Revista Estilo Zaffari - Edição 28

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A n o 6 N 0 2 8 R $ 2, 50

ACUPUNTURA: SAÚDE DIRETO AO PONTO VIAGEM AO MUNDO DAS CORES: GUATEMALA

Colônia OS SABORES DA CULINÁRIA ALEMÃ


Milene Leal milene@contextomkt.com.br

EDITORA E DIRETORA DE REDAÇÃO REDAÇÃO Beatriz Guimarães, Cris Berger, Fernanda Doering, Paula Taitelbaum, Tetê Pacheco

REVISÃO Flávio Dotti Cesa PROJETO GRÁFICO Odyr Bernardi DIREÇÃO E EDIÇÃO DE ARTE Luciane Trindade luciane@contextomkt.com.br ILUSTRAÇÕES Nik FOTOGRAFIA Angela Farias, Cris Berger, Cristiano Sant’Anna, Flávia de Quadros, Letícia Remião

PRODUÇÃO DE ALIMENTOS Jorge Nascimento COLUNISTAS Fernando Lokschin, Luís Augusto Fischer, Martha Medeiros, Malu Coelho, Tetê Pacheco

EDITORA RESPONSÁVEL Milene Leal (7036/30/42 RS) COLABORADORES Celso Gutfreind, Livraria Cultura, Studio AD, Ponto de Antiguidades

Izabella Boaz izabella@contextomkt.com.br

DIRETORA DE ATENDIMENTO PUBLICIDADE HRM Representações (51) 3231.6287 9983.7169 9987.3165 rosamaggioni@hrmmultimidia.com.br

DEPTO. DE ATENÇÃO AO LEITOR Renata Xavier Soares renata@contextomkt.com.br A revista Estilo Zaffari é uma publicação bimestral da Contexto Marketing Editorial Ltda., sob licença da Companhia Zaffari Comércio e Indústria. Distribuição exclusiva nas lojas da rede Zaffari e Bourbon. Estilo Zaffari não publica matéria editorial paga e não é responsável por opiniões ou conceitos emitidos em entrevistas, artigos e colunas assinadas. É vedada a reprodução total ou parcial do conteúdo desta revista sem prévia autorização e sem citação da fonte.

TIRAGEM 25.000 exemplares PRÉ-IMPRESSÃO Maredi IMPRESSÃO Pallotti

ENDEREÇO DA REDAÇÃO Rua Padre Chagas, 185/801– Porto Alegre/RS – Brasil – 90570-080 (51) 3395.2515 (51) 3395.2404 (51) 3395.1781 estilozaffari@contextomkt.com.br

CAPA: FOTO DE LETÍCIA REMIÃO, COM PRODUÇÃO DE LÚCIA REIS, DO STUDIO AD


NOTA

DO

EDITOR

Alles gut,

alles blau* Aqui na redação da Estilo Zaffari temos um Beck, um Kraemer e um Doering. Três gaúchos que certamente cresceram escutando expressões em alemão (nem que fossem apenas impropérios e palavrões) e, com alguma sorte, deliciando-se com os quitutes da culinária germânica: pão de mel, cucas, bolos de frutas... Nossa equipe, em que também aparecem sobrenomes italianos, árabes, portugueses, espanhóis e alguns bem brasileiros (os Silva não poderiam faltar!), reproduz a mistura de etnias que compõe a população gaúcha. Na verdade, com certeza não somente o Beck, o Kraemer e o Doering convivem diariamente com elementos típicos da cultura alemã. Presentes há 180 anos em território riograndense, os germânicos influenciaram sobremaneira nosso estilo de vida, transmitiram hábitos, plantaram costumes, definiram conceitos. Nosso Estado é um tanto alemão, assim como é um tanto italiano, outro tanto português, polaco, turco, africano, japonês, judeu, espanhol... Nesta edição da Estilo Zaffari estamos homenageando o aniversário da imigração alemã, em reconhecimento à imensa contribuição desses imigrantes e seus descendentes para a construção do Rio Grande. E também para poder transmitir aos leitores da revista os segredos daquelas iguarias que fazem parte do dia-a-dia de muitas famílias gaúchas, e que outras tantas só podem degustar à mesa das confeitarias e restaurantes típicos. Faça um brinde – com chopp, é claro – e comemore conosco esse aniversário. A revista está linda, e não parou na Alemanha. Passamos por Veneza, pela Guatemala, fizemos uma paradinha na China (pra falar de acupuntura), sobrevoamos a França (para investigar como nascem os “chefs de cuisine”) e aterrissamos no Brasil, a tempo de roubar alguns minutos do grande gaúcho (além de português e alemão) Jorge Furtado, que encerra a edição com uma entrevista de qualidade internacional. Boa viagem! OS EDITORES * Tudo bem, tudo azul


Í N D I C E 8

Cartas

13 Cesta Básica 22 Cotidiano 44 Sabor e o saber

Pão da

terra

48 Lugar: Veneza 66 Viagem: Guatemala 64 Bem-Viver 86 Perfil: Jorge Furtado

Como a batata se transformou em um dos alimentos mais importantes do mundo

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Colônia

Os novos

gourmets

OS SABORES DA CULINÁRIA ALEMÃ

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Crianças e cozinha podem formar uma combinação maravilhosa. E divertida!

ACUPUNTURA: DIRETO AO PONTO

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Correio PEIXE FISGADO

DICAS CONFIÁVEIS Olá, meu nome é Fernanda Sebben, sou arquiteta na cidade de Guaporé-RS. Sempre compro a revista, e na edição número 27 me deparei com a belíssima reportagem da Fazenda Cachoeira. Como estava para sair de férias e iria a Minas, resolvi visitar o local. Gostaria de dizer que a reportagem de vocês é muito verdadeira, pois a fazenda é tudo o que vocês falam e muito mais. Parabéns pela reportagem, pelas informações verdadeiras. As dicas que vocês deram foram ótimas. Isso me faz gostar muito mais da revista, que ao meu ver já era ótima, mas agora se mostrou também confiável. Obrigada, tive umas férias ótimas, e mais uma vez parabéns pela reportagem e pela seriedade da revista.

Olá. Adoro a revista, principalmente porque é escrita com o sotaque do sul, e essa reportagem sobre café ficou bem legal. Porém me empolguei bastante foi com a pescaria. Esse tipo de pescaria é feito só em grupos fechados? Se possível, vocês poderiam me passar o contato da organizadora? Obrigado. RICARDO DÖTH

Oi, obrigado pelos elogios. Para informações sobre as expedições de pesca na Amazônia, entre em contato com Eduardo Macedo, no fone (51) 3028.7627, ok? Boa sorte, abraço!

FERNANDA SEBBEN

FAZENDO ESCOLA MAIS DESTAQUE! Adoro a Estilo, acho uma revista de qualidade, com artigos interessantes, muito bem elaborada, com ilustrações de primeiríssima e tudo o mais que se espera de uma revista. Porém, fico um pouco decepcionada quando vejo a revista nas lojas sem um lugar de destaque. Sou uma divulgadora da Estilo, e todas as pessoas a quem recomendei gostaram e se tornaram assíduas leitoras. Fica uma sugestão: dar um local de mais destaque dentro das lojas, pode ser? Um abraço e sigam em frente. IARA MIGUEL DE CAMARGO

Iara, a Estilo fica exposta junto aos caixas, área considerada das mais nobres dentro das lojas. É um espaço disputadíssimo! De qualquer modo, sua preocupação nos deixa contentes, e estamos abertos a sugestões quanto à forma de exposição da revista, ok? Obrigado e, por favor, continue divulgando a Estilo, ok? Um abração!

UM BRINDE AO CAFÉ

MARCIO MALTA (RIO DE JANEIRO)

Oi. Gostamos da reportagem sobre café. A revista toda é muito boa. Parabéns. Meu nome é Paulo, sou consultor e minha esposa Marisa é estilista. Freqüentemente estamos lá no Café do Porto, na Padre Chagas, curtindo o charme do lugar e a delícia do bom café. Abraços e muita saúde, paz e felicidades.

Marcio, ficamos honradíssimos com suas afirmações. Quem nos dera servir de inspiração para o projeto da revista O Globo! Seria realmente um feito e tanto! De qualquer modo, você nos fez um imenso elogio. Obrigado pela gentileza, por estar sempre acompanhando nosso trabalho e pela sua sensibilidade. Um forte abraço.

PAULO ROBERTO SCHWAN (CAMPO BOM)

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Estilo Zaffari

Neste final de semana, o Rio ganhou uma nova publicação, a revista O Globo, que substitui o Jornal da Família, encarte que teve vida longa, cerca de 32 anos. A nova revista faz parte da edição dominical do jornal e será o espaço do leitor para se informar sobre comportamento, ciência, saúde, educação, bem-estar, culinária, moda, beleza, decoração, entre outros. Sem faltar a coluna do chef José Hugo Celidônio, com receitas contemporâneas. A revista também contará com a lucidez da escritora gaúcha Martha Medeiros. Ao receber o número zero, que tem um projeto gráfico simples e ousado, feito pelo editor de arte do jornal, Léo Tavejnhansky, muito me fez lembrar vocês. Explico: lembro-me de quando vocês haviam relançado a revista Estilo Zaffari e, de pronto, ousei prenunciar, sem medo de errar, que, naquele momento, vocês estariam criando uma nova escola e que, a partir daí, ganhariam seguidores mundo afora. Não deu outra! A revista é a cara de vocês. A comparação é inevitável! A similitude salta aos olhos de qualquer leitor desavisado. Abraços.


MÃO NO CORAÇÃO Já faz tempo que quero escrever, pois a revista Estilo Zaffari me impressionou muito. Eu ponho a mão no coração quando falo dela, com orgulho. Meus parabéns a toda a equipe! Os desenhos, as fotos, as receitas, os artigos, as entrevistas. Tudo é perfeito e essa revista deveria ser reconhecida mundialmente. Moro em Sydney/Austrália, e como a minha família está aí em Porto eu recebo a revista através da minha irmã, a Mirna (que também ama vocês). Desde que cheguei aqui tive muito contato com culinária em geral, restaurantes e revistas. Agora estou escrevendo receitas para uma revista nova, feita para backpackers (gente que viaja o mundo de mochila nas costas). Gostaria de mandar para vocês uns exemplares de revistas daqui, só para verem como a revista Estilo Zaffari está ao par com as melhores revistas de um país de Primeiro Mundo. Gostaria de enviar também uma revista de um supermercado daqui, que é muito boa e pode trazer idéias a vocês! Desculpem o meu português, mas já estou há dez anos fora. Mais uma vez meus parabéns por esse excelente trabalho! Com carinho. MAIRA (SYDNEY – AUSTRÁLIA)

Puxa, estamos esperando ansiosos por essas publicações aí da Austrália. É sempre inspirador conhecer revistas de outros países. E adoramos os elogios! Que maravilha receber tanto carinho vindo lá do outro lado do mundo! Beijos!

EU NA ESTILO! Desde a edição sobre o Txai eu queria mandar este e-mail. Agora não pude deixar de escrever, pra repetir que sou leitora de carteirinha da Estilo, pela originalidade, qualidade, conteúdo e beleza, do início ao fim. Estava eu no meu Zaffari Ipiranga em uma tarde congelante de sábado quando vejo a Estilo, novinha em folha, na prateleira do caixa. Vim correndo pra casa e, pra acompanhar minha leitura, fiz um café, inspirada pela capa. Fui saboreando cada página e cada gole até que, me deliciando com as fotos lindas, tão características da revista, me deparo com quem, sentada em uma mesa na matéria sobre o Café do Porto? EUZINHA! Que emoção! Eu, fazendo parte da Estilo! Te mete comigo! Nem preciso dizer que fiquei mais fã ainda. Mando beijos pra todos que fazem essa delícia. A edição de junho veio linda, quente, saborosa e me deixou ligadíssima, como um bom café. Foi um agrado na alma e na vaidade. Thanks a lot! FLÁVIA DENTICE


Consumo T E T Ê

PAC H E C O

O EMPACOTAMENTO DO CÉREBRO Ficar inteligente virou moda? Tô meio desconfiada... Deve ser porque o mundo nunca esteve tão burro que ficar inteligente virou moda. Seria uma revanche contra a ignorância epidêmica da era do telemarketing? Ou apenas mais um modismo cuja importância não deve ir além da próxima eleição norte-americana? Vale a pena observar. O fato é que os cursinhos de história da arte, antes restritos a alguns museus e senhoras de meia-idade, se multiplicaram e ganharam centenas de novos e modernos seguidores. Outro dia recebi um folheto da recém-inaugurada Casa do Saber (www.casadosaber.com.br) com a relação de cursos para o segundo semestre. O repertório de assuntos impressiona. O preço também. Por 70 reais, você pode ouvir a Lygia Fagundes Telles falar durante 2 horas. Se a verba para incrementar os neurônios for maior (uns 700 reais, 10 aulas), pode-se garantir uma vaga para desvendar as Grandes Questões da Humanidade ou estudar Maquiavel e outros Maquiavélicos ou ter uma Introdução à Música Erudita do século 20. Chovem interessados. Hum. Sendo bastante cínica, tô meio desconfiada. É evidente que cultura e informação nunca fizeram mal a ninguém, pelo contrário. Mas não é estranho surgirem tantos neo-eruditos do dia para a noite? Todo mundo está fazendo algum tipo de cursinho. Todo mundo freqüenta café com livraria, acha a FNAC e a Cultura os melhores lugares para se levar as crianças

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Estilo Zaffari

no domingo e os shopping centers não param de patrocinar encontros de gente que pensa com gente que compra. “Ai, eu preciso ver o Picasso.” Ouvi isso de pessoas acostumadas a usar o mesmo tom para se referir ao último lançamento da Louis Vuitton. Para usar um jargão comum ao universo da moda, o significado de estudar Mitologia Grega, por exemplo, parece estar mais associado a uma idéia de consumo vintage. Assim como os vestidos, o pensamento usado, de outras épocas, antigo, seria o último must em assuntos de coquetel. Nada mais profundo que isso. Tô radicalizando? Pode ser. Mas num momento da História em que se cultua tanto a fama instantânea e as modas passageiras, acho que vale a pena manter um certo senso crítico. Que venham os cursos que prometem conteúdo em 10 aulas. Mas que se aprimorem também os sentidos intuitivos e a capacidade criativa, sem os quais não existe possibilidade de se levar uma conversa inteligente e muito menos de se pensar algo que valha a pena. Acabo de ler que o Houaiss e o Aurélio dividem o mercado na guerra dos minidicionários. Guerra dos minidicionários? Hum. Mas pode ser que eu esteja enganada. TETÊ PACHECO É PUBLICITÁRIA



Cesta básica

Pizzas com estilo NESTA SEÇÃO VOCÊ ENCONTRA DICAS E SUGESTÕES PARA CURTIR O DIA-A-DIA E SE DIVERTIR DE VERDADE: MÚSICA, CINEMA, LUGARES, COMIDINHAS, OBJETOS ESPECIAIS, PASSEIOS, COMPRAS. BOM PROVEITO

FOTOS: CRISTIANO SANT’ANNA

A Padre Chagas, uma das mais charmosas ruas de Porto Alegre, ganhou em julho uma nova atração que já está fazendo o maior sucesso: a pizzaria À Lenha. O restaurante, bastante conhecido pelos freqüentadores da praia de Atlântida, abriu as portas de sua primeira franquia na capital gaúcha, sob o comando de Gustavo Piccinini. O menu é totalmente diferenciado, combinando sabores populares e receitas mais requintadas, além de temperos frescos, ingredientes de primeira qualidade e uma deliciosa massa caseira. Cada detalhe da confecção das pizzas pode ser apreciado pelos clientes, pois o forno à lenha, localizado no andar inferior da casa, fica à vista de todos. Entre as novidades do cardápio está a irresistível pizza Padre Chagas, elaborada com presunto de Parma, e a Pio Gelatto, feita com sorvete de creme, doce de leite, maçã e canela. Outro diferencial da casa está em seus ambientes acolhedores e confortáveis, decorados com cores fortes. Nesse astral “caliente”, qualquer opção será um convite ao deleite e aos prazeres da boa mesa.

FERNANDA DOERING, JORNALISTA


Cesta básica

Mundo encantado Com cara de “casa da vovó”, a loja-atelier Composé está localizada na Bordini, 841, quase esquina com a Eudoro Berlink. Cursos de patchwork, de bonecas de pano e de pedrarias movimentam o segundo andar, enquanto que, no térreo, estão à venda materiais para a confecção dos artesanatos e também trabalhos já prontos. Aquelas colchas de retalhos que só se vêem em revista de decoração americana são um exemplo do que é possível aprender a fazer lá mesmo. A linha de bonecas inclui figuras decorativas de parede, pesos de porta e móbiles. As proprietárias, Ângela Leão Tosca e Cristina Pilla do Valle, costumam fazer viagens de atualização, trazendo novidades em estampas, técnicas e acessórios para acabamentos. Quem gostaria de aprender mas não se acha habilitado, vai descobrir lá que existem muitos recursos modernos de modelagem e montagem, capazes de revelar talentos. Para aqueles que amam o patchwork e que ainda assim acham mais seguro ficar longe de tesouras e agulhas, a loja oferece mil sugestões de decoração e presentes. Fone: 333.3666

RUZA AMON, JORNALISTA

O ESCRITOR LUÍS AUGUSTO FISCHER

UM LIVRO BOM COMO BEIJO DE PRIMA Mergulhando novamente nas peculiaridades da linguagem dos gaúchos, o escritor Luís Augusto Fischer lançará, em parceria com o professor Iuri Abreu, o livro “Gauderiadas – a sabedoria gaúcha em frases definitivas”. Trata-se de uma reunião de diversas frases comparativas, características da sabedoria popular gauchesca, como a utilizada no título desta nota. Mais alguns exemplos: “faceiro como gordo de camiseta”, “mais lustroso que telefone de açougueiro”, “forte como sapato de padre”. As frases foram reunidas, divididas por temas e comentadas pelos autores em um texto leve e muito bem-humorado. Foram utilizados como fonte de pesquisa diversos clássicos da literatura gaúcha, como “O Analista de Bagé”, de Luis Fernando Verissimo, “Rapa de Tacho”, de Apparicio Silva Rillo, “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, de Simões Lopes Neto, e “O Tempo e o Vento”, de Erico Verissimo, entre outros. O lançamento está previsto para setembro. CAMILA KIELING, JORNALISTA

FOTO: FLÁVIA DE QUADROS


Cesta básica

DESIGN GAÚCHO E CONTEMPORÂNEO Eduardo Machado é gaúcho, natural de Pelotas. Formado em arquitetura, há cinco anos optou por dedicar-se à área de design. Hoje, ele tem um atelier e showroom em Porto Alegre, onde cria os mais variados objetos – cerca de 80 tipos de peças – utilizando alumínio fundido. São duas linhas de produtos: a Collezione Reciclado e a Brasil Ofício. A primeira inclui objetos de decoração para casa, como travessas, vasos e suporte para velas; já a série Brasil Ofício apresenta produtos para escritórios, elaborados com metatrilato: porta-canetas, suporte para cartões, portacorrespondência. O showroom fica na rua Jardim Cristoffel, 205, bairro Moinhos de Vento. F.D., JORNALISTA

Escola de Gastronomia Quem quiser se profissionalizar no preparo de pratos típicos da Itália agora tem uma excelente opção. A primeira escola do mundo a ensinar gastronomia exclusivamente italiana fora do país europeu está bem pertinho de nós, na Serra gaúcha. O estabelecimento foi inaugurado no dia 10 de agosto, em Flores da Cunha, em uma parceria entre a Universidade de Caxias do Sul e o Italian Culinary Institute for Foreigners (ICIF). A data é dedicada a São Lourenço, santo dos cozinheiros e também padroeiro da escola. Além de oferecer especialização em massas e risotos, os cursos dispõem de uma sala especial para a degustação de vinhos nobres. As opções serão várias: Master em Gastronomia, formação de chef de cozinha e diversos cursos temáticos de curta duração, abertos ao público em geral. A escola oferece uma infraestrutura completa aos alunos: laboratórios de panificação, confeitaria, sorvetes, massas frescas e cozinhas fria e industrial, além de um anfiteatro, para aulas de demonstração. Tudo isso com o objetivo de criar um verdadeiro centro de referência de alta gastronomia italiana na América Latina.

RAFAEL BECK, JORNALISTA



Cesta básica

Emoção e adrenalina Quem gosta de combinar a tranqüilidade encontrada em uma cidade do interior com a adrenalina proporcionada pelos esportes radicais já tem endereço certo. Hospedar-se na Pousada De Rossi pode ser uma verdadeira aventura. Apesar do ambiente bastante familiar e das programações caseiras, o lugar oferece diversas opções de lazer, incluindo uma inesquecível trilha ecológica de jipe. O passeio é pura descontração. Além de se reviver a trajetória dos colonizadores do município de Antônio Prado, é possível apreciar uma das mais deslumbrantes paisagens da serra gaúcha, com direito a um almoço típico no Belvedere Valente, apreciando a magnífica vista do Rio das Antas. Mas o grande destaque é, sem dúvida, a emoção proporcionada pelas trilhas feitas nas estradas da região. O município é conhecido por sediar, freqüentemente, raids de jipe pelos lamacentos caminhos, muitos deles intransitáveis com veículos convencionais. Por isso, é importante preparar o espírito e usar roupas confortáveis. A diversão e a poeira são garantidas. O telefone da Pousada De Rossi é (54) 293-1771.

GUATEMALA: COM MUCHO GUSTO A colorida e vibrante Guatemala, que enfeita 16 páginas desta edição da Estilo Zaffari, pode ser vista também na mostra fotográfica “Com Mucho Gusto, Guatemala” de Cris Berger. A partir de 9 de setembro, visite o Pub Barbazul (rua Itaqui, 57, Porto Alegre) e confira de perto os encantos da civilização maia. Palmas à Copa Airlines, Instituto Guatemalteco de Turismo, Process Laboratório Fotográfico, Gráfica Impresul, Autêntica Visual, Overtech Computer Solution e ao designer João de Lucena, que viabilizaram este projeto.

FERNANDA DOERING, JORNALISTA CRIS BERGER, REPÓRTER E FOTÓGRAFA



Cotidiano MARTHA MEDEIR OS

DOLCE FAR NIENTE Os intervalos também têm sua função Uma amiga voltou de férias dias atrás. Não viajou para nenhum lugar longínquo e extraordinário, simplesmente passou três semanas na sua casa na serra, longe de tudo e de todos. Quando nos encontramos, falei que ela parecia dez anos mais moça – esses dias devem ter sido realmente serenos. Ela confirmou. Disse que fazer nada era tudo de que ela precisava. Mas que sentia uma culpa vulcânica. Culpa, imagina. Ela se sentia culpada por ter dado este tempo a si mesma, por ter se conectado com as coisas que realmente importam nesta vida. Quem disse que isso é fazer nada? No último verão, passei um tempo quase indecente de férias, fora da cidade, sem trabalhar. Tirei uma infinidade de dias para fazer o que se costuma chamar de nada. Mas só eu sei quanta coisa eu fiz. Nesse longo período de ostracismo, dei uma adiantada num tapete que eu andava bordando. Caminhei, somando todos os dias, uns 200 quilômetros. Li Pedro Juan Gutierrez, Amós Oz, Nelson Rodrigues. E, de Caras a Bravo, tracei todas as revistas disponíveis nas bancas. Tirei sestas. Escrevi uns poemas. E desfrutei ao máximo da companhia das minhas filhas. E o mais grave: sem um pinguinho desta tal culpa vulcânica. É uma rotina peculiar se comparada com a que a gente enfrenta no dia-a-dia, com horários, trânsito, reuniões, compromissos e encrencas. Acho bem tentadora esta agitação urbana, o telefone tocando e trazendo ora problemas, ora soluções. A gente até sente falta quando se afasta, pois é no olho do furacão que temos a sensação de existir. Férias são como uma não existência, um intervalo da vida.

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Estilo Zaffari

Só que, contrariando as expectativas, os intervalos têm sua função. Enquanto eu fazia nada vezes nada nas minhas últimas férias, passei horas intermináveis pensando sobre família, amor, amizade, saúde, ultrapassando a pieguice dessas palavras e indo fundo em busca do que elas representam de verdade. Pensei muito também no que significa sentir-se em casa, e descobri que sentir-se em casa é deixar os outros em paz e ficar em paz consigo mesmo: uma sensação quase uterina. Enquanto eu não fazia nada, me lembrei de um monte de gente de que eu gosto, e de como também vale gostar de longe, gostar através da memória e da saudade. Fiz alguns planos enquanto não fazia nada, e você sabe: resolver fazer alguma coisa às vezes dá mais prazer do que fazê-la realmente. Só de resolver fazer, já me sentia realizada. Como não estava fazendo nada mesmo, aproveitei para fazer menos ainda: não me sentia na obrigação de ir para a beira da praia só porque tinha sol, não me sentia na obrigação de escrever só porque tinha um laptop à mão. Não me sentia nem mesmo na obrigação de evitar coisas que desprezo: via o Big Brother quase todos os dias. Devo, não nego, pago quando puder. Isso tudo é passado. Hoje estou imersa nesta roda-viva, na ciranda incessante de obrigações. Faço parte da turma dos que são produtivos e estão sempre atrasados para alguma coisa. Tudo bem, é o meu hábitat natural, me adapto bem ao caos. Mas sinto falta daqueles dias em que eu não fazia nada, nadinha, e me pareciam igualmente intensos. MARTHA MEDEIROS É ESCRITORA



Alimento

PĂŁo


da

terra POR BEATRIZ GUIMARÃES F OTO S L E T Í C I A R E M I Ã O


Alimento


O FRANCÊS PARMENTIER FOI O GRANDE DIVULGADOR DA BATATA EM TERRITÓRIO EUROPEU, NO SÉCULO 18 As origens A batata – um tubérculo originário do Peru – foi descoberta pelos espanhóis por volta de 1536, embora já fosse conhecida há muitos anos pelos incas, que a utilizavam não só como alimento, mas também como planta medicinal e nos seus rituais religiosos. Foi enviada em seguida para a Europa, mas a sua popularização só ocorreu muito mais tarde. Havia um certo preconceito com relação à batata, pois era considerada por alguns como venenosa, causadora de lepra, e por outros, apenas uma ração própria para os animais, especialmente para os porcos. Ainda no século 16, é possível que a batata tenha sido levada à Europa pelos ingleses, que a utilizavam como planta ornamental. A novidade vinda da América do Sul acabou se tornando um alimento mais popular somente por volta dos séculos 17 e 18, e foi fundamental para evitar a fome em muitos dos países europeus, como Irlanda, Inglaterra, Holanda, Alemanha e tantos outros, contribuindo, inclusive, para o aumento demográfico naquele continente. Frederico, o Grande, rei da Prússia, chegou a obrigar seus súditos a plantar e a comer batatas, como forma de evitar a fome. Ela era chamada de “o pão dos pobres”, pois muitas vezes substituiu outros alimentos, inclusive o pão. Parmentier Mas um agente decisivo para a popularização da batata na França – e na Europa como um todo – foi o agrônomo e farmacêutico francês Antoine Augustin Parmentier

(1737-1813), que depois de viver numa prisão na Prússia – onde eram servidas batatas aos prisioneiros – acabou por interessar-se pelo tubérculo, desenvolveu estudos e tornouse um verdadeiro entusiasta do seu consumo. Num jantar em sua casa, Parmentier serviu uma variedade de pratos feitos com batatas. Dentre os convidados havia pessoas da maior importância e influência, como Benjamin Franklin, cientista e empreendedor americano, que estava na França para entendimentos com o Rei Luís XVI; Lavoisier, o fundador da química moderna; o filósofo e matemático d’Alambert e o aristocrata sueco Axel de Fersen, amante da Rainha Maria Antonieta. Com isso, Parmentier conseguiu introduzir definitivamente a novidade na corte, e depois ocorreu a difusão por toda a França. Atualmente, há inúmeros pratos que levam o seu nome, como homenagem ao grande incentivador do consumo da batata na dieta alimentar européia. Batata inglesa ou irlandesa? Ao final do século 18, a Irlanda dependia quase que unicamente da batata como alimento base de sua dieta. Calcula-se que cada irlandês comia, em média, 10 batatas por dia. O cultivo da batata na Irlanda cresceu rapidamente, pois não atendia apenas o consumo humano – servia de ração também aos animais de criação, que produziam ovos, leite e derivados. Em 1840, e por três safras seguidas, a plantação de batatas da Irlanda foi dizimada por uma terrível praga.

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A CÉLEBRE FRASE DE QUINCAS BORBA: “AO VENCIDO, ÓDIO OU COMPAIXÃO; AO VENCEDOR, AS BATATAS”. A destruição das plantações teve um impacto imediato, matando 1 milhão de irlandeses de fome e fazendo com que quase 2 milhões deles emigrassem para os Estados Unidos. Nessa mudança, também levaram para o novo país a paixão pelas batatas. São os imigrantes irlandeses os principais incentivadores do consumo de batata nos Estados Unidos. Ela continuou seguindo sua trajetória de alimento substancial e indispensável. Seu uso se expandiu não só pela Europa, alcançou outros continentes, tornando-se um alimento básico tanto para populações pobres, como para os mais exigentes, já que a batata pode ser utilizada numa infinidade de pratos e receitas. Um jantar com Picasso Numa passagem de Memórias de uma Moça Bem Comportada, Simone de Beauvoir relata a sua alegria ao saber que Picasso viria jantar em sua casa. Eram tempos difíceis, em plena Segunda Guerra, e a escassez de alimentos na Europa – e especialmente na França – era extrema. A maioria da população vivia de migalhas, e muitos passaram fome e necessidades. Simone, então, recorre ao mercado paralelo e paga uma pequena fortuna por uma batata. Iria cozinhá-la à noite. Para receber Picasso, sopa de batata. Apenas água e uma batata. Era um banquete. Van Gogh Um dos quadros mais famosos do grande pintor holandês Van Gogh chama-se “Os comedores de batatas”, pintado em 1885. Nessa fase, ele queria reproduzir a vida 28

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simples dos camponeses, mostrando que as mesmas mãos que comiam aquele alimento também o plantavam e cavavam a terra para colhê-lo. A Holanda é uma das maiores consumidoras e produtoras de sementes de batata do mundo. Um de seus pratos mais típicos é o arenque com cenouras e batatas, que eles comem uma vez ao ano, pelo menos, para celebrar uma data nacional. Ao vencedor, as batatas Em Quincas Borba, Machado de Assis ironiza a natureza humana como sendo mesquinha, destrutiva e implacável para com seus semelhantes. Abaixo, transcrevemos um dos pensamentos do personagem Quincas Borba, cuja última frase ficou mais conhecida que a própria obra: “Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.


PROPRIEDADES DA BATATA A BATATA É UM ALIMENTO RICO EM CARBOIDRATO, SAIS MINERAIS E VITAMINAS, É NUTRITIVA E AJUDA O CORPO A MANTER CALOR. SEU PREPARO É FÁCIL E ELA PODE SER UTILIZADA DE DIVERSAS FORMAS, EM SOPAS, ASSADOS, FRITURAS, ETC., E ATÉ SE PODE OBTER ÁLCOOL DE SUA FERMENTAÇÃO. A BATATA É O 4º ALIMENTO MAIS CONSUMIDO NO MUNDO, FICANDO ATRÁS APENAS DO TRIGO, DO ARROZ E DO MILHO. SEU CONSUMO NO BRASIL É CONSIDERADO BAIXO EM RELAÇÃO A OUTROS PAÍSES: DE 12 A 13 KG POR PESSOA AO ANO, ENQUANTO QUE A MÉDIA MUNDIAL CHEGA A 60 KG. A PRODUTIVIDADE DE BATATAS NO BRASIL AINDA É PEQUENA, DE APENAS 15 TONELADAS POR HECTARE, ENQUANTO QUE NA EUROPA CHEGA A 40 TONELADAS E NA ARGENTINA FICA ENTRE 20 E 30 TONELADAS. ACONSELHA-SE COZINHAR AS BATATAS COM CASCA, PARA NÃO PERDEREM AS PROPRIEDADES DURANTE O SEU PREPARO. AS BATATAS ESVERDEADAS E BROTANDO NÃO DEVEM SER CONSUMIDAS, POIS PODEM CAUSAR INTOXICAÇÕES, CÓLICAS, GASTRITES, ETC. TAMBÉM SE PODE USAR A BATATA CRUA PARA DORES DE ESTÔMAGO E PROBLEMAS INTESTINAIS. SUCO DE BATATA CRUA, TOMADO EVENTUALMENTE, PODE COMBATER ÚLCERAS DE ESTÔMAGO, DUODENO E INTESTINOS. A BATATA CRUA RALADA, APLICADA NO LOCAL, PODE COMBATER INFECÇÕES, PICADAS DE INSETOS E IRRITAÇÕES DA PELE.



OS ALEMÃES E O RIO GRANDE DO SUL: VIDAS ENTRELAÇADAS, RIQUEZA CULTURAL POR

B E AT R I Z

G U I M A R Ã E S

I LU S T R A Ç Õ E S

Os primeiros grupos de alemães chegaram ao Rio Grande do Sul por volta de 1824 e se instalaram na região que hoje é conhecida por São Leopoldo. Nos primeiros 50 anos vieram em torno de 30 mil alemães, provenientes das mais diversas cidades e regiões, como Holstein, Hamburgo, Mecklemburgo, Hannover, Pomerânia, Palatinado, Westfalia, Wurtemberger, Boêmia, Renânia, Prússia e Saxônia. Aos poucos, foram se espalhando pelo Rio Grande. Na sua maioria, agricultores, mas muitos eram artesãos livres, que não encontravam condições melhores de vida e de trabalho em suas terras. Entre vários sobrenomes, alguns revelavam a profissão. Os Schmidt eram os ferreiros; os Müller, moleiros; os Schumacher, sapateiros; os Zimmerman, carpinteiros, originários de uma longa tradição de artesãos na Europa, desde a Idade Média. As guerras napoleônicas haviam deixado marcas de destruição por todo o lado. A propriedade da terra era cada vez mais difícil na Europa, e as promessas do império brasileiro eram muitas: 50 hectares de terra, vacas, isenção de impostos, liberdade religiosa, entre tantos outros atrativos.

N I K

O governo brasileiro tinha intenção de povoar o Rio Grande por uma questão estratégica de assegurar a posse de um território distante, despovoado e ameaçado pelas constantes invasões dos castelhanos. A economia do sul era quase que exclusivamente a pecuária – dominada pelos portugueses – , fundamental para fornecer gado para o centro do país. A vinda dos alemães, portanto, poderia atender a esses interesses. Para os alemães, que tinham muito pouco a perder, já que a Europa vivia transformações drásticas que excluíam populações inteiras, o Brasil era a visão do paraíso: sol, terras, liberdade e abundância. Cerveja e chimarrão Mas o paraíso era o paraíso, e o Brasil, um diamante bruto, belo e selvagem. Os problemas eram infindáveis e, para os imigrantes, desconhecidos. Não existiam estradas, por isso os alemães tiveram que recorrer à navegação fluvial – e se tornaram exímios nisso. Populações imensas de índios desagregados e em decadência, devido à invasão

Estilo Zaffari

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Sabor branca, atacavam e saqueavam os vilarejos, em busca de comida e de defesa do território. Aqui o clima era muito diferente, quente e úmido, também existiam os bichos, animais selvagens que destruíam as plantações, ameaçavam pessoas, havia o abandono do governo, falta de ferramentas e de suporte para a agricultura, problemas de comunicação. Tinha-se a mata desconhecida e assustadora, fonte de medo e fascínio, que foi sendo domada pouco a pouco, condição inevitável com a chegada do europeu. Tudo tinha que ser feito do nada: do chão batido e da madeira bruta se ergueram as casas, a escola, a igreja, e dali a lavoura e a criação. E depois vieram as pequenas indústrias, as chamadas “de fundo de quintal”. A vinda dos alemães, ao longo do século 19, trouxe uma nova configuração cultural para o Rio Grande e foi responsável por uma identidade que nos diferencia do resto do país até hoje. Assim, numa combinação quase impossível, a cultura germânica se enlaça com a portuguesa, mais bugra que lusitana, para construir aqui o seu próprio paraíso. Alargando a roda de chimarrão, trouxeram a cerveja, a música e a alegria. Vieram também contar seus “causos” e deixaram para sempre sua marca em terras meridionais. Alemão batata “Alemão batata, come queijo com barata...” – ecoa o dito popular e preconceituoso na memória coletiva dos descendentes de alemães que aqui viviam. Uns chegaram mais cedo, outros mais tarde, mas a verdade é que o Brasil é um país feito de imigrantes, que por uma razão ou outra deixaram seus países e vieram arriscar a sorte num lugar distante. São portugueses, espanhóis, italianos, árabes, poloneses e tantos outros que tiveram o mesmo começo pobre e

árduo, falando errado, usando tamancos, trabalhando muito numa terra fértil que nos permitiu chegar aos tempos mais confortáveis de hoje. Pois o alemão batata virou filósofo, arquiteto, músico, escritor, empresário, esportista, líder político, cientista... Quando se fala na contribuição dos alemães no sul do Brasil, pensamos logo na eficiente indústria criada aqui, que vai desde a alimentícia até uma siderúrgica como a Gerdau, que é uma referência internacional, além da indústria do vestuário, couro, calçados, de peças e equipamentos diversos, e tantas outras. Mas a grande contribuição dos alemães é muito mais abrangente e profunda do que podemos pensar inicialmente. Arte e cultura O Rio Grande do Sul, graças à influência alemã, incentivou o surgimento de filósofos, e dentre estes pode-se destacar Gerd Borheim, que também foi um dos maiores críticos de teatro no Brasil – dirigiu Esperando Godot, com a saudosa Lilian Lemmertz, – e Paulo José, nos finais dos anos 50, no Centro de Arte Dramática da UFRGS. Temos escritores como Lya Luft, que nos seus primeiros romances traz a atmosfera tensa vivida numa família tipicamente alemã, porém com uma temática universal. Temos uma tradição na música – não só instrumental, mas os corais, tão populares em todo o Estado, e que são bastante típicos daqui. Nas artes, de um modo geral, a contribuição dos alemães e de seus descendentes tem sido vastíssima. O auge da arquitetura no Rio Grande foi nos anos 20 e 301, justamente quando está entre nós o grande arquiteto alemão Theo Wiedersphan, nascido em Dresden, che-

A VINDA DOS ALEMÃES TROUXE UMA NOVA CONFIGURAÇÃO


gando aqui em 1908. Wiedersphan revoluciona a arquitetura gaúcha – ainda com uma forte influência lusitana – criando a Escola de Ofícios, em 1914, cujo programa mantinha semelhanças com a da Bauhauss alemã, fundada mais tarde em Weimar. Esporte e beleza Theo Wiedersphan, por meio da empresa Rudolf Ahrons, será o responsável pela criação dos mais belos prédios em Porto Alegre, como a Delegacia Fiscal, hoje sede do Margs, Correios e Telégrafos, hoje Memorial do RS. Além disso, criou o prédio do Tumelero, o dos Moinhos Chaves Barcelos, na Voluntários da Pátria, do Edifício Bier Ulmann, do Santander Cultural, antigo Banco do Comércio, a sede do Clube Sogipa, a Cervejaria Bopp, depois Brahma, hoje Shopping Total, entre inúmeros outros. Um dos seus prédios mais conhecidos é o do Hotel Majestic, que atualmente abriga o Centro de Cultura Mario Quintana. Com a chegada da Segunda Guerra Mundial houve, também no Brasil, uma animosidade intensa contra os alemães. Wiedersphan também foi discriminado, seu trabalho passou a ser desconsiderado, assim como tudo que refletisse a Alemanha. Os alemães foram pioneiros em introduzir a prática esportiva por aqui. Foram eles os primeiros a criar os clubes de regatas, de ginástica, times de futebol, tênis, bolão e tantos outros. Dessa forma introduziram o saudável hábito dos exercícios físicos e da competição esportiva. Da comunidade alemã surgiu um dos poucos presidentes da República originários das camadas pobres. Apesar de não ter sido eleito democraticamente, e de ter exercido o poder durante a ditadura militar, Ernesto Geisel,

natural de Estrela, foi muito pobre, mas um aluno aplicado e brilhante, e exerceu o mais alto cargo público do país com um projeto de desenvolvimento que não conseguiu ser igualado depois dele. No começo da década de 70, quando ninguém no Brasil se preocupava com isso, José Lutzemberguer começa a falar em proteção ambiental, incentivando a criação de organizações ambientalistas, fazendo do Rio Grande do Sul um dos estados mais atuantes nessa área. Durante toda a sua vida difundiu a prática ambientalista no Brasil. Coerente e íntegro, foi enterrado, no seu rincão, apenas com um lençol cobrindo seu corpo. Por causa dos alemães, também as nossas páscoas e os nossos natais são diferentes dos do resto do Brasil. Quem criaria tantas delicadezas como os ninhos de Páscoa, os ovos pintados à mão – e os enfeites natalinos, os cartões-calendário que são feitos na época do Natal, além das canções, os corais? E os biscoitos de mel, então? E as schmiers? As schmiers só existem por aqui. São a grande invenção da doçaria gaúcha, criada pelos nossos colonos alemães. E finalmente, para brilhar em mais uma área que ainda não tinha sido explorada, a beleza e a graça de Gisele Bündchen impressionam e encantam o mundo todo. Ela não é apenas bonita, tem personalidade forte, determinada, e sem dúvida é bastante madura para a sua idade. Embora de origem alemã, dos quatro costados, Gisele tem uma espontaneidade bem brasileira, tem a franqueza dos gaúchos, e pode-se dizer que ela é a melhor representação da presença dos alemães no Brasil. 1 Ver Günter Weimer, Arquitetura da Imigração Alemã no RS, Ed. da UFRGS, 1983

CULTURAL, UMA IDENTIDADE PARA O RIO GRANDE DO SUL


Sabor

CARNE DE PANELA NA CERVEJA PRETA E PURÊ DE BATATAS

PATO GRELHADO COM MAÇÃS NO VINHO

1 TATU, OU MÚSCULO

1 PATO LIMPO E CORTADO EM COXAS,

1 CEBOLA

SOBRECOXAS E PEITOS (DESOSSADOS)

TOMILHO FRESCO

AZEITE / SAL / 4 MAÇÃS VERDES

1 FOLHA DE LOURO

1 COLHER (SOPA) DE MANTEIGA

100 G DE BACON PICADO

2 COLHERES (SOPA) DE AÇÚCAR

AZEITE

100 ML DE VINHO BRANCO

300 ML DE CERVEJA PRETA DOCE

CANELA EM PAU

2 TOMATES SEM SEMENTES, PICADOS

Modo de fazer: Passe azeite e sal em volta dos cortes de pato. Leve-os a uma grelha bem quente e deixe por 5 a 8 minutos aproximadamente de cada lado. Enquanto isso, corte as maçãs em oito fatias, mantendo as cascas. Coloque as maçãs em água com suco de limão, para evitar que fiquem escuras. Aqueça a frigideira e coloque a manteiga. Retire as maçãs da água, seque-as e ponha na frigideira. Deixe dourar, ponha o açúcar, a canela e depois de alguns minutos acrescente o vinho. Mexa as maçãs até reduzir o vinho. Retire os filés da grelha, corte-os em fatias diagonais e sirva junto com as maçãs. A carne do pato deve estar rosada para que não fique muito seca.

Modo de fazer: Amarre bem o tatu com um barbante ao longo da peça. Numa panela grande, ponha o azeite e deixe o tatu fritar em todos os lados. Acrescente o bacon, e depois a cebola. Deixe dourar e acrescente os temperos e a cerveja. Abaixe o fogo, tampe a panela e deixe cozinhar lentamente. Adicione água quente, caso precise. Mais ao final, ponha os tomates e o sal. Deixe cozinhar bem até a carne ficar macia. Corte em fatias finas, e sirva com purê de batatas.



Sabor


SANDUÍCHE ALEMÃO

APFELSTRUDEL

1 PÃO PRETO EM FATIAS

MASSA

1 LOMBO DE PORCO FATIADO

250 G DE FARINHA DE TRIGO PENEIRADA

PEPINOS EM CONSERVA

1 PITADA DE SAL / 1 OVO BATIDO

FATIAS DE TOMATE FRESCO

174 ML DE ÁGUA MORNA (MENOS DE 1 XÍCARA)

OVOS DE CODORNA COZIDOS

65 G DE MANTEIGA DERRETIDA

1 CEBOLA PICADA

RECHEIO

1 COPO DE CERVEJA PRETA DOCE

70 G DE FARINHA DE ROSCA CASEIRA

3 GRÃOS DE ZIMBRO

1 KG DE MAÇÃS, SEM CASCA E FATIADAS

1 COLHER DE AZEITE

SUCO DE LIMÃO, SOBRE AS MAÇÃS

SAL

100 G DE AÇÚCAR / 100 G DE PASSAS DE UVA

MANTEIGA

50 G DE NOZES PICADAS / CANELA EM PÓ

MOSTARDA FORTE

1 COLHER DE AÇÚCAR CONFEITEIRO PARA COBRIR

Modo de fazer: Misture a manteiga com um pouco de mostarda e passe nas fatias de pão. Monte os sanduíches com as fatias do lombo e corte em 4 partes. Acrescente o pepino fatiado, tomate e ovos de codorna cortados ao meio. Numa frigideira aqueça o azeite, doure bem a cebola, adicione sal, os grãos de zimbro machucados e, por fim, coloque a cerveja aos poucos até reduzir o molho. Corrija o tempero e coloque um pouco sobre cada sanduíche. Sirva em seguida.

Modo de fazer: Faça um círculo com a farinha e ponha o sal, o ovo e a água no meio, misturando tudo com cuidado até formar uma massa lisa. Divida em duas partes, e deixe a massa repousar, coberta, por 30 minutos. Com o rolo, abra bem a massa sobre uma toalha de algodão para que fique bem fina. Pincele a massa com manteiga, ponha a farinha de rosca, as maçãs, as passas, o açúcar, as nozes e a canela em pó. Enrole o strüdel pincelando-o com o restante da manteiga. Leve-o a uma forma untada e asse em forno pré-aquecido a 200ºC por cerca de 50 minutos ou até ficar dourado. Antes de ficar pronto, pincele mais uma vez com manteiga e ponha o açúcar confeiteiro por cima. Obs.: rende dois apfelstrudels.

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Sabor

RAHMSCHNITZEL

CHULETAS DE PORCO COM REPOLHO ROXO E CEBOLAS DOURADAS

500 G DE ESCALOPES DE VITELA OU FILÉ MIGNON

4 CHULETAS DE PORCO

1 LIMÃO / 100 G DE FARINHA DE TRIGO

1 COPO DE VINHO BRANCO SECO

SAL / PÁPRICA / 2 COLHERES DE MANTEIGA

SAL

½ COPO DE VINHO BRANCO SECO

AZEITE

200 G DE COGUMELOS FRESCOS (CORTADOS

1 COLHER DE FARINHA DE TRIGO

EM FATIAS NÃO MUITO FINAS)

2 CEBOLAS CORTADAS EM RODELAS FINAS

1 CEBOLA PICADA / NOZ-MOSCADA

1 PITADA DE AÇÚCAR

100 ML DE NATA FRESCA Modo de fazer: Deixe os escalopes no suco de limão por 30 minutos. Seque-os em papel-toalha e passe na farinha, sal e páprica. Numa frigideira frite os escalopes por 3 a 4 minutos de cada lado, acrescentando, então, o vinho. Depois de ferver, deixe os escalopes por mais 2 minutos e retire da frigideira, mantendo-os aquecidos. Adicione mais manteiga na mesma frigideira e ponha a cebola, deixando-a dourar, e depois os cogumelos. Deixe por uns 5 minutos e adicione, então, a nata. Corrija o sal, e sem deixar ferver misture bem o molho e ponha sobre os escalopes. Sirva em seguida.

Modo de fazer: Tempere as chuletas com sal e polvilhe um pouco de farinha de trigo sobre elas. Aqueça uma frigideira com azeite e frite a carne por uns 5 minutos de cada lado até dourar. Retire da frigideira e reserve. Enquanto isso, na mesma frigideira ponha a cebola, o sal e deixe dourar bem. Acrescente o açúcar para dar brilho. Adicione o vinho aos poucos e deixe reduzir bem. Sirva sobre as costeletas junto com o repolho roxo.



Sabor


FILÉ COM NATAS E PIMENTA ROSA

MASSA CASEIRA – SPAETZLE

4 FILÉS – 600 G DE CARNE BOVINA

450 G DE FARINHA PENEIRADA

1 COLHER (SOPA) DE ÓLEO

4 OVOS BATIDOS

3 COLHERES (SOPA) DE CONHAQUE

SAL

200 ML DE CALDO DE CARNE

NOZ-MOSCADA

100 G DE NATA FRESCA / SAL

1 COLHER DE NATA, OU KIRSCHMIER

2 COLHERES (SOPA) DE MANTEIGA

RASPA DE LIMÃO

1 COLHER (SOPA) DE PIMENTA ROSA CEBOLINHA FRANCESA (CIBOULETTE) Modo de fazer: Tempere e frite os filés, retire da frigideira e mantenhaos aquecidos. Na mesma frigideira, adicione o conhaque e reduza. Depois, coloque o caldo de carne e reduza até a metade. Depois de reduzir o caldo, acrescente a nata misturando bem, até atingir a consistência desejada. Ponha por fim a manteiga, a cebolinha e o sal. Cubra os filés com esse molho e acrescente a pimenta rosa por cima.

Modo de fazer: Faça um círculo com a farinha e misture todos os outros ingredientes – menos a raspa de limão – aos poucos, até formar uma massa homogênea. Ponha água numa panela e leve ao fogo. Depois que ferver, acrescente o sal. Divida a massa em três ou quatro partes. Com os dedos, forme pequenos bocados de massa (como nhoques amassados) e jogue na panela de água fervendo. Quando subirem à superfície, retire com uma escumadeira e coloque num recipiente com manteiga. Repita a operação até o fim e finalize com raspa de limão. Geralmente o Spaetzel é servido como acompanhamento para carnes, por isso use o molho da carne que for usar.


Sabor

CUCA - KUCHEN

PÃO DE MEL

240 ML DE LEITE MORNO

1 XÍCARA DE MEL / 1 XÍCARA DE AÇÚCAR

30 G DE FERMENTO FRESCO PARA PÃO OU UM

1 XÍCARA DE LEITE / 1 XÍCARA DE ÁGUA

SACHET DE FERMENTO BIOLÓGICO INSTANTÂNEO

5 XÍCARAS DE FARINHA / 1 LIMÃO

180 G DE AÇÚCAR / 3 OVOS

1 ENVELOPE DE FERMENTO RÁPIDO

600 G DE FARINHA DE TRIGO

4 COLHERES DE ÓLEO GIRASSOL, OU SIMILAR

SAL / 100 G DE MANTEIGA MACIA

2 COLHERES (SOBREMESA) DE CANELA EM PÓ

FAROFA - STREUSEL

Modo de fazer: Faça um círculo com a farinha, e no meio acrescente o mel, leite, água, óleo e o restante dos ingredientes, mexendo bem. Forme uma massa homogênea e coloque em forma untada com óleo e farinha. Leve ao forno baixo (180ºC) e deixe por uns 35 minutos. Deixe esfriar e depois corte em quadrados.

1 XÍCARA DE FARINHA 120 G 1 XÍCARA DE AÇÚCAR 120 G CANELA EM PÓ / 60 G DE MANTEIGA Modo de fazer: Desmanche o fermento com um pouco de açúcar e água morna. Reserve. Num recipiente grande, coloque a farinha em círculo. No centro, adicione o fermento, o açúcar, a manteiga, o sal e os ovos levemente batidos. Misture e acrescente o leite, incorporando a farinha aos poucos, sempre de fora para dentro, até formar uma massa homogênea. Adicione mais farinha, se necessário. Amasse bem e reserve por uma hora. Sove novamente e coloque em duas formas de pão untadas com óleo. Deixe crescer por mais uma hora, acrescente a farofa e leve ao forno quente até ficar pronta, em torno de 50 minutos a 1 hora. Retire do forno, desenforme, e deixe a esfriar por cerca de 10 minutos antes de cortá-la.

SCHMIER DE PÊSSEGO 1 KG DE PÊSSEGOS SEM PELE 600 G DE AÇÚCAR CRISTAL Modo de fazer: Corte os pêssegos em pedaços mantendo os caroços. Coloque tudo numa panela com o açúcar e cozinhe em fogo brando, mexendo até ficar pastoso e escuro. Passe a schmier por uma peneira para eliminar os caroços. Guarde em compoteiras.



O sabor e o saber F E R NA N D O

LO K S C H I N

PURÊ DE CAMPANHA Não fossem as batatas nós não estaríamos aqui Cego pelo brilho do ouro, prata e esmeraldas, Pizarro morreu sem perceber que a maior riqueza “daquelas Índias” era o tubérculo pequeno de casca terrosa que os incas chamavam de papas e que ele pensava ser uma espécie vulgar de trufas: a batata. Se ao pé dos Andes havia o milho, nos cumes só crescia a batata, um dos principais alimentos do império inca. Ali, até orações eram dedicadas à batata e a duração de seu cozimento, a forma usual de se medir o tempo. Os incas, que desconheciam a roda e a escrita, entendiam de batatas: todos os fundamentos de produção e industrialização foram por eles desenvolvidos. Sem o glamour da trufa, a batata levou quatro séculos para ser colhida e acolhida pelo mundo. De início, os europeus desconfiaram das batatas, reservando seu consumo aos animais, apenados e indigentes. Para os ricos, tal “alimento satânico” tinha uso medicinal. Felipe II aplicava rodelas de batatas como anestésico e enviou a planta ao Papa Pio IV para que tratasse suas crises de gota. A batata integrava a desvalorização européia ao novo mundo. Esta terra “ainda informe” e “molhada do dilúvio” era de flores sem perfume, árvores sem frutos, pássaros sem canto. Seus débeis nativos tinham pouca barba e pênis, e careciam de “ardor pela fêmea”. A anta era o elefante da América e a lhama, um camelo degenerado. A batata, “triste forma de matar a fome”, não podia mesmo ser grande coisa. Havia razões menos ridículas para a desconfiança. Como o tomate, a batata pertence a uma família botânica rica em venenos, a mesma da beladona, datura e tabaco. Em alguns locais, por razões de saúde, a batata foi proibida. A comparação entre o tubérculo e as lesões da lepra e tuberculose criou o temor de que causasse doenças. Havia também a religião. Agricultores evitavam o cultivo, porque a batata, subterrânea como o inferno, não era citada na Bíblia. Alguns contornavam o problema lavando as mudas com água benta e fazendo o plantio às sextas-feiras santas... Mas o obstáculo maior era a profunda identificação européia com o pão. A batata não combina, compete com o trigo e, pobre em glúten, não se presta à panificação. Os incas legaram o tubérculo, mas não o nome: papas é FOTOS: LETÍCIA REMIÃO

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Estilo Zaffari

uma palavra que ficou restrita à hispano-américa. Batata e potato derivam do nome haitiano da batata-doce, planta sem parentesco botânico com a batata. Foi a confusão inicial com a trufa que gerou kartoffel, a palavra alemã para batata, e o nome italiano original de tartufo bianco. Já o francês pomme de terre era empregado para muitos vegetais antes de se ater à batata. A presença espanhola na América foi tão extrativa, que quem semeou a batata pelo mundo – a “nova-Espanha” inclusive – foram outros povos. As batatas chegaram ao Brasil pelo caminho mais longo, vieram da Europa junto com a imigração germânica, daí a expressão “alemão batata”. A contraposição ao trigo ganhou expressão nos clichês do imigrante alemão – camponês e “plantador de batata” – com o português – urbano e dono de padaria. Foi a França que deu o aval culinário à batata. Antoine Parmentier era um militar que, prisioneiro durante a guerra franco-prussiana, tomou gosto pela ração de porcos com que era alimentado: batatas. Solto no final da guerra, passou a divulgar sua dieta como a ideal para estômagos desprovidos. Parmentier convenceu Luis XVI a plantar batatas e a adotar técnicas pioneiras de marketing: a rainha Maria Antonieta usava flores de batateiro nos seus chapéus, e sentinelas reais guardavam a plantação durante o dia a fim de valorizar as plantas e estimular o furto à noite. Seguindo a política do rei, que acharam por bem decapitar, os revolucionários franceses fizeram de tudo para levar as batatas ao povo. Ungiram a batata a símbolo republicano e até transformaram os belos roseirais dos Jardins das Tulherias em nutritivos batatais. A batata tornou-se um pilar da alimentação mundial, principalmente na cuisine des pauvres, aqueles sem pão ou brioches. Afinal é um vegetal perene, rico em calorias, de cultivo fácil e fecundo: um quintal semeado pode sustentar um casal, meia dúzia de filhos, uma vaca e uma porca por um ano inteiro. Foi como “Comedores de Batatas” que Van Gogh retratou os pobres holandeses, sua primeira grande obra (1885), onde as faces camponesas imitam a forma e cor de batatas. O próprio nhoque seria a tentativa de dar batata aos que não tinham trigo – por isto tradicionalmente servido nos dias


REFOGAR BACON E MUITA CEBOLA PICADA EM AZEITE. ACRESCENTAR PEDAÇOS DE ALHO E FRITÁ-LOS RAPIDAMENTE. MISTURAR BEM COM BATATAS COZIDAS AMASSADAS EM PURÊ. LEVAR NOVAMENTE AO FOGO, MEXENDO BEM A MISTURA. PODEM SER ACRESCENTADOS NATA, TEMPERO VERDE, NOZ-MOSCADA, CASTANHAS E NOZES MOÍDAS E PASSAS DE FRUTAS. SERVIR ACOMPANHANDO CARNES ASSADAS (LEITÃO, PATO, ETC.)


O sabor e o saber F E R N A N D O

LO K S C H I N

29 (fim de mês e de salário) e com uma moeda sob o prato para chamariz. A batata democratizou o reinado do trigo. Se até o séc. XIX só metade das crianças européias viviam mais que três anos, a disseminação da batata, diminuindo a fome e a mortalidade, favoreceu a explosão demográfica que resultou na revolução industrial e modernidade. De alguma forma somos todos subprodutos das batatas. Como a descoberta da pólvora e o Grande Incêndio de Londres, alguns pratos de batatas surgiram como acidentes de cozinha. No banquete inaugural de uma ferrovia francesa em 1837, o cozinheiro iniciou a fritar as batatas no horário programado. Como o trem atrasou, o homem teve de retirar as batatas do fogo para refritá-las ao ouvir o apito na estação. As batatas, antes murchas como larvas, inflaram e douraram como borboletas. Nascia, partejada pelo atraso de um trem, a batata suflê, a rainha das batatas fritas. O chips, cuja mordida traduz a vitória do ruído sobre o paladar, também é cria da adversidade. Foi em 1853 num restaurante nova-iorquino. Quando um freguês por duas vezes recusou as batatas fritas com a queixa que estavam muito grossas, o exasperado cozinheiro fatiou as batatas ultrafinas para que não pudessem ser presas no garfo. O freguês adorou, e depois dele, o resto do mundo. Na cozinha, como no quarto ou escritório, toda crise é uma oportunidade. Santo de casa não faz milagres – as batatas estão hoje mais enraizadas na Irlanda do que no altiplano peruano. Segundo a lenda, as batatas chegaram sozinhas ao solo irlandês, deram na praia depois do naufrágio de um galeão espanhol. Na Irlanda, região com o maior consumo per capita, até a sobremesa pode ser batata: torta de batatas com maçãs. “Rainha da horta”, a batata assumiu de tal modo a dieta irlandesa que uma praga dos batatais ocorrida entre 1858 e 1860 causou uma calamidade de fome com mortalidade e emigração sem precedentes. A ilha perdeu mais da metade da população, estando hoje mais despovoada do que há 150 anos!

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Pode-se dizer que foi um fungo nas batatas que empurrou Henry Ford à indústria, John Ford ao cinema e John Kennedy à política. Literalmente nascida no underground, a batata galgou a pirâmide social e conquistou a burguesia que ela mesma ajudou a criar. Hoje é o vegetal mais consumido e industrializado no Ocidente e só lhe falta expressão na cozinha asiática, monopolizada e monotonizada pelo arroz e pela soja. A linguagem documenta sua abrangência: a nossa batata inglesa é a irish potato dos ingleses. Temos as batatas suíças e os americanos engordam com french fries, na verdade uma invenção belga (fritas em gordura de cavalo). O McDonald’s, nome irlandês, disseminou o hambúrguer com fritas pelo mundo. A Inglaterra é fanática por fish and chips, a Espanha é adita à tortilla de papas e o complemento das mil receitas portuguesas com bacalhau é a batata. Tudo o que é bom tem detratores. Marlene Dietrich, que crescera numa dieta de nabos com batatas, creditava suas formas aos nabos; Nietzsche dizia que a dieta de batatas levava ao álcool, e Brillart-Savarin definia comer batatas como a maneira mais sem gosto de se matar a fome. As batatas são consortes, nunca a atração principal, mas as acompanhantes perfeitas. A batata jamais será uma diva. Sem o carisma da estrela, é a coadjuvante que faz a estrela brilhar, orquestra que realça o solista à mesa. Imitemos Marlene Dietrich, um prato de batatas sem nabos. Honremos a trufa branca, riqueza desta América, alegre maneira de matar a fome. Como ensina a lógica machadiana, “ao vencido, o ódio ou a compaixão, ao vencedor, as batatas”. Primeiro a Europa conquistou a América, depois a batata conquistou o mundo. E nada como uma batata quente, não na mão mas na boca. Não fossem as batatas nós não estaríamos aqui. FERNANDO LOKSCHIN É MÉDICO E GOURMET fer nando@vanet.com.br



Bom conselho P O R

M A LU

C O E L H O

A FORÇA DA BATATA Existem muitas variedades de batatas: branca, amarela, vermelha e até algumas produzidas em laboratório. Mas, como consumidores, o que devemos realmente valorizar é a preciosa colaboração desse tubérculo aos nossos cardápios. Além de permitir a criação de diversos pratos, sejam simples ou requintados, a batata influencia diretamente na qualidade nutricional da nossa alimentação. Conheça algumas das qualidades nutricionais de uma batata média (150 g): 150 calorias de energia, 3,7 gramas de proteínas, 0 grama de gordura, 23 gramas de carboidratos, 27 gramas de fibras, 5 miligramas de sódio e 729 miligramas de potássio.

JÁ SABEMOS QUE A BATATA SE MOSTRA EXTREMAMENTE EFICIENTE COMO ALIMENTO. VAMOS, ENTÃO, A ALGUMAS DICAS PARA PREPARÁ-LA COM MAIS SABOR: PARA AS BATATAS FRITAS FICAREM SEQUINHAS E MACIAS, ANTES DE FRITAR COLOQUE-AS NO CONGELADOR POR MEIA HORA. O PURÊ DE BATATA GANHA SABOR E UMA CONSISTÊNCIA MAIS LEVE SE VOCÊ ACRESCENTAR À MISTURA UMA CLARA EM NEVE. PARA AS BATATAS NÃO DESMANCHAREM DURANTE O COZIMENTO, COLOQUE UM POUCO DE ÓLEO NA ÁGUA. TAMBÉM NO COZIMENTO, PARA QUE NÃO ESCUREÇAM, COLOQUE LIMÃO OU VINAGRE NA ÁGUA. SÓ SALGUE AS BATATAS NA HORA DE SERVIR. FURE AS BATATAS COM UM GARFO ANTES DE LEVÁ-LAS AO FOGO, POIS ASSIM ELAS COZINHAM POR IGUAL.

AGORA QUE VOCÊ SABE ALGUNS TRUQUES PARA INCREMENTAR O CONSUMO DESSE ALIMENTO TÃO USADO NA CULINÁRIA ALEMÃ, DESCUBRA E INVENTE OUTRAS MANEIRAS DE APROVEITÁ-LO. A BATATA TEM HISTÓRIA, TEM VALOR NUTRICIONAL E É TAMBÉM MUITO VERSÁTIL. PERÍODO DE SAFRA: JANEIRO A JUNHO.

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Gloriosa

Veneza T E X TO

E

I LU S T R A Ç Õ E S

P O R

N I K

ESTA É UMA VIAGEM DIFERENTE E EMOCIONANTE. NIK FOI A VENEZA, VIVEU A CIDADE E, COM SENSIBILIDADE DE ARTISTA, DESENHOU SEUS ENCANTOS E NARROU SEUS SEGREDOS.



VENEZA PARECE FLUTUAR. É MESMO DE SE FICAR TONTO ANDAR POR ALI “AGORA ME SINTO ASSIM, COMO QUE AINDA EM DÚVIDA SOBRE A VENEZA QUE VI. SE AQUELAS ÁGUAS QUE SUBIAM DURANTE A NOITE, NA PIAZZA SAN MARCO, FOSSEM ÁGUAS DA MEMÓRIA, ESSAS ÁGUAS DO ADRIÁTICO – OU DO MAR VENEZIANO, COMO UM DIA FOI CONHECIDO – PODERIAM TRAZER ATÉ AS MARGENS NAVIOS MERCANTES VINDOS DO ORIENTE, CHEIOS DA RIQUEZA QUE CONSTRUIU A PRAÇA. A CIDADE PARECE FLUTUAR, É UM BARCO EM QUARENTENA, COMO DISSE UM CRÍTICO MUSICAL CHAMADO BRUNO BARILLI. É MESMO DE SE FICAR TONTO ANDAR POR ALI, SUBIR E DESCER DO VAPORETTO, ESSE ÔNIBUS TÃO PECULIAR. MESMO NAS RUAS MAIS SÓLIDAS E DISTANTES DO TOQUE MACIO DAS ÁGUAS, ESSA

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Lugar TALVEZ SEJA UM SEGREDO AINDA NÃO DESCOBERTO DA CIDADE: ELA RESPIRA. É UMA TERRA QUE SE MOVE TONTURA RETORNAVA, O QUE ME FEZ PENSAR QUE TALVEZ SE TRATASSE DE ALGUM SEGREDO AINDA NÃO DESCOBERTO DA CIDADE: ELA RESPIRA. DUVIDAR DISSO NÃO SE PODE. ASSIM COMO AS ÁGUAS TÊM SUAS VARIAÇÕES, TAMBÉM AS RUAS, COM SUAS PASSAGENS ESCURAS SOBRE BLOCOS DE EDIFÍCIOS (OS SOTTOPORTALI), COM SUAS PONTES E PRAÇAS, PARECEM ESTAR EM CONSTANTE TROCA DE POSIÇÕES. É COMO SE BRINCASSEM COM A ORIENTAÇÃO DO VISITANTE, FAZENDO COM QUE, A PARTIR DAQUELE MOMENTO, ELE PASSASSE A DUVIDAR DE TUDO QUE PENSAVA SABER. OS VENEZIANOS TALVEZ PARTICIPEM DESSE JOGO. TAMBÉM ELES NÃO PARECEM REAIS, QUASE NUNCA SE QUEIXAM DA MULTIDÃO DE TURISTAS QUE ASSUSTA QUEM CRUZA DA PONTE DE RIALTO ATÉ A PIAZZA SAN MARCO. SURGEM E DESAPARECEM PELAS ESQUINAS, COM SEUS ROSTOS VERMELHOS E O OLHAR TRANQÜILO DE MARINHEIROS. ESTÃO CIENTES DE QUE O TEMPO DE GLÓRIA DA REPÚBLICA DE VENEZA ACABOU FAZ MUITO, MAS NÃO SE IMPORTAM, A GLÓRIA DA CIDADE ESTÁ VIVA, RESPIRA!



Lugar

A SENSAÇÃO NA DESPEDIDA FOI DE DAR ADEUS À PESSOA AMADA. EM VENEZA DEIXEI PARTE DO MEU CORAÇÃO

SENTEI DURANTE DOIS DIAS EM CANTOS SILENCIOSOS, PARA DE-

ENTRE O ÓCIO E A AVENTURA, ENTRE O SONHO E A GUERRA, É

SENHAR. TAMBÉM EM BARES E CAFÉS ANIMADOS, E PROVEI SA-

TAMBÉM UM TÍPICO VENEZIANO. MINHA SENSAÇÃO NA DESPEDI-

BOROSAS ESPECIARIAS, TRAZIDAS ATÉ ALI UM DIA POR ALGUM

DA FOI DE DAR ADEUS À PESSOA AMADA. ME VIRAVA NA JANELA

VIAJANTE. MARCO POLO? TALVEZ, ESSE ILUSTRE CURIOSO QUE

DO AVIÃO TENTANDO VER DO ALTO UM POUCO MAIS DE SUAS

RESUME BEM O ESPÍRITO DE UMA TERRA QUE SE MOVE. CORTO

FORMAS, ESPERANDO QUEM SABE UM ADEUS, MAS NADA. VENEZA

MALTESE, PERSONAGEM DE QUADRINHOS QUE TANTO ADMIRO,

SUMIU E COM ELA DEIXEI PARTE DO MEU CORAÇÃO, QUE ESTÁ LÁ

É FILHO DE UM VENEZIANO. MARINHEIRO ERRANTE, SEMPRE

EM ALGUM LUGAR, SOB SUAS ÁGUAS VERDES.”

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Estilo


Os novos

gourmets

P O R

T E T Ê

PAC H E C O

F OTO S

L E T Í C I A

R E M I Ã O


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A COZINHA AGUÇA OS SENTIDOS DAS CRIANÇAS E É UM Cresci ouvindo que cozinha não era lugar de criança. Aliás, não era lugar de ninguém que não fosse a dona da casa e sua assistente quase sempre gorda. As incursões culinárias da minha família nunca foram muito além dos churrascos de final de semana e de um ou outro lanche noturno. Nossa especialidade eram as pipocas e os pinhões. De vez em quando meu pai arriscava uns tostex. Quase não tenho recordações de fazer maravilhas com leite moça ou de assistir a meus irmãos lidarem com apetrechos de gourmet. Cozinha era aquele lugar que ficava lá: “Tá lá na cozinha…”. Lá era longe do resto da casa. Não aparecia na televisão em horário nobre e muito menos era exibida bem

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no meio da sala. Mas isso foi no século passado. Nos anos 2000 a cozinha está na moda. Ficou democrática. Virou um charme estar nela com as mãos todas sujas de farinha. A cozinha ganhou lojas especializadas, livros inspiradores e, como não poderia deixar de ser, uma legião de especialistas. Todo mundo está freqüentando algum curso de culinária ou indo atrás de alguma espécie de ingrediente. Inclusive meu filho de 4 anos. “Mãe, tem ovo?” Pra atirar em quem? – pensei, preocupada, antes de descobrir que era para levar para a escola. Na maioria das pré-escolas modernas, a culinária é assunto constantemente em pauta. Por meio dela, as crianças desde bem pequenas têm noções de


CLUBINHO DO ESQUILO ENSINA CULINÁRIA PARA A GAROTADA

VERDADEIRO PLAYGROUND história, geografia, matemática. E aprendem também a se relacionar umas com as outras, dividir tarefas, ter paciência, e não apenas observar, mas também usufruir o resultado de um trabalho de grupo. A cozinha aguça os sentidos, reforça os vínculos familiares, sacode a preguiça, é um verdadeiro playground para a descoberta de novas cores, sabores e texturas. Poucas brincadeiras oferecem tantas oportunidades. Além do mais, se é de pequeno que se aprende a comer direito, é possível que o contato com ingredientes e receitas diferentes estimule as crianças a entenderem que existe vida depois do hambúrguer com batata frita. E, assim, quem sabe elas possam crescer mais

Há alguns anos a Companhia Zaffari vem desenvolvendo um projeto de ensino de culinária à garotada. Aos sábados, sob o comando da professora Rosaura Fraga, os participantes do Clubinho do Esquilo fazem aulas práticas e aprendem a preparar diversas receitas. O palco dessas aventuras é o Atelier de Culinária Zaffari, instalado na loja da rua Cristóvão Colombo, em Porto Alegre. Crianças de 5 a 9 anos podem participar das aulas, que são gratuitas. A organização apenas solicita que cada um leve, a título de inscrição, um quilo de alimento não-perecível, para doar a entidades carentes. Não se trata de exigência, mas de um pedido. E todas as crianças fazem questão de contribuir. Nas tardes de sábado, das 15h às 16h, paramentados com aventais do Clubinho, os meninos e meninas exercitam seus talentos gastronômicos. E ao final de cada aula fazem uma grande festa, quando podem degustar todos os pratos preparados. Para obter mais informações sobre o Clubinho do Esquilo e as aulas de culinária, entre em contato com o Marketing da Companhia Zaffari, pelo fone 3337.3111, ramal 3402.


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O CONTATO COM RECEITAS AJUDA A CRIANÇA A DESCOBRIR saudáveis e criteriosas, menos lotadas das porcarias que se escondem atrás dos salgadinhos, refrigerantes e outras guloseimas falsamente coloridas. Nunca vou esquecer do estado de choque que eu fiquei quando meu filho pediu alcachofra para o garçom de um restaurante e, diante da negativa – não tinha alcachofra fresca –, ele emendou, “… Ah, então me traz palmito mesmo”. Eu fui descobrir o que era alcachofra com pelo menos cinco vezes mais idade que ele. Li recentemente no site do The New York Times um texto do autor de Every Night Italian, Giuliano Hazan. Reproduzo: “… Quanto mais ensinarmos nossos filhos a apreciar a boa comida e o prazer que se pode extrair de

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comer tranqüilamente junto, como família, menos provavelmente sentiremos a necessidade de fazer mil dietas. Saborear uma boa refeição simplesmente nos faz sentir bem. A comida não deve ser temida. Deve ser uma fonte de prazer e bem-estar”. As fotos que ilustram esta matéria foram estreladas por Juju Pernambuco, que acaba de lançar um livro, e seus três convidados, numa fria, cinza e chuvosa manhã de julho, em Porto Alegre. O clima mais que perfeito para a emocionante aventura de preparar um cookie. A receita, para quem ficou com água na boca, está na página seguinte. Divirtam-se.


QUE EXISTE VIDA ALÉM DO HAMBÚRGUER COM FRITAS LIVROS QUE PODEM MUITO BEM FREQÜENTAR A ESTANTE DOS BRINQUEDOS JUJU NA COZINHA DO CARLOTA AUTOR: CARLA PERNAMBUCO E PINKY WAINER EDITORA: CARAMELO (80 PÁGINAS)

EXPEDITO, O COZINHEIRO AUTORAS: LILIANA IACOCCA E MICHELE IACOCCA EDITORA: MODERNA (48 PÁGINAS)

FOGÃOZINHO – CULINÁRIA INFANTIL EM HISTÓRIAS AUTORES: FREI BETTO E MARIA STELLA LIBANIO CHRISTO EDITORA: MERCURYO (62 PÁGINAS)

COLEÇÃO HISTÓRIAS PARA LER E SABOREAR AUTORA: ROSANA RIOS, EDITORA: STUDIO NOBEL UM QUADRO NA PAREDE E DOCE DE ABÓBORA NO TACHO: 32 PÁGINAS; PÔR-DE-SOL E PÃO DE QUEIJO: 40 PÁGINAS; A CIDADE, OS ERRES E AS ROSQUINHAS DE COCO: 40 PÁGINAS

O LIVRO DE RECEITAS DO MENINO MALUQUINHO AUTOR: ZIRALDO (RECEITAS DE FÉ EMMA XAVIER) EDITORA: MELHORAMENTOS (79 PÁGINAS)

BOCA MOLE AUTORAS: CIÇA KFOURI MOREIRA FERREIRA E CLAUDIA MORALES. EDITORA: TERRA VIRGEM (47 PÁGINAS)

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De mãe para filha desde 1995 Carla ficou grávida de Júlia e do Carlota ao mesmo tempo. Era o ano de 1995 e os Pernambuco tinham acabado de chegar de Nova York. Um mundo de possibilidades se abria para eles. Filho novo, restaurante novo, Brasil de novo. Carla circulava entre as mesas recém-inauguradas com aquele barrigão próspero e feliz. O sucesso era óbvio. Quase dez anos depois, o Carlota é um dos melhores restaurantes do Brasil e o ex-barrigão de Carla é uma menina linda, como não poderia deixar de ser a filha da inventora do petit gateau de doce de leite, um doce de pessoa. Pois Carla e Júlia acabam de aprontar mais uma para a gente se deliciar: Juju na Cozinha do Carlota,

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com ilustrações de Pinky Wainer. “É um livro infantil de receitas, e não um livro de receitas infantis”, diz Carla. Júlia comenta a frase de sua mãe com um sorrisinho no canto da boca que diz tudo. Filha de chef, chefzinha é.

DE QUEM FOI A IDÉIA DO LIVRO? Da minha mãe, claro. QUAL A SUA RECEITA FAVORITA? Ai, não é só uma. O brownie, o petit gateau e o nuggets. VOCÊ PRETENDE UM DIA ABRIR SEU PRÓPRIO RESTAURANTE? Um restaurante não sei, mas um lugar pra comer doces


COOKIES DE CHOCOLATE 1/2 XÍCARA DE MANTEIGA AMOLECIDA 1 XÍCARA DE AÇÚCAR MASCAVO 3 COLHERES (SOPA) DE AÇÚCAR 1 OVO INTEIRO 2 COLHERES (CHÁ) DE ESSÊNCIA DE BAUNILHA 1 XÍCARA E 3/4 DE DE FARINHA DE TRIGO 1/2 COLHER (CHÁ) DE FERMENTO EM PÓ 1/2 COLHER (CHÁ) DE BICARBONATO 1/2 COLHER (CHÁ) DE SAL 1 XÍCARA E 1/2 DE CHOCOLATE EM TABLETE PICADO PEQUENO

e salgadinhos. E vai se chamar Chez Juju.

COZINHA É LUGAR DE… Crianças!… Com adulto junto.

Modo de fazer: Coloque a manteiga e os açúcares na tigela da batedeira. Bata com a pá-raquete em velocidade média por 30 segundos, até que a mistura fique fofa. Junte o ovo e a baunilha e bata até misturar bem. Em outra tigela, peneire a farinha com o fermento, o bicarbonato e o sal. Vá colocando a farinha e o fermento peneirados, aos poucos, na mistura que está na batedeira, enquanto ela estiver ligada. Depois acrescente o chocolate picado. Molde os biscoitos em formato oval. Asse em forno médio pré-aquecido, durante 6 a 8 minutos.

QUE INGREDIENTES UM CANDIDATO A “CHEF” DEVE TER? … chocolate, açúcar, ovos, farinha, fermento e a minha mãe. COM QUEM VOCÊ DIVIDIRIA UM COOKIE? Com meu irmão Felipe. NEGRINHO OU BRIGADEIRO? Os dois, ué. E fim de semana no Rio.

RECEITA EXTRAÍDA DO LIVRO “JUJU NA COZINHA DO CARLOTA”


Bem Viver C E L S O

G U T F R E I N D

EQUILÍBRIO EMOCIONAL Questão de impressão digital Este é um texto de encomenda. Significa que não foi espontâneo. Partiu de uma demanda, que foi a de um artigo sobre o equilíbrio emocional, de preferência com algumas dicas. Isso não é problema, é desafio. Muitos outros já o aceitaram e dele fizeram obras-primas, como Mozart. Tentaremos ser mais modestos; modéstia faz bem à saúde mental. Se equilíbrio emocional existe e é divino, o diabo é que não existem dicas. Isso porque, como afirmou O. Cavalcanti, cada pessoa é como uma impressão digital. Original, irreplicável (até clone em contrário), única. Se eu disser, como direi, que faz bem ter bom humor, religião (ou fé) e viver em companhia (as estatísticas provam), logo virá a minoria de carrancudos, mal-humorados e céticos gritando em coro: vamos bem, obrigado. Por isso a primeira grande dica é ignorar este texto. Se ele tem humor, e tem, é porque S. Freud mostrou o quanto é saudável rir de si mesmo. E a etnopsiquiatria provou o quanto as referências culturais (e as crenças) nos tornam mais saudáveis mentalmente. E. B. Bettelheim defendeu a idéia de encontrar um sentido para a vida. E D. Stern mostrou que nada nos faz melhor do que a matriz de apoio, que são os outros com quem contamos. No entanto, acima disso, estamos nós com nossa impressão digital originalíssima, que pode estar pedindo uma outra história. É importante, como pregou S. Ferenczi, poder pensar por si mesmo, com autonomia. Se nos cobram um tipo de trabalho, nossa essência pode estar pedindo outro. Essa idéia leva a outra. Se você está bem taludinho, muito tempo foi perdido. Mas se você ganhou um bebê, a chance é

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enorme de ajudá-lo a construir um certo equilíbrio emocional. Eis uma tarefa que começa cedo: na gravidez. No primeiro ano de vida. Tocando o bebê, cantando para ele, olhando. Deixando-o o máximo possível de fora de nossas próprias dores. Respeitando a sua autonomia. Para chegar em uma base sólida, marca talvez universal para uma vida mais feliz. Depois de crescido, há tempo ainda. Todo encontro repete o primeiro. Nunca é agora, disse um poeta ou um filósofo, o que dá no mesmo. A cada novo encontro, revivemos nossa base, e estamos dispostos a mudar. Certa vez, conheci dona Zenaide. Quase octogenária, contava uma história de isolamento e maustratos, desde que era bebê. Formávamos um grupo que contava histórias. No fim da história, dona Zenaide era outra. Mais próxima de si própria, dos outros e da neta de sete anos, para quem nunca havia contado nada. Pois contou. Aliás, contar é saudável. Expressar, também. Transformar fantasmas e dores em um momento de esporte, em um espaço de arte, em alguma coisa. O que é terapêutico, mas não é lei. Este texto, afinal, não foi espontâneo. Mas foi bom. Tornou-me mais saudável no dia de hoje. Pois se os especialistas recomendam caminhada e algum sol, minha impressão digital me recomenda há muito tempo a reclusão e a escrita. Meu colesterol não anda lá essas coisas; o peso, tampouco. Mas o equilíbrio emocional dá as caras e até sorri. CELSO GUTFREIND É MÉDICO PSIQUIATRA E ESCRITOR. COMO MÉDICO, ESPECIALIZOU-SE EM PSIQUIATRIA DO BEBÊ E DA CRIANÇA NA UNIVERSIDADE DE PARIS. COMO ESCRITOR, TEM QUINZE LIVROS PUBLICADOS.




Com mucho

gusto, Guatemala

T E X TO S

E

F OTO S

P O R

C R I S

B E R G E R

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SUBI AS ESCADARIAS DAS PIRÂMIDES, ROMPI MEUS LIMITES E A RECOMPENSA FOI UMA LINDA VISTA A Guatemala é o segundo país da América Central que tenho o imenso prazer de conhecer. Não sei se estou influenciada pelo road movie “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, mas começo a achar que este canto do mundo tem a alma mais livre. Carrega a aura de ser CentroAmérica. É o berço da civilização maia. Foram 36 anos de guerra civil que ficaram para trás. Possui 24 idiomas diferentes, sendo 21 deles de origem maia, e é cercada por vulcões. Um currículo nada menos do que impressionante. A viagem aconteceu mais ou menos assim: era uma quartafeira quando o convite para participar da “press trip” a esse exótico país adentrou minha caixa de e-mails. Primeira reação? Euforia. Claro, topei na hora. Depois comecei a pensar: onde fica a Guatemala? O que vou encontrar por lá? Meu natural espírito aventureiro desafiava meu medo do desconhecido. Lembrei uma frase antiga de que todo mundo um dia já ouviu falar: “Aventurar-se causa ansiedade, mas deixar de aventurar-se é perder a si mesmo”. A decisão estava tomada. O cinema, como sempre, foi minha fonte de inspiração. Véspera de viagem, uma lista de tarefas a cumprir e eu entregue ao “Diários” de Walter Salles. Não haveria melhor película para me conectar aos sete dias que estavam por vir. A caminho da Guatemala Entre São Paulo e o Panamá, onde é feita a escala para a Guatemala, são 7 horas de vôo. Reserve um assento

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na parte direita da aeronave. Na quinta hora e meia de viagem você vai contemplar o rio Amazonas. Ele é lindo. As águas marrons dividem a floresta em duas. Densidade e força. A exatidão do contorno entre o rio e a mata é impressionante. Nuvens brancas enfeitam ainda mais o cenário, e sombras displicentes correm pelas copas das árvores. A visão é vibrante. O aeroporto do Panamá é a base de vôos para os demais países da América Central. Ele é um convite ao consumo. Depois de Miami, o lugar mais barato para a compra de eletrônicos. São necessárias mais três horas de viagem para chegar à Guatemala. Garanto: a espera compensa. Minha primeira noite na Cidade da Guatemala aconteceu em grande estilo. Não poderia deixar de sugerir o hotel, Quinta Real, como endereço de chegada. A decoração é neocolonial. A riqueza dos detalhes, deslumbrante. Os hóspedes são recebidos com champanhe. Atendimento de primeira. No quarto, presentinhos em cima da cama e uma banheira à sua espera. Depois de uma merecida noite de sono, acorde com calma e faça um tour pelo Quinta. Do jardim você terá sua primeira visão do vulcão. Respire fundo! Contrastes à flor da pele Cheguei despida de preconceitos e cheia de curiosidade. Logo no início da viagem pude perceber que o contraste é marca latente do país. Na porta de um dos luxuosos hotéis da capital meus olhos encontraram os de Juan



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NO HORIZONTE, ACIMA DA FACHADA DAS CASAS, OS VULCÕES REVELAM-SE IMPONENTES! Al. Pele escura, típica do povo guatemalteco, com olhos de um verde quase transparente, deixou-se fotografar. Contou quem era. Vendedor de batatas e bananas fritas, trabalha há 35 anos nas ruas. A poucos metros de onde estávamos, na recepção do hotel, deparei com a suntuosidade de um lustre de cristal e traços de decoração clássica européia. Mais uma vez registrei através da minha lente o belo, desta vez arquitetônico. Um casal de americanos chamou minha atenção. Fui conversar com eles no intuito de entender o que os turistas buscam na Guatemala. Minha surpresa foi descobrir que aquele casal estava ali para adotar uma criança. Conheci os dois Antonio Reys algumas horas mais tarde. Antonio Reys, de 55 anos, é uma figura clássica do jornalismo da Guatemala. Destaca-se no meio da multidão. Talvez seja a pele escura, a espessa barba branca, os olhos puxados, a simpatia no olhar. Ganhei sua atenção e fui apresentada para o seu filho, o precoce Antonio Reys Filho, de 13 anos, que promete se candidatar a presidente da República em 2025. Mais alguns dias pelo país e entendi que o povo, apesar de todas as diferenças e dificuldades, sabe sorrir. Um sorriso sincero, puro e bonito. Eles amam seu país e se orgulham da sua cultura e tradição. Não cansam de repetir as doces palavras que trago no coração: “Com mucho gusto, señorita”. Este foi apenas o começo. Ainda havia muito a ver e viver nos próximos dias de viagem.

O passado e o presente tornam-se um só “La Antigua Guatemala” revelou-se uma deliciosa surpresa. Foi fundada em 1543. A Unesco a declarou Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1979. Durante mais de 200 anos foi capital do país. O grande terremoto de 1773 fez com que a sede política se mudasse para a Cidade da Guatemala, a 45 quilômetros de Antigua. As ruas são feitas de pedras, as construções datam do século XVI. Pátios internos encantam com seus jardins impecáveis. A colonização espanhola deixou marcas na arquitetura. Aconchego e inspiração são esbanjados a cada esquina. No horizonte, acima da fachada das casas, os vulcões El Água e El Fuego revelam-se imponentes. Mulheres maias carregam, em cima das cabeças, grandes cestas, esbanjando o colorido do artesanato local. Carros antigos compõem um cenário de nostalgia ao lado dos grandes casarões. Os trajes típicos emprestam um charme especial a seus moradores. Seduções de Antigua Tomar café da manhã contemplando um vulcão é uma sensação revigorante. Dias ensolarados em Antigua, uma dádiva. As cores ficam mais fortes e a cidade ainda mais bonita. Acordar cedo em viagens pode parecer insanidade, mas acredite, é nas primeiras horas do dia que o sol ilumina de uma maneira especial. As melhores imagens que fiz de Antigua foram captadas entre sete e oito e meia da manhã. Além de a luz estar perfeita, vi a cidade acordar.

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ELES AMAM O PAÍS, SUA CULTURA E TRADIÇÃO E NÃO CANSAM DE REPETIR: COM MUCHO GUSTO, SEÑORITA As crianças indo para a escola. Os adultos, trabalhar. Os ônibus coloridos despertando para mais um dia de idas e vindas. O ritmo da vida seguindo seu fluxo natural. O cair da tarde é outro momento especial. Viajantes se deixam levar pelas horas. O azul do céu cede espaço para o negro da noite e o brilho das estrelas. O clima ameno e agradável torna irresistível a idéia de uma caminhada. O ar se enche de música. A noite está começando. Se o momento é de um drink, o pub irlandês Reilly’s é bárbaro. A poucos passos dele está o Gaia. O dono é judeu, o que explica a forte presença de características do Oriente Médio na decoração. Lugarzinhos românticos para jantar? Elejo o rústico El Sabor del Tiempo e o elegantíssimo Da Vinci. A qualquer hora do dia o restaurante espanhol Gitanos é uma ótima pedida. O Miguel e o Joseph são os criadores da casa. A especialidade são tapas mediterrâneas. Pelas paredes há um toque marroquino. Não deixe de provar a sangria preparada pelo Miguel. A simpatia dos garotos que trocaram o frio da América do Norte pela primavera da Guatemala conquista os visitantes. Se bater saudade de casa, peça para eles tocarem um dos maravilhosos CDs de bossa nova que constam no repertório do Gitanos. Para garantia de bons sonhos aposto no “Porta Hotel Antigua”. Tem ótima vista para o vulcão, e os quartos são um aconchego só. Outra boa pedida é a “Posada El Antaño”, uma graça. Bom gosto é um dom democrático por lá. Não é maravilhoso?

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Se você deseja momentos de contemplação, calma e paz de espírito, não se apresse em seguir viagem. Fique um pouco mais. Vá descobrindo a cidade aos pouquinhos. Uma maneira bacana de conhecer o território é contratar o serviço de um mototáxi. Já explico do que estou falando: são motos transformadas em pequenos carros. Pequenos mesmo. Na frente tem lugar só para o motorista, atrás cabem até três passageiros (bem juntinhos). Essa é uma maneira criativa e engraçada de fazer um city tour. Peça para o motorista levar você no Convento de Santa Catalina e das Capuchinas, na “Plaza Mayor”, na Casa Santo Domingo e na Igreja La Merced. Reserve umas quatro noites em Antigua e depois siga para as ruínas maias em Tikal. Berço da civilização maia O Parque Nacional de Tikal fica no extremo norte do país. As ruínas e pirâmides da civilização maia encontram-se em meio à selva de Petén. A melhor maneira de chegar a Tikal é de avião. Da Cidade da Guatemala saem vôos regulares para Flores, que fica a 65 km do Parque. Eu fui e voltei no mesmo dia. Minha sugestão: durma uma noite por lá. Você poderá percorrer o parque com mais calma e liberdade. Em Tikal faz bastante calor e é úmido. Não podem faltar na sua bagagem roupas leves, sapatos confortáveis, protetor solar e repelente. Contrate um guia e se prepare para conhecer o maior



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O MERCADO DE CHICHICASTENANGO É O MAIOR CAOS POÉTICO QUE EU JÁ CONHECI sítio arqueológico maia. São 3 mil construções em 16 quilômetros quadrados. Quebrando limites A primeira pirâmide que eu conheci foi a número 5 (elas são identificadas por numeração). Na lateral esquerda tem uma escada que leva os mais corajosos até o topo (65 metros). Eu de corajosa não tenho nada. Por algum motivo que desconheço, quando percebi estava no décimo degrau dos 90 que se tem pela frente. Entrei em pânico. A escada é quase uma reta, e a subida tem que ser feita de lado, porque senão os joelhos batem no próximo degrau. O mesmo ímpeto que me fez desejar subir me ajudou a dominar o medo. O segredo é não olhar para baixo e controlar a adrenalina, ou, pelo menos, tentar. A visão das outras pirâmides e templos maias no meio da selva é deslumbrante. Estamos acima do vôo dos pássaros. Se subir foi um ato heróico, descer nem se fala. Foi o meu bom amigo Guilherme Scarance quem me ajudou. Descemos lado a lado, enquanto ele tentava me distrair contando uma piada. Subir nessa pirâmide foi quebrar limites. Se você é como eu, aproveite a oportunidade. De volta à estrada, o caminho segue entre trilhas menores e maiores e nos leva para a grande atração de Tikal: a praça central, que toma conta do espetáculo. Nela fica a principal pirâmide: o Templo Jaguar, com 52 metros. Vestígios indicam que, no século I, existiram vi-

las agrícolas com palácios, mercados, templos religiosos e grandes habitações. Monumentos, objetos de culto e adornos que foram encontrados levam a crer que durante mil anos houve vida ativa em Tikal. Ver o sol nascer entre as ruínas é uma experiência única. Imaginar como a civilização maia pôde construir tão gloriosa arquitetura é um exercício que nos leva a crer na imensa capacidade humana de criação. Um motivo para voltar Não posso excluir o Lago Atitlán desta matéria. Minha passagem por ele foi muito rápida e abaixo de chuva torrencial. Peço que me perdoem, mas não pude registrar a beleza que inspirou Aldous Huxley ao dizer ser esse o lago mais belo do mundo. Atrevo-me a sugerir uma estada no Hotel Atitlán, que abriga um jardim botânico a poucos passos das margens do lago. Recanto perfeito para contemplar os três vulcões que emolduram suas águas. Lanchas levam os viajantes para conhecerem aldeias indígenas à beira do Atitlán. O percurso não leva mais do que 20 minutos. Conheci o povoado indígena de Santiago. Confesso que imaginei encontrar uma aldeia mais primitiva, bucólica. Me senti uma turista invadindo território alheio. Quanto a eles, imagino que estejam cansados dos disparos das máquinas fotográficas. Para serem fotografados cobram 1 quetzal. Foi difícil não registrar tamanha peculiaridade, mas não gostei de ser uma intru-

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A GUATEMALA É COMO UMA COLCHA DE RETALHOS: COLORIDA, MULTICULTURAL, DINÂMICA E BELA

Caos poético de Chichicastenango O cenário é surreal. Imagine uma igreja do século XVI, toda branca. Esta é a igreja de Santo Tomás. O local onde está construída a igreja cristã foi cenário de culto maia. Rituais de purificação maia continuam sendo feitos sobre ela nos dias de hoje. Romeiros misturam ritos católicos e maias. Aos seus pés, o mercado de Chichicastenango, com suas tendas de artesanatos, vestimentas e máscaras de um colorido impressionante. Uma quantidade expressiva de pessoas circula pelas ruelas. Turistas, índios, viajantes, peregrinos. Rostos marcados pelo passar dos anos, crianças penduradas por panos e carregadas nas costas das mães, olhos curiosos por tanta singularidade. O mercado de Chichi acontece todas as quintas-feiras e domingos.

trar. Decidimos desvendar o vulcão Pacaya. Um dos três em atividade no país. O sol estava escondido atrás de muitas nuvens. Nosso guia, o Vinícius, não nos deixou subir até a cratera. Medida de segurança em função da pouca visibilidade. Mesmo assim foi uma experiência mágica. A trilha que liga o pequeno vilarejo de San Francisco de Sales até os pés do vulcão é inspiradora. Uma caminhada e tanto. Pela frente, uma subida íngreme que deve ser percorrida desfrutando a paisagem. Três cães por companhia. Fiéis amigos. A temperatura começa a cair. O corpo esquenta com o exercício. O coração acelera. O silêncio domina e só é quebrado pelo canto dos pássaros. A terra é negra, são as pedras do vulcão. Mesas e bancos feitos de pedras convidam os aventureiros para um descanso. Hora de tirar fotos. Confraternizar. Sentimos que o lugar mexe conosco. Ficamos mais amigos. Chegamos na base do Pacaya depois de duas horas de caminhada. Brumas escondiam o vulcão. Quando ele se deixava revelar nos faltavam palavras diante de tamanha beleza.

O vulcão fala conosco Último dia. Saudades de casa, é verdade. Uma vontade enorme de começar a contar esta história. Tanto a escrever. A responsabilidade de traduzir um país distante do meu. A Guatemala que fui descobrindo, me tornando íntima, próxima e tão bem recebida. Jamais esquecerei as últimas horas da viagem. O grupo de jornalistas brasileiros que havia sido dividido em duas equipes volta a se encon-

Um último olhar antes de partir Pedimos ao Vinícius para nos levar a um mercado típico local. Assim chegamos a Palín. Embaixo de uma grande seiba (árvore típica da Guatemala), bancas de frutas, verduras, artesanatos e os mais diversos produtos eram comercializados entre os moradores. Já eram quatro horas da tarde quando se votou por uma pausa para o almoço. Antigua me chamava e não pude ficar. Pro-

sa. Das escadarias da igreja local, que fica no topo do povoado, se tem uma vista privilegiada da paisagem do lago. Uma ida a Santiago vale para conhecer a cultura do lugar e voltar para casa com novas histórias para contar.

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EM 1543, ANTIGUA FOI FUNDADA. NO ANO DE 1979, DECLARADA PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE curei por um táxi que me levasse até ela e de volta ao hotel. Eu estava disposta a gastar US$ 40, mas ninguém queria me levar por menos de US$ 50. Quando eu já estava quase desistindo encontrei o Davi, que aceitou minha proposta. Acabei ganhando um amigo. Fomos conversando durante todo o trajeto. Davi me contou dos anos de guerrilha nas montanhas, da atual delinqüência juvenil, de como o povo maia é negociante e inteligente e também de quanto gosta de ser guatemalteco. Com orgulho, falou do clima agradável que predomina em todas as estações do ano, da riqueza multi-cultural de seu país e da alegria de sua gente. Percorri, mais uma vez, as ruas irregulares de Antigua. Era uma segunda-feira e a cidadezinha estava agitada. Totalmente por acaso entrei no “Almacen Troccoli”. Fui recebida pela simpática Carmem Beatriz Herrera, outra guatemalteca que não poupa elogios a seu povo e nem economiza aplausos ao rum Ron Zacapa Centenário, produzido na Guatemala e considerado o melhor do mundo, pelo The Beverage Testing Institute, de Chicago. O Troccoli é fruto do amor entre um italiano e uma guatemalteca. Isso há 101 anos. O armazém é lindo. Licores, vinhos, cafés tomam conta de toda a parede e enchem os olhos com rótulos coloridos, garrafas com diferentes formatos e tonalidades. Não deixe de trazer para o Brasil uma garrafa de rum e um pacote do café Dalton, outro motivo de orgulho do país. Oito horas da noite. O ponto de encontro com o Davi

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era na frente da catedral. Ganhei mais cinco minutos para uma última foto. Enquanto me esperava, meu mais novo amigo foi pesquisar um livro que pudesse responder às minhas perguntas sobre os anos de guerra civil. Para os curiosos como eu, passo adiante a dica “História da Guatemala”, de Francis Polo Sifontes. Durante três horas me deixei levar entre uma ruela e outra. Apesar do meu péssimo espanhol, consegui fazer alguns amigos, registrei muitas imagens, fiz anotações no meu bloquinho de viagens e finalmente me senti preparada a traduzir um pouquinho da essência da Guatemala. Dicas de quem vos escreve Na sua primeira noite entregue-se às mordomias do Hotel Quinta Real. Afinal, quem não gosta de ser bem tratado? No dia seguinte chame um táxi e siga para “La Antigua Guatemala”. Esqueça da vida por uns quatro dias. Trate-se bem. Curta os deliciosos restaurantes e os encantos dos hotéis. Embarque na máquina do tempo e desvende o passado de Antigua. Tire um dia para conhecer o vulcão Pacaya. Hora de seguir em frente. Voe para Tikal para conhecer o mundo maia. Em dois dias você faz isso. De volta à Cidade da Guatemala, rume de carro para Panajachel, onde está o Lago Atitlán. Depois de um “par de dias”, como falam os guatemaltecos, dirija até o mercado de Chichicastenango. É imperdível! Aposto que você concordará que esta reportagem não poderia ter outro nome, senão: Com mucho gusto, Guatemala!


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SaĂşde

Direto


ao

ponto

Você já acordou com um torcicolo do tipo que impede a travessia de uma rua de mão dupla? É, daqueles que não deixam você mexer a cabeça pros lados? Pois eu já. Só pra resumir a saga da minha dor, passei por relaxante muscular, antiinflamatório, homeopatia, massagem, bolsa de água quente e, quando já estava quase pedindo morfina, uma amiga sugeriu: quem sabe acupuntura... Lá fui eu para o consultório do Sr. Miyai, um japonês que vai direto ao ponto, ou melhor, aos pontos. Cheguei meio nervosa, com aquela sensação de que meu corpo iria virar uma almofadinha de alfinetes. Falei onde doía, ele apertou, fez shiatsu e, no final, colocou microagulhas nos pontos que estavam mais doloridos. Fui embora menos de uma hora depois, com alguns esparadrapos escondendo as agulhinhas e a recomendação de não mexer em nada até a próxima consulta. Naquela

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noite, depois de duas semanas de sofrimento, finalmente consegui dormir a noite inteira. Virei devota. Santa acupuntura. Uma terapia milenar A acupuntura não trata somente a dor. E não se limita a cravar agulhinhas nas pessoas. É muito, muito mais do que isso. Hoje, se faz acupuntura até com raio laser. Hein? Pois é... Mas antes de entrar nesse assunto, é bom saber um pouco sobre a história da acupuntura. Ela nasceu no vale do rio Amarelo, nas costas do mar da China (não é engraçado ela ter nascido nas costas?), há cerca de 5 mil anos. Huang Di, conhecido como o Imperador Amarelo, foi o responsável pela autonomia da medicina chinesa e pela difusão da acupuntura. Ele escreveu o Tratado da Medicina Interna do Imperador Amarelo, um texto em forma de diálogos em que o im-

TA I T E L B AU M

I LU S T R A Ç Õ E S

N I K

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Saúde

perador troca informações com seu ministro a respeito da arte de curar. Não me pergunte como Huang Di chegou às suas brilhantes conclusões, porque está além do meu conhecimento. Eu só sei que, depois disso, a acupuntura se expandiu pela Ásia, passou por um período de estagnação, renasceu feito Fênix, ganhou seguidores na Europa, atravessou mares, desembarcou nas Américas e chegou em Porto Alegre. Hoje, graças a Deus (ou seria a Buda?), ela está ajudando a gente a tratar os nossos desequilíbrios. A visão oriental da acupuntura defende que ela atua sobre os 14 meridianos do corpo, canais invisíveis que estão relacionados com os órgãos internos e com nossa energia yin e yang. O Sr. Miyai, cujo avô já trabalhava com as agulhas no Japão, me explicou que a acupuntura controla a energia vital do corpo e que ela é um tratamento interno e externo que traz o equilíbrio. Ou seja, não se limita a tratar um ponto específico.

A ACUPUNTURA É UM TRATAMENTO INTERNO E EXTERNO QUE TRAZ O EQUILÍBRIO, CONTROLA A ENERGIA VITAL DO CORPO

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Na fronteira entre o Oriente e o Ocidente Os médicos ocidentais, cada vez mais adeptos da acupuntura, têm uma visão um pouco menos zen. Para eles, os benefícios são alcançados porque a estimulação de certos pontos do corpo têm efeito direto sobre o sistema nervoso, liberando substâncias como a serotonina (que traz bem-estar), o cortisol (antiinflamatório natural) e a endorfina (analgésico). O Dr. João Elias Cabrera, presidente da Sociedade Médica de Acupuntura do RS, considera que a acupuntura está justamente na fronteira entre a tradição oriental e modernidade ocidental. Técnicas superantigas, como a moxabustão, mesclamse com outras mais modernas, como a acupuntura a laser e a eletroacupuntura. O Dr. Cabrera trabalha com acupuntura desde a década de 70 e acredita que uma


releitura é necessária, pois nada fica estagnado no tempo. Eu pedi para ele me contar alguns casos que o impressionaram, e ele falou de uma experiência que teve na China, quando presenciou um homem que não abria uma das pálpebras conseguir fazê-lo após ser tratado com a moxabustão, que é um tipo de acupuntura em que não se trabalha com agulhas, mas com um bastão que transmite calor aos pontos. Outro caso foi de uma paciente sua que tinha uma dor de cabeça diária há 20 anos e que se curou completamente. “A cefaléia era tão presente na vida dessa paciente que depois de curada ela chegou ao ponto de dizer que sentia saudades da dor.” Os resultados parecem milagrosos Conversando com acupunturistas e pessoas que foram tratadas por eles, chegamos à conclusão de que os resultados são mesmo milagrosos. É comum ouvir falar de gente que tinha limitação de movimento e que saiu do consultório se mexendo perfeitamente, de pessoas que sofriam de depressão e que conseguiram superar a doença, de dores crônicas que sumiram num picar de agulhas. A astróloga Amanda Costa é adepta da acupuntura desde que era adolescente. Já tratou problemas digestivos, enxaqueca, alergias respiratórias graves, estresse e, de uns anos pra cá, faz sessões para aliviar os efeitos de uma tendinite adquirida por causa do uso contínuo do computador. Ela diz que com a acupuntura sente uma melhora quase imediata e que, depois da aplicação, fica super-relaxada e bem disposta. Amanda já passou por cinco acupunturistas diferentes. Por que essa infidelidade? “São momentos de vida diferentes. De alguma forma, os acupunturistas estavam mais ligados a pessoas que eu conhecia, a indicações de amigos. E cada um tem um estilo, uma mão. Alguns têm a mão mais pesada e dói desnecessariamente.”

Sem contra-indicações ou reações adversas Na pesquisa que fiz para esta matéria, ouvi comentários do tipo “eu odeio a idéia de tomar picadas, só faria acupuntura em caso de vida ou morte”. Bobagem! Você não sabe o que está perdendo, meu amigo. As agulhas são da espessura de um fio de cabelo e não doem quando entram na pele. A sensação é de um leve choque e de um calorzinho local. Pense bem: essas picadinhas podem revitalizar seu organismo, atuam como analgésico e antiinflamatório, são excelentes para o sistema imunológico e regulam todo o organismo. O efeito é praticamente imediato e não há nenhuma contra-indicação ou reação adversa. Tenho certeza de que um dia você vai ter vontade de experimentar. Nem que seja naquela manhã em que você levantar com o pescoço todo torto... Pontos positivos O SUS, Sistema Único de Saúde, oferece acupuntura. Em Porto Alegre, o Centro de Saúde Modelo, por exemplo, atende 40 pacientes por semana. Para tornar-se um acupunturista não é necessário ser médico formado, mas é preciso passar por um curso com 700 horas/aula e prestar uma prova de nível nacional. As agulhas são sempre pessoais ou descartáveis, normalmente feitas de aço inoxidável, e podem variar de 1 cm a 12 cm de comprimento. A acupuntura é indicada para o tratamento de dor de cabeça e enxaqueca, sinusite e rinite, amigdalite, soluço, gastrite, hipertensão, paralisia facial, incontinência urinária noturna, dor nas costelas, dor ciática, dor lombar, artrite reumatóide, ansiedade, depressão e por aí vai.


Perfil

Salve,

Jorge! ELE TERIA MOTIVOS DE SOBRA PRA FAZER O TIPO

“MEU TIO MATOU UM CARA”. EU TIVE O PRIVILÉGIO DE ASSISTIR

“ESTRELÃO”. MAS, UFA, ESTÁ MAIS PARA O GÊNERO QUERIDÃO.

AO TRAILER ANTES DE ENTRAR NO CIRCUITO COMERCIAL E, SINCE-

JORGE FURTADO É UM DOS PRINCIPAIS ROTEIRISTAS BRASILEI-

RAMENTE, NEM É PRECISO TER A INTELIGÊNCIA ELEVADA AO CUBO

ROS, UM CINEASTA PREMIADO, UM FABRICANTE DE IDÉIAS E...

COMO O JORGE PARA SABER QUE VAI SER UM SUCESSO. A SE-

ENFIM, JÁ BOTOU A MÃO EM TANTO FILME E PROGRAMA DE TV

GUIR, UM POUCO DA NOSSA CONVERSA, QUE ACONTECEU NO

QUE, PARA SABER MAIS DETALHES, É MELHOR ENTRAR NO SITE

APARTAMENTO ONDE ELE MORA COM A NORA (GOULART, PRODU-

DA CASA DE CINEMA DE PORTO ALEGRE, DA QUAL, POR SINAL,

TORA DE CINEMA), A ALICE (A FILHOTA DE 4 ANOS) E COM SUAS

ELE É SÓCIO. EM JANEIRO, ESTRÉIA SEU NOVO LONGA-METRAGEM:

CENTENAS (OU SERIAM MILHARES?) DE LIVROS, DVDS E CDS.

POR

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P AU L A

TA I T E L B AU M

FOTOS

A N G E L A

FA R I A S



UM ROTEIRO PODE SURGIR DE UM CONCEITO, DE UMA FRASE, DE UMA MÚSICA, DE UMA LUZ... “TEMPORAL” FOI TEU PRIMEIRO CURTA-METRAGEM, FEITO EM 1984. NAQUELA ÉPOCA, TU IMAGINAVAS QUE ESTARIAS ASSIM, VIVENDO DE CINEMA, VINTE ANOS DEPOIS? Não, na verdade eu só tive a idéia de cinema, como uma coisa profissional, mais tarde. Em 84, eu fazia televisão, onde o negócio vai ao ar e quem não viu não vê nunca mais. Já o filme tem uma durabilidade que é sedutora. Então a nossa turma da TV se juntou e fizemos um filme que é o Temporal, mas que é ruim, muito ruim, horrível... Baseado num conto do Verissimo. Nós estragamos bastante o conto. Ele é bem fotografado, bem produzido, mas eu não tinha a menor idéia de como é que se fazia. Eu e o Zé Pedro (Goulart) dirigimos. Um absurdo completo... eu era o diretor e nunca tinha visto uma câmera... E QUANDO É QUE ENGRENOU? Em 86, a gente fez um outro curta-metragem, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda. Esse é legal... até hoje eu acho legal. E aí o filme teve uma repercussão enorme, ganhou o Festival de Gramado, ganhou prêmios fora do Brasil. Fui pra Cuba, o filme foi comprado, enfim... aí começou: “Ué, dá pra fazer isso profissionalmente”. QUAL É O MARCO DO JORGE FURTADO “CINEASTA”? O Ilha das Flores, de 1989, é o primeiro filme que eu escrevi e dirigi sozinho. Desde então, tem sido assim. Eu sou muito mais um roteirista que resolveu fazer seus próprios filmes do que um diretor. O “ILHA DAS FLORES” TEM UMA LINGUAGEM DE COLAGEM QUE ATÉ HOJE A GENTE PERCEBE NOS TEUS FILMES. A palavra é essa: colagem. Eu sempre gostei de colagem. Eu fiz o Instituto de Artes, eu gostava, até hoje gosto de desenhar, mas eu não sabia desenhar realmente, então usava muito a colagem. O Dorival já tem uma coisa de colagem, ele mistura Casablanca, King Kong, quadrinhos e tal... O Barbosa (curta-metragem de Furtado sobre o goleiro Barbosa, da seleção de 1950) é uma mistura de documentário e ficção, tem as cenas dos jogos com entrevista, então tem um pouco de colagem. E o Ilha é radicalmente isso. É uma colagem mesmo. Eu gosto de

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pegar várias coisas diferentes e misturar... DÁ PRA DIZER QUE TU TENS UMA LINGUAGEM PRÓPRIA? Acho que sim, eu tento não ter, mas, ao escrever, o estilo meio que se revela. Meu jeito de pensar as coisas, de relacionar as coisas é de colagem. O Homem que Copiava (longa-metragem de 2003) também tem essa lógica, porque ele é contado do ponto de vista de um narrador que é um garoto no limite da esquizofrenia. TU MUDAS MUITO O TEU ROTEIRO QUANDO ESTÁS DIRIGINDO? Mudo, mudo, xingo o roteirista, como é que ele escreveu essa cena? Faço isso o tempo todo. Tu escreves “chove”... Aí, pra filmar isso é uma desgraça, porque tu tens que chamar bombeiro... Às vezes eu falava pras pessoas da Globo: se me incomodarem muito eu coloco no roteiro “chove”. Pra mim são cinco letras, pra vocês é um inferno. E QUANDO OUTRO DIRETOR MUDA UM ROTEIRO TEU, INCOMODA? Acontece seguido... Uma das primeiras coisas que eu escrevi pra Globo foi um episódio do programa Delegacia de Mulheres. Só vi depois de pronto. Eu lembro que tinha uma cena em que a Heloísa Mafalda assistia uma menina tendo um ataque, berrando e tal. No meu roteiro chegava um cara e perguntava “O que é que ela tem?”. E a Mafalda respondia: “O que é que ela tem? Ela tem quinze anos”. Era assim o meu texto. E aí (ele começa a rir) eu fui ver o negócio no ar e dizia assim: “O que é que há com essa menina?”. E a resposta: “O que é que há? Ela tem quinze anos”. Eu queria morrer! Aaaah, não! É tem! É tem! Quando eu falei, reclamei, os caras da Globo nem entenderam o que eu tava falando. Que é que esse cara tá dizendo? E eu meio que resolvi dirigir por isso, entende? Eu sou muito detalhista, principalmente em termos de diálogos. A IDÉIA PRA UM ROTEIRO SURGE DE ONDE? Ela pode surgir de vários lugares, de um conceito, de uma frase, de uma paisagem, de um cenário, de uma luz, de um som, de uma música, de qualquer coisa. Eu já fiz um filme que surgiu de um cenário, um cassino abandonado em Canela, eu sempre quis filmar naquele lugar, então fiz uma história que



NIETZSCHE DIZIA: “DESCONFIE DE TODA VERDADE QUE NÃO CONTIVER UMA GARGALHADA” pudesse se passar lá. Em outro filme, que eu fiz com a Rô (Rosângela Cortinhas), a idéia surgiu das grades, porque Porto Alegre é uma cidade que tem muitas grades, muito mais do que as cidades normalmente têm. Um arquiteto espanhol que esteve aqui disse que é a cidade do mundo que mais grades tem, ele nunca viu nada igual. É uma paranóia desproporcional com a violência. Aí a gente começou a pensar nessa coisa e escrevemos um roteiro que era sobre isso. E O ROTEIRO DE “O HOMEM QUE COPIAVA”? O Homem que Copiava já veio de uma idéia, pensei em escrever a história de um cara que faz cópia e que não usa o cérebro pro trabalho, mas pra fazer outra coisa. Comecei assim, não tinha mais nada além disso. Eu fiquei escrevendo as coisas que ele pensava, depois é que fui inventar uma história. TU FALASTE EM PORTO ALEGRE. NÃO PENSAS EM SAIR DAQUI? Eu penso em morar um tempo fora, mas ir e voltar, não me transferir pra outro lugar. Eu gosto daqui. O pessoal de fora diz “Tu CONTINUAS em Porto Alegre?”. Eu acho meio ofensiva essa pergunta. Por que vocês morar no Rio? Por que vocês moram em São Paulo? No Rio até entendo, que é lindo... Mas morar em São Paulo é um inferno na terra... Eu moro aqui porque nasci aqui, na verdade a qualidade de vida de Porto Alegre é a melhor do Brasil, tem tudo num tamanho razoável. Eu não consigo ir em todos os shows que acontecem em Porto Alegre, não consigo ver todos os filmes que passam. Então tá de bom tamanho. É BOM FILMAR AQUI? É, por vários motivos. A luz é muito boa. E o tamanho da cidade, o deslocamento. TU ACHAS QUE O CINEMA BRASILEIRO TEM UMA PERSONALIDADE? Mais ou menos. Tem uma coisa boa que é a mistureba de raças, de cultura, de tudo. Essa mistura tá bem representada no cinema, com estilos diferentes. Em um determinado período todos os filmes eram muito parecidos uns com os outros, e isso criava um tipo de espectador de filmes brasileiros. Tem uma pergunta que é hilária, que eu já ouvi várias vezes. Eu tava em

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Tramandaí, em um restaurante, vendo a locação pro Dois Verões (Houve uma Vez Dois Verões, longa de 2002) e o garçom chegou e disse: “O que vocês estão fazendo aí?”. “Estamos fazendo um filme.” E ele perguntou: “Nacional?” (ele ri) “Não, é iraniano”... Virou um gênero: cinema brasileiro. MAS ISSO MUITO PELA MEMÓRIA DOS ANOS 70... Esses dias comentaram sobre filme brasileiro e alguém falou “filme brasileiro? Aquela coisa preto-e-branco com umas pessoas cantando?”. Aí tu vês que tem gente que parou nos anos 50, nas chanchadas da Atlântida. Mas assim, eu acho o cinema brasileiro, na média, muito melhor, em termos de conteúdo, do que o cinema americano. Tem um exemplo que eu acho engraçado: imagina se um cineasta brasileiro fizesse um filme onde o presidente da República, no dia 7 de setembro, pegasse um jato pra impedir a invasão de marcianos. Pra eles isso é sério! Não é comédia! O cinema brasileiro é mais maduro. Mas ao mesmo tempo, eu acho que o maior problema do país talvez seja um excesso de pretensão artística. Eu vejo, muitas vezes, pessoas que não sabem filmar uma cena básica, não sabem o mínimo de decupagem, de diálogo, de encenação, querendo fazer um filme que revolucione. QUAL A IMPORTÂNCIA DE TER UMA MULHER LINDA NO ELENCO DE UM FILME?(“O HOMEM QUE COPIAVA” TEM LUANA PIOVANI NO ELENCO E “MEU TIO MATOU UM CARA” TEM DEBORAH SECCO) Muito importante, nada é mais bonito do que uma mulher bonita. E “a beleza salvará o mundo” (Dostoievski). HUMOR É FUNDAMENTAL? Eu acho que é fundamental, sempre. Tu podes alternar a tragédia com o humor. Quem inventou isso foi o Shakespeare, ninguém antes misturava tanto. A piada te leva a um limite do pensamento que tu não exploraste ainda. Nietzsche já dizia: desconfie de toda verdade que não contiver uma gargalhada. QUAL A COISA MAIS ENGRAÇADA QUE TU LEMBRAS DE TER ACONTECIDO NUM SET DE FILMAGEM? Uma coisa engraçada que já me aconteceu mais de



Perfil

NADA É MAIS BONITO DO QUE UMA MULHER BONITA. E uma vez foi dirigir uma pessoa pensando se tratar de um figurante e descobrir que era uma pessoa “real”, que estava passando. Parei um sujeito na calçada e disse que ele estava saindo atrasado do prédio, tinha que sair antes. O cara ficou me olhando com uma expressão estranhíssima até eu perguntar se ele era figurante. Ele morava no prédio e estava saindo para o trabalho... COMO É A TUA ROTINA? TU ESCREVES TODOS OS DIAS? Escrevo todos os dias. Acordo, começo a escrever no mais tardar às 9 horas. Leio os jornais, respondo a e-mails e fico lendo e escrevendo o dia inteiro, se eu não tô dirigindo, claro. Eu escrevo muitas coisas ao mesmo tempo, abro várias janelas. ESTÁS ESCREVENDO PRA GLOBO NO MOMENTO? Ano passado eu fiz o Cena Aberta, uma série. E tenho encomenda de outra. Tô assim, procurando histórias, porque ali são adaptações. Às vezes escrevo coisas que eu não tenho a menor idéia de pra que servem, vou escrevendo, vou escrevendo...

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TU LÊS BASTANTE? Eu leio compulsivamente. Sou um leitor totalmente indisciplinado, leio de tudo, sempre tô lendo, normalmente mais de um livro ao mesmo tempo. Agora estou lendo A Pintura como Arte, de Richard Wollhein (Cosac e Naify). ALGUM GÊNERO PREFERIDO? Política, sociologia, coisas assim. Gosto de poesia, na verdade comecei mais lendo poesia do que outras coisas. NUNCA ESCREVESTE POESIA? Já! Todo mundo já escreveu... Mas felizmente o bom senso me fez parar... QUAL O CORREDOR DE QUE MAIS GOSTAS NO SUPERMERCADO? Corredor preferido? Aquele do meio, que cruza por todos os outros e de onde eu posso enxergar tudo. O QUE É QUE NUNCA FALTA NA TUA GELADEIRA? Suco de laranja. Água, iogurte...


“A BELEZA SALVARÁ O MUNDO” (DOSTOIEVSKI) TU COZINHAS? Não.

adulto, os personagens são mais velhos.

E QUAL O TEU PRATO PREFERIDO? Massa. De vez em quando me dá vontade de comer massa. Aliás, Porto Alegre tá mal de restaurantes de massas.

TU ÉS CALMO ASSIM QUANDO ESTÁS DIRIGINDO? Sou, sou supercalmo... Aliás, eu sou preguiçoso, um domingo desses a gente passou o dia inteiro em casa, de pijama, eu brincando com a Alice, jogando joguinho. Quando terminou o dia ela falou: “Que dia bom, nem tirei o meu pijama”.

TEM ALGUMA COISA QUE NÃO FIZESTE AINDA E QUERES FAZER? Pois é... Tem um monte de coisa que eu não fiz. Eu não fiz nenhum filme infantil. Eu nunca fiz um musical. Eu não fiz filme de terror. Eu não fiz nenhum pornô (ri)...

POR FALAR EM FICAR EM CASA, QUE FILME TU RECOMENDAS PRAS PESSOAS ASSISTIREM NO DVD? Qualquer um do Billy Wilder. Crepúsculo dos Deuses, Irma la Douce, Testemunha de Acusação...

MAS JÁ PASSOU PELA TUA CABEÇA FAZERES TUDO ISSO? Já, já...

QUAL TEU MAIOR SONHO DE CONSUMO? Uma casa com uma enorme biblioteca na beira de um lago na Itália, com uma janela de onde eu possa ver meus bisnetos velejando.

E OS PRÓXIMOS PROJETOS? Eu tô escrevendo dois roteiros ao mesmo tempo. Um é uma comédia rasgada, cubana, comédia política. E o outro é um drama completo, que eu tô escrevendo há mais tempo, bem adulto, seria o meu primeiro longa totalmente

ALGUM LEMA DE VIDA... (Ele ri). Continue a nadar, continue a nadar, como diz a Dolly do filme Procurando Nemo.

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Assim, ó... L U Í S

A U G U S TO

F I S C H E R

ALEMÃES, ALEMÃOS 180 anos depois, símbolos de trabalho, alimento e partilha Dos alemães que vieram para cá no século 19 povoar o Rio Grande do Sul, muitos foram para o campo e lá ficaram, mas teve quem viesse direto para a cidade, ali permanecendo. A maioria era gente pobre, disposta a se matar de trabalho para vencer na vida, e isso de fato aconteceu em vários casos. Havia uma pequena parte de migrantes com algum dinheiro, ou pelo menos com algum conhecimento técnico, alguma destreza particular. A divisão foi mais ou menos assim: pobres e sem habilitação foram para o campo, enquanto os com dinheiro e/ou profissão definida vieram para a cidade. Eram poucos, comparados ao montante de gente que foi para as colônias. Se a gente se perguntar que imagem desses bravos alemães originais ficou em nós, se a rural ou a urbana, a resposta vai indicar a primeira, aquela referente ao mundo da terra, ao trabalho na agricultura. Toda uma vibrante experiência urbana germânica que de fato houve em Porto Alegre, mais ou menos entre 1840 e 1940, parece ter desaparecido, ou pelo menos perdido força. Um estudo bem recente (Presença teuta em Porto Alegre no século XIX – 1850-1889, de Magda Roswita Gans, Ed. UFRGS) faz contas meticulosas e conclui que, em 1856, da população total na capital dos gaúchos (19.890 almas), uns 1.260 seriam alemães. Menos de 10% do total, alguém dirá; sim, mas é preciso considerar que se tratava de uma sociedade escravocrata, com talvez um quarto da população em condição servil. É de ver também que os teutos eram uma gente totalmente integrada na cidade, sendo a esmagadora maioria vinda diretamente da Europa com algum ofício sabido e praticado. (A autora calcula que apenas uns poucos eram pobres, para quase 80% de classe média e o restante gente com posses.) Eram alfaiates, pintores, sapateiros, carpinteiros, chapeleiros, charuteiros, fabricantes de carroças, afiadores, reparadores de várias coisas, funileiros, cervejeiros, passadeiras e engomadeiras, professores, relojoeiros, cozinheiros, mais os hoteleiros, restaurateurs, donos de bares e de fábricas as mais variadas. Moravam quase todos no centro da cidade. A tal ponto eram presentes, que algum viajante que passou por aqui anotou em seu caderninho: “Parece uma cidade alemã”. Nos anos

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de 1860 e 70, criam-se sociedades entre a população alemã: a Sociedade Orfeu, de São Leopoldo, a futura Sogipa e a Sociedade Leopoldina Juvenil. Décadas mais tarde, nos vibrantes anos da década de 1920, um jovem e futuroso jornalista chamado Carlos Reverbel, chegando para fazer a vida na capital, também constatava que bares, restaurantes, confeitarias, todo um mundo cultural em Porto Alegre era marcado pela presença alemã. Mas veio a Guerra, a Segunda, entre 1939 e 1945. Era o tempo da demência nazista na Alemanha, e aqui os alemães e seus descendentes, tivessem ou não relação com a antiga pátria (a maioria não tinha mais vínculo algum), foram castigados pelo destino: tudo que lembrasse Hitler, mesmo que fosse apenas um vago sobrenome Schmidt ou Fischer, era visto como ligado a ele, ou pelo menos era suspeito. O presidente Getúlio Vargas teve a iniciativa de suprimir o ensino em alemão nas escolas (também o italiano e o japonês). A tese era a da unificação do país, o que estava correto, mas ao preço de eliminar as diferenças, o que foi tremendo. Muita gente parou de falar a língua, deixando de transmiti-la aos filhos e netos. No interior, porém, essa perseguição parece ter poupado algumas regiões, que preservaram uma ligação mais orgânica com a cultura da língua alemã. Era gente com menos letras, menos cultura sofisticada, mas com grande capacidade de trabalho. Gente que por ter permanecido em contato com a tradição pôde passar adiante a língua e a cultura. Gente que hoje, 180 anos depois dos primeiros a chegarem por aqui, nos dá notícia de um jeito específico de ser. Desses homens e mulheres simples nos ficou o “kerb”, festa originalmente feita em torno da igreja – parece que a palavra vem de Körbe, plural de Korb, cesto, exatamente o cesto que cada família levava, cheio de comida preparada em casa, para compartilhar com os amigos e vizinhos. Nos ficou a chimia (Schmier), a cuca (Kuchen) e a mesa farta para espantar o fantasma das fomes antigas. Ficaram símbolos de trabalho, alimento e partilha, o que afinal não é má idéia, antes ou agora.

LUÍS AUGUSTO FISCHER É PROFESSOR DE LITERATURA E ESCRITOR




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