundo Mas fui lá no fundo buscar Se eu tomo a viola Ponteio! Meu canto não posso parar Não!...
Prá cantar! Era um dia, era claro Quase meio Era um canto falado Sem ponteio Violência, viola Violeiro Era morte redor Mundo inteiro...
Quem me dera agora Eu tivesse a viola Prá cantar, prá cantar Ponteio!...(4x)
Certo dia que sei Por inteiro Eu espero não vá demorar Esse dia estou certo que vem Digo logo o que vim Prá buscar Correndo no meio do mundo Não deixo a viola de lado Vou ver o tempo mudado E um novo lugar prá cantar... Quem me dera agora Eu tivesse a viola Prá cantar Ponteio!...(4x) Lá, láia, láia, láia... Lá, láia, láia, láia... Lá, láia, láia, láia... Quem me dera agora Eu tivesse a viola Prá cantar Ponteio!...(4x) Prá cantar Pontiaaaaarrr!...(4x)
Pontiarrrrrrrr! Era um, era dois, era cem Era um dia, era claro Quase meio Encerrar meu cantar Já convém Prometendo um novo ponteio
Quem me dera agora Eu tivesse a viola Prá Cantar!
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4º Festival da TV Record | 1968 Em 1968, dividindo espaço com o Festival Internacional da Canção, da TV Globo, que vinha galgando importância até superar a audiência e a relevância do festival promovido pela emissora paulista, o Festival da Record voltou a emplacar canções tropicalistas no top 5. A campeã foi “São, São Paulo, Meu Amor“, assinada e defendida por Tom Zé, a despeito de a maioria dos críticos hoje a considerar aquém da genialidade do inventivo compositor. “Divino, Maravilhoso“, de Gil e Caetano, ficou em terceiro lugar e alçou a intérprete Gal Costa ao estrelato, rendendo à turma da Tropicália um programa homônimo na emissora. Finalmente, a moda caipira-psicodélica “2001“, outra de Tom Zé, agora em parceria com Rita Lee, abocanhou o quarto lugar, defendida pelo grupo Os Mutantes. Edu Lobo e Chico Buarque voltaram a emplacar canções entre as preferidas do júri, e Sérgio Ricardo, desclassificado no ano anterior, figurou em quinto lugar.
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As 5 vencedoras 1º São, São Paulo, meu amor Tom Zé Interpretação: Tom Zé, Canto 4 e Os Brasões 2° Memórias de Marta Saré Edu Lobo e G. Guarnieri Interpretação: Edu Lobo e Marília Medalha 3° Divino, maravilhoso Gilberto Gil e Caetano Veloso Interpretação: Gal Costa, Ivete e Arlete
São, São Paulo, meu amor São, São Paulo Quanta dor São, São Paulo Meu amor
4º 2001 Rita Lee e Tom Zé Interpretação: Os Mutantes 5º Dia da Graça Sérgio Ricardo Interpretação: Sérgio Ricardo
São oito milhões de habitantes De todo canto em ação Que se agridem cortesmente Morrendo a todo vapor E amando com todo ódio Se odeiam com todo amor São oito milhões de habitantes Aglomerada solidão Por mil chaminés e carros Caseados à prestação Porém com todo defeito Te carrego no meu peito
Salvai-nos por caridade Pecadoras invadiram Todo centro da cidade Armadas de rouge e batom Dando vivas ao bom humor Num atentado contra o pudor A família protegida Um palavrão reprimido Um pregador que condena Uma bomba por quinzena Porém com todo defeito Te carrego no meu peito
São, São Paulo Quanta dor São, São Paulo Meu amor
São, São Paulo Quanta dor São, São Paulo Meu amor
Santo antônio foi demitido Dos ministros de cupido Armados da eletrônica Casam pela TV Crescem flores de concreto Céu aberto ninguém vê Em brasília é veraneio No rio é banho de mar O país todo de férias E aqui é só trabalhar Porém com todo defeito Te carrego no meu peito São, São Paulo Quanta dor São, São Paulo Meu amor
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5º Festival da TV Record | 1969 A história dos Festivais da Record terminaria em 1969, com um prêmio de melhor letra para “Moleque”, do novato Gonzaguinha, e a vitória de “Sinal Fechado“, de Paulinho da Viola, defendida por ele mesmo. Diferente dos sambas que o tornaram conhecido, dessa vez Paulinho emplacou uma canção diferente, estranha e genial, com uma cadência truncada, cheia de breques e silêncios, que reforçavam o clima de aflição e abismo sugerido pela letra. “Sinal Fechado” ficaria especialmente famosa na interpretação de Chico Buarque, no disco homônimo de 1974.
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As 5 vencedoras 1º Sinal Fechado Paulinho da Viola Interpretação: Paulinho da Viola 2° Clarice Eneida e João Magalhães Interpretação: Agnaldo Rayol e Trio Mocotó
Sinal fechado Olá, como vai ? Eu vou indo e você, tudo bem ? Tudo bem eu vou indo correndo Pegar meu lugar no futuro, e você ? Tudo bem, eu vou indo em busca De um sono tranquilo, quem sabe ... Quanto tempo... pois é... Quanto tempo... Me perdoe a pressa É a alma dos nossos negócios Oh! Não tem de quê Eu também só ando a cem Quando é que você telefona ? Precisamos nos ver por aí Pra semana, prometo talvez nos vejamos Quem sabe ? Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...)
3° Comunicação Edson Alencar e Hélio G. Mateus Interpretação: Vanusa 4º Tu vais voltar José Ribamar e Romeu Nunes Interpretação: Antônio Marcos 5º Gostei de ver Eduardo Gudin e Marco Antônio S. Ramos Interpretação: Márcia e Originais do samba
Tanta coisa que eu tinha a dizer Mas eu sumi na poeira das ruas Eu também tenho algo a dizer Mas me foge a lembrança Por favor, telefone, eu preciso Beber alguma coisa, rapidamente Pra semana O sinal ... Eu espero você Vai abrir... Por favor, não esqueça, Adeus...
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O Festival O Festival Internacional da Canção foi o mais longevo dos festivais e custou a engrenar. Lançado em 1966 por iniciativa da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara, governado por Negrão de Lima foi transmitido pela TV Rio, no primeiro ano, e pela TV Globo a partir do ano seguinte, totalizou sete edições, até 1972. Mas foi apenas em 1968 que ele provocou o barulho esperado.
1º Festival Internacional da Canção | 1966 O evento foi idealizado por Augusto Marzagão, um exseminarista e ex-repórter policial convertido em assessor político. Marzagão disse ao governador eleito da Guanabara, Negrão de Lima, que gostaria de organizar um festival de música que fosse internacional, o que o diferenciaria das versões realizadas naquele mesmo ano pela TV Excelsior e pela TV Record. Um festival que contribuísse para promover o Rio de Janeiro no exterior. Foi autorizado a apresentar um orçamento e a fechar parceria como uma emissora de TV. Walter Clark, diretor da Globo, não demonstrou interesse. Erlon Chaves, diretor musical da TV Rio, foi mais receptivo. Negócio fechado, o retorno ficaria bem acima das expectativas da emissora, que contabilizou nada menos que 45 pontos de audiência na primeira eliminatória e terminaria a noite da grande final nacional com 62% dos aparelhos sintonizados nela, marca que saltou para 72% na final internacional. O sistema proposto por Marzagão consistia em duas etapas sobrepostas. A etapa nacional premiaria três canções após duas eliminatórias e uma final. A grande vencedora representaria o Brasil na segunda etapa, internacional, concorrendo com composições de diversos países. O cenário escolhido foi o Maracanãzinho, alvo de muitas críticas por parte de cantores, músicos, jurados e jornalistas, uma vez que não houve técnico capaz de salvar a péssima acústica do ginásio.
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Saveiros Nem bem a noite terminou Vão os saveiros para o mar Levam no dia que amanhece As mesmas esperanças Do dia que passou Quantos partiram de manhã Quem sabe quantos vão voltar Só quando o sol descansar E se os ventos deixarem Os barcos vão chegar Quantas histórias pra contar
O repertório era outro ponto fraco. Tachado de “triste” e “lento demais” pela crítica especializada, não convenceu o público, treinado pelos festivais anteriores, tanto o da Excelsior e quanto o da Record, a esperar músicas mais envolventes e vibrantes. Das 28 canções selecionadas para serem defendidas nas duas eliminatórias consecutivas, 14 por noite, duas despontaram como as de maior qualidade segundo a crítica: “Saveiros“, de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi, e “Canto Triste”, que era triste até no título, composta por Edu Lobo e defendida por Elis Regina. Classificadas para a final, “Saveiros” foi anunciada como campeã, enquanto “Canto Triste” não foi selecionada entre as três primeiras. O público protestou. Embora não seja possível apontar a canção favorita do público, foi sob vaias que a multidão acompanhou a apresentação de Nana após o anúncio. Deu-se ali, naquele dia, o início de uma tradição que marcaria a história dos festivais: vaiar as canções que não contavam com sua torcida.
As 3 finalistas nacionais 1º Saveiros Dori Caymmi e Nelson Motta Interpretação: Nana Caymmi 2° O cavaleiro Tuca e Geraldo Vandré Interpretação: Tuca 3° Dia das rosas Luís Bonfá e Maria Helena Toledo Interpretação: Maysa
Em cada vela que aparece Um canto de alegria De quem venceu o mar
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2º Festival Internacional da Canção | 1967 A segunda edição continuou morna. Com apoio e coprodução da TV Globo, para a qual o diretor geral Walter Clark havia contratado Boni para a função de diretor artístico, agora seriam dez as canções premiadas. O palco foi reformulado, graças a um investimento monumental da emissora, para tentar sanar os problemas de acústica, que jamais sumiriam por completo. Mais uma vez, os shows não entusiasmaram nem os convidados estrangeiros, nem os jurados, nem o público. Enquanto o Festival da Record pegava fogo em São Paulo, misturando letras engajadas com excentricidades estéticas, confirmando-se como palco máximo do inconformismo, da manifestação e da vanguarda da música brasileira, o repertório do festival do Rio continuava apartado do estilo dos festivais. Apesar de toda a grandiosidade do FIC, sua programação era baseada em canções bem comportadas, que não se comprometiam nem compravam briga, incapazes de levantar a plateia. O mérito daquela edição foi o de apontar holofotes para o jovem Milton Nascimento, que classificou três composições, todas inscritas à sua revelia por Agostinho dos Santos. O compositor, encantado com a música daquele rapaz, que
Margarida Andei, terras do meu reino em vão Por senhora que perdi E por quem fui descobrir Não me crer-mais-ei aqui, me encerrei Sou cantor e cantarei Que em procuras de amor morri, ai! Dor que no meu peito dói Que destróis assim de mim Bem sei que eu achei enfim E que adiantou a dor, Mas me queimou Pois por não saber de amar Ela ainda rainha está E ela está em seu castelo, olê, olê, olá E ela está em seu castelo, olê, seus cavaleiros Ora peçam que apareça Pois por mais que me eu me ofereça Mais me evita essa senhora Eu já fui rei, já fui cantor Vou ser guerreiro, um perfeito cavaleiro
Milton Nascimento em frente ao painel do II FIC no qual ganhou o Galo de Ouro com a composição Travessia.
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Armadura, escudo, espada, Pra seguir na escalada Belo motivo, é por amor que vou lutando E pelas pedras do castelo Uma eu já vou retirando E retirando uma pedra, olê, olê,olá Mais uma pedra não faz falta, olê, seus cavaleiros Que ainda correm pelo mundo Ouçam só por um segundo, que eu acabo de vencer Retirei pedras de orgulhos, majestades, Deixei todas de humildades,de amores sem reinado Ela então se me rendeu Eu já fui rei, já fui cantor, já fui guerreiro E agora enfim sou companheiro, Da mulher que apareceu Apareceu a Margarida, olê, olê, olá Apareceu a Margarida, olê, seus cavaleiros Apareceu a Margarida, olê, olê, olá Apareceu a Margarida, olê... Seus cavaleiros!
atuava como crooner em boates de São Paulo, fez de tudo para convencê-lo a se inscrever no FIC. Diante da negativa do compositor, tímido demais para encarar um festival, inventou uma desculpa para gravar as fitas e as encaminhou à organização. Resultado: Milton emplacou “Travessia” em segundo lugar e “Morro Velho” em sétimo na final da etapa nacional. Embora a campeã tenha sido “Margarida“, de Gutemberg Guarabyra, que mais tarde formaria um trio com Sá e Zé Rodrix, aquela edição entraria para a história da MPB como o festival de “Travessia”, a única grande novidade da temporada. O terceiro lugar fico com “Carolina“, do infalível Chico Buarque, defendida por Cynara e Cybele.
As 5 finalistas nacionais 1º Margarida Gutemberg Guarabyra Interpretação: Gutemberg Guarabyra, Grupo Manifesto 2° Travessia Milton Nascimento e F. Brant Interpretação: Milton Nascimento 3° Carolina Chico Buarque Interpretação: Cynara e Cybele 4º Fuga e antifuga Edino Krieger e V. de Moraes Interpretação: Quarteto 004 e As Meninas 5º São os do norte que vêm Ariano Suassuna e Capiba Interpretação: Claudionor Germano
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3º Festival Internacional da Canção | 1968 A guinada do FIC viria em 1968, com a radicalização das torcidas e a consagração do evento. Pela primeira vez, o festival da TV Globo superou em tamanho, divulgação e legitimidade o festival da TV Record, emissora que começava a dar sinais de declínio, em grande parte gerado por erros de gestão e esgotamento de um modelo. Dessa vez, haveria uma etapa paulista, realizada no Tuca, o Teatro da Universidade Católica (PUC), que precederia a fase nacional. Com a intenção de disputar o mercado paulista, dominado pela Record, e abrir espaço para as vibrantes canções tradicionalmente exibidas em São Paulo, definiu-se que oito finalistas sairiam dessa primeira etapa. Na final paulista, a primeira surpresa. Hostilizado pela plateia ao subir ao palco com roupas e assessórios de plástico colorido para cantar “É Proibido Proibir“, acompanhado pelo grupo Os Mutantes, Caetano Veloso, que tinha saído aplaudido do Festival da Record no ano anterior, rebateu as vaias com um discurso ferino e inspiradíssimo. Um happening inigualável, uma bronca pública contra uma claque de jovens intolerantes que, na teoria, defendiam a democracia e a liberdade de expressão. A atitude era compreensível no contexto da época. Os universitários cobravam de Gil e Caetano um posicionamento claro contra os militares, e se irritavam com a opção deles por assumir bandeiras consideradas menos relevantes, como a defesa das guitarras, dos cabelos compridos, da liberdade sexual.
Cynara e Cybele interpretaram Sabiá: a vaia não era dirigida exatamente à música de Tom e Chico, mas à decisão do júri de desclassificar a canção de Vandré.
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Eram tempos de ânimos exaltados, e a polarização só faria aumentar. Embora classificado, Caetano decidiu não participar da final nacional no Rio de Janeiro, duas semanas depois. Ali, as vaias se voltaram contra a canção “Sabiá“, de Tom Jobim e Chico Buarque. Apenas Tom estava presente ao estádio, e saiu massacrado. À medida que os apresentadores anunciavam as dez premiadas, o público ia tirando suas conclusões. A multidão já suspeitava, pela repercussão que tiveram, que os dois primeiros lugares ficariam entre “Sabiá” e “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores“, de Geraldo Vandré, também conhecida como “Caminhando”. Bastou que a canção de Vandré fosse confirmada na vice-liderança para que a multidão viesse abaixo, inconformada. A canção de Vandré tinha se tornado um hino não apenas do movimento estudantil, mas também daqueles que se encaminhavam para a resistência armada, uma constante às vésperas do AI-5. “Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam antiga lição/ De morrer pela pátria e viver sem razão”, diz a letra. Em contrapartida, “Sabiá” era uma romântica canção do exílio, feita à maneira das modinhas de Villa Lobos, com muito mais densidade harmônica do que a canção de Vandré, com apenas dois acordes. Isso era o que menos interessava à juventude presente ao ginásio. Para a maioria, o momento político exigia coragem e posicionamento. E Vandré, muito mais do que Chico e Tom, era o porta-voz daquela proposta estética e política.
O próprio Vandré decidiu interceder, defendendo os vencedores.
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À vontade no papel de vítima, Vandré pediu à plateia que relevasse a decisão do júri, lembrando que as vaias, se justas, deveriam ser direcionadas aos jurados, e não aos compositores da outra canção. Enfim, cantou. Quando foi a vez de Cynara e Cybele subirem ao palco, acompanhadas por um Tom Jobim atônito, em sua primeira e última participação num festival, Vandré permaneceu no palco, numa tentativa de aplacar os ânimos. Não houve trégua. Cynara e Cybele choravam enquanto repetiam a canção, sem se fazerem ouvir. Na semana seguinte, na final internacional, a recepção já foi bem mais educada. Campeã também dessa fase, algo inédito até aquela edição, “Sabiá” pôde ser apresentada sem mais contratempos. Chico e Tom puderem receber o prêmio numa boa. Duas semanas após o término do festival, veio a ordem inevitável: “Caminhando” foi proibida pelo governo federal de ser executada em rádios e locais públicos.
As 5 finalistas nacionais 1º Sabiá Tom Jobim e Chico Buarque Interpretação: Cynara e Cybele 2° Pra não dizer que não falei... Geraldo Vandré Interpretação: Geraldo Vandré 3° Andança P. Tapajós, Danilo Caymmi e E. Souto Interpretação: Beth Carvalho 4ºPassacalha Edino Krieger Interpretação: Quarteto 004 5º Dia de vitória Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle Interpretação: Marcos Valle
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Sabiá Vou voltar Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir cantar Uma sabiá Vou voltar Sei que ainda vou voltar Vou deitar à sombra De um palmeira Que já não há Colher a flor Que já não dá E algum amor Talvez possa espantar As noites que eu não queira E anunciar o dia Vou voltar Sei que ainda vou voltar Não vai ser em vão Que fiz tantos planos De me enganar Como fiz enganos De me encontrar Como fiz estradas De me perder Fiz de tudo e nada De te esquecer Vou voltar Sei que ainda vou voltar E é pra ficar Sei que o amor existe Não sou mais triste E a nova vida já vai chegar E a solidão vai se acabar E a solidão vai se acabar
7º Festival Internacional da Canção | 1972 Outras edições se seguiram, culminando no 7º FIC, de 1972, com direção de Solano Ribeiro, o pai do formato, contratado pela Globo para substituir Marzagão. Duas grandes novidades vinham do mundo do rock: Raul Seixas, ainda desconhecido, classificou o rock-baião “Let me Sing, Let me Sing“, enquanto Sérgio Sampaio, outro estreante,apresentou aquele que viria a ser o maior sucesso de sua carreira: “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua“. Maria Alcina foi a grande revelação em interpretação, defendendo “Fio Maravilha“, de Jorge Ben. Os intelectuais chegaram a fazer até manifesto a favor de “Cabeça“, música experimental de Walter Franco. Alceu Valença, Fagner, Belchior, Ednardo, Baden Powell e até um jovem compositor de 16 anos chamado Oswaldo Montenegro estavam entre os selecionados. Dessa vez, a disputa nos bastidores foi ainda mais intensa do que diante das câmeras. De todos os tumultos, o episódio mais grave foi quando os militares entraram em contato com Walter Clark e pediram a cabeça de Nara Leão, presidenta do júri. Dias antes, ela havia criticado a ditadura numa entrevista ao Jornal do Brasil. O diretor-geral da Globo chamou Solano e deu ordens para que a demitisse. Solano ameaçou se demitir também, ciente do absurdo que seria cortá-la àquela altura, após a realização das eliminatórias.
Raul Seixas canta “Let me sing” no VII Festival Internacional da Canção.
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Finalmente, optou-se por destituir o júri inteiro, numa tentativa de encontrar uma justificativa capaz de aplacar um eventual rebuliço na opinião pública. Um novo júri seria formado para a final, que confirmaria as duas vencedoras, alçadas automaticamente à final internacional: “Diálogo“, composição de Baden Powell e Paulo César Pinheiro defendida por Baden, Cláudia Regina e Tobias, e “Fio Maravilha”. O 7º FIC terminou com baixa audiência, um público modesto (a média de 5 mil pessoas por noite estava muito aquém da esperada), críticas disparadas por toda a imprensa e um prejuízo estimado em 400 mil dólares. Em maio do ano seguinte, a Globo anunciou que o FIC não seria mais realizado, alegando falta de interesse dos patrocinadores. Naquele momento, a música brasileira e também a televisão já viviam outro momento. Os programas musicais já não exerciam o mesmo fascínio de meados da década anterior, já não puxavam a audiência dos canais nem cumpriam com o mesmo rigor o papel de revelar as novidades do mercado fonográfico, transferido gradativamente aos programas de auditório. Ao mesmo tempo, já em 1969, os acontecimentos pós-AI-5 tinham resultado numa diáspora dos mais importantes músicos de festival: Chico, Gil, Caetano e Vandré foram exilados, enquanto Elis afirmava publicamente que não renovaria contrato com a Record se uma cláusula a obrigasse a cantar em festivais. A era dos festivais chegava ao fim, e todos os eventos desse tipo lançados posteriormente já não tiveram o mesmo impacto. Os grandes festivais ficaram na memória, ao mesmo tempo símbolos de utopia política e lugar da nostalgia cultural.
Maria Alcina cantando Fio Maravilha no Festival Internacional na Canção em 1972.
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As 2 finalistas nacionais 1º Fio maravilha Jorge Ben Interpretação: Maria Alcina
Fio maravilha Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa E a magnética agradecida assim cantava
2° Diálogo Baden Powell e Paulo César Pinheiro Interpretação: Baden Powell, Tobias e Cláudia Regina
Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa E a magnética agradecida assim cantava Filho maravilha, nós gostamos de você Filho maravilha, faz mais um pra gente vê Filho maravilha, nós gostamos de você Filho maravilha, faz mais um pra gente vê E novamente ele chegou com inspiração Com muito amor, com emoção, com explosão e gol Sacudindo a torcida aos 33 minutos do segundo tempo Depois de fazer uma jogada celestial em gol
Tabelou, driblou dois zagueiros Deu um toque driblou o goleiro Só não entrou com bola e tudo Porque teve humildade em gol Foi um gol de classe Onde ele mostrou sua malícia e sua raça Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa E a magnética agradecida assim cantava
Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa E a magnética agradecida assim cantava Filho maravilha, nós gostamos de você Filho maravilha, faz mais um pra gente vê Filho maravilha, nós gostamos de você Filho maravilha, faz mais um pra gente vê Filho Maravilha!
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Tipografia: Frutiger Papel do miolo: Offset 120g Capas: Couché matte 300g Impresso no Brasil Gráfica PUC-Rio Rua Marquês de São Vicente, 225
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