Lições aos Meus Alunos – Vol. 2
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LIÇÕES AOS MEUS ALUNOS (Vol. 2) [Clique na palavra ÍNDICE] HOMILÉTICA E TEOLOGIA PASTORAL C. H. SPURGEON PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS Título original: Lectures To My Students Tradução do original por: Odayr Olivetti Primeira Edição em Português 1980 Contracapa: Para muitos ministros do evangelho, mesmo ainda hoje, Charles Haddon Spurgeon foi um dos maiores pregadores de todos os tempos. Por que esta avaliação? Se quisermos compreender melhor seu grande sucesso, então nada melhor que ler esta segunda parte de Lições aos Meus Alunos – preleções dadas nas sextas-feiras à tarde àqueles que estudavam em sua Escola Bíblicas (The Pastors' College). O presente volume contém treze capítulos da obra Lectures To My Students, talvez a mais conhecida de todas as publicações do "príncipe dos pregadores". Que Deus abençoe estas "Lições" como o fez quando originalmente elas foram proferidas é a oração dos que as publicam na língua portuguesa.
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ÍNDICE 1. A Auto-vigilância do Ministro..............................................3 2. O Chamado para o Ministério...........................................25 3. Oração Particular do Pregador.........................................53 4. Oração em Público...........................................................69 5. O Conteúdo do Sermão....................................................93 6. A Escolha do Texto.........................................................109 7. A Arte de Espiritualizar...................................................132 8. A Voz..............................................................................150 9. Atenção...........................................................................175 10. A Capacidade de Falar de Improviso.............................194 11. As Crises de Desânimo do Ministro...............................214 12. A Conversação Comum do Ministro...............................231 13. Aos Obreiros Mal Equipados..........................................244
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A AUTO-VIGILÂNCIA DO MINISTRO "Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina" 1 Tim. 4:16. Todo trabalhador sabe que deve manter as suas ferramentas em bom estado, pois, "se estiver embotado o ferro, e não se afiar o corte, então se devem pôr mais forças". Se a enxó do operário perder o corte, ele sabe que terá que despender mais energia, ou então o seu trabalho será mal feito. Miguel Ângelo, o eleito das betas artes, entendia tão bem a importância dos seus instrumentos de trabalho, que sempre fazia com as próprias mãos os seus pincéis, e com isto nos dá uma ilustração do Deus da graça que, com especial cuidado, modela pessoalmente todos os verdadeiros ministros da Palavra. É certo que o Senhor, como Quintín Matsys na história do bom artífice de coberturas de Antuérpia, pode trabalhar com a mais defeituosa espécie de instrumentalidade, como acontece quando ocasionalmente faz com que uma pregação bastante estulta seja útil para a conversão de pecadores. Ele pode agir até mesmo sem intermediários, como quando salva pessoas sem usar nenhum pregador, aplicando a Palavra diretamente por Seu Espírito Santo. Mas não podemos considerar os atos absolutamente soberanos de Deus como uma regra para a nossa ação. No caráter absoluto do Seu Ser, Deus pode agir como bem lhe apraz, mas nós temas que agir conforme as instruções mais claras que Ele nos dá em Suas dispensações. É um fato bastante evidente este, que geralmente o Senhor adapta os meios aos fins, o que nos dá a lição de que temos mais probabilidade de realizar o máximo quando estamos nas melhores condições espirituais. Ou, em outras palavras, geralmente fazemos melhor a obra do Senhor quando os nossos dons e graças estão em boa ordem, e o trabalho sai pior quando aqueles dons e graças estão
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 5 desordenados. Esta é uma verdade prática para nossa orientação. Quando o Senhor faz exceções, estas apenas confirmam a regra. Em corto sentido, somos as nossas próprias ferramentas, e, portanto, precisamos manter-nos em ordem. Se quero pregar o evangelho, só posso usar a minha própria voz; daí, devo aprimorar as minhas virtudes vocais. Só posso pensar com o meu cérebro, e sentir com o meu coração; portanto, devo educar as mInhas faculdades intelectuais e emocionais. Só posso chorar e agonizar pelas almas com a minha própria natureza renovada; portanto, devo manter vigilantemente a ternura que havia em Cristo Jesus. Ser-me-á vão suprir minha biblioteca, ou organizar sociedades, ou fazer planos, se eu negligenciar o cultivo de mim mesmo; pois livros, agências e sistemas só remotamente são instrumentos da minha santa vocação. Meu espírito, alma e corpo são os meus mecanismos mais à mão para o serviço sagrado; as minhas faculdades espirituais e a minha vida interior são o meu machado de combate, as minhas armas de guerra. McCheyne, escrevendo a um colega de ministério que estava no exterior com vistas a aperfeiçoar os seus conhecimentos do idioma alemão, empregou linguagem idêntica à nossa. Escreveu ele: "Sei que você se aplicará arduamente ao alemão, mas não se esqueça de cultivar o homem interior – quero dizer, o coração. Quão diligentemente o oficial da cavalaria conserva limpo e afiado o seu sabre; qualquer mancha ele a remove com o maior esmero. Lembre-se de que você é a espada de Deus. É Seu instrumento – espero, vaso escolhido para Ele, para levar o Seu nome. Em grande medida, o sucesso será de acordo com a pureza e perfeição do instrumento. Deus abençoa não tanto a talentos, como à semelhança com Jesus. O ministro santo é temível arma na mão de Deus".
Estar o arauto do evangelho espiritualmente fora de ordem em sua pessoa é, tanto para ele como para o seu trabalho, uma calamidade das mais graves. Contudo, irmãos, com que facilidade se produz esse mal, e com que vigilância devemos prevenir-nos contra ele! Um dia, viajando pelo expresso de Perth a Edimburgo, de repente o trem parou bruscamente porque um parafusinho de nada de um dos motores se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 6 quebrara – sendo que toda a locomotiva compõe-se virtualmente de dois motores. Quando partimos de novo, fomos obrigados a arrastar-nos lentamente apenas com uma biela de pistão funcionando, em vez de duas. Somente se perdera um pequeno parafuso. Se ele tivesse ficado em ordem, o trem teria prosseguido velozmente em seu caminho de ferro, mas a ausência de uma diminuta peça de ferro desarrumou tudo. Conta-se que nas ferrovias dos Estados Unidos um trem parou por causa de insetos que penetraram nas caixas de graxa dos eixos do comboio. A analogia é perfeita. Uma pessoa em todos os demais aspectos habilitada para ser útil pode, por algum defeito diminuto, ser extremamente prejudicada, ou até tornar-se inútil por completo. Um resultado desses é em extremo ruinoso, uma vez que está associado ao evangelho que, no sentido supremo, é adequado a produzir os maiores resultados. É terrível quando um ungüento perde a sua eficácia devido ao trapalhão que o aplica. Todos vocês sabem dos efeitos nocivos produzidos muitas vezes na água quando passa por canos ruins; assim também o próprio evangelho, passando através de homens espiritualmente doentios, pode ser aviltado a ponto de se tornar nocivo aos ouvintes. É de temer que a doutrina calvinista se torne um ensino muito danoso quando exposta por homens de vida ímpia, e apregoada como se fosse um manto para a licenciosidade. O arminianismo, por outro lado, com a sua ampla extensão do oferecimento de misericórdia, poderá causar o mais sério dano às almas, se o tom descuidado do pregador levar os ouvinte a acreditarem que são capazes de arrependerse quando bem quiserem. Com isso, pois, a mensagem do evangelho não implica em nenhuma urgência. Além disso, quando o pregador é pobre de graça, qualquer benefício permanente que poderia resultar do seu ministério em geral será fraco e completamente desproporcional ao que se poderia esperar. Muita semeadura seguir-se-á de escassa colheita. O interesse pelos talentos será inapreciavelmente pequeno. Em duas ou três batalhas em que fomos derrotados na recente guerra americana, diz-se que o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 7 resultado deveu-se à má qualidade da pólvora entregue por certos pseudo-fornecedores contratados pelo exército, de modo que os canhoneios não produziram efeito. Pode acontecer o mesmo conosco. Podemos errar o alvo, perder a nossa finalidade, o nosso objetivo, e desperdiçar o tempo, por não possuirmos dentro de nós a verdadeira força vital ou por não a possuirmos na medida em que, compativelmente, levaria Deus a abençoar-nos. Cuidem para não serem pseudo-pregadores. Um dos nossos primeiros cuidados deve ser que nos mesmos sejamos homens salvos. Que um mestre do evangelho seja antes um participante dele é verdade simples, mas ao mesmo tempo é uma regra da mais ponderável importância. Não estamos entre os que aceitam a sucessão apostólica de jovens simplesmente porque a supõem. Se a experiência pedagógica deles for mais de vivacidade do que de espiritualidade, se as suas honras se ligam aos exercícios atléticos e não a trabalhos para Cristo, exigimos prova de natureza diversa das que eles estão capacitados para apresentarnos. Nenhuma soma paga a título de honorários a cultos doutores do saber, e nenhuma soma de conhecimentos clássicos recebidos em troca, nos parecem evidência da vocação do alto. A verdadeira piedade é necessária como o primeiro requisito indispensável. Seja qual for a "vocação" que um homem simule possuir, se não foi vocacionado para a santidade, certamente não foi vocacionado para o ministério. "Arruma-te primeiro, e depois enfeita o teu irmão", dizem os rabinos. "A mão", diz Gregório, "que tenciona limpar a outrem, deve estar limpa." Se o seu sal for insípido, como pode dar sabor a outros? A conversão é uma sine qua non em um ministro – uma condição indispensável. Vós, que aspirais aos nossos púlpitos, "necessário vos é nascer de novo". Tampouco deve ser presumida a posse desta primeira qualidade, pois existe grande possibilidade de estarmos enganados sobre se somos ou não convertidos. Creiam-me, não é brincadeira infantil "fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição". O mundo está repleto de limitações, e está
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 8 apinhado de alcoviteiros do amor-próprio carnal, que cercam o ministro como abutres em volta de uma carcaça. Nossos corações são enganosos, de sorte que a verdade não está na superfície, mas tem que ser arrancada do poço mais profundo. Devemos sondar-nos a nós mesmos com ávido interesse e de modo completo, para não suceder que, tendo de alguma forma pregado a outros, não venhamos a ficar reprovados. Que corsa horrível, ser pregador do evangelho e, todavia, não estar convertido! Cada qual sussurre consigo mesmo no íntimo de sua alma: "Que coisa terrível seria para mim, se eu ignorasse o poder da verdade que me estou preparando para proclamar!" O ministério exercido por um inconverso envolve relações das mais antinaturais. Um pastor destituído da graça é semelhante a um cego eleito professor de ótica, que faz filosofia sobre a luz e a visão, comentando e distinguindo para outros os belos sombreados e as delicadas combinações das cores prismáticas, enquanto ele mesmo está absolutamente em trevas! É um mudo elevado à cátedra de música; um surdo a falar sobre sinfonias e harmonias! Uma toupeira pretendendo criar filhotes de águias; um molusco eleito presidente de anjos! A esse tipo de relação poder-se-iam aplicar as metáforas mais absurdas e grotescas, se o assunto não fosse tão solene. É uma tremenda posição para um homem ocupar, pois ao fazê-lo está se comprometendo com uma obra para a qual está inteiramente, completamente, totalmente desqualificado, mas de cujas responsabilidades sua falta de habilitação não o resguarda, porque ele as assumiu voluntariamente. Sejam quais forem os seus dons naturais, sejam quais forem os seus poderes mentais, estará completamente fora do páreo para a obra espiritual se não tiver vida espiritual. E será seu dever interromper o ofício ministerial enquanto não receber esta qualificação, que é a primeira e a mais básica de todas. O ministério exercido por inconversos pode ser igualmente terrível noutro sentido. Se o homem não for realmente comissionado, que infeliz é esta posição para ele! Que poderá achar na experiência das pessoas sob
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 9 o seu cuidado pastoral que o possa confortar? Como haverá de sentir-se quando escutar o clamor dos arrependidos, ou quando ouvir as suas dúvidas repassadas de ansiedade e os seus graves temores? Ficará espantado ao pensar que as suas palavras deveriam se adequadas àquela necessidade aguda! A palavra de um homem não convertido pode ser abençoada para a conversão de almas, desde que o Senhor, embora repudie ao homem, continue honrando a Sua verdade. Como há de ficar perplexo o homem, quando consultado sobre dificuldades de cristãos amadurecidos! No caminho da experiência, pelo qual são conduzidos os seus ouvintes regeneradas, ele mesmo só poderá sentir-se um completo fracasso. Como poderá captar as alegrias dos que estão em seus eleitos de morte, ou participar da comunhão fervorosa dos crentes à mesa do Senhor? Em muitos casos de jovens empregados numa profissão que não podem agüentar, correm eles a engajar-se na marinha, preferindo isso a seguir uma ocupação penosa. Mas, para onde fugirá aquele que treinou para dedicar-se a vida toda a esta santa vocação, e, contudo, é completamente alheio ao poder da vida piedosa? Como poderá diariamente exortar que os homens venham a Cristo, enquanto ele mesmo é estranho ao Seu amor que O levou à morte sacrificial? Ó senhores, seguramente isto só pode ser uma escravidão perpétua. Tal homem certamente odiará a simples visão de um púlpito, tanto quanto um escravo das galés odeia o remo. E quão imprestável há de ser um homem desses! Cabe-lhe guiar viajores ao longo de uma estrada que ele nunca percorreu, navegar por uma costa da qual não conhece nenhuma das balizas orientadoras! É chamado para instruir a outros, sendo ele mesmo um tolo. Que é que ele pode ser, senão uma nuvem sem chuva, uma árvore que só tem folhas? Como quando uma caravana no deserto, com todos sedentos e quase morrendo assados ao sol, chega à tão desejada fonte e – horror dos horrores! – encontra-a sem uma gota d'água, assim, quando almas sedentas de Deus chegam a um ministério carente da graça, ficam prestes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 10 a perecer porque não acham ali a água da vida. É melhor abolir os púlpitos do que enchê-los de homens que não têm conhecimento experimental daquilo que ensinam. Ah! o pastor não regenerado vem a ser terrivelmente nocivo também, pois, de todas as causas produtoras de infidelidade, os ministros carentes de vida piedosa devem ser classificados entre as primeiras. Li outro dia que nenhum aspecto do mal já apresentou tão extraordinário poder de destruição como o ministro não convertido de uma paróquia que contava com um órgão caríssimo, um coro composto de cantores ímpios, e membros de uma igreja aristocrática. A opinião do escritor era que não poderia haver maior instrumento de condenação do que isso, fora do inferno. As pessoas vão para o seu local de culto, sentam-se comodamente e se acham cristãs, quando o tempo todo, tudo aquilo em que a sua religião consiste resume-se em ouvir um orador, sentir cócegas nos ouvidos, feitas pela música, e talvez ter os olhos divertidos por atitudes graciosas e maneiras elegantes, sendo o conjunto todo nada melhor do que o que ouvem e vêem na ópera – talvez não tão bom, quanto à beleza estética, e nem um átomo mais espiritual. Milhares se congratulam, e até bendizem a Deus por serem Seus devotos adoradores quando, ao mesmo tempo, vivem numa condição de não regenerados, sem Cristo, tendo a forma da piedade mas negando o poder dela. Quem dirige um sistema que não visa a nada mais elevado que o formalismo, é muito mais servo do diabo do que ministro de Deus. Um pregador meramente formal já é nocivo enquanto preserva o seu equilíbrio externo, mas como não possui o equilíbrio da piedade que poderia preservá-lo, mais cedo ou mais tarde é quase certo que cometerá um erro em seu caráter moral, e em que posição fica ele neste caso! Como Deus é blasfemado! E como o evangelho sofre abusos! É terrível considerar que morte espera tal homem! E qual será a sua condição posterior! O profeta retrata o reí da Babilônia descendo ao inferno, e todos os reis e príncipes que ele tinha destruído, e cujas capitais tinha assolado, erguendo-se dos seus lugares no inferno e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 11 saudando o tirano caído com o cortante sarcasmo: "Tu também adoeceste como nós, e foste semelhante a nós" (Is. 14:10). E vocês não podem imaginar um homem que foi ministro, mas que viveu sem Cristo no coração, indo para o inferno, e todos os espíritos em prisão que costumavam ouvi-lo, e todos os ímpios da sua igreja, levantando-se e lhe dizendo em tom amargo: "Tu também te fizeste como nós? Médico, não te curaste a ti mesmo? Tu, que te proclamavas ser brilhante luz, lançado nas trevas para sempre?" Ah! se alguém tem que se perder, que não seja desse jeito! Perder-se à sombra de um púlpito é terrível, mas quanto mais terrível é perecer havendo ocupado o púlpito! No tratado de John Bunyan intitulado "Suspiros do Inferno" (Sighs from Hell) há uma temível passagem que muitíssimas vezes ressoa em meus tímpanos: "Quantas almas foram destruídas por causa da ignorância de clérigos cegos? Pregação que não era melhor para as suas almas do que veneno de rato para o corpo. É de temer que muitos deles tenham que responder por cidades inteiras. Ah! amigo, digo-te, tu que te incumbiste de pregar ao povo, pode ser que não consigas sequer falar aquilo de que te incumbiste. Não te doerá ver toda a tua igreja ir atrás de você para o inferno? – e a clamar: "Isto devemos agradecer-te. Tiveste medo de falar-nos dos nossos pecados, para que acaso não continuássemos metendo comida suficiente na tua boca. Ó ente vil e maldito, que não te contentaste, guia cego como foste, em cair tu mesmo no fosso, mas também nos arrastaste contigo para o mesmo lugar!"
Richard Baxter, em sua obra, Reformed Pastor, em meio a muitas outras coisas profundas, escreve como se segue: "Tenham cuidado consigo mesmos, para que não estejam vazios daquela graça salvadora de Deus que oferecem a outros, e não sejam estranhos àquela obra eficaz efetuada por aquele evangelho que pregam; e para não acontecer que, enquanto proclamam ao mundo a necessidade de um Salvador, os seus próprios corações O negligenciem', e lhes falte interesse por Ele e por Seus benefícios salvíficos. Tenham cuidado consigo mesmos, para que você não pereçam enquanto chamam a atenção de outros a que se cuidem para não perecerem, e para que vocês não morram de fome enquanto prepararam alimento para eles. Embora haja uma promessa aos que a muitos converteram à justiça, promessa de que
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refulgirão como as estrelas (Dn. 12:3), é feita com a suposição de que eles mesmos foram guiados primeiro a ela. Promessas desse tipo são feitas coeteris paribus, et suppositis supponendis (com a união dos iguais e com as suposições que se devem fazer). Sua própria sinceridade na fé constituí a condição da sua glória considerada simplesmente, embora os seus grandes labores ministeriais sejam uma condição da promessa de maior glória a eles. "Muitos que advertiram a outros a fim de que não 'venham para este lugar de tormento', eles próprios se precipitaram para lá. Muito pregador que cem vezes conclamou os seus ouvintes a empregarem o máximo cuidado e diligência para escaparem ao inferno, lá está. Pode alguma pessoa razoável imaginar que Deus salvaria homens por oferecerem a salvação a outros, enquanto eles mesmos a recusaram, e por dizerem a outros as verdades que eles mesmos negligenciaram e das quais abusaram? Muito alfaiate que confecciona custosos trajes para outros, veste-se de andrajos; e muito cozinheiro mal lambe os dedos, apesar de ter preparado para outros os pratos mais caros. "Acreditem, irmãos, Deus nunca salvou ninguém por ser pregador, nem por ter sido pregador capaz; mas porque foi um homem justificado, santificado e, conseqüentemente, fiel no serviço do seu Mestre e Senhor. Portanto, tenham cuidado consigo mesmos primeiro, para que sejam aquilo que procuram persuadir outros a serem, creiam naquilo em que procuram diariamente persuadir outros a crerem, e tenham acolhido no seu próprio coração aquele Cristo e aquele Espírito Santo que oferecem a outros. Aquele que lhes ordenou que amem o próximo como a si mesmos, ordenou implicitamente que se amem a si próprios e não destruam nem a si mesmos nem aos outros".
Meus irmãos, permitam que estas pesadas considerações produzam o devido efeito em vocês. Certamente não há necessidade de acrescentar nada mais. Deixem-me, porém, rogar-lhes que se examinem a si mesmos, e assim façam bom uso daquilo que lhes foi dirigido. Estabelecido o primeiro ponto da verdadeira religião, segue-se em importância para o ministro, em segundo lugar, que a sua piedade seja vigorosa. O ministro não deve se contentar em estar no mesmo nível dos soldados rasos das fileiras cristãs; tem que ser um crente amadurecido e adiantado, pois o ministério de Cristo tem sido com acerto denominado
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 13 "Sua escolha mais seleta, o eleito da Sua eleição, uma igreja extraída da Sua igreja". Se o ministro fosse chamado para uma posição comum e para um trabalho comum, talvez a graça comum pudesse satisfazê-lo, apesar de que mesmo então seria uma satisfação indolente. Sendo, porém, eleito para trabalhos extraordinários, e chamado para um lugar em que há perigos fora do comum, ele deve aspirar avidamente a posse daquela força superior que é única e adequada ao seu oficio. O pulso da sua religiosidade vital deve bater forte e com regularidade; os olhos da sua fé devem ser brilhantes; os pés da sua resolução devém ser firmes; as mãos da sua atividade devem ser ágeis; todo o seu ser interior deve estar no mais alto grau de sanidade. Dizem que os egípcios escolhiam os seus sacerdotes dentre os seus filósofos mais doutos, e depois os tinham em tão alta estima que dentre eles escolhiam os seus reis. Exigimos que os ministros de Deus sejam a nata de todos os que formam nos exércitos de Cristo. Homens tais que, se a nação quisesse reis, não poderia fazer melhor do que elevá-los ao trono. Os nossos homens de pequeno poder mental, muito tímidos, carnais e de personalidade mal equilibrada não prestam como candidatos ao púlpito. Há alguns trabalhos que jamais devemos confiar a inválidos ou deformados. Um homem pode não ser qualificado para trepar em altos edifícios. Seu cérebro pode ser fraco demais, e o trabalho em lugares altos pode colocá-lo em grande perigo. Faça-se tudo para mantêlo no chão e para achar-lhe uma ocupação em que um cérebro estável seja menos importante. Há irmãos que têm análogas deficiências espirituais. Não podem ser chamados para um serviço proeminente e elevado porque têm cabeça fraca. Se lhes fosse permitido obter um pouco de sucesso, ficariam intoxicados com a vaidade – vício comum entre os ministros, e, de todas as coisas, a que menos lhes convém, e a que com maior certeza lhes assegura a queda. Se como nação fôssemos chamados a defender as nossas casas e os nossos lares, não enviaríamos nossos meninos e meninas com espadas e armas de fogo a enfrentar o inimigo, tampouco a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 14 igreja pode enviar todo noviço verboso ou zelote sem experiência a batalhar pela fé. O temor do Senhor há de ensinar sabedoria ao jovem, ou, do contrário, ser-lhe-á vedado o pastorado. A graça de Deus há de amadurecer o seu espírito, ou seria melhor que esperasse até ser-lhe dado poder do alto. O mais elevado caráter moral deve ser mantido com a máxima diligência. Muitos que são ótimos membros de igreja não são qualificados para exercer ofício na igreja. Tenho opiniões rígidas quanto a cristãos que caíram em pecado grosseiro. Regozijo-me de que possam ter se convertido de verdade, e que, com uma mistura de esperança e cautela, sejam recebidos à comunhão da igreja. Mas questiono, e questiono com seriedade, se um homem que pecou escandalosamente deve ser logo restaurado ao púlpito. Como observa John Angell James: "Quando um pregoeiro da justiça se detém no caminho dos pecadores, nunca deverá tornar a abrir os lábios na grande congregação, enquanto o seu arrependimento não for tão notório como o seu pecado".
Que os que foram tosquiados pelos filhos de Amom esperem em Jericó até que as suas barbas cresçam. Muitas vezes isso tem sido usado como um insulto a jovens imberbes, a quem evidentemente não se aplica; é uma metáfora bem precisa referente a homens sem honra e sem caráter, seja qual for a sua idade. Lastimável! A barba da reputação uma vez raspada, dificilmente cresce de novo. A imoralidade praticada abertamente, na maioria dos casos, por mais profundo que seja o arrependimento, é um sinal fatal de que as graças ministeriais nunca estiveram no caráter desse homem. A mulher de César deve estar fora de qualquer suspeita, e é preciso que não corram fetos boatos sobre a inconsistência ministerial do passado, se não, será débil a esperança de uma valiosa prestação de serviço. Na igreja esses que caíram devem ser recebidos como penitentes, e no ministério poderão ser recebidos se Deus os colocar lá. Minha dúvida não é sobre isso, mas é se Deus realmente os colocou lá. E minha convicção é que devemos ser muito
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 15 lentos em ajudar a voltarem para o púlpito homens que, tendo sido provados uma vez, mostraram possuir pouquíssima graça para agüentar o teste crucial da vida ministerial. Para alguns serviços não escolhemos ninguém senão os fortes. E quando Deus nos chama para o labor ministerial, devemos esforçar-nos para obter graça para que sejamos fortalecidos com vistas a habilitar-nos para a nossa posição, e não sejamos simples novatos arrastados pelas tentações de Satanás, para prejuízo da igreja e para a nossa própria ruína. Temos que manter-nos equipados com toda a armadura de Deus, prontos para corajosas proezas não esperadas de outros. Para nós, a abnegação, a renúncia, a paciência, a perseverança, a resignação, têm que ser virtudes postas em prática todo dia, e quem é suficiente para estas coisas? Temos necessidade de viver bem perto de Deus, se queremos ser aprovados em nossa vocação. Recordem-se, como ministros, de que toda a sua vida, especialmente toda a sua vida pastoral, será afetada pelo vigor da sua piedade. Se o seu zelo se amortecer, vocês não orarão bem no púlpito, orarão pior no seio da família, e pior ainda a sós, no gabinete pastoral. Quando a sua alma se empobrece, os seus ouvintes, sem que saibam como e por que, acharão que as suas orações em público têm pouco sabor para eles. Sentirão a sua aridez possivelmente antes de vocês a perceberem. Em seguida, os seus discursos denunciarão o seu declínio. Poderão pronunciar palavras tão bem escolhidas e sentenças tão bem coordenadas como antes, mas haverá perceptível perda de poder espiritual. Poderão sacudir-se como noutros tempos, exatamente como aconteceu com Sansão, mas verão que a sua grande força ter-se-á retirado. Em sua comunhão diária com os da sua igreja, não se demorarão a notar a crescente decadência dos seus dons e graças. Olhos perspicazes verão antes de vocês os cabelos grisalhos aqui e ali. Basta que um homem seja atacado de uma enfermidade do coração para que todos os males o envolvam – o estômago, os pulmões, as entranhas, os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 16 músculos e os nervos padecerão todos. Assim, basta que um homem fique com o coração enfraquecido nas coisas espirituais para que bem depressa a sua vida toda sinta a influência debilitante. Além disso, como resultado da sua decadência, cada um dos seus ouvintes sofrerá em maior ou menor grau. Os vigorosos dentre eles superarão a tendência depressiva, mas os mais fracos serão gravemente prejudicados. Acontece conosco e com os nossos ouvintes o que acontece com. os relógios de uso pessoal e com os relógios públicos. Se o nosso relógio não estiver certo, muito pouca gente, além de nós mesmos, sofrerá com o engano, mas se o do edifício dos Horse Guards, de Londres, ou o do Observatório de Greenwich, estiver errado, a metade de Londres ficará desorientada. Assim com o ministro. Ele é o relógio da comunidade. Muitos conferem a sua hora com ele e, se ele for incorreto, todos andarão erradamente, uns mais outros menos, e em grande medida ele terá que responder por todos os pecados que ocasiona. Não podemos agüentar sequer pensar nisso, meus irmãos. Não deve nos dar confortadora consideração nem por um momento, e, contudo, temos que dar-lhe atenção para proteger-nos contra esse mal. Devemos lembrar-nos também de que precisamos ter piedade deveras vigorosa porque o perigo que enfrentamos é muito maior do que o que os outros enfrentam. De modo geral, nenhuma posição é tão assaltada pelas tentações como o ministério da Palavra. A despeito da idéia popular de que a nossa vocação é um refúgio abrigado da tentação, a verdade é que os perigos que nos cercam são mais numerosos e mais insidiosos dos que cercam os cristãos em geral. A nossa posição pode ser um terreno vantajoso quanto à altura, mas essa altura é perigosa, e para muitos o ministério revelou-se uma rocha tarpeiana.* Se me perguntarem quais são essas tentações, talvez não dê tempo para particularizá-las, mas entre elas há as mais grosseiras e as mais refinadas. As mais grosseiras são tentações como a do desregramento à *
Rochedo de onde eram precipitados os criminosos em Roma. Nota do tradutor.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 17 mesa, a da adulação dos que possuem superabundância de bens no seio de um povo hospitaleiro, as tentações da carne, incessantes com os jovens solteiros, que se vêem nas alturas no meio de uma multidão de jovens admiradoras. Chega disto, porém. Sua observação logo lhes revelará mil laços, a menos que os seus olhos sejam cegos de fato. Além desses, há outros laços secretos, dos quais temos menos facilidade de escapar. E o pior destes é a tentação do ministerialismo – tendência de ler as nossas Bíblias como ministros, de orar como ministros, de aplicarnos a fazer tudo o que constitui a nossa religião, não como sendo nós mesmos, pessoalmente, mas só relativamente interessados naquilo tudo. Perder o caráter pessoal do arrependimento e da fé é sofrer uma perda real. "Homem nenhum", diz John Owen, "prega bem o seu sermão a outros se o não pregar primeiro ao seu próprio coração." Irmãos, é eminentemente difícil ater-nos a isso. O nosso oficio, em vez de ajudar a nossa vida piedosa, como alguns afirmam, torna-se um dos seus mais sérios empecilhos, devido à maldade da nossa natureza; pelo menos, eu penso assim. Como a gente esperneia e luta contra o oficialismo! Todavia, com que facilidade ele nos bloqueia, como uma vestimenta comprida que se enrosca nos pés do corredor e o impede de correr. Acautelem-se, caros irmãos, contra isso e contra todas as outras seduções que assediam a sua carreira; e, se vocês têm agido assim até agora, continuem vigilantes até á última hora da vida. Assinalamos apenas um dos perigos, mas, na verdade, são uma legião. O grande inimigo das almas esmera-se em não deixar pedra sem revirar no afã de arruinar o pregador. "Cuidem-se", diz Baxter, "porque o tentador fará a sua primeira e mais mordaz investida contra vocês. Se vocês forem os líderes contra ele, ele não os poupará nem um pouco além da medida da restrição que Deus lhe impõe. Ele sustenta contra vocês o máximo da sua maldade porque estão empenhados em causar-lhe o maior dano. Assim como odeia a Cristo mais que a qualquer de nós, porque Ele é o "comandante-em-chefe" e o "capitão da nossa salvação", e faz muito mais que o mundo inteiro contra o reino das trevas, assim põe mais atenção nos líderes subordinados a Cristo que aos
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soldados rasos, por semelhante motivo, guardadas as devidas proporções. Ele sabe muito bem a derrota que poderá impor aos restantes, se os líderes caírem à vista deles. Por longo tempo ele tem usado esta forma de pelejar, "nem com pequenos, nem com grandes", relativamente falando mas dirigese especialmente aos grandes, conforme está escrito: 'Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão'. E por este meio tem conseguido tal sucesso, que continuará a usá-lo enquanto puder. "Tenham cuidado, pois, irmãos, porquanto o inimigo os fita com um olhar especial. Vocês sofrerão as suas insinuações mais sutis, solicitações incessantes e assaltos violentos. Por mais sábios e instruídos que sejam, cuidem-se, para que ele não lhes sobrepuje o engenho. O diabo é mais douto que vocês, e contendor mais esperto; pode transfigurar-se em "anjo de luz" para enganar. Ele dominará vocês e levar-vos-á por onde quiser antes que se dêem conta; bancará ilusionista com vocês, sem ser percebido, e vos logrará, fazendo-vos perder a fé ou a inocência, e vocês nem saberão que a perderam; pelo contrário, fará com que creiam que ela se multiplicou ou cresceu, quando na verdade foi perdida. Vocês não enxergarão nem a vara nem o anzol, e muito menos o pescador sutil, enquanto ele oferece a sua isca. E as suas iscas serão tão adequadas ao temperamento e à disposição de vocês, que terá certeza de colher vantagem no vosso íntimo, fazendo com que os vossos princípios e inclinações vos traiam; e sempre que vos arruinar, fará de vocês instrumentos da vossa própria ruína. Oh, que vitória ele fica rememorando, se consegue tornar um ministro ocioso e infiel; se pode fazer um ministro cair na tentação da cobiça ou de um escândalo! Ele se ufanará contra a igreja. e dirá: 'Estes são os teus santos pregadores; vês qual é a virtude deles, e para onde ela os levará'. "Ele se ufanará contra o próprio Senhor Jesus Cristo, e dirá: 'São estes os teus campeões! Posso fazer com que os Teus principais servos Te desonrem; posso tornar infiéis os mordomos da Tua casa'. Se ele insultou tanto a Deus baseado numa falsa suspeita, e Lhe disse que podia levar Jó a blasfemar dEle na Sua lace (Jó 1:2), que faria se deveras prevalecesse contra nós? E finalmente insultará o mais que puder, achando que poderá levar vocês a serem falsos para com a sua grande incumbência, a desonrar a sua santa profissão, e a prestar grande serviço àquele que foi seu inimigo. Oh! não gratifiquem tanto a Satanás! Não deixem que faça tanta troça. Não deixem que os use – como os filisteus usaram Sansão – primeiro privando-
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os da sua força; depois, arrancando-lhes os olhos; e fazendo-os, assim, objeto do triunfo e da zombaria dele".
Ainda uma palavra. Temos que cultivar o mais alto grau de religiosidade autêntica porque o nosso trabalho exige isto imperiosamente. O labor do ministério cristão é executado na exata proporção do vigor da nossa natureza renovada. Nosso trabalho só é bem feito quando nós estamos bem. Como o trabalhador é, assim será o seu trabalho. Enfrentar os inimigos da verdade, defender os baluartes da fé, governar bem a casa de Deus, consolar todos os que choram, edificar os santos, orientar os que andam perplexos, tolerar os insolentes, conquistar almas e nutri-las – todas estas obras e outras mil não são para um João Fraco da Mente, nem para um José É Já Que Paro, mas estão reservadas para o Cristiano Coração Grande, que o Senhor fez forte para Si mesmo. Procurem, pois, obter forças daquele que é o Forte, e sabedoria daquele que é o Sábio – sim, busquem tudo do Deus de todos. Em terceiro lugar, que o ministro cuide para que o seu caráter pessoal se harmonize em todos os aspectos com o seu ministério. Já ouvimos todos a historia do homem que pregava tão bem e vivia tão mal que, quando estava no púlpito, toda gente dizia que ele não devia sair mais de lá, e quando estava fora dele, todos declaravam que ele não devia voltar a ocupá-lo. Que o Senhor nos livre da imitação de tal Janes. Que nunca sejamos sacerdotes de Deus junto ao altar e filhos de Belial fora das portas do tabernáculo. Ao contrário, como diz Nazianzeno sobre Basílio, "trovejemos em nossa doutrina e relampagueemos em nossa conversação". Não confiamos nas pessoas de duas caras e ninguém dará crédito àqueles cujos testemunhos verbais e práticos são contraditórios. Segundo o provérbio, as ações falam mais alto do que as palavras, assim uma vida má efetivamente abata a voz do mais eloqüente ministério. Afinal de cantas, a nossa mais veraz obra de edificação deve ser realizada com as nossas mãos; o nosso caráter tem que ser mais persuasivo do que o nosso falar.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 20 Aqui vos advirto não somente sobre pecados de comissão, mas também sobre pecados de omissão. Muitos pregadores esquecem-se de servir a Deus quando estão fora do púlpito, sendo incoerentes em seu modo de viver. Diletos irmãos, detestem pensar em ser ministros tipo relógio, não vivendo pela graça presente no seu íntimo, mas agindo pela corda dada por influências passageiras; homens que somente são ministros quando têm que ser, quando são pressionados pelas horas de ministração, mas deixam de ser ministros quando descem a escada do púlpito. Os verdadeiros ministros são ministros sempre. Muitos pregadores são como aqueles brinquedos de areia que compramos para as nossas crianças; viramos a caixa de boca para baixo, e o pequeno acrobata volve-se e revolve-se até esvair-se a areia toda, e então ele pende imóvel. Assim há alguns que perseveram nas ministrações da verdade enquanto há alguma necessidade oficial do seu trabalho, mas, depois disso, sem pagamento, não há oração: se não há salário, não há sermão. É horrível ser ministro incoerente. De nosso Senhor se diz que foi semelhante a Moisés por esta razão, por que foi "profeta poderoso em obras e palavras". O homem de Deus deve imitar nisto o seu Mestre e Senhor. Deve ser poderoso tanto na palavra da sua doutrina como nos seus atos exemplares, e mais poderoso, se possível, no segundo caso. É notável que a única história da igreja que temos é esta: "Atos dos Apóstolos". O Espírito Santo não preservou todos os seus sermões. Eram muito bons, melhores do que jamais pregaremos, mas, apesar disso, o Espírito Santo Se interessou mais pelos "atos" dos apóstolos. Não temos livros de atas com o registro das resoluções dos apostoles. Quando temos nossas reuniões eclesiásticas, registramos as nossas atas e resoluções, mas o Espírito Santo faz constar mais os "atos". Os nossos atos devem ser tais que mereçam registro, pois registrados serão. Devemos viver como estando sob o mais direto olhar de Deus, e como na luz do grande dia da revelação de todas as coisas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 21 No ministro, a santidade é ao mesmo tempo a sua principal necessidade e o seu mais excelente ornamento. A simples excelência moral não basta; é preciso haver virtude mais elevada. Tem que haver um caráter consistente, mas este precisa ser ungido com o óleo santo da consagração, ou, do contrário, estará faltando aquilo que nos impregna do melhor aroma para Deus e para os seres humanos. O velho John Stoughton, em seu tratado intitulado The Preacher's Dignity and Duty (A Dignidade e o Dever do Pregador), insiste na santidade do ministro com declarações contundentes. "Se Uzá deve morrer por tocar na arca de Deus, e isso para segurá-la por estar prestes a cair; se devem morrer os homens de Bete-Semes porque olharam para dentro dela; se os próprios animais são ameaçados somente por aproximar-se do monte santo – então, que espécie de pessoas devem ser os que são aceitos para falar com Deus familiarmente, para "estar de pé diante dele", como o fazem os anjos, e "contemplar continuamente a sua face"? "Para levar a arca em seus ombros"; "para levar o seu nome perante os gentios"; numa palavra para ser Seus embaixadores? "A santidade convém à Tua casa, Senhor". E não seria ridículo imaginar que os vasos devem ser santos, as vestes devem ser santas, tudo deve ser santo, mas somente aquele sobre cujas vestimentas precisa estar escrito "santidade ao Senhor" pode deixar de ser santo? Não seria ridículo que as campainhas dos cavalos devem ter em si uma inscrição de santidade (Zac. 14:20); e as campainhas dos santos, isto é, as campainhas de Arão, fiquem sem santificar-se? Não, eles devem ser "lâmpadas que ardem e brilham", ou então a sua influência projetará alguma qualidade maligna; têm que "ser ruminantes e ter o casco dividido", ou serão imundos; precisam "manejar bem a palavra" e andar retamente na vida, juntando assim a vida ao saber. Se faltar santidade, os embaixadores desonrarão o país do qual procedem e o príncipe que os enviou. E este Amasa morto, esta doutrina não vitalizada pela vida genuína, jazendo no caminho, detém o povo de Deus, impedindo-o de prosseguir com entusiasmo em sua luta espiritual."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 22 A vida do pregador deve ser um ímã para atrair homens a Cristo, e é triste de fato quando os retém longe dEle. A santidade dos ministros é um sonoro chamamento aos pecadores para que se arrependam, e, quando aliada à santa alegria, torna-se maravilhosamente atraente. Jeremy Taylor, em sua linguagem peculiar e rica, diz: "As pombas de Herodes nunca poderiam ter convidado tantos estranhos para os seus pombais, se estes não tivessem sido lambuzados com o bálsamo de Gileade. Mas, dizia Didymus, "faça os seus pombos cheirarem agradavelmente, e eles atrairão bandos completos"; e se a sua vida for excelente, se as suas virtudes forem como um ungüento precioso, logo você fará os que estão a seu cargo correrem "in odorem unguentorum", atrás das suas precisas fragrâncias". Mas você precisa ser excelente, não "tanquam unus de populo", mas "tanquam hamo Dei"; você deve ser um homem de Deus, não segundo a maneira comum dos homens, mas "segundo o coração de Deus". E os homens se empenharão para ser semelhantes a você, se você for semelhante a Deus. Mas quando você fica parado à porta da virtude, apenas para manter fora o pecado, não introduzirá ninguém no aprisco de Cristo, exceto aqueles impelidos pelo temor. "Ad majorem Dei gloriam", "Fazer o que mais glorifique a Deus", esta é a linha pela qual você deve andar. Portanto, não ir além daquilo que todos os homens fazem por obrigação, é servilismo, não atingindo a afeição de filhos. Muito menos poderão ser país espirituais os que não chegam a igualar-se aos filhos de Deus. Pois um farol obscuro, conquanto haja fraca luz por um lado, mal iluminará a um, e muito menos conduzirá uma multidão, nem atrairá muitos seguidores com o brilho da sua chama". Outro teólogo episcopal igualmente admirável disse com acerto e com energia: "A estrela que guiou os magos a Cristo, e a coluna de fogo que conduziu os filhos de Israel a Canaã, não brilharam apenas, mas foram adiante deles (Mt. 2:9; Êx. 13:21). A voz de Jacó fará pouca coisa boa, se as mãos forem de Esaú. Na lei, ninguém que tivesse alguma mancha poderia oferecer as oblações ao Senhor (Lv. 21:17-20); por meio dessas coisas, o
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Senhor nos ensina quais dons e graças devem existir em Seus ministros. O sacerdote devia ter em suas vestes campainhas e romãs, umas figurando doutrina sã, outras simbolizando vida frutífera (Êx. 28:33-34). O Senhor será santificado naqueles que andam junto dEle (Is. 52:111; pois os pecados dos sacerdotes levam o povo a aborrecer as ofertas ao Senhor (1 Sm. 2:17). Suas vidas ímpias lançam vergonha sobre a sua doutrina. Passionem Christi annunciant profitendo, male agendo exhonorant, como diz Agostinho – com a sua doutrina edificam, e com as suas vidas destroem. Concluo este ponto com a salutar passagem de Hierom ad Nepolianum. Não permitas, diz ele, que as tuas obras envergonhem a tua doutrina, para que os que te ouvem na igreja não te respondam tacitamente: Por que não praticas o que ensinas a outros? É bom demais o mestre que persuade outros a jejuarem, estando ele de barriga cheia. Um ladrão pode denunciar a cobiça. Sacerdotis Christi os, mens, manusque concordent. A língua, o coração e a mão do sacerdote de Cristo devem concordar entre si".
Muito apropriada também é a linguagem de Thomas Playfere em sua obra: "Fale bem, Aja bem". "Havia um ridículo ator na cidade de Esmirna que, quando pronunciava: Ó coelum! Ó céu! apontava com o dedo para o chão; o que vendo Polemo, o principal vulto da localidade, não pôde ficar ali por mais tempo e saiu muito irritado, dizendo: "Este tolo cometeu solecismo com a mão, e falou falso latim com o dedo". Assim são os que ensinam bem e agem mal. Esses, apesar de terem o céu na ponta da língua, têm a terra na ponta do dedo. Os tais não só falam falso latim com a língua, mas falam falsa teologia com as mãos. Esses vivem em desacordo com o que pregam. Mas Aquele que tem o Seu trono no céu rir-se-á deles com desdém, e os varará expulsando-os do palco, se não corrigirem o seu procedimento. Mesmo nas pequenas coisas o ministro deve cuidar que sua vida esteja em harmonia com o seu ministério. Deve ter especialmente o cuidado de nunca faltar com a palavra. Isto deve ser levado ao escrúpulo extremo. Não conseguiremos exagerar nisto. A verdade não somente deve estar em nós; deve também irradiarse de nós. Em Londres, um célebre doutor em teologia que agora está no céu, não tenho dúvida – homem excelente e muito piedoso comunicou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 24 num domingo que tencionava visitar todos os membros da sua igreja, e disse que, a fim de poder informá-los e visitá-los e suas famílias uma vez por ano, deveria seguir a ordem na lista de "bancos cativos". Uma pessoa que conheço bem, nesse tempo um homem pobre, apreciou muito a idéia de que o ministro ia à sua casa para vê-lo, e, uma ou duas semanas antes da ocasião que ele imaginava que seria a sua vez, sua mulher esmerou-se muito em limpar a lareira e em manter a casa bem arrumada, e o homem corria logo para casa ao sair do serviço todas as tardes, esperando encontrar lá o doutor. Isto continuou acontecendo durante considerável tempo. Ou o teólogo esqueceu a promessa, ou foise cansando de levá-la a efeito, ou por alguma outra razão nunca foi à casa daquele homem pobre. O resultado foi este: o homem perdeu a confiança em todos os pregadores, e dizia: "Eles cuidam dos ricos, mas não cuidam de nós, os pobres". Por muitos anos aquele homem não se firmou em nenhum local de culto, até que um dia caiu no Exeter Hall e durante anos foi meu ouvinte, até que a Providência o removeu. Não foi tarefa pequena fazê-lo crer que todo ministro podia ser sincero e amar imparcialmente ricos e pobres. Tratemos de evitar esse mal, dando cuidadosa atenção à nossa palavra pessoal. Devemos lembrar-nos de que somos muito observados. Dificilmente os homens têm o descaramento de transgredir a leí à plena vista dos seus semelhantes; todavia, nós vivemos e nos movemos nessa publicidade. Milhares de olhos de águias nos vigiam. Procedamos de modo que nunca precisemos ter preocupação sobre se todo o céu, terra e inferno alongam a lista de espectadores. A nossa posição pública é grande ganho, caso sejamos habilitados a mostrar os frutos do Espírito Santo em nossas vidas. Tenham cuidado, irmãos, para não suceder que joguem fora a vantagem. Meus caros irmãos, quando lhes dizemos que cuidem bem da sua vida, queremos dizer que sejam cuidadosos até com as minudências do seu caráter. Evitem as pequenas dívidas, a impontualidade, fazer mexericos, dar apelidos, contendas minúsculas, e todos aqueles pequenos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 25 males que enchem de moscas o ungüento. As auto-indulgências que têm rebaixado a reputação de muitos, não podemos tolerar. As familiaridades que têm lançado suspeita sobre outros, temos que evitar castamente. Da grosseria que tem tornado alguns odiosos, e das futilidades que tornaram muitos desprezíveis, temos que nos descartar. Não podemos permitir-nos correr grandes riscos por causa de pequenas coisas. Tenhamos o cuidado de conduzir-nos de acordo com a regra: "Não dando nós escândalo em coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado". Com isto não se quer dizer que devemos manter-nos presos a quaisquer caprichos da sociedade em que nos movemos. Em regra, odeio as modas da sociedade e detesto os convencionalismos, e se eu achasse que a melhor atitude seria pisar numa regra de etiqueta, sentir-me-ia gratificado ao fazê-lo. Não; somos homens, não escravos; e não devemos renunciar à nossa liberdade varonil para sermos lacaios dos que fingem gentileza ou alardeiam polidez. Entretanto, irmãos, de tudo que se aproxima da grosseria que cheira a pecado temos que fugir como fugiríamos de uma víbora. Para nós as regras de Chesterfield são ridículas; não, porém, o exemplo de Cristo. Ele nunca foi grosseiro, baixo, descortês ou indelicado. Mesmo em vossas recreações, lembrem-se de que são ministros. Quando estão fora da mira, ainda continuam sendo oficiais do exército de Cristo, e, como tais, não se rebaixem. Mas, se devemos observar com cautela as coisas mínimas, quanto cuidado devemos ter nas grandes questões da moralidade, da honestidade e da integridade! Nestas é preciso que o ministro não falhe. Sua vida particular deve estar sempre em harmonia com o seu ministério, ou, do contrário, o seu dia se porá com ele, e quanto mais cedo se afastar, melhor, pois a sua permanência nesse ofício servirá somente para desonrar a causa de Deus e ocasionar a ruína de si mesmo,
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O CHAMADO PARA O MINISTÉRIO Todo cristão capaz de disseminar o evangelho tem direito de fazêlo. Ainda mais, não só tem direito, mas é seu dever fazê-lo enquanto viver (Ap. 22:17). A propagação do evangelho foi entregue, não a uns poucos, mas a todos os discípulos do Senhor Jesus Cristo. Segundo a medida da graça a ele confiada pelo Espírito Santo, cada discípulo tem a obrigação de ministrar em seu tempo e geração, à igreja e entre os incrédulos. Na verdade, esta questão vai além dos varões, incluindo todos os elementos do outro sexo. Sejam os crentes homens ou mulheres, quando capacitados pela graça divina, estão todos obrigados a esforçarse ao máximo para divulgar o conhecimento do Senhor Jesus Cristo. Todavia, o nosso serviço não assume necessariamente a forma particular da pregação. Seguramente, em alguns casos é preciso que não, como por exemplo no caso das mulheres, cujo ensino público é expressamente proibido: 1 Tm. 2:12; 1 Co. 14:34. Mas, se temos capacidade para pregar, é mister exercitá-la. Contudo, nesta preleção não me refiro a prédicas ocasionais, nem a quaisquer outras formas de ministério comuns a todos os santos, mas ao trabalho e ofício do episcopado, em que se incluem o ensino e o governo da igreja, exigindo a dedicação da vida inteira do homem à obra espiritual, e que ele se separe de todas as carreiras seculares (2 Tm. 2:4). Trabalho e oficio que autorizam o obreiro a contar totalmente com a igreja de Deus para o suprimento das suas necessidades temporais, visto que ele dá todo o seu tempo, energia e esforços para o bem daqueles que estão sob a sua direção (1 Co. 9:11; 1 Tm. 5:18). A um homem assim Pedro se dirige com estas palavras: "Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele" (1 Ped. 5:2). Ora, nem todos de uma igreja podem superintender ou governar; alguns têm que ser dirigidos ou governados. E cremos que o Espírito Santo designa na igreja de Deus alguns para agirem como superintendentes, e outros para se submeterem à vigilância de outros,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 27 para o seu próprio bem. Nem todos são chamados para trabalhar na palavra e na doutrina, ou para serem presbíteros, ou para exercerem o cargo de bispo. Tampouco devem todos aspirar a essas obras, uma vez que em parte nenhuma os dons necessários são prometidos a todos. Mas aqueles que, como o apóstolo, crêem que receberam "este ministério" (2 Co. 4:1), devem dedicar-se a essas importantes ocupações. Homem nenhum deve intrometer-se no rebanho como pastor; deve ter os olhos postos no Sumo Pastor, e esperar Seu sinal e Sua ordem. Antes que um homem assuma a posição de embaixador de Deus, deve esperar pelo chamamento do alto. Se não o fizer, mas se se lançar às pressas ao cargo sagrado, o Senhor dirá dele e de outros semelhantes: "Eu não os enviei, nem lhes dei ordem; e não trouxeram proveito nenhum a este povo diz o Senhor" (Jr. 23:32). Consultando o Velho Testamento, vocês verão os mensageiros de Deus, da velha dispensação, reivindicando comissionamento da parte de Jeová. Isaías conta-nos que um dos serafins tocou os seus lábios com uma brasa viva tirada do altar, e que a voz do Senhor lhe disse: "A quem enviarei, e quem há de ir por nós?" (Isa. 6:8). Então disse o profeta: "Eis-me aqui, envia-me a mim". Não se apressou antes de ter sido visitado dessa maneira tão especial pelo Senhor, e de ser por Ele qualificado para a sua missão. "Como pregarão, se não forem enviados?", são palavras que ainda não tinham sido enunciadas, mas o seu solene significado era bem compreendido. Jeremias narra em detalhe a sua vocação no primeiro capítulo do seu livro: "Assim veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Antes que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta. Então disse eu: Ah Senhor Jeová! Eis que não sei falar; porque sou uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: eu sou uma criança; porque aonde quer que eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar dirás. Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor. E estendeu o Senhor a sua mão, e tocou-me na boca; e disseme o Senhor: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Olha, ponho-te
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neste dia sobre as nações, e sobre os reinos, para arrancares, e para derribares, e para destruíres, e para arruinares; e também para edificares e para plantares" (Jr. 1:4-10).
Diferindo em sua forma externa, mas com o mesmo propósito, foi a comissão de Ezequiel. É como se segue, em suas palavras: "E disse-me: Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo. Então entrou em mim o Espírito, quando falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o que me falava. E disse-me: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes que se rebelaram contra mim, até este mesmo dia" (Ez. 2:1.3). "Depois me disse: Filho do homem, come o que achares; come este rolo, e vai, fala à casa de Israel. Então abri a minha boca, e me deu a comer o rolo. E disse-me: Filho do homem, dá de comer ao teu ventre, e enche as tuas entranhas deste rolo que eu te dou. Então o comi, e era na minha boca doce como o mel. E disse-me: Filho do homem, vai, entra na casa de Israel, e dize-lhes as minhas palavras" (Ez. 3:1-4).
A vocação de Daniel para profetizar, conquanto não registrada, é fartamente atestada pelas visões a ele outorgadas, e pelo grandíssimo favor que desfrutava da parte do Senhor, quer nas suas meditações solitárias, quer nos atos públicos. Não há necessidade de passar em revista todos os outros profetas, pois todos se arrogavam falar com a autoridade do "assim diz o Senhor". Na presente dispensação, o sacerdócio é comum a todos os santos. Mas, profetizar, ou fazer aquilo que se lhe assemelha, a saber, ser movido pelo Espírito Santo para entregar-se totalmente à proclamação do evangelho, é, na verdade, dom e vocação de apenas um número relativamente pequeno. E certamente estes precisam estar tão seguros da veracidade da sua posição como os profetas estavam da sua. E mais, como podem justificar o seu ministério, senão por um chamamento semelhante? Tampouco ninguém imagine que essas vocações são simples ilusão, e que em nossa época ninguém é separado para a peculiar obra de ensino e direção da igreja, pois os próprios nomes dados no Novo Testamento aos ministros implicam em uma prévia vocação para a sua obra. Diz o apóstolo: "De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse". Não é fato, porém, que a própria alma do oficio
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 29 de embaixador repousa na nomeação feita pelo governo representado? Um embaixador não enviado seria objeto de riso. Homens que ousam declarar-se embaixadores de Cristo precisam compreender mais profundamente que o Senhor lhes "entregou" a palavra da reconciliação (2 Co. 5:18-19). Se se disser que isto se restringiu aos apóstolos, respondo que a epístola foi escrita, não só em nome de Paulo, mas também de Timóteo, e daí incluí outros ministérios além do apostolado. Na primeira epístola aos Coríntios lemos: "Que os homens nos (nos aqui significando Paulo e Sóstenes, 1 Co. 1:1) considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus" (1 Co. 4:1). Certamente o despenseiro deve considerar o seu oficio como da parte do Senhor. Não pode ser despenseiro simplesmente porque o decide ser, ou porque outros o consideram tal. Se a nós mesmos nos elegêssemos despenseiros do Marquês de Westminster e começássemos a tratar da propriedade daquele nobre, imediatamente o erro ser-nos-ia lançado em rosto da maneira mais convincente. É evidente que precisa haver autorização antes de alguém poder tornar-se legítimo bispo, "despenseiro da casa de Deus" (Tt. 1:7). O título apocalíptico de anjo (Ap. 2:1) significa mensageiro; e como os homens hão de ser arautos de Cristo, senão por Sua eleição e ordenação? Se a referência da palavra anjo ao ministro for contestada, gostaríamos, que fosse demonstrado que ela se relaciona com qualquer outra pessoa. A quem da igreja o Espírito escreveria como representante dela, senão a alguém que ocupava posição análogo à do oficial presidente? Tito recebeu a incumbência de dar prova cabal do seu ministério; havia certamente algo que provar. Há quem seja "vaso para honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra" (2 Tm. 2:21). Não se deve recusar ao Senhor a escolha dos vasos que usa; Ele sempre dirá de certos homens o que disse de Saulo de Tarso: "Este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel" (At. 9:15).
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 30 Quando o nosso Senhor subiu às alturas deu dons aos homens, e é digno de nota que estes dons foram homens separados para obras diversas. "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores" (Ef. 4:11); disso fica evidente que certos indivíduos são, como resultado da ascensão do Senhor, dados às igrejas como pastores; dados por Deus, e, conseqüentemente, não se elevam a si mesmos a essa posição. Irmãos, espero em que um dia possam falar do "rebanho sobre que o Espírito Santo" os constituiu bispos (At. 20:28), e oro no sentido de que cada um de vocês possa dizer com o apóstolo dos gentios, que o seu ministério não é da parte dos homens, nem por homem algum, mas o recebeu do Senhor (Gl. l :1). Oxalá se cumpra em vocês aquela antiga promessa: "E vos darei pastores segundo o meu coração" (Jr. 3:15). "E levantarei sobre elas pastores que as apascentem" (Jr. 23:4) Que o Senhor mesmo cumpra em suas pessoas a Sua declaração: "Ó Jerusalém! sobre os teus muros pus guardas, que todo o dia e toda a noite de contínuo se não calarão". Oxalá vocês possam apartar o precioso do vil e assim ser como a boca de Deus (Jr. 15:19). Oxalá o Senhor manifeste por intermédio de vocês o aroma do conhecimento de Jesus em todo lugar, e os faça "o bom cheiro de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem" (2 Co. 2:15). Tendo um inapreciável tesouro em vasos de barro, que a excelência do poder divino pouse sobre vocês, e assim, glorifiquem a Deus e também se livrem do sangue de todos os homens. Como o Senhor Jesus subiu ao monte e chamou os que quis, e depois os mandou a pregar (Mc. 3:13), assim também que Ele vos escolha – a vocês chamando-vos para cima, para a comunhão com Ele, e vos envie como Seus servos escolhidos para bênção da igreja e do mundo. Como pode o jovem saber se é vocacionado ou não? É uma indagação ponderável, e desejo tratá-la mui solenemente. Oh, a divina orientação para fazê-lo! O fato de que centenas perderam o rumo e tropeçaram num púlpito, está patenteado tristemente nos ministérios infrutíferos e nas igrejas decadentes que nos cercam. Errar na vocação é
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 31 terrível calamidade para o homem, e, para a igreja sobre a qual ele se impõe, seu erro envolve aflição das mais dolorosas. Seria um curioso e penoso tema para reflexão – a freqüência com que homens dotados de razão enganam-se quanto à finalidade da sua existência e miram coisas que nunca deveriam ter buscado, O escritor que redigiu os seguintes versos por certo estava com os olhos postos em muitos púlpitos ocupados indevidamente: Mostrai ó sábios, se podeis, entre animais de toda espécie e condição, tamanho e classe, desde elefantes a mosquitos, um ser que tanto erre nos planos, e tantas vezes, como o homem. Cada animal quer o bem próprio – busca prazer, ração, repouso, que a natureza indica e mostra, sem nunca errar na escolha feita. Só o homem falha, embora tenha razão acima dos demais. Descei a exemplos e provai: O boi jamais tenta voar, não deixa os pastos na campina nem com os peixes sonda as águas. Dos animais, só o homem age oposto à sua natureza.
Quando penso no prejuízo, que por pouco não é infinito, que pode resultar do erro quanto à nossa vocação para o pastorado cristão, domina-me o temor de que algum de nós tenha sido negligente no exame de suas credenciais. Preferiria que vivêssemos em dúvida e nos examinássemos muitíssimas vezes, do que tornarmos empecilhos no ministério. Não faltam numerosos métodos pelos quais o homem pode testar sua vocação para o ministério, se ardorosamente o quiser fazer. Élhe imperativo que não entre no ministério enquanto não fizer profunda sondagem e prova de si próprio quanto a este ponto. Estando seguro da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 32 sua salvação pessoal, deve investigar quanto à questão subseqüente da sua vocação para o ofício; a primeira é-lhe vital como cristão, e a segunda lhe é igualmente vital como pastor. Ser pastor sem vocação é como ser membro professo e batizado sem conversão. Nos dois casos há um nome, e nada mais. 1. O primeiro sinal da vocação celeste é um desejo intenso e absorvente de realizar a obra. Para se constatar um verdadeiro chamamento para o ministério é preciso que haja uma irresistível, insopitável, ardente e violenta sede de contar aos outros o que Deus fez por nossas almas. Que tal se eu apelidar isso de uma espécie de ternura, como a que os pássaros têm pela criação dos seus filhotes quando chega a estação própria; quando a ave mãe está disposta a morrer, antes de abandonar o ninho. Alguém que conheceu Alleine intimamente disse que ele tinha infinita e insaciável avidez pela conversão de almas". Quando pôde ter participação societária na universidade em que estava, preferiu uma capelania, porque "o inspirava uma impaciência por ocupar-se diretamente na obra ministerial". "Não entre no ministério se puder passar sem ele", foi o conselho profundamente sábio de um teólogo a alguém que procurou a sua opinião. Se alguém neste recinto puder ficar satisfeito sendo redator de jornal, merceeiro, fazendeiro, médico, advogado, senador ou reí, em nome do céu e da terra, siga o seu caminho. Não é homem em quem habita o Espírito de Deus em Sua plenitude, pois o homem assim revestido da plenitude de Deus ficaria inteiramente enfadado com qualquer carreira que não aquela pela qual o âmago da sua alma palpita. Por outro lado, se você puder dizer que nem por toda a riqueza da Índia poderia ou ousaria esposar qualquer outra carreira, a qual o apartasse da pregação do evangelho de Jesus Cristo, fique certo então que se noutras coisas o exame for igualmente satisfatório, você tem os sinais do apostolado. Devemos estar convictos que a desonra virá sobre nós se não pregarmos o evangelho. A Palavra de Deus deve ser como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 33 fogo em nossos ossos, do contrário, se nos aventurarmos no ministério, seremos infelizes nisso, seremos incapazes de suportar as diversas formas de abnegação que lhe são próprias, e prestaremos pouco serviço aqueles aos quais ministramos. Falo de formas de abnegação, e digo bem, pois o trabalho do verdadeiro pastor está repleto delas, e, se não amar a sua vocação, logo sucumbirá ou desistirá da luta, ou prosseguirá descontente, sob o peso de uma monotonia tão fastidiosa como a de um cavalo cego girando um moinho. "Na força do amor há consolação que torna suportável uma coisa que a qualquer outro rompe o coração."
Cingidos desse amor, vocês serão intrépidos; despidos desse cinto mais que mágico da vocação irresistível, consumir-se-ão na desventura. Este desejo deve resultar de reflexão. Não deve ser um impulso repentino desajudado por uma ponderação ansiosa. Deve ser o resultado do nosso coração em seus melhores momentos, o objeto de nossas reverentes aspirações, o assunto de nossas mais ferventes orações. Deve continuar conosco quando tentadoras ofertas de riqueza e comodidade entrarem em conflito com ele, e deve permanecer como uma resolução serena e bem pensada depois de tudo ter sido avaliado em suas proporções certas, e o preço muito bem calculado. Quando morava com meu avô no campo, na meninice, vi um grupo de caçadores, com seus casacos vermelhos, cavalgando pelos campos atrás de uma raposa. Foi uma delícia para mim! Meu pequeno coração excitou-se; senti-me disposto a seguir os cães de caça, saltando barreiras e cruzando valas. Sempre tive gosto natural por essa espécie de atividade, e, na minha infância, quando me perguntavam o que eu queria ser, costumava dizer que ia ser caçador. Bela profissão, na verdade! Muitos jovens têm a mesma idéia de serem clérigos, como eu de ser caçador – simples noção infantil, de que gostariam do casaco e do toque das cornetas; da honra, do respeito e da tranqüilidade; e talvez sejam bastante tolos para pensar – gostariam das riquezas do ministério (só
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 34 podem ser ignorantes, se buscam riqueza com relação ao ministério evangélico). O fascínio exercido pelo ofício de pregador é muito grande para as mentes fracas, razão por que energicamente advirto a todos os jovens a não confundirem fantasia com inspiração, e preferência infantil com vocação do Espírito Santo. Notem bem, o desejo de que falei deve ser totalmente desinteressado. Se um homem perceber, depois do mais severo exame de si próprio, qualquer outro motivo que a glória de Deus e o bem das almas em sua busca do episcopado, melhor será que se afaste dele de uma vez, pois o Senhor aborrece a entrada de compradores e vendedores em Seu templo. A introdução de qualquer coisa que cheire a mercenário, mesmo no menor grau, será como um inseto no ungüento, estragando-o de todo. Esse desejo deve ser tal que permaneça conosco, uma paixão que agüente o teste da provação, um anelo "do qual nos seja completamente impossível fugir, ainda que o tentemos; desejo, na verdade, que se torna cada vez mais intenso conforme os anos passem, até tornar-se um anseio, uma anelante aspiração, uma consumidora fome de proclamar a Palavra. Esse desejo intenso é uma coisa tão nobre e tão bela que, toda vez que o percebo inflamar-se no peito de algum jovem, sempre me contenho, não me apressando a desanimá-lo, mesmo que tenha dúvidas quanto à sua capacidade. Talvez seja necessário, por razões que lhes serão dadas mais adiante, sufocar as chamas, mas isto deve ser feito com relutância e com sabedoria. Tenho tão profundo respeito por este "fogo nos ossos" que, se eu mesmo não o sentisse, teria que abandonar de uma vez o ministério. Se vocês não sentem o calor sagrado, rogo-lhes que voltem para casa e sirvam a Deus em suas respectivas esferas. Mas se com certeza, as brasas de zimbro chamejam por dento, não as apaguem, a menos que, de fato, outras considerações de grande importância lhes provem que o desejo que têm não é fogo de origem celestial. 2. Em segundo lugar, em combinação com o desejo ardente de ser pastor, é preciso que haja aptidão para ensinar e certa medida das
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 35 outras qualidades necessárias ao oficio de instrutor público. Para provar sua vocação o homem precisa testá-la com êxito. Não pretendo que na primeira vez que um homem se levantar para falar, pregue tão bem como Robert Hall em seus últimos tempos. Se a sua pregação não for pior do que o grande homem fez no início da sua careira, não deve ser condenado. Vocês sabem que Robert Hall fracassou completamente três vezes, e clamava: "Se isto não me humilhar, nada mais me humilhará". Alguns dos mais nobres oradores não foram dos mais fluentes nos seus primeiros tempos. Mesmo Cícero no início padecia de voz fraca e dificuldade de elocução. Contudo, ninguém deve considerar-se chamado para pregar enquanto não provar que pode falar em público. Claro que Deus não criou o hipopótamo para voar, e se o leviatã tivesse forte desejo de subir aos ares com a calandra, evidentemente seria uma inspiração insensata, visto que não é dotado de asas. Se um homem for vocacionado para pregar, será dotado de capacidade em algum grau para falar, capacidade que ele cultivará e desenvolverá. Se o dom de elocução não existir no início em alguma medida, não é provável que venha a desenvolver-se. Ouvi falar de um cavalheiro que tinha o mais intenso desejo de pregar, e tanto insistiu com o seu pastor que, depois de múltiplas recusas, conseguiu licença para pregar um sermão de prova. Essa oportunidade foi o fim da sua importunação, pois, depois de anunciar o texto, viu-se privado de todas as idéias menos uma, que ele transmitiu sentidamente, e em seguida desceu da tribuna: "Meus irmãos", disse ele, "se algum de vocês pensa que é fácil pregar, aconselho-o a vir até aqui para perder toda a vaidade." A prova a que submetem as suas capacidades revelará a sua deficiência, se vocês não tiverem a aptidão necessária. Não conheço nada melhor. Devemos dar-nos a nós próprios uma boa prova nesta questão, ou não poderemos saber com certeza se Deus nos chamou ou não; e durante a prova, devemos perguntar-nos a nós mesmos muitas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 36 vezes se, de modo geral, podemos alimentar a esperança de edificar outros com os nossos discursos. Contudo, devemos fazer mais do que submeter isso à nossa consciência e ao nosso julgamento, pois somos juízes ineptos. Certa classe de irmãos tem grande facilidade para descobrir que tem sido maravilhosa e divinamente auxiliada em suas declamações. Eu invejaria a gloriosa liberdade e a confiança própria desses irmãos, se houvesse algum fundamento para isso. Pois, lastimavelmente, com muita freqüência tenho que deplorar e lamentar minha falta de sucesso e meus fiascos como orador. Não devemos confiar muito em nossa própria opinião, mas se pode aprender muito de pessoas judiciosas e de índole espiritual. De modo nenhum é isto uma leí que deva obrigar a todas as pessoas, mas ainda assim é um bom e antigo costume em muitas das nossas igrejas rurais, o jovem que aspira ao ministério pregar perante a igreja. Dificilmente é um ensaio agradável ao jovem aspirante, e, em muitos casos, mal chega a ser um exercício edificante para o povo; todavia, pode dar provas de que é um recurso disciplinar dos mais salutares, e poupa a exposição pública da ignorância excessiva. O livro de atas da igreja de Arnsby contém o seguinte registro: Breve relato do chamamento de Robert Hall Junior para a obra do ministério, pela Igreja de Arnsby, 13 de agosto de 1780. "O referido Robert Hall nasceu em Arnsby em 2 de maio de 1764; desde pequeno foi, não somente sério e dado à oração em secreto antes mesmo de poder falar com clareza, mas também foi sempre totalmente inclinado à obra do ministério. Começou a compor hinos antes de completar sete anos de idade e neles revelou sinais de piedade, de pensamento profundo e de gênio. Entre oito e nove anos fez vários hinos, que foram admirados por muitos, um dos quais foi publicado na Revista do Evangelho (Gospel Magazine) aproximadamente na mesma época. Escreveu expondo os seus pensamentos sobre vários assuntos religiosos e sobre porções seletas da Escritura. Tinha também intensa propensão para os estudos, e fez tanto progresso, que o mestre-escola provinciano de quem ele era aluno não pode instruí-lo mais. Então foi enviado à escola-internato de Northampton, ficando aos cuidados do Rev. John Ryland, onde passou
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cerca de um ano e meio, e alcançou grande progresso em latim e grego. Em outubro de 1778, foi para a Academia de Bristol, sob os cuidados do Rev. Evans; e, em 13 de agosto de 1780, foi comissionado ao ministério por esta igreja, estando ele com dezesseis anos e três meses de idade. A maneira pela qual a igreja chegou a ficar satisfeita com a capacidade dele para a grande obra foi por ter ele pregado, quando lhe tocou a vez, nas reuniões de conferências, sobre várias porções da Escritura; nas quais, e na oração, havia participado por quase quatro anos antes; e, quando em casa, tendo pregado a pedido dos irmãos muitas vezes nas manhãs do dia do senhor, para grande satisfação deles. Portanto, eles pediram calorosamente e unânimes que ele fosse solenemente separado para o serviço da comunidade. Com efeito, no dia acima referido, ele foi examinado por seu pai perante a igreja quanto à sua inclinação, seus motivos e seus fins em vista, com referência ao ministério, sendo-lhe mostrado igualmente o desejo de que ele fizesse uma declaração dos seus sentimentos religiosos. Tendose feito tudo, para inteira satisfação da igreja, consagraram-no, pois, levantando as mãos direitas e com oração solene. Depois o seu pai fez-lhe um discurso baseado em 2 Tm. 2:1: "Tu, pois meu filho, fortifica-te na graça que há em Cristo Jesus". Sendo-lhe assim confiada a obra ministerial, pregou de tarde sobre 2 Ts. 1:7.8. "Que o Senhor o abençoe e lhe conceda grande sucesso!!"
Considerável importância deve ser dada ao julgamento feito por homens e mulheres que vivem perto de Deus, e, na maioria dos casos, o seu veredicto não será errôneo. Contudo, este recurso não é final nem infalível, e deve ser avaliado somente em proporção à inteligência e à piedade das pessoas consultadas. Lembro-me bem do empenho com que uma certa piedosa matrona cristã me dissuadiu de pregar. Esforcei-me para avaliar a importância da opinião dela com simplicidade e paciência – opinião essa sobrepujada, porém, pelo julgamento emitido por pessoas de maior experiência. Os jovens em dúvida devem fazer-se acompanhar dos seus mais sábios amigos quando vão à igreja rural ou ao salão de cultos da vila e tentam transmitir a Palavra. Já notei – e o meu amigo Rogers observou a mesma coisa – que vocês, cavalheiros, estudantes, como corpo estudantil, no julgamento que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 38 fazem uns dos outros raramente erram, se é que erram alguma vez. Raramente houve um caso, tomada a instituição de modo global, em que a opinião geral da escola toda sobre um irmão foi errada. Os homens não são tão incapazes de formar opinião uns dos outros, como às vezes se pensa. Reunindo-se como o fazem em classe, nas reuniões de oração, nas conversas e nas várias atividades religiosas, vocês se avaliam uns aos outros; e o prudente não se apressará a desprezar o veredicto da casa. Este ponto não estará completo se eu não acrescentar que a simples capacidade para edificar e a aptidão para ensinar não bastam. São necessários outros talentos para completar a personalidade do pastor. Critério sadio e sólida experiência devem instruí-lo; maneiras gentis e qualidades amáveis devem governá-lo; firmeza e coragem devem ser manifestas; e não devem faltar ternura e simpatia. Os dons administrativos para governar bem são condições tão necessárias como os dons instrutivos para ensinar bem. Vocês devem ser aptos para dirigir, devem estar preparados para agüentar, e devem ser capazes de perseverar. Quanto à graça, vocês devem estar cabeça e ombros acima do restante do povo, capazes de ser seu pai e seu conselheiro. Leiam cuidadosamente as qualificações do bispo, registradas em 1 Tm. 3:2-7 e Tt. 1:6-9. Se esses dons e graças não estiverem em vocês, e com abundância, é possível que tenham bom êxito como evangelistas, mas como pastores não terão nenhum valor. 3. Ainda para provar a vocação de alguém, depois de exercitar um pouco os seus dons, como já lhes falei, é preciso que o aspirante veja realizar-se certo número de conversões sob os seus esforços, ou poderá concluir que cometeu um engano e, daí, poderá retornar pelo melhor caminho que puder encontrar. Não se espera que no primeiro, e mesmo no vigésimo esforço em público, sejamos premiados com o sucesso; e pode ocorrer que um homem tenha uma vida inteira de provação, se se sentir chamado para tanto, mas a mim me parece que quando alguém for separado para o ministério, seu comissionamento estará sem selos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 39 enquanto almas não forem ganhas por sua instrumentalidade para o conhecimento de Jesus. Como obreiro, deve continuar trabalhando, quer tenha sucesso ou não, mas como ministro, não pode ter certeza da sua vocação enquanto não houver resultados patentes. Como o meu coração pulou de alegria quando ouvi as novas da primeira conversão que se deu por meu intermédio! Nunca pude ficar satisfeito com o templo cheio, e com as bondosas expressões dos amigos; ansiava por ouvir de corações quebrantados, de lágrimas correndo dos olhos dos penitentes. Muito me regozijei, como alguém que acha grande presa, devido a uma pobre mulher de operário ter confessado que sentira a culpa do seu pecado e encontrara o Salvador com a minha dissertação de domingo à tarde. Tenho agora na retina a cabana em que ela morava; creiam-me, sempre me parece pitoresca. Lembro-me bem da sua recepção na igreja, da sua morte e da sua partida para o lar celestial. Ela foi o primeiro selo do meu ministério, e, posso garantir-lhes, selo na verdade muito precioso. Mãe nenhuma jamais ficou mais cheia de felicidade com o nascimento do seu primogênito. Na ocasião eu poderia ter entoado o cântico de Maria, pois minha alma engrandeceu o Senhor por ter Se lembrado de mim em minha baixeza, e ter-me dado a grande honra de fazer um trabalho pelo qual todas as gerações me chamariam bemaventurado, pois assim avaliei a conversão de uma alma. É preciso que haja certo número de conversões em seus trabalhos ocasionais antes de poderem acreditar que a pregação deve constituir a carreira da sua existência toda. Recordem as palavras do Senhor mediante o profeta Jeremias; são muito pertinentes ao ponto de que estamos tratando, e deveriam alarmar todos os pregadores infrutíferos. "Não mandei os profetas, e todavia eles foram correndo: não lhes falei a eles, e todavia eles profetizaram. Mas se estivessem no meu conselho, então fariam ouvir as minhas palavras ao meu povo, e os fariam voltar do seu mau caminho, e da maldade das suas ações" (Jr. 23:21-22). Para mim é uma maravilha ver como há homens que continuam tranqüilos a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 40 obra da pregação ano após ano, sem conversões. Não têm eles entranhas de compaixão pelos outros? Não têm senso de responsabilidade por si mesmos? Ousam eles, por uma falsa representação da soberania divina, lançar a culpa sobre o seu Senhor? Ou acreditam eles que Paulo planta, Apolo rega, e Deus não dá o crescimento? Inúteis são os seus talentos, a sua filosofia, a sua retórica, e até a sua ortodoxia, sem os sinais que devem seguir-se. Como são enviados de Deus os que não trazem homens a Deus? Profetas cujas palavras são vazias de poder, semeadores cujas sementes fenecem todas, pescadores que não pescam peixes, soldados que não ferem – são homens de Deus, estes? Certamente melhor seria trabalhar como lixeiro ou limpador de chaminé, do que ficar no ministério como uma árvore completamente estéril. A ocupação mais simples confere algum beneficio à humanidade, mas o infeliz que ocupa um púlpito e nunca glorifica o seu Deus com conversões, é um vazio, uma nódoa, uma feiúra, uma injúria. Não vale o sal que come, muito menos o pão. E se escreve aos jornais para queixar-se da pequenez do seu salário, sua consciência, se é que tem alguma, bem poderia replicar: "E o que você ganha, não merece". Tempos de seca podem ocorrer; sim, e anos de escassez podem consumir os prévios anos de produtividade. Mas ainda haverá fruto em geral e fruto para a glória de Deus. Nesse meio tempo, a esterilidade transitória encherá a alma de indizível angústia. Irmãos, se o Senhor não lhes de zelo pelas almas, agarrem-se à pedra de bater sola, ou à colher de pedreiro, mas evitem o púlpito com a mesma resolução com que valorizam a sua paz de coração e a sua salvação futura. 4. Contudo, é preciso ir um passo além disso tudo em nossa pesquisa. A vontade do Senhor referente aos pastores é conhecida mediante o piedoso julgamento da Sua Igreja. É necessário, como prova da sua vocação, que a sua pregação seja aceitável ao povo de Deus. Deus normalmente abre as portas da elocução para aqueles que Ele
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 41 chama para falarem em Seu nome. A impaciência forçaria a abertura da porta, ou a porta abaixo, mas a fé espera no Senhor, e na ocasião devida ela recebe o prêmio da oportunidade. Quando esta chega, vem o nosso julgamento. Levantando-nos para pregar, o nosso espírito será julgado pela assembléia e, se formos condenados, ou se, como regra geral, a igreja não for edificada, não se pode contestar a conclusão de que não fomos enviados por Deus. Os sinais e marcas do verdadeiro bispo estão registrados na Palavra para orientação da igreja; e se ao seguir essa orientação os irmãos não virem em nós as qualidades requeridas, e não nos elegerem para o ofício, ficará bastante claro que por melhor que possamos evangelizar, o ofício de pastor não é para nós. Nem todas as igrejas são sábias, e nem todas julgam no poder do Espírito Santo, mas muitas julgam segundo a carne. Apesar disso, estaria mais pronto para aceitar a opinião de um grupo do povo do Senhor do que a minha própria opinião sobre um assunto tão pessoal como o dos meus dons e graças. De qualquer forma, quer valorizem o veredicto da igreja quer não, uma coisa é certa: nenhum de vocês pode ser pastor sem o amoroso consentimento do rebanho. Portanto, este lhes servirá de indicador prático, senão correto. Se o seu chamamento da parte do Senhor for real, vocês não ficarão quietos por muito tempo. Tão certo como o homem quer a sua hora, a hora quer o seu homem. A Igreja de Deus está sempre com urgente necessidade de ministros vigorosos. Para ela, um homem é sempre mais precioso do que o ouro de Ofir. Oficiais formais passam fome e necessidade, mas os ungidos do Senhor nunca terão por que ficar sem um cargo pastoral, pois existem ouvidos aguçados que os conhecerão, só de ouvi-los, e há corações prontos para dar-lhes boas vindas ao lugar que lhes for destinado. Mantenham-se em forma para o seu trabalho, e nunca ficarão fora dele. Não corram por todo lado, pedindo para pregar aqui e ali. Preocupem-se mais com a sua capacidade do que com a sua oportunidade, e sejam mais zelosos quanto a andar
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 42 com Deus do que com qualquer outra corsa. As ovelhas conhecerão o pastor enviado por Deus, o porteiro do aprisco abrirá a porta para ele, e o rebanho conhecerá a sua voz. Na época em que transmiti esta preleção pela primeira vez, não tinha lido a admirável carta que John Newton escreveu a um amigo sobre este assunto. Corresponde tão de perto aos meus pensamentos que, com o risco de ser julgado imitador, o que certamente não sou no presente caso, vou ler a carta para vocês. "O seu caso lembra o meu próprio; os meus primeiros desejos com vistas ao ministério foram acompanhados de grandes incertezas e dificuldades, e a perplexidade da minha mente piorou com os vários e antagônicos julgamentos dos meus amigos. O conselho que tenho para oferecer-lhe é resultado de experiência e exames penosos, e, por esta razão, talvez não lhe seja inaceitável. Rogo a Deus que, por Sua graça, torne-o útil. "Fiquei muito tempo angustiado, como você está, sobre a que era ou não era uma verdadeira vocação para o ministério. Agora me parece ponto fácil de resolver, mas, talvez não o seja para você, até que o senhor lho esclareça em seu caso particular. O tempo não dá para eu dizer tudo que poderia dizer-lhe. Em resumo, creio que a questão inclui principalmente três coisas: "1. Um ardente e intenso desejo de empregar-se neste serviço. Entendo que o homem que uma vez foi movido pelo Espírito de Deus para este trabalho, irá preferi-lo, se lhe for acessível, a tesouros em ouro e prata. Assim é que, embora às vezes intimidado pelo senso da importância e das dificuldades do trabalho, comparadas com a sua grande insuficiência pessoal (pois é de presumir-se que um chamamento desta natureza, se realmente provém de Deus, será acompanhado de humildade e de autohumilhação), ele não poderá abandoná-lo. Afirmo que uma boa regra é indagar, neste ponto, se o desejo de pregar é o mais fervente nos centros vitais da estrutura do nosso ser, e quando estamos mais prostrados no pó perante o Senhor. Se é assim, é bom sinal. Mas se, como às vezes se dá, a pessoa está muito ansiosa por ser um pregador para outros, embora não exista em sua própria alma uma fome e uma sede da graça de Deus, então,
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é de temer que o seu zelo promana de um principio egoístico, e não do Espírito de Deus. 2. Além desse apaixonado desejo e prontidão para pregar, é preciso que, no devido tempo, apareça alguma competente aptidão quanto a dons, conhecimento e elocução. Seguramente, se o Senhor envia alguém para ensinar outros, supri-lo-á dos meios necessários. Creio que muitos que se fizeram pregadores, o fizeram com boa intenção; todavia, foram antes de receber ou ultrapassaram a vocação deles ao agirem assim. A principal diferença entre um ministro e um cristão sem vocação especial, parece consistir naqueles dons ministeriais comunicados àquele, não para o seu próprio interesse, mas para a edificação de outros. Mas digo que estes dons devem aparecer no devido tempo. Não se deve esperar que surjam instantaneamente, mas de forma gradual, no uso próprio dos meros. São necessários para desempenhar o ministério, mas não são necessários como requisitos que assegurem os nossos desejos quanto a ele. No seu caso, você é jovem e dispõe de tempo. Daí, penso que não precisa perturbar-se querendo saber se já tem esses dons. Se o seu desejo é firme e se quiser, basta esperar no Senhor por eles, por meio da oração e da diligência, pois você ainda não precisa deles. "3. O que finalmente evidencia um chamamento genuíno é uma correspondente abertura na providência, mediante uma série gradativa de circunstâncias que apontam para os meios, a ocasião, o lugar de entrar de fato no trabalho. E até que chegue esse ponto de coincidência, não espere estar sempre livre de hesitação em sua mente. Nesta parte do assunto, a principal cautela consiste em não ser apressado em agarrar os primeiros indícios que aparecem. Se for da vontade do Senhor introduzi-lo no Seu ministério, Ele já designou o seu lugar e o seu serviço, e embora não o saiba no presente, sabê-lo-á no devido tempo. Se você tivesse talentos de anjo, não poderia fazer muita corsa boa com eles enquanto não chegasse a hora de Deus e Ele não o levasse às pessoas que determinou a abençoar por seu intermédio. É muito difícil restringir-nos aos limites da prudência neste ponto, quando o nosso zelo é ardoroso. O sentir o amor de Cristo em nossos corações e a terna compaixão pelos pobres pecadores propendem para fazer-nos irromper cedo demais; mas quem crê não se precipita. Fiquei cinco anos sob esta compulsão. Às vezes achava que devia pregar, mesmo que fosse nas ruas. Dava ouvidos a tudo que me parecia plausível, e a muitas coisas que não o eram. Mas o Senhor, misericordiosamente, e como que
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insensivelmente, cobria de espinhos o meu caminho. Da contrário, se eu fosse deixado entregue ao meu próprio espírito, eu teria me colocado fora da possibilidade de ser introduzido numa esfera de serviço proveitoso como esta, à qual aprouve a Deus guiar-me no Seu tempo certo e bom. E agora posso ver claramente que, na época que queria sair a campo pela primeira vez – embora a minha intenção fosse boa, acredito – eu me superestimei, pois não possuía aquele discernimento e experiência espiritual indispensável para tão grande serviço".
O que foi dito acima seria suficiente, mas o mesmo assunto estará diante de vocês, se eu lhes der em pormenores um pouco da minha experiência pessoal no trato com aspirantes ao ministério. Constantemente me cabe cumprir o dever que coube aos juízes de Cromwell. Tenho que formar minha opinião sobre se é aconselhável ajudar certos homens em suas tentativas para tornar-se pastores. É um dever da maior responsabilidade, dever que requer cuidado nada comum. É claro que não me meto a julgar se um homem vai entrar no ministério ou não, mas o meu exame visa simplesmente a responder a questão se esta instituição o ajudará ou o deixará entregue aos seus próprios recursos. Alguns dos nossos caridosos amigos nos acusam de termos "uma fábrica de clérigos" aqui, mas a acusação não contém um pingo de verdade. Jamais tentamos fazer um ministro, e se o tentássemos fracassaríamos. Não recebemos ninguém nesta escola senão os que já se declaram ministros. Estariam mais perto da verdade se me chamassem matador de clérigos, pois bom número de principiantes receberam de mim o seu despacho final; e sinto a mais completa paz de consciência quando reflito no que tenho feito neste sentido. É sempre uma tarefa difícil para mim, desanimar um jovem e esperançoso irmão que solicita matrícula nesta escola. Meu coração sempre se inclina para o lado mais bondoso, mas o dever para com as igrejas impele-me a julgar com severa discriminação. Depois de ouvir o candidato, após ler as recomendações que traz, e de avaliar as suas respostas às perguntas feitas, quando me convenço de que o Senhor não
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 45 o chamou, sinto-me obrigado a dizer-lhe isso. Alguns casos tipificam os demais. Jovens irmãos há que desejam com ardor entrar no ministério, mas é dolorosamente patente que o seu motivo principal é o ambicioso desejo de luzir entre os homens. De um ponto de vista comum, estes homens devem ser recomendados por sua aspiração, mas, então, o púlpito jamais deve ser a escada pela qual a ambição suba. Se tais homens entrassem no exército; não ficariam satisfeitos enquanto não chegassem ao mais elevado grau, pois estão determinados a forçar caminho para o alto – tudo muito louvável e próprio até aí; mas eles abraçaram a idéia de que, se entrassem no ministério seriam grandemente distinguidos. Sentiram irromper os rebentos do gênio, e se consideraram maiores do que as pessoas comuns. Daí, olharam para o ministério, vendo-o como uma plataforma onde poderiam exibir as suas pretensas habilidades. Sempre que isto é visível, sinto-me obrigado a deixar o aspirante "to gang his ain gate", como dizem os escoceses; ou seja, sair por onde entrou, certo de que gente com esse espírito sempre dá em nada, se entra no serviço do Senhor. Vemos que não temos nada do que nos gloriar, e se tivéssemos, o pior lugar para ostentá-lo seria o púlpito; país todo dia somos levados a sentir a nossa insignificância e nulidade. A homens que desde a conversão têm deixado transparecer grande fraqueza mental, que são prontamente levados a abraçar doutrinas estranhas, ou a meter-se em má companhia e cair em pecado grosseiro, nunca posso encontrar em meu coração nada para encorajá-los a entrarem no ministério, seja qual for a maneira como professam a sua fé. Se se arrependerem realmente, que fiquem nas últimas fileiras. Inconstantes como a água, jamais vencerão. Assim também os que não suportam dureza, porque pertencem à ordem dos enluvados de pelica, mando-os para qualquer outra parte. Queremos soldados. não janotas; trabalhadores zelosos, não vadios gentis. A homens que nada fizeram até o dia do seu pedido de matricula na escola, dizemos que tratem de obter as suas esporas, antes de serem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 46 publicamente armados cavaleiros. Os que têm fervorosa paixão pelas almas não ficam à espera até que recebam treinamento; servem imediatamente ao seu Senhor. Chamam-me a atenção alguns bons homens famosos por sua enorme veemência e zelo, e por uma notável ausência de cérebro. Irmãos capazes de falar sem parar sobre coisa nenhuma – capazes de sapatear na Bíblia e de espancá-la, sem extrair dela nada. Zelosos, terrivelmente zelosos, exageraram-se em montanhas de trabalhos da mais penosa espécie; mas nada resulta disso tudo, nem sequer o ridiculus mus (ridículo rato). Existem por aí zelotes que não são capazes de conceber ou transmitir cinco pensamentos consecutivos, cuja capacidade é em extremo estreita e cuja presunção é extremamente larga. Estes podem martelar, vociferar, bramar, arrebatar-se, enfurecer-se, mas o barulho todo sai da cavidade oca do tambor. Entendo que esses irmãos terão a mesma atuação com instrução ou sem ela, razão por que geralmente declino os seus pedidos de matrícula. Outra classe demasiadamente numerosa de homens procura o púlpito sem saber por quê. Incapazes de ensinar, não conseguirão aprender, todavia, de bom grado serão ministros. Como o homem que dormiu no Parnaso e depois disso sempre se imaginava poeta, eles tiveram atrevimento suficiente para jogar uma vez um sermão por cima de um auditório, e agora não querem fazer mais nada, senão pregar. Ficam tão ansiosos para pôr de lado o traje operário, que farão uma cisão na igreja da qual são membros para realizar o seu intento. O balcão comercial porém é desagradável, a almofada do púlpito é cobiçada. Estão cansados dos pratos e dos pesos da balança; sentem-se compelidos a experimentar a balança do santuário. Homens assim, como enfurecidas ondas do mar, geralmente fazem espumar a sua própria vergonha, e nos alegramos quando lhes dizemos adeus. As fraquezas físicas levantam uma questão acerca da vocação de alguns excelentes homens. Eu não julgaria, como Eustenes, os homens por suas feições, mas a sua compleição física não é pequeno critério.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 47 Aquele tórax estreito não indica um homem formado para falar em público. Vocês podem achar ridículo, mas ainda estou bem certo de que quando um homem tem peito encolhido, sem distância entre os ombros, o Sapientíssimo não teve a intenção de que ele pregasse habitualmente. Se fosse este o Seu propósito, ter-lhe-ia dado, em alguma medida, amplitude de peito suficiente para produzir razoável porção de energia pulmonar. Quando o Senhor planeja que uma criatura corra, dá-lhe pernas velozes, e se planeja que outra pessoa pregue, dá-lhe pulmões adequados. O irmão que tem de fazer uma pausa no meio de uma frase e acionar a sua bomba de ar, deve perguntar a si mesmo se não há alguma outra ocupação para a qual esteja mais bem adaptado. O homem que mal chega ao fim de uma frase sem se afligir, dificilmente pode ser chamado para cumprir a ordem: "Clama, e não te cales". Talvez haja exceções, mas a regra geral não tem valor? Irmãos com deformação na boca e com articulação defeituosa, geralmente não são chamados para pregar o evangelho. O mesmo se aplica a irmãos destituídos de palato ou com palato imperfeito. Recebeu-se há pouco tempo o pedido de admissão de um jovem que tinha uma espécie de movimento giratório de seu maxilar, movimento do tipo mais penoso para quem o vê. Seu pastor o recomendou como um jovem muito santo, que fora instrumento para levar alguns a Cristo, e expressou a esperança de que eu o receberia, mas não pude ver a conveniência disso. Eu não poderia olhar para ele, sem rir, enquanto ele pregasse, ainda que tivesse por prêmio todo o ouro de Társis, e, com toda a probabilidade, dentre dez dos seus ouvinte, nove seriam mais sensíveis do que eu. Um homem com língua grande que enchia toda a cavidade bucal e causava confusão, outro sem dentes, outro que gaguejava, outro que não conseguia pronunciar todo o alfabeto – a todos, pesarosamente, tive de rejeitar baseando-me no fato de que Deus não lhes dera aqueles meios físicos que, nos termos do livro de oração da igreja anglicana, são "geralmente necessários".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 48 Encontrei um irmão – eu disse um? Encontrei dez, vinte, cem irmãos que alegavam estar seguros, completamente seguros de que foram chamados para o ministério – estavam completamente certos disso porque tinham falhado em tudo mais. Eis aqui uma espécie de história modelo: "Sr. Spurgeon", colocaram-me num escritório de advocacia, mas nunca pude agüentar a clausura, e não me sentia à vontade estudando direito; evidentemente a Providência obstruiu o meu caminho, pois perdi o emprego". "Que é que você fez então?" "Ora, senhor, fui induzido a abrir uma mercearia." "E você prosperou?" "Bem, senhor, não creio que eu jamais pretendesse o comércio, e Deus pareceu-me vedar inteiramente o caminho ali, pois fracassei e me vi em grandes dificuldades. Desde essa ocasião, tive uma pequena agencia de seguros de vida, e tentei organizar uma escola, além de vender chá. Mas o meu caminho está fechado, e algo dentro de mim leva-me a achar que devo ser ministro." Em geral a minha resposta é: "É, entendo. Você fracassou em tudo mais, e daí acha que o Senhor o dotou especialmente para o Seu serviço; mas receio que você se esqueceu de que o ministério precisa dos melhores homens, e não dos que não conseguem fazer nenhuma outra coisa". O homem que teria sucesso como pregador, provavelmente se sairia bem como merceeiro, advogado ou qualquer outra profissão. Um ministro realmente de valor seria ótimo em qualquer outra ocupação. Dificilmente haverá alguma coisa impossível para o homem que mantém unida uma igreja durante anos, e que é capaz de edificá-la através de centenas de domingos consecutivos. Tem que possuir algumas habilidades, e de modo nenhum pode ser um tolo ou um imprestável. Jesus Cristo merece os melhores homens para pregarem a Sua cruz, e não os cabeças ocas e os desvalidos. Um jovem cavalheiro com cuja presença fui honrado uma vez, deixou-me na mente a fotografia do seu extraordinário ser. O seu rosto mesmo parecia o frontispício de um volume completo sobre presunção e tapeação. Mandou-me um recado ao gabinete pastoral um domingo de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 49 manhã dizendo-me que queria ver-me imediatamente. Sua audácia o fez entrar. Quando se viu diante de mim, disse: "Sr.Spurgeon, quero entrar em sua escola, e gastaria de entrar imediatamente". "Bem, senhor", disse eu, "receio que não temos lugar no momento, mas o seu caso será considerado." "Mas o meu caso é deveras notável, Sr. Spurgeon; provavelmente o senhor nunca recebeu um pedido de admissão semelhante ao meu." "Muito bem, veremos isso; o secretário lhe dará o formulário de inscrição, e o senhor poderá ver-me amanhã." Na segunda-feira veio ele, trazendo as questões respondidas da maneira mais extraordinária. Quanto a livros, alegou ter lido toda a literatura antiga e moderna e, depois de dar uma lista imensa, acrescentou: "Isto é apenas uma seleção; li extensamente em todas as áreas". Quanto às suas pregações, ele poderia conseguir as mais altas recomendações, mas nem o julgou necessário, pois uma entrevista pessoal me convenceria logo de sua capacidade. Sua surpresa foi grande quando eu lhe disse: "Meu amigo, sou obrigado a dizer que não posso admiti-lo". "Por que não, Sr. Spurgeon?" "Falarei com franqueza. O senhor é tão tremendamente inteligente que não posso insultá-lo recebendo-o em nossa escola, onde não temos mais que homens comuns; o diretor, os professores e os estudantes, somos todos homens de realizações modestas, e o senhor teria que ser muito condescendente, estando entre nós." Ele me olhou severamente e disse com dignidade: "O senhor quer dizer que, porque eu possuo gênio incomum, e engendrei em mim uma gigantesca mente, raramente vista igual, é-me recusada admissão na sua escola?" "Sim", respondi tão calmamente como pude, considerando-se o opressivo temor que o seu gênio inspirava, "exatamente por essa razão." "Então o senhor devia permitir-me um exame dos meus talentos como pregador. Escolha o texto que quiser, ou sugira o assunto que lhe agradar, e, aqui mesmo nesta sala, discorrerei ou pregarei sobre ele, sem tomar tempo para reflexão, e o senhor ficará surpreso." "Não, obrigado. Prefiro não ter o dissabor de ouvi-lo." "Dissabor, senhor?! Garanto que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 50 lhe seria o maior prazer possível." Eu disse que podia ser, mas me achava indigno do privilégio, e assim lhe disse adeus. O cavalheiro erame desconhecido na ocasião, mas daquele tempo em diante tem figurado na delegacia de polícia como muito inteligente, em parte. Ocasionalmente recebemos solicitações de matrícula que talvez os deixassem admirados, pois provém de homens por certo bastante fluentes, e que respondem muito bem a todas as perguntas, exceto aquelas que se referem às suas opiniões doutrinárias, para as quais obtemos repetidamente esta resposta: "O Sr. Fulano de Tal está disposto a acatar as doutrinas da escola, sejam quais forem"! Em todos esses casos, não discutimos nem um momento; é dada a negativa instantaneamente. Menciono o fato porque ilustra a nossa convicção de que não são chamados para o ministério homens que não têm conhecimento nem crença definida. Quando pessoas jovens dizem que ainda não têm opinião teológica formada, devem voltar para a Escola Dominical até que a tenham. Ora, um homem entrar na escola procurando dar a impressão de que mantém a mente aberta para qualquer forma da verdade, e de que é eminentemente receptivo, mas não tem firmadas em sua mente coisas como, se Deus faz eleição com base na graça, ou se Ele ama o Seu povo até o fim, parece-me uma perfeita monstruosidade. "Não neófito", diz o apóstolo. Entretanto, o homem que não firmou posição sobre pontos como estes é, confessada e egregiamente, um "neófito", e deve ser relegado à classe de catecúmenos até aprender as primeiras verdades do evangelho. Depois de tudo, cavalheiros, teremos que comprovar a nossa vocação mediante a prova prática do nosso ministério na vida ativa posterior, e será para nós uma coisa lamentável iniciar o curso sem o devido exame, pois, em fazendo assim, poderá acontecer que tenhamos que abandoná-lo com desonra. De modo geral, a experiência é o nosso melhor teste, e se Deus nos sustenta ano após ano, e nos dá Sua bênção, não precisamos submeter a nossa vocação a nenhuma outra prova. As nossas aptidões morais e espirituais, serão provadas pelo labor do nosso
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 51 ministério, e este é o mais fidedigno de todos os testes. Alguém me falou de um plano adotado por Matthew Wilks para o exame de um jovem que queria ser missionário; a orientação – se não os pormenores do teste – recomenda-se ao meu juízo, embora não ao meu gosto. O moço desejava ir para a Índia como missionário, ligado à Sociedade Missionária de Londres. O Sr. Wilks foi nomeado para avaliar a aptidão do rapaz para aquele encargo. Escreveu ao jovem pedindo-lhe que o visitasse às seis da manhã do dia seguinte. O irmão morava a muitos quilômetros de distância, mas estava na casa às seis horas em ponto. Contudo, o Sr. Wilks não apareceu na sala senão horas mais tarde. O irmão esperou com estranheza, mas com paciência. Afinal o Sr: Wilks chegou e se dirigiu ao candidato nestes termos, com a sua entonação nasal de sempre: "Bem, jovem; assim é que você quer ser missionário?" "Sim, senhor." "Você ama o Senhor Jesus Cristo?" "Sim, senhor; estou certo que sim." "Você tem alguma instrução?" "Sim, senhor, um pouco." "Bem, agora vamos testá-lo. Você pode soletrar "gato"?" O moço pareceu ficar confuso, e nem sabia responder a tão despropositada pergunta. Sua mente por certo vacilava entre a indignação e a submissão, mas de pronto respondeu com firmeza: "G, a, t, o, gato". "Muito bem", disse o Sr. Wilks"; "agora você pode soletrar "cão"?" O nosso jovem mártir hesitou, mas o Sr. Wilks disse da maneira mais fria: "Ora, não faz mal; não se acanhe; você soletrou tão bem a outra palavra que eu pensei que seria capaz de soletrar esta; por alto que seja o feito, não é tão elevado que não o pudesse fazer sem corar". O jovem Jó replicou: "C, a com til, o, cão". "Bem, está certo. Vejo que você sabe soletrar; agora, quanto à sua aritmética, quanto são duas vezes dois?" É de espantar que o Sr. Wilks não tenha recebido "duas vezes dois" à moda do cristianismo muscular, mas o paciente jovem deu a resposta correta e foi dispensado. Na reunião da comissão, Matthew Wilks disse: "Recomendo de coração aquele moço. Examinei devidamente as recomendações em seu favor e o caráter dele. Além disso, passei-lhe um estranho exame pessoal de tal natureza que poucos poderiam suportar. Provei sua abnegação – e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 52 ele pulou bem cedo da cama; provei seu temperamento e sua humildade; ele é capaz de soletrar "gato" e "cão", e de dizer que "duas vezes dois são quatro" – e se sairá muitíssimo bem como missionário". Ora, o que se diz que o velho cavalheiro fez com tanto mau gosto, devemos fazer conosco mesmos com muita propriedade. Devemos provar-nos a nós mesmos para ver se podemos agüentar intimidações, fadigas, calúnias, zombarias, privações, e se somos capazes de suportar que façam de nós a escória de todos e que nos tratem como nada por amor a Cristo. Se podemos suportar todas estas coisas, temos alguns daqueles pontos que indicam a posse das raras qualidades que se devem encontrar num verdadeiro serviço do Senhor Jesus Cristo. Questiono com seriedade se alguns de nós encontraremos os nossos navios, quando lançados ao mar, tão completamente aptos para navegar como pensamos. Ah meus irmãos, certifiquem-se laboriosamente disto enquanto estiverem neste abrigo; e trabalhem diligentemente para habilitar-se para a sua elevada vocação. Vocês vão ter inúmeras provações, e ai de vocês, se não partirem armados dos pés à cabeça com a armadura da experiência. Terão que correr competindo com cavalheiros; não deixem que a infantaria os canse enquanto estiverem em seus estudos preliminares. O diabo está ao largo, e com ele estão muitos. Submetam-se vocês mesmos a provas, e queira Deus prepará-los para o crisol e o forno que certamente os esperam. Talvez a sua tribulação não seja tão grave como a de Paulo e seus companheiros, mas vocês devem estar prontos para provações semelhantes. Permitam-me ler as memoráveis palavras que o apóstolo escreveu, e rogar-lhes que orem enquanto as ouvem, suplicando ao Espírito Santo que os fortaleça para tudo que os aguarda. "Não dando nós nenhum motivo de escândalo em coisa alguma, para que o ministério não seja censurado. Pelo contrário, em tudo recomendandonos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na
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palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama, como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo." (2 Cor. 6:3-10)
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ORAÇÃO PARTICULAR DO PREGADOR Naturalmente o pregador se distingue acima de todos os demais como homem de oração. Ele ora como um cristão comum, ou de outra forma seria hipócrita. Ora mais que os cristãos comuns, ou de outra forma estaria desqualificado para o cargo que assumiu. "Seria totalmente monstruoso", diz Bernard, "um homem estar no ofício mais elevado, e ser o mais baixo de alma; o primeiro na posição e o último no viver." Todas as suas outras formas de relacionamento são aureoladas pela preeminência da responsabilidade pastoral, e se ele for fiel a seu Senhor, tornar-se-á distinguido em todas elas por sua prática da oração. Como cidadão, seu país goza a vantagem da sua intercessão; como vizinho, os que estão à sombra dele são lembrados em suas súplicas. Ora como marido e como pai; luta para fazer das devoções domésticas um modelo para o seu rebanho; e se o fogo do altar de Deus há de bruxulear em algum outro lugar, é bem mantido na casa do servo escolhido do Senhor – pois ele vela para que os sacrifícios da manhã e da tarde santifiquem a sua habitação. Mas há algumas das suas orações que concernem ao seu ofício, e o nosso plano nestas preleções nos induz a falar mais destas. Ele eleva súplicas peculiares como ministro, e se aproxima de Deus nesta função além e acima de todas as suas outras abordagens em todos os seus outros relacionamentos. Tomo por suposto que, como ministro, ele está sempre orando. Toda vez que a sua mente se volta para o seu trabalho, quer esteja efetuando-o, quer não, lança uma petição, disparando os seus santos desejos como flechas bem dirigidas para o céu. Não está sempre no ato de orar, mas vive no espírito de oração. Se o seu coração está posto no trabalho, ele não consegue comer ou beber ou recrear-se ou dormir ou levantar-se de manhã, sem sentir sempre um ardor de desejo, um peso de ansiedade e uma simplicidade da sua dependência de Deus; assim, de um modo ou de outro, continua em oração. Se há algum homem debaixo do céu compelido a cumprir o preceito – "Orai sem cessar", certamente é o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 55 ministro cristão. Cabem-lhe tentações peculiares, provações especiais, dificuldades singulares e deveres extraordinários; ele tem que se entender com Deus em formidáveis relacionamentos, e com os homens em misteriosos interesses; por isso ele tem muito mais necessidade da graça divina do que os homens comuns, e, sabedor disto, é levado a rogar constantemente ao Forte por força, e a dizer: "Elevo os meus olhos para os montes, de onde me virá o socorro". Certa vez Alleine escreveu a um amigo: "Embora eu seja propenso à agitação e a sair rapidamente dos eixos, considero-me, porém, como um pássaro fora do ninho, e não me tranqüilizo, enquanto não retomo a minha antiga maneira de manter comunhão com Deus, como a agulha da bússola, inquieta enquanto não se volta para o pólo. Posso dizer, pela graça, com a igreja: "De alma te desejei de noite, e com meu espírito dentro em mim te busquei de manhã". Cedo e de noite o meu coração está com Deus; a ocupação e o prazer da minha vida é buscá-Lo." Do mesmo teor deve ser o seu modo de ser e de agir, ó homens de Deus! Se vocês, na qualidade de ministros, não são de muita oração, são dignos de muito dó. Se futuramente, chamados para exercer pastorados, pequenos ou grandes, relaxarem nas devoções secretas, não só vocês merecerão dó; os seus rebanhos também o merecerão; em acréscimo, vocês serão censurados, e chegará o dia em que ficarão envergonhados e confusos. Dificilmente seria necessário recomendar-lhes os agradáveis usos da devoção particular, e, contudo, não posso abster-me de fazê-lo. Para vocês, como embaixadores de Deus, o propiciatório tem valor que ultrapassa todas as estimativas. Quanto mais familiarizados estiverem com a corte do céu, melhor se desincumbirão do seu encargo celeste. Dentre todas as influências estruturadoras que formam um honrado homem de Deus no ministério, não ser de nenhuma outra que seja mais poderosa que a sua familiaridade com o propiciatório. Tudo que o curso da faculdade pode fazer por um estudante é tosco e superficial, comparado com o refinamento espiritual excelente obtido pela
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 56 comunhão com Deus. Enquanto o ministro que ainda não tomou forma gira sobre o eixo da preparação, a oração é a ferramenta do grande oleiro com a qual molda o vaso. Todas as nossas bibliotecas e escritórios são uma simples vacuidade, comparados com os nossos quartos. Crescemos, ficamos cada vez mais poderosos, prevalecemos na oração secreta. As suas orações serão os seus assessores mais competentes, enquanto os seus discursos estão ainda na bigorna. Enquanto outros, do tipo de Esaú, andam à caça da sua porção, vocês, com o auxílio da oração, encontrarão saborosa refeição aí mesmo, em casa, e poderão dizer de verdade o que Jacó disse com tanta falsidade: "O Senhor, teu Deus, a mandou ao meu encontro". Se vocês puderem afundar suas canetas em seus corações, recorrendo ardorosamente ao Senhor, escreverão bem; e se puderem juntar o seu material de joelhos às portas do céu, não deixarão de falar bem. A oração, como exercício mental, trar-lhes-á à mente muitos assuntos, e assim os ajudará na seleção de um tópico, enquanto que, como elevada ocupação espiritual, limpará a sua visão interior para poderem ver a verdade à luz de Deus. Muitas vezes os textos se negarão a revelar os seus tesouros, enquanto não os abrirem com a chave da oração. De que maneira maravilhosa se abriram os livros para Daniel quando elevou súplicas a Deus! Quanta coisa Pedro aprendeu no eirado! O quarto é o melhor gabinete de trabalho. Os comentadores são bons instrutores, mas o próprio Autor é muito melhor, e a oração faz um apelo direto a Ele e O alista em nossa causa. É coisa grandiosa a gente orar compenetrado do espírito e da essência de um texto; penetrá-lo alimentando-se sagradamente dele, exatamente como o verme perfura o seu trajeto rumo ao miolo da noz. A oração fornece força à alavanca para levantar verdades de peso. Causa espanto pensar em como as pedras de Stonehenge [nome do monumento pré-histórico mais importante da Grã-bretanha] puderam ser colocadas em seus lugares. Causa mais espanto ainda pensar de onde alguns homens obtiveram tão admirável conhecimento de doutrinas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 57 misteriosas. Acaso não foi a oração o potente maquinismo que operou a maravilha? Esperar em Deus muitas vezes transforma as trevas em luz. A perseverante perquirição no oráculo sagrado (oração) levanta o véu, e dá-nos graça sondar as profundas realidades de Deus. Observou-se muitas vezes que certo teólogo puritano, durante um debate, escrevia algo num papel que tinha diante de si. Outros, procurando curiosamente ler as suas anotações, nada viram na página, senão as palavras, "Mais luz, Senhor", "Mais luz, Senhor", repetidas muitas vezes; oração sumamente própria para o estudante da Palavra quando está preparando o seu sermão. Com freqüência vocês encontrarão novas correntes de pensamento saltando da passagem à sua frente, como rocha batida pela vara de Moisés. Novos veios de minério precioso se descortinarão ao seu olhar admirado quando vocês escavarem a Palavra de Deus e usarem diligentemente o martelo da oração. Às vezes vocês se sentirão como se estivessem inteiramente bloqueados, e de repente uma nova estrada se abrirá à sua frente. Aquele que tem a chave de Davi abre, e ninguém fecha. Se vocês viajaram alguma vez descendo o Reno. o cenário aquático daquele majestoso rio os terá surpreendido, lembrando muito o efeito de uma série de laços. Adiante e atrás o barco parece encerrado por maciças muralhas de rocha, ou ladeado de terraços de parreirais, até que num súbito virar de uma curva, eis em sua frente o rio, jubiloso e abundante, a fluir, avançando com todo o seu vigor. Assim, o laborioso estudante muitas vezes vê isso no texto; parece estar fortemente cerrado contra vocês, mas a oração impele o barco e dirige a proa para águas vigorosas, e vocês contemplam a larga e profunda torrente da verdade sagrada a fluir em sua plenitude, e levandoos com ela. Não é esta razão convincente para perseverar nas súplicas ao Senhor? Usem a oração como vara de sondagem, e as fontes de águas vivas saltarão das entranhas da Palavra de Deus. Quem vai contentar-se em ficar com sede, quando as águas vivas aí estão, prontas para quem quiser obtê-las?!
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 58 Os melhores e mais santos homens sempre fizeram da oração a parte mais importante do preparo para o púlpito. De McCheyne se diz: "Desejoso de dar a seu povo no dia do Senhor o que lhe tivesse custado algo, jamais sem motivo urgente, se apresentava diante dele sem antes meditar e orar muito. Seu princípio sobre esta questão foi incluído numa observação que fez a alguns de nós quando conversávamos sobre o assunto. Quando alguém lhe perguntou qual o seu conceito do diligente preparo para o púlpito, lembrou-nos Êxodo 27:20 – "Azeite batido – azeite batido para as lâmpadas do santuário". Entretanto, sua vida de oração foi maior ainda. Ele realmente não conseguia negligenciar a comunhão com Deus antes de comparecer perante a igreja reunida. Tinha necessidade de banhar-se no amor de Deus. Seu ministério era em tão grande parte a exposição de noções que primeiro santificaram a sua própria alma, que a saúde da sua alma era absolutamente necessária para o vigor e o poder das suas ministrações". "Para ele o começo de todo trabalho invariavelmente consistia no preparo da sua alma. As paredes do seu quarto eram testemunhas da sua vida de oração e de suas lágrimas, como também dos seus clamores." A oração lhes prestará singular assistência na transmissão do sermão. De fato, nenhuma outra coisa pode qualificar-vos tão gloriosamente para pregar como alguém que desce do monte da comunhão com Deus a fim de falar com os homens. Ninguém é tão capaz de pleitear com os homens como quem esteve pelejando com Deus em favor deles. Dizem de Alleine que "Ele derramava o coração quando orava e pregava. Suas súplicas e suas exortações eram tão afetuosas, tão cheias de zelo, vida e vigor, que conquistavam os seus ouvintes; ele se fundia sobre eles, de modo que amolecia, derretia, e às vezes dissolvia os mais duros corações". Jamais dissolveria coração nenhum se antes a sua mente não ficasse exposta aos raios tropicais do Sol da Justiça pela secreta comunhão com o Senhor ressurreto. Uma pregação deveras comovente, em que não há afetação, mas muita afeição, só pode brotar da oração. Não há retórica igual à do coração, e nenhuma escola onde
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 59 aprendê-la, senão aos pés da cruz. Seria melhor que vocês nunca aprendessem uma só regra de oratória humana, porém estivessem cheios de poder do amor oriundo do céu; isto seria melhor do que dominar Quintiliano, Cícero e Aristóteles, e ficar sem a unção apostólica. A oração não poderá torná-los eloqüentes à moda humana, mas os tornará verdadeiramente eloqüentes, pois falarão de coração; e não é este o sentido da palavra eloqüência? Ela trará rogo do céu sobre o seu sacrifício, e assim provará que é aceito pelo Senhor. Assim como vigorosas fontes de pensamento muitas vezes irromperão em resposta à oração, enquanto se preparam, também será na entrega do sermão. Muitos pregadores que se põem na dependência do Espírito de Deus lhes dirão que os seus pensamentos mais vívidos e melhores não são os que foram premeditados, mas as idéias que lhes vêm, voando como que em asas de anjos; inesperados tesouros trazidos de repente por mãos celestiais, sementes das flores do paraíso que vêm flutuando dos montes de mirra. Muitíssimas vezes, quando me sinto embaraçado no pensamento e na expressão, o meu secreto gemido de coração me tem trazido alívio; e passo a desfrutar liberdade maior do que a costumeira. Mas, como ousarei orar na batalha se nunca clamei ao Senhor enquanto afivelo a armadura?! A lembrança das suas lutas em casa fortalece o pregador agrilhoado quando no púlpito. Deus não nos abandonará, a menos que O abandonemos. Vocês verão, irmãos, que a oração lhes assegurará força suficiente para o seu dia. Como as línguas de fogo vieram sobre os apóstolos quando ficaram vigiando e orando, assim também virão sobre vocês. Ver-se-ão a si próprios, talvez quando poderiam ter desfalecido, subitamente revivificados, como que pelo poder de um anjo. Rodas de fogo serão ajustadas à sua carruagem. que começara a arrastar-se dificultosamente, e corcéis angélicos serão num instante atrelados em seu carro chamejante até você galgar os céus, como Elias, numa arrebatamento de inflamada inspiração.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 60 Depois do sermão, como poderia o pregador consciencioso dar livre curso aos seus sentimentos e achar consolo para a sua alma se lhe fosse negado acesso à sede da misericórdia? Elevados ao mais alto grau de comoção, como podemos aliviar a nossa alma, senão com intercessões importunas? Ou, deprimidos pelo medo de fracassar, como seremos confortados senão chorando nossas mágoas diante do nosso Deus? Quantas vezes alguns de nós ficamos virando para um lado e para outro na cama a metade da noite por causa dos nossos conscientes defeitos no testemunho! Com que freqüência ansiamos por correr de volta ao púlpito para dizer outra vez, com maior veemência, o que tínhamos dito de maneira tão fria! Onde poderíamos achar descanso para o nosso espírito, senão na confissão do pecado, e nos ardentes rogos para que a nossa fraqueza ou estultícia de modo nenhum estorve o Espírito de Deus? Numa assembléia pública não é possível derramar todo o amor do nosso coração pelo rebanho que está a nosso cargo. Como José, o ministro afetuoso procurará onde chorar; suas emoções, por mais livremente que possa ele expressar-se, ficarão enjauladas quando ele estiver no púlpito, e somente pela oração secreta poderá abrir as comportas e fazê-las fluir para fora. Se não podemos persuadir os homens a favor de Deus, havemos de, pelo menos, esforçar-nos para persuadir a Deus a favor dos homens. Não podemos salvá-los; nem sequer podemos induzi-los a serem salvos, mas ao menos podemos deplorar a loucura deles e suplicar a intervenção de Deus. Como Jeremias, podemos tomar nossa a resolução: "E, se isto não ouvirdes, a minha alma chorará em lugares ocultos, por causa da vossa soberba; e amargamente chorarão os meus olhos, e se desfarão em lágrimas". A esses apelos tão comoventes o coração do Senhor nunca pode ser indiferente; no devido tempo, o lacrimoso intercessor se tornará jubiloso ganhador de almas. Existe clara conexão entre a agonia importuna e o verdadeiro sucesso, semelhante à que existe entre as dores de parto e o nascimento, entre semear em lágrimas e colher com alegria.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 61 "Como é que a semente que você planta brota depressa assim?", perguntou um jardineiro a outro. "É porque a rego", foi a resposta. Temos que regar com lágrimas todos os nossos ensinamentos "quando ninguém está perto, exceto Deus", e o crescimento deles nos causará surpresa e deleite. Poderia alguém admirar-se com o sucesso de Brainerd, quando o seu diário contém anotações tais como a seguinte? "Dia do Senhor, 25 de abril – Esta manhã passei cerca de duas horas ocupado com deveres sagrados e, extraordinariamente, pude agonizar pelas almas imortais; embora fosse bem cedo, e o sol mal começasse a brilhar, meu corpo ficou molhado de suor". O segredo do poder de Lutero esteve nessa mesma direção. Teodoro disse ele: "Escutei-o em oração, mas, bom Deus, com que vida e com que espírito ele orava! Era com tanta reverência, como se estivesse falando com Deus, mas com tão confiante liberdade, como se estivesse falando com um amigo". Meus irmãos, permitam-me rogar-lhes que sejam homens de oração. Pode ser que nunca venham a ter grandes talentos, mas se desempenharão satisfatoriamente sem eles, se forem abundantes na intercessão. Se não orarem sobre aquilo que semearam, Deus, na Sua soberania, talvez decida conceder uma bênção, mas vocês não terão direito de esperá-la, e se ela vier, não lhes trará conforto ao coração. Estive lendo ontem um livro do Padre Faber, finado religioso da Ordem do Oratório, em Brompton, maravilhosa composição de verdade e erro. Relata nele uma lenda do seguinte teor: Certo pregador, cujos sermões convertia homens aos montes, recebeu uma revelação do céu de que nenhuma das suas conversões se devia aos seus talentos ou à sua eloqüência, mas todas se deviam às orações de um irmão leigo iletrado, que ficava sentado nos degraus do púlpito, orando o tempo todo pelo sucesso do sermão. Poderá dar-se isso conosco no dia da revelação de todas as coisas. Talvez descubramos, depois de termos trabalhado demorada e cansativamente na pregação, que a honra toda pertence a outro construtor, cujas orações foram ouro, prata e pedras preciosas, ao
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 62 passo que os nossos sermões, sendo apregoados sem oração, não passaram de feno e palha. Quando tivermos terminado de pregar, não teremos terminado ainda de orar, se formos fiéis ministros de Deus, porque a igreja inteira, com muitas bocas, estará clamando, na expressão do macedônio: "Passa à Macedônia, e ajuda-nos" com oração. Se vocês estiverem habilitados a prevalecer em oração, terão muitas súplicas para fazer por outros que se juntarão ao seu redor e pedirão participação em suas intercessões, e assim vocês se verão comissionados com mensagens enviados ao trono da misericórdia a favor de amigos e ouvintes. Essa é sempre a cota que me cabe, e para mim é uma satisfação ter tais súplicas para apresentar ao meu Senhor. Vocês nunca podem ficar sem temas para oração, mesmo que ninguém lhos sugira. Observem as pessoas da sua igreja. Há sempre doentes entre elas, e muitas outras que são doentes da alma. Algumas não são salvas; outras estão procurando e não conseguem achar. Muitas vivem desanimadas, e não poucos crentes são infiéis ou lamurientos. Há lágrimas de viúvas e suspiros de órfãos para pôr no seu frasco e derramar perante o Senhor. Se você é um autêntico ministro de Deus, manter-se-á diante do Senhor como um sacerdote, usando espiritualmente o peitoral em que você porta os nomes dos filhos de Israel, intercedendo por eles, detrás do véu. Conheci irmãos que mantinham uma lista de pessoas pelas quais se sentiam especialmente incumbidos a orar, e não tenho dúvida de que aquele registro muitas vezes os lembrava de algo que de outra maneira teria fugido da sua memória. No entanto seu rebanho não o absorverá totalmente; a nação e o mundo requererão sua parte. O homem que for poderoso na oração poderá ser uma muralha de fogo ao redor do seu país, seu "anjo da guarda" e seu escudo. Todos já ouvimos sobre como os inimigos da causa do protestantismo temiam as orações de Knox mais que a exércitos de dez mil homens. O famoso Welch também foi um grande intercessor por seu país. Ele costumava dizer que "se admirava de como um cristão podia ficar no leito a noite inteira sem se levantar para
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 63 orar". Quando sua esposa, temendo que ele ficasse resfriado, foi até o quarto ao qual se havia retirado, ouviu-o clamar em frases entrecortadas: "Senhor, não me concederás a Escócia?" Ah! se ficássemos lutando assim a desoras clamando: "Senhor, não nos concederás as almas dos nossos ouvintes?" O ministro que não ora fervorosamente pela obra que realiza, só pode ser um homem fútil e vaidoso. Age como que se considerando auto-suficiente, e, portanto, como se não precisasse apelar para Deus. Todavia, que orgulho mais sem fundamento, conceber que a nossa pregação seja em si mesma tão poderosa que pode converter os homens dos seus pecados, e trazê-los para Deus sem a ação do Espírito Santo! Se formos verdadeiramente humildes de coração, não nos aventuraremos a meter-nos no combate enquanto o Senhor dos Exércitos não nos revestir de todo o poder, e nos disser: "Vai nesta tua força". O pregador que negligencia orar só pode ser muito desleixado quanto ao seu ministério. Não é possível que tenha compreendido a sua vocação. Não pode ter computado o valor de uma alma, nem avaliado o sentido da eternidade. Certamente não passa de um oficial, tentado ao púlpito porque o pedaço de pão que pertence ao ofício ministerial é-lhe muito necessário; ou não passa de um detestável hipócrita que gosta do louvor dos homens e não se preocupa com o louvor de Deus. Será por certo um simples palrador superficial, mais bem aprovado onde a graça é menos apreciada, e onde uma exibição vã é grandemente admirada. Ele não pode ser um daqueles que aram bem e colhem messes abundantes. É um reles vadio, não um trabalhador. Como pregador, tem nome de que vive, e está morto. Manqueja em sua vida como o coxo de Provérbios, cujas pernas eram desiguais, pois a sua oração é mais curta que a sua pregação. Temo que, uns mais, outros menos, a maioria de nós necessita de um auto-exame quanto a este assunto. Se alguém aqui se aventurasse a dizer que ora quanto deve, como estudante, eu questionaria seriamente a sua afirmação; e se estiver presente algum ministro, diácono ou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 64 presbítero capaz de dizer que se dedica a Deus em oração em toda a extensão da sua possibilidade, eu gostaria de conhecê-lo. Só posso dizer que, se ele pode arrogar-se este grau de excelência, deixa-me bem para trás, pois eu não posso alegar isso em meu favor. Gostaria que fosse possível. E faço a confissão com grande medida de vergonha e confusão, mas sou obrigado a fazê-la. Se não somos mais negligentes do que os outros, isto não nos serve de consolo; as falhas de outros não nos inocentam. Quão poucos de nós poderíamos comparar-nos com o Sr. Joseph Alleine, cujo caráter mencionei anteriormente! "Quando estava bem de saúde", escreve sua esposa, "levantava-se constantemente às quatro horas, ou antes, e ficava aborrecido quando ouvia ferreiros ou outros artesãos em suas atividades antes de ele estar em comunhão com Deus, dizendo-me muitas vezes: "Como este ruído me envergonha! O meu Senhor não merece mais que o deles?" Das quatro às oito ficava em oração, em santa contemplação e cantando salmos, com que se deleitava muito, e o que praticava diariamente, a sós e com a família. Às vezes ele suspendia a rotina dos seus compromissos paroquiais e dedicava dias completos a esses exercícios secretos, para o que dava um jeito de ficar sozinho numa casa desocupada, ou senão em algum ponto isolado, em pleno vale. Ali fazia muita oração e meditação sobre Deus e o céu." Poderíamos ler, sem ruborizar-nos, a discrição que Jonathan Edwards faz de Davi Brainerd? "Sua vida", diz Edwards, "mostra o modo certo de se obter sucesso nos labores ministeriais. Ele o buscava como um soldado resoluto busca a vitória num assédio ou numa batalha; ou como um homem que disputa numa corrida um grande prêmio. Animado pelo amor a Cristo e às almas, como trabalhava sempre com fervor, não só na palavra e na doutrina, em público e em particular, mas também em orações dia e noite, "lutando com Deus" em secreto, e "com dores de parto", com gemidos e agonias inexprimíveis, "até ser Cristo formado" nos corações das pessoas às quais ele foi enviado! Como era sedento por uma bênção a seu ministério, e velava pelas almas "como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 65 quem deve prestar contas"! Como ele ia "na força do Senhor" Deus, procurando e se pondo na dependência da influência especial do Espírito para assisti-lo e prosperá-lo! E que feliz fruto, afinal, depois de longa espera e de muitos aspectos tenebrosos e desanimadores; como um verdadeiro filho de Jacó, perseverava lutando através de toda a escuridão da noite, até romper o dia." Por certo nos causaria vergonha o diário de Henry Martyn, em que achamos assentamentos como estes: "24 de setembro – A determinação com que fui para a cama a noite passada, de devotar o dia de hoje à oração e ao jejum, pude pôr em execução. Em minha primeira oração por libertação de pensamentos mundanos, confiando no poder e nas promessas de Deus, firmando a minha alma enquanto orava, tive ajuda para desfrutar muita abstinência do mundo por quase uma hora: Li depois a história de Abraão, para ver com que familiaridade Deus Se revelara a mortais da antigüidade. Em seguida, orando por minha santificação pessoal, minha alma aspirou livre e ardentemente a santidade de Deus, e este foi o melhor período do dia". Talvez pudéssemos juntar-nos mais sinceramente a ele em seus lamentos após o primeiro ano do seu ministério, em que julgou "ter dedicado demasiado tempo às ministrações públicas, e pouquíssimo à comunhão a sós com Deus". Quanta bênção perdemos por sermos remissos nas súplicas, mal podemos imaginar, e nenhum de nós pode saber como somos pobres em comparação com o que poderíamos ser se vivêssemos habitualmente mais perto de Deus em oração. Vãos pesares e conjeturas são inúteis, mas uma vigorosa determinação a corrigir-nos será muito mais útil. Não só devemos orar mais, mas precisamos. O fato é que o segredo de todo o sucesso ministerial está em prevalecer na sede da misericórdia – no propiciatório. Uma fulgente dádiva do céu que a oração particular traz ao ministério é algo indescritível e inimitável, melhor para se experimentar do que para se contar; é um orvalho do Senhor, uma presença divina que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 66 vocês reconhecerão de imediato quando lhes disser que é "a unção do Santo". Que será isto? Pergunto-me quanto tempo haveríamos de ficar espremendo o cérebro até podermos colocar claramente em palavras o que se quer dizer com pregar com unção. Contudo, quem prega sabe da sua presença, e quem ouve logo detecta a sua ausência. Samaria, em crise de fome, tipifica um discurso sem ela; Jerusalém, com suas testas repletas de substâncias gordas e de tutano, pode representar um sermão enriquecido por ela. Toda gente sabe o que é o frescor da manhã quando pérolas brilhantes recobrem cada folha da grama, mas quem pode descrevê-lo e, quanto mais, produzi-lo por si mesmo? Assim é o mistério da unção espiritual; sabemos o que é, mas não a podemos explicar a outros. É tão fácil como insensato falsificá-la, como fazem alguns que usam expressões que pretendem demonstrar fervente amor, mas, com mais freqüência indicam sentimentalismo piegas ou mera gíria. "Querido Senhor!" "Doce Jesus!" "Cristo precioso!" são expressões despejadas por atacado por eles, a ponto de deixar a gente com náuseas. Estas familiaridades podem ter sido não somente toleráveis, mas até belas, quando caíram pela primeira vez dos lábios de um santo de Deus, falando como que da glória excelsa, mas quando repetidas petulantemente, não só são intoleráveis, como também indecentes, senão profanas. Alguns têm tentado imitar a unção por meio de entonação e gemidos inaturais; virando os olhos pondo à mostra só o branco do globo ocular; e levantando as mãos de modo sumamente ridículo. Ouvem-se a entonação e o ritmo de McCheyne repetidos constantemente pelos escoceses; preferimos o seu espírito a seu maneirismo; e todo mero maneirismo sem poder é como repugnante carniça de toda forma de vida desolada, odiosa e nociva. Certos irmãos pretendem obter inspiração mediante esforços e altos gritos; mas ela não vem. Sabemos que alguns interrompem o sermão, e exclamam: "Deus os abençoe" , e que outros gesticulam de maneira selvagem, e metem as unhas nas palmas das mãos como se estivessem tendo convulsões de febre celestial. Bolas! Essa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 67 coisa toda cheira a camarim e palco. Instilar fervor nos ouvinte mediante simulação dele pelo pregador, é uma abominável fraude que deve ser desprezada pelos honestos. "Simular sentimento", diz Richard Cecil, "é repugnante e logo percebido mas sentir verdadeiramente é o caminho para o coração dos outros." Unção é uma coisa que não se pode fabricar, e suas imitações são piores do que indignas; entretanto, seu valor é inestimável, e ela é necessária além de toda medida, se é que vocês desejam edificar os crentes e levar pecadores a Jesus. Àquele que pleiteia secretamente com Deus é entregue este segredo; sobre ele pousa o orvalho do Senhor, e o cerca o perfume que alegra o coração. Se a unção que levamos não provém do Senhor dos Exércitos, somos enganadores, e desde que só com oração podemos obtê-la, perseveremos em súplicas insistentes e constantes. Deixem o seu velo na eira dos rogos até umedecer-se com o orvalho do céu. Não ministrem no templo enquanto não se lavarem na pia perto do altar. Não se considerem mensageiros da graça a outros enquanto vocês mesmos não tiverem visto o Deus da graça, e enquanto não tiverem recebido a Palavra da Sua boca. O tempo passado em quieta prostração da alma perante o Senhor é extremamente revigorante. Davi fez isso diante do Senhor (2 Sm. 7:18); é uma grande coisa manter esses "aconchegos sagrados", com a mente receptiva, como uma flor aberta abeberando-se dos raios solares, ou como a sensível chapa fotográfica captando a imagem diante de si. A quietude, que alguns não conseguem suportar porque revela a sua pobreza interior, é como um palácio de cedro para o sábio, pois ao longo dos seus pátios sagrados o Reí em Sua formosura condescende em passear. "Ó sagrado silêncio! tu és represa do coração, sim, do âmago da gente; produto de celeste natureza; gelo da boca e degelo da mente." (Flecknoe)
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 68 Inestimável como o dom da elocução possa ser, a prática do silêncio em alguns aspectos o sobrepuja em muito. Acham que sou quacre? Bem, que o seja. Nisto eu sigo George Fox com o maior afeto, pois estou persuadido. de que a maioria de nós pensa bem demais da linguagem falada que, afinal, é apenas o invólucro do pensamento. A contemplação em silêncio, o culto silente, o arrebatamento sem articulação de palavras, são meus, quando tenho diante de mim as minhas melhores jóias. Irmãos, não neguem ao seu coração as alegrias do alto mar; não deixem de lado a vida de maior profundidade, ficando sempre a tagarelar entre as conchas quebradas e as ondas espumosas da praia. Recomendo-lhes seriamente que, quando estiverem estabelecidos no ministério, celebrem períodos especiais de devoção. Se as orações feitas ordinariamente não estiverem mantendo a vida e o vigor das suas almas, e notarem que se enfraquecem, fiquem sozinhos por uma semana, ou até por um mês, se possível. Ocasionalmente temos feriados nacionais; por que não termos com freqüência dias santos? Sabemos de irmãos mais ricos que acham tempo para uma viagem a Jerusalém; não poderíamos dispensar tempo para uma viagem menos difícil e muito mais proveitosa à cidade celestial? Isaac Ambrose, que foi pastor em Preston, autor do famoso livro, Looking to Jesus (Olhando para Jesus), sempre reservava um mês por ano para reclusão numa cabana em uma floresta de Garstang. Não admira que fosse um teólogo tão cheio de poder, desde que passava com regularidade tanto tempo no monte com Deus. Noto que os romanistas estão acostumados a manter o que chamam de "Retiros", aonde certo número de sacerdotes se acolhe por um tempo, procurando a quietude completa, para passar o tempo todo em jejum e oração, com o fim de inflamar de ardor as suas almas. Podemos aprender dos nossos adversários. Seria uma grande coisa de vez em quando um grupo de irmãos verdadeiramente espirituais passar juntos um dia ou dois em real e consumidora agonia de oração. Num retiro só de pastores, estes poderiam ter muito mais liberdade do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 69 que num grupo misto. Períodos de humilhação e de súplicas para a igreja toda também nos beneficiarão, se nos dedicarmos a isso de coração. Os nossos períodos de jejum e oração no Tabernáculo têm sido de fato dias de grande elevação. Nunca os portais do céu estiveram mais amplamente abertos; nunca os nossos corações estiveram mais perto do centro da glória. Aguardo sequioso o nosso mês de devoção especial, como os marinheiros quando calculam que se aproximam de terra. Mesmo que o nosso trabalho público fosse posto de lado para dar-nos lugar à oração especial, poderia ser grande ganho para as nossas igrejas. Uma viagem pelos rios da comunhão e da meditação seria bem recompensada por um frete de sentimento santificado e de pensamento elevado. O nosso silêncio poderia ser melhor do que as nossas vozes, se passássemos com Deus a nossa solidão. Foi uma atitude grandiosa a que o velho Jerônimo tomou quando pôs de lado todas as suas prementes ocupações para realizar um propósito que ele entendia ser um chamamento do céu. Tinha a seu cargo uma grande igreja, tão grande que qualquer de nós gostaria de ter igual. Mas ele disse a seu povo: "Agora há necessidade de que o Novo Testamento seja traduzido; vocês precisam encontrar outro pregador. A tradução precisa ser feita. Vejo-me forçado a partir para o deserto, e não voltarei enquanto não concluir a minha tarefa". Lá se foi com os seus manuscritos, e orou e trabalhou, e produziu uma obra – a Vulgata Latina – que durará enquanto o mundo existir; de modo geral, a mais maravilhosa tradução da Escritura Sagrada. Como num retiro, estudo e oração igualmente e juntamente puderam produzir uma obra imortal, se às vezes disséssemos aos nossos ouvintes, quando nos sentíssemos impulsionados a fazê-lo: "Diletos amigos, precisamos realmente sair um pouco para renovar a nossa alma na solidão"; o nosso aproveitamento logo se tornaria patente, e embora não escrevêssemos Vulgatas Latinas, ainda assim realizaríamos uma obra imortal, capaz de resistir ao fogo.
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ORAÇÃO EM PÚBLICO Às vezes a vanglória dos episcopais é que os membros da igreja oficial vão aos seus templos para orar e prestar culto a Deus, mas os dissidentes (os das igrejas livres) simplesmente se reúnem para ouvir sermões. Nossa réplica a isso é que, conquanto possam existir alguns crentes professos culpados deste mal, não é verdade quanto aos filhos de Deus que nos cercam, e pessoas desta estirpe espiritual são as únicas que realmente apreciam a devoção, em qualquer igreja. Os crentes de nossas igrejas se reúnem para prestar culto a Deus, e nós afirmamos, e não hesitamos em afirmá-lo, que se eleva tanta oração verdadeira e aceitável em nossas reuniões não-conformistas regulares, como nas melhores e mais pomposas realizações da Igreja da Inglaterra. Além disso, se aquela observação tiver o propósito de fazer supor que ouvir sermões não é cultuar a Deus, funda-se em grosseiro engano, porquanto ouvir corretamente o evangelho é uma das partes mais nobres da adoração ao Altíssimo. É um exercício mental em que, quando corretamente praticado, todas as faculdades do homem espiritual são chamadas à realização de atos de devoção. Ouvir reverentemente a Palavra exercita a nossa humildade, instrui a nossa fé, engolfa-nos em raios de fulgente alegria, inflama-nos de amor, inspira-nos zelo, e nos eleva até o céu. Muitas vezes um sermão tem sido uma espécie de escada de Jacó na qual vimos os anjos de Deus subindo e descendo, e a aliança de Deus no alto dela. Temos sentido com freqüência quando Deus fala através dos Seus servos ao íntimo das nossas almas. "Este não é outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus." Temos engrandecido o nome do Senhor e O temos louvado de todo o coração, enquanto Ele nos tem falado mediante o Seu Espírito, que Ele deu aos homens. Daí, não existe aquela larga diferença entre a pregação e a oração, que alguns querem que admitamos; pois a primeira parte da reunião funde-se brandamente com a outra, e freqüentemente o sermão inspira a oração e o hino. A
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 71 verdadeira pregação é uma aceitável adoração a Deus pela manifestação dos Seus atributos graciosos. O testemunho do Seu evangelho, que O glorifica preeminentemente, e ouvir com obediência a verdade revelada, são uma forma aceitável de culto ao Altíssimo, e talvez uma das mais espirituais de que se pode ocupar a mente humana. Não obstante, como nos diz o velho poeta romano, é certo aprender dos nossos inimigos, e, portanto, talvez seja possível que os nossos oponentes litúrgicos nos tenham indicado o que em alguns casos ocupa má colocação em nossos cultos públicos. É de temer que os nossos exercícios espirituais não sejam, em todos os casos, modelados da melhor forma, ou apresentados da maneira mais recomendável. Há salões de culto em que as súplicas não são nem tão devotas, nem tão fervorosas como desejamos; noutros locais o fervor vem tão aliado à ignorância, e a devoção tão desfigurada pelo linguajar bombástico, que nenhum crente inteligente pode entrar para partilhar do culto com prazer. Orar no Espírito não é praticado universalmente entre nós, como também nem todos oram com o entendimento e com o coração. Há lugar para melhoramento, e em algumas partes há imperiosa exigência disso. Permitam-me, pois, amados irmãos, acautelar-vos contra o perigo de estragarem os cultos com as suas orações. Tomem solenemente a resolução de que todas as atividades do santuário haverão de ser da melhor qualidade. Fiquem certos de que a oração espontânea é a mais bíblica, e deve ser a mais excelente forma de prece pública. Se perderem a fé no que fazem, nunca o farão bem. Portanto, ponham na cabeça que perante o Senhor vocês estão prestando um culto de maneira autorizada pela Palavra de Deus e aceita pelo Senhor. A expressão "orações para ler" a que estamos acostumados, não se acha na Escritura Sagrada, rica de palavras como ela é para a transmissão de pensamento religioso; e a frase não está lá porque a coisa de que trata nunca teve existência. Onde, nos escritos dos apóstolos se acha a idéia pura e simples de uma liturgia? Nas assembléias dos primeiros cristãos a oração não se restringia a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 72 nenhuma fórmula de palavras. Tertuliano escreve: "Oramos sem ponto porque do coração". Justino Mártir descreve o ministro dirigente fazendo oração "de acordo com sua capacidade". Seria difícil descobrir quando e onde começaram as liturgias. Sua introdução foi gradativa e, segundo cremos, em paralelo com o declínio da pureza da igreja. A introdução delas entre os não-conformistas – isto é, entre as igrejas livres, não oficiais – assinalaria a era do nosso declínio e queda. O assunto me tenta a dilatar-me, mas não é o ponto em foco, e, portanto, passo adiante, anotando apenas que vocês encontrarão a matéria referente às liturgias habilmente tratada pelo Dr. John Owen, a quem farão bem em consultar.* Compete-nos provar a superioridade da oração improvisada, fazendo-a mais espiritual e mais fervorosa do que a devoção litúrgica formal. É uma lástima quando o ouvinte é levado a observar: "O nosso ministro prega muito melhor do que ora". Isto não está de acordo com o modelo de nosso Senhor. Ele falava como nenhum homem jamais falou; e quanto às Suas orações, tanto impressionaram os Seus discípulos que eles disseram: "Senhor, ensina-nos a orar". Todas as nossas faculdades devem concentrar as suas energias, e o homem completo deve elevar-se ao ponto máximo do seu vigor, quando estiver orando em público, sendo nesse ínterim batizado na alma e no espírito com a Sua sagrada influência. Mas a fala desalinhada, negligente e sem vida à guisa de oração, feita para encher certo espaço de tempo durante o culto, é tédio para o homem e abominação para Deus. Se a oração espontânea tivesse sido universalmente de categoria mais elevada, nunca se teria pensado numa liturgia, e as fórmulas de orações atuais não têm melhor desculpa do que a debilidade das devoções improvisadas. O segredo está em que não somos realmente devotos de coração, como deveríamos ser. A habitual comunhão com *
A Discourse Concerning Liturgies and their Imposition (Discurso Sobre Liturgia e sua Imposição), Vol. XV, Owen's Works, Goold's Edition.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 73 Deus deve ser mantida, ou senão as nossas orações públicas serão insípidas ou formalistas. Se não houver degelo das geleiras nas escarpas da montanha, não haverá arroios descendo para animar a planície. A oração em secreto é o terreno amanhado para as nossas ministrações públicas. E não podemos negligenciá-la por muito tempo sem ficarmos desajeitados quando estivermos diante do povo. As nossas orações nunca devem rastejar; devem alçar vôo e subir. Temos necessidade de uma estrutura mental celeste. As nossas petições dirigidas ao trono da graça devem ser solenes e humildes, não petulantes e ostensivas, nem formalistas e negligentes. A maneira coloquial de falar está deslocada, diante do Senhor; devemos inclinar-nos reverentemente e com o mais profundo temor. Podemos falar sem embaraço com Deus, mas Ele ainda está no céu e nós na terra, e devemos evitar toda presunção. Na súplica nos colocamos peculiarmente diante do trono do Infinito, e, como o cortesão assume no palácio real outros ares e outros modos, diferentes dos que exibe a seus colegas da corte, assim deve ser conosco. Nas igrejas da Holanda observamos que, tão logo o ministro começa a pregar, todos os homens põem o chapéu, mas no instante em que passa a orar, todos tiram o chapéu. Este era o costume nas igrejas puritanas mais antigas da Inglaterra, e perdurou com os batistas. Usavam seus gorros durante as partes do culto que entendiam que não eram propriamente atos de adoração, mas os tiravam lago que havia uma direta aproximação a Deus, no hino ou na oração. Considero imprópria a prática, e errôneo o seu motivo. Tenho insistido em que a distinção entre orar e ouvir a Palavra não é grande, e estou certo de que ninguém iria propor retorno ao velho costume ou à opinião da qual ele é indicativo. Contudo, há uma diferença, e, considerando que na oração estamos falando diretamente com Deus, mais do que procurando a edificação dos nossos semelhantes, temos que tirar os sapatos dos pés, pois o lugar em que estamos pisando é terra santa.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 74 Que somente o Senhor seja o objeto das nossas orações. Cuidado para não ficarem com um olho posto nos ouvintes; cuidado para não se tornarem retóricos a fim de agradarem as suas audiências. A oração não deve ser transformada num "sermão indireto". É pouco menos que blasfêmia fazer da devoção uma oportunidade para exibição. As belas orações geralmente são muito ímpias. Na presença do Senhor dos Exércitos não fica bem o pecador fazer desfilar a plumagem e os atavios de um linguajar extravagante, tendo em vista receber aplauso dos seus semelhantes, como ele mortais. Os hipócritas que se atrevem a fazer isso têm sua recompensa, mas esta é de causar pavor. Uma pesada sentença de condenação foi imposta a um ministro quando se disse lisonjeiramente que a sua oração foi a mais eloqüente de todas as orações já apresentada a uma igreja de Boston. Podemos ter o objetivo de estimular os anseios e aspirações dos que nos ouvem orar; mas cada palavra e cada pensamento devem ser dirigidos a Deus, devendo tocar nas pessoas presentes só o bastante para levá-las e suas necessidades à presença do Senhor. Lembrem-se das pessoas em suas orações, mas não modelem as suas súplicas com vistas a obter a sua estima. Olhem para o alto; olhem para o alto com os dois olhos. . Evitem todas as vulgaridades na oração. Admito que ouvi algumas delas, mas não seria proveitoso repeti-las; especialmente quando se tornam cada dia menos freqüentes. Raramente topamos agora com as vulgaridades na oração que outrora eram muito comuns nas reuniões de oração dos metodistas, provavelmente muito mais comuns nos boatos do que na realidade. As pessoas sem instrução têm que orar do seu jeito, quando têm fervor, e a sua linguagem muitas vezes choca os exigentes, senão os devotos; mas essa permissão tem que ser dada, e se o espírito for evidentemente sincero, podemos perdoar as expressões toscas. Uma vez, numa reunião de oração, ouvi um pobre homem orando assim: "Senhor, toma conta destes jovens nos dias de festa, pois sabes, Senhor, como os inimigos deles os espreitam como o gato espreita os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 75 ratos". Alguns zombaram da expressão, mas a mim me pareceu natural e significativa, considerando a pessoa que a empregou. Um pouco de instrução com delicadeza, e uma ou duas sugestões geralmente impedem a repetição de coisas objetáveis em casos assim, mas nós, que ocupamos o púlpito, precisamos ter o cuidado de ser bem claros. O biógrafo daquele notável pregador metodista americano, Jacob Gruber, menciona como exemplo da sua presença de espírito, que, depois de ter ouvido um jovem ministro calvinista atacar o seu credo, foi-lhe solicitado concluir com oração, e, entre outras petições, orou que o Senhor abençoasse o jovem que estivera pregando, e lhe concedesse muita graça, "para que o seu coração ficasse mole como a sua cabeça". Deixando de lado o mau gosto de tal animadversão pública contra um colega, qualquer pessoa cuja mente funcione bem verá que o trono do Altíssimo não é lugar para a emissão desses gracejos vulgares. Muito provavelmente o jovem orador mereceu castigo por sua ofensa ao amor cristão, mas o mais velho pecou dez vezes mais com sua falta de reverência. Ao Rei dos reis é cabível dirigir palavras seletas, não as que foram poluídas por línguas grosseiras. Outro defeito que se deve evitar na oração é a irreverente e repugnante superabundância de palavras afetuosas. Quando expressões como "Querido Senhor", "Bendito Senhor" e "Doce Senhor" aparecem e tornam a aparecer como vãs repetições, estão entre as piores nódoas. Devo confessar que não causariam repulsa à minha mente as palavras "Querido Jesus", se saíssem dos lábios de um Rutherford, ou de um Hawker, ou de um Herbert; mas quando ouço expressões amigáveis e afetuosas desgastadas por pessoas nada notáveis por sua espiritualidade, inclino-me a desejar que possam, de uma forma ou de outra, chegar a ter melhor entendimento da verdadeira relação existente entre o homem e Deus. A palavra "querido", dado o seu uso habitual, veio a ser tão comum, tão fraca e, em alguns casos, tão afetada e tola, que misturar com ela as orações não produz edificação.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 76 Existe a mais forte objeção à constante repetição da palavra "Senhor", que ocorre nas primeiras orações dos jovens conversos, e mesmo entre os estudantes. As palavras "Ó Senhor! Ó Senhor! Ó Senhor!" nos afligem quando as ouvimos tão perpetuamente repetidas. "Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão", é um grande mandamento, e, embora se possa quebrar a leí inconscientemente, quebrá-la ainda é pecado, e grave. O nome de Deus não deve ser um tapa-buracos, para suprir a nossa pobreza de vocabulário. Tomem cuidado para empregar com a máxima reverência a nome do infinito Jeová. Em seus escritos sagrados, os judeus, ou deixam espaço em branco no lugar da palavra "Jeová", ou então escrevem a palavra "Adonai", porque na concepção deles aquele nome santo é demasiado sagrado para ser usado de modo comum. Não precisamos ser supersticiosos assim, mas seria bom sermos escrupulosamente reverentes. A profusão de "Ohs!" e de outras interjeições bem pode ser dispensada; os jovens pregadores freqüentemente estão em falta aqui. Evitem aquele tipo de oração que pode ser denominada – embora o assunto seja tal que sobre ele a língua não nos deu muitos termos – uma espécie de peremptória exigência feita a Deus. É deleitável ouvir um homem lutar com Deus e dizer: "Não te deixarei ir, se me não abençoares", mas isso tem que ser dito suavemente, e não com espírito de bravata, como se pudéssemos mandar no Senhor de tudo quanto há, e exigir-Lhe bênçãos. Lembrem-se, ainda se trata de um homem que está lutando, conquanto tenha a permissão de lutar com o eterno EU SOU. Jacó "manquejava da coxa" depois daquele santo conflito noturno, para fazê-lo ver que Deus é terrível, e que o poder com o qual prevalecera não jazia nele próprio. Somos ensinados a dizer, "Pai nosso", mas ainda é "Pai nosso, que estás nos céus". Familiaridade pode haver, mas familiaridade santa; intrepidez, mas a intrepidez que brota da graça e que é obra do Espírito Santo; não a intrepidez do rebelde que anda com fronte de bronze na presença do seu rei ofendido, mas a intrepidez da criança que teme porque ama, e ama
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 77 porque teme. Jamais caiam no inglório modo de dirigir-se a Deus com impertinência. Ele não deve ser assaltado como se fosse um adversário, mas deve ser invocado como nosso Senhor e Deus. Sejamos humildes e submissos de espírito, e assim oremos. Orem quando anunciam que oram, e não falem disso, apenas. Os homens de negócio dizem: "Um lugar para cada coisa, e cada coisa em seu lugar". Preguem no sermão e orem na oração. Fazer dissertações sobre a nossa necessidade de recorrer à oração não é orar. Por que os homens não se põem a orar de uma vez? – por que ficam procurando evasivas? Em lugar de dizer o que deveriam e gostariam de fazer, por que não põem mãos à obra, em nome de Deus, e o fazem? Com decidido fervor, dedique-se cada um à intercessão, e volte o rosto para o Senhor. Rogue a Deus que supra as grandes e constantes necessidades da igreja, e não deixe de instar, com devoto fervor, pelas necessidades especiais da hora e do público presentes. Mencione os enfermos, os pobres, os moribundos, o gentio, o judeu, e toda classe de pessoas esquecidas, à medida que constranjam o seu coração. Ore pelas pessoas da sua igreja como sendo santas e pecadoras – não como se fossem todas santas. Mencione os jovens e os idosos, os cuidadosos e os negligentes; os consagrados e os infiéis. Nunca vire para a direita ou para a esquerda, mas continue arando, seguindo os sulcos da oração veraz. Sejam as suas confissões de pecado e as suas ações de graça sinceras e específicas; e sejam as suas petições apresentadas como se você de fato cresse em Deus e não duvidasse da eficácia da oração. Digo isto porque muitos oram de maneira tão formal que levam os observadores a concluírem que os que as fazem acham que orar é uma coisa muito decente, mas é, afinal, uma atividade bem pobre e duvidosa, quanto a quaisquer resultados práticos. Ore como alguém que experimentou e provou o seu Deus, e portanto vem renovar as suas petições com indubitável confiança. E lembre-se de orar a Deus durante a oração toda, e jamais passe a fazer discurso ou pregação enquanto ora – e muito menos, como fazem alguns – a ministrar censura e a fazer queixas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 78 Como regra geral, se for convidado a pregar, dirija você mesmo a oração. E se você gozar de alta estima no ministério, como espero que aconteça, determine-se, com grande cortesia, mas com igual firmeza, a resistir à prática da escolha de homens para orarem, com a idéia de honrá-los dando-lhes algo para fazer. As nossas devoções públicas nunca devem ser rebaixadas a oportunidades para atenções sociais. De vez em quando ouço chamar a oração e o cântico de hinos de "serviços preliminares", como se fossem apenas um prefácio do sermão. Espero que isso seja raro entre nós – se fosse comum, seria para nossa maior vergonha. Esforço-me invariavelmente para encarregar-me eu mesmo de toda a ordem do culto, para o meu bem, e creio que também para o bem do povo. Não acredito que "qualquer pessoa serve para fazer oração". Não, senhores, é minha solene convicção que a oração é uma das mais importantes, úteis e honoráveis partes do culto, e que deve até merece maior consideração do que o sermão. Não devemos chamar para orar pessoas de todo e qualquer tipo e, depois, fazer dentre elas a seleção do mais capaz para pregar. Pode suceder que, ou por fraqueza, ou por se tratar de ocasião especial, seja um alívio para o ministro ter alguém que tome o seu lugar para elevar a oração. Mas se o Senhor lhe deu capacidade para amar o seu trabalho, não muitas vezes, nem prontamente, você fará essa parte por meio de procurador. Se delegar todo o culto a outro, que o faça a alguém em cuja espiritualidade e adequado preparo você tenha a mais plena confiança. Mas, pegar de improviso um irmão menos dotado, e empurrá-lo para que realize pessoalmente os atos de devoção, é vergonhoso. "Ao céu nós serviremos com menor respeito do que o fazemos com nossas toscas pessoas?"
Designe o mais competente para orar, e se houver falha, antes seja no sermão do que na visita ao céu. Que o infinito Senhor seja servido com o que temos de melhor; que a oração dirigida à Majestade divina seja cuidadosamente avaliada, e então apresentada com todos os poderes de um coração desperto e de um entendimento espiritual. Aquele que,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 79 pela comunhão com Deus, foi preparado para ministrar ao povo, é normalmente de todos os presentes o mais idôneo para aplicar-se à oração. Elaborar um programa que coloca outro irmão em seu lugar, é macular a harmonia do culto, privar ao pregador uma função que o encorajaria para o sermão, e em muitos casos sugere comparações entre uma parte do culto e outra, coisa que não se deve tolerar. Se irmãos despreparados hão de ser mandados ao púlpito para fazer a minha oração no meu lugar quando me compete pregar, não vejo por que não me permitir que ore e depois me retire para deixar que aqueles irmãos preguem. Não consigo ver nenhuma razão para privar-me do mais santo, mais doce e mais proveitoso serviço de que o meu Senhor me incumbiu. Se eu puder fazer a escolha, preferirei dispensar o sermão a dispensar a oração. Irmãos, falei tanto assim para fazê-los fixar o fato de que necessitam ter em alta estima a oração pública, e busquem do Senhor os dons e graças necessárias para efetuá-la bem. Os que desprezam toda oração improvisada, provavelmente apanharão estas observações e as usarão contra ela, mas posso assegurarlhes que os defeitos contra os quais vos adverti não são comuns entre nós, e na verdade estão quase extintos. Também é fato que o tropeço causado por eles, mesmo no pior dos casos, nunca foi tão grande como o causado, muitas vezes, pela maneira de realizar o culto, usando a liturgia formal. Com muitíssima freqüência o culto na igreja é desenvolvido apressadamente, com tanta falta de devoção como se fosse uma canção de um cantor de baladas. As palavras são papagueadas sem a mínima apreciação do seu significado; não às vezes, mas, muito freqüentemente, nos lugares reservados para o culto episcopal, podem-se ver os olhos do povo, os olhos dos coristas e os olhos do próprio clérigo, vagando por todas as direções, uma vez que, evidentemente, pelo próprio tom da leitura, não há sentimento algum em sintonia com o que está sendo lido. Estive em funerais em que o ofício fúnebre da Igreja da Inglaterra foi conduzido a galope, de maneira tão indecorosa, que me foi necessário empregar todo o cavalheirismo que tinha para impedir-me de atirar um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 80 capacho na cabeça da criatura. Fiquei tão indignado que não soube o que fazer ao ouvir, na presença dos parentes do falecido, que estavam com o coração sangrando, um homem a matraquear o ritual como se fosse pago por peça e tivesse mais trabalho para fazer logo depois e, portanto, quisesse chegar ao fim o mais depressa possível. Que efeito ele poderia pensar que estava produzindo, ou que bom resultado poderia provir de palavras arrancadas e arremessadas com força e violência, nem posso imaginar. É realmente chocante pensar como aquele maravilhoso cerimonial de enterro é assassinado e transformado numa abominação pelo modo como freqüentemente o ofício é lido. Menciono isto simplesmente porque, se eles criticarem as nossas orações com demasiada severidade, podemos fazer um formidável contra-ataque para silenciá-los. Todavia, muito melhor será corrigir as nossas tolices do que achar defeito nos outros. A fim de transformar a nossa oração pública naquilo que ela deve ser, a primeira coisa necessária é, que tem que ser uma coisa do coração. O homem tem que estar de fato com fervor quando ora. É preciso que seja oração verdadeira e, se for, cobrirá multidão de pecados, como o amor. Podem-se perdoar as familiaridades e vulgaridades de uma pessoa, quando se vê claramente que o âmago do seu coração está falando com o seu Criador, e que somente a sua educação defeituosa é que ocasiona os seus defeitos na oração, e não quaisquer males morais ou espirituais do seu coração. Aquele que eleva súplicas a Deus em público deve ter ardor, pois, que pode ser pior preparo para o sermão do que uma oração sonolenta? Que é que pode levar mais o povo a não querer ir à casa de Deus do que uma oração sonolenta? Ponha toda a alma no ato da oração. Se alguma vez todo o seu ser se envolveu com alguma coisa, que o faça no sentido de chegar perto de Deus em público. Ore, pois, para que, mediante uma divina atração, você leve consigo todos os ouvintes até o trono de Deus. Ore, pois, para que, mediante o poder do Espírito Santo pousando sobre você, expresse os desejos e pensamentos de cada um dos presentes, e se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 81 erga como a única voz falando por centenas de corações frementes, que estão inflamados de fervor perante o trono de Deus. Logo a seguir, as nossas orações devem ser pertinentes. Não digo que se entre em todas e em cada uma das minúcias das circunstâncias dos membros da igreja. Como já disse, não há necessidade de transformar a oração pública numa gazeta dos acontecimentos da semana, ou num registro de nascimentos, mortes e casamentos do pessoal da igreja, mas os movimentos gerais que se deram entre os irmãos devem ser notados pelo diligente coração do ministro. Ele deve apresentar igualmente as alegrias e as tristezas do seu povo ao trono da graça, e pedir que a bênção divina repouse sobre o seu rebanho em todos os seus movimentos, atividades espirituais, serviços e santos empreendimentos, e que Deus estenda o Seu perdão a todas as falhas e inumeráveis pecados dos irmãos. Depois, por meio de uma regra dada em termos negativos, devo dizer, não alongue a sua oração. Acho que era John Macdonald que costumava dizer: "Se você estiver com espírito de oração, não se alongue, porque as outras pessoas não conseguirão manter o passo com você nessa incomum espiritualidade; e se você não estiver com espírito de oração, não se alongue, porque esteja certo de que aborrecerá os ouvintes". A respeito de Robert Bruce, de Edimburgo, o famoso contemporâneo de Andrew Melville, diz Livingstone: "Ninguém em seu tempo falava com tal evidência e poder do Espírito. Ninguém possuía tantos selos da conversão; sim, muitos dos seus ouvintes achavam que homem nenhum, desde os apóstolos, falara com tal poder. ... Ele era muito breve na oração quando havia outros presentes, mas cada frase era como um poderoso dardo disparado para o céu. Ouvi-o dizer que se cansava quando outros faziam oração comprida; mas, estando a sós, passava muito tempo em luta espiritual e oração". Em ocasiões especiais, uma pessoa pode, se se sentir extraordinariamente movida e arrebatada, orar durante vinte minutos no
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 82 culto matutino mais longo, mas isto não deve suceder com freqüência. O meu amigo, Dr. Charles Brown, de Edimburgo, estabelece, como resultado do seu ponderado julgamento, que dez minutos é o limite a que deve estender-se a oração pública. Os nossos antepassados puritanos costumavam orar por três quartos de hora, ou mais, mas aí você precisa lembrar-se de que eles não sabiam se teriam outra oportunidade de orar de novo diante de uma assembléia e, portanto, faziam-no até saciar-se. Além disso, naquele tempo as pessoas não eram propensas a contender pela extensão das orações ou dos sermões como hoje em dia. Nunca será demasiado longa a sua oração em particular. Não a limitaremos a dez minutos ali, nem a dez horas, nem a dez semanas, se quiser. Quanto mais tempo estiver de joelhos a sós, melhor. Agora estamos falando daquelas orações que vêm antes ou depois do sermão, e para essas orações, dez minutos é melhor limite do que quinze. Apenas um em mil se queixaria de você por ser breve demais, ao passo que dezenas murmurarão por você ser enfadonho por alongar-se muito. "Ele orou de modo que me colocou em bom estado de espírito", disse uma vez George Whitefield sobre certo pregador, "e se tivesse parado ali, estaria tudo muito bem; mas, continuando a orar, tirou-me de novo dele". A imensa longanimidade de Deus exemplifica-se no fato de ter Ele poupado alguns pregadores que neste sentido têm cometido grave pecado; eles têm lesado a piedade do povo de Deus com suas orações de longo fôlego e, apesar disso, Deus, em Sua misericórdia, permite que continuem a ministrar no santuário. Ah! pobres daqueles que têm que ouvir pastores que fazem orações de quase meia hora e depois pedem perdão a Deus por suas "omissões"! Não se alongue, por diversos motivos. Primeiro, porque você e o povo se cansarão; segundo, porque fazer oração muito comprida indispõe o coração das pessoas para o sermão. Toda aquela árida, fastidiosa e prolixa tagarelice na oração serve apenas para embotar a atenção, e assim, os ouvidos se fecham como se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 83 estivessem entupidos. Ninguém que pretenda tomar de assalto a "porta da audição" pensará em bloqueá-la com barro ou pedras. Não; trate de deixar limpo o portal, para que o aríete do evangelho produza efeito quando chegar o tempo de usá-lo. As orações longas consistem, ou de repetições, ou de explicações desnecessárias que Deus não requer; ou então degeneram, transformando-se em pregações indiretas, de sorte que deixa de haver diferença entre a oração e a pregação, exceto que na primeira o ministro mantém os olhos fechados, e na segunda os mantém abertos. Na oração não é preciso recitar o Catecismo da Assembléia de Westminster. Na oração não é preciso relatar a experiência de todos os presentes, e nem mesmo a sua própria. Na oração não é preciso enfileirar uma seleção de textos da Escritura, e citar Davi, Daniel, Jó, Paulo, Pedro, e todos os demais, sob o título de "Teu servo do passado". Na oração é preciso aproximar-se de Deus, mas não se requer que você prolongue tanto o seu falar, que toda gente fique ansiosa por ouvir a palavra "Amém". Não posso deixar de fazer uma breve sugestão: Nunca faça parecer que está concluindo, recomeçando então a falar mais uns cinco minutos. Quando os amigos ficam com a idéia de que você está prestes a terminar, não podem com um tranco retomar o espírito devoto e prosseguir. Conheci homens que nos impunham o suplício de Tântalo, dando-nos a esperança de que se aproximavam do fim, e depois se impunham por novos períodos, duas ou três vezes. Isso é sumamente insensato e desagradável. Outra norma é – não empregue frases bombásticas. Irmãos, acabemos de uma vez com essas coisas desprezíveis. Tiveram os seus dias; deixemos que morram. Não há como exagerar na crítica a essas peças de gritante pompa espiritual. Algumas delas são puras invenções; outras são passagens tiradas dos apócrifos; outras são textos que se originaram na Escritura, mas que têm sido horrivelmente deformados desde quando foram produzidos pelo Autor da Bíblia.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 84 Na Revista Batista de 1861 eu fiz as seguintes observações sobre as vulgaridades que ocorrem comumente nas reuniões de oração: "As frases bombásticas são um grande mal. Quem poderia justificar expressões como as de que tratarei a seguir? "Não deveríamos correr para a presença do Senhor como o cavalo, incapaz de pensar, corre para a batalha". Como se os cavalos alguma vez pensassem, e como se não fosse melhor exibir a elegância e a energia do cavalo do que a lentidão e a estupidez do asno! Como a estrofe da qual imaginamos que essa fina citação foi extraída relaciona-se mais com pecados do que com orações, alegramo-nos com o fato de que a frase está em plena decadência. "Vá de coração em coração, como o óleo vai de vaso em vaso" é provavelmente citação do conto infantil de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, mas destituída de sentido, de Escritura e de poesia, como qualquer frase que se poderia conceber. Não nos consta que o óleo corra de um vaso a outro de algum modo misterioso ou maravilhoso. É certo que ao ser despejado escorre lentamente e, portanto, é adequado símbolo do fervor de algumas pessoas. Mas, certamente seria melhor receber a graça diretamente do céu do que de outro vaso – idéia papista que a metáfora parece insinuar, se é que de fato tem algum significado. "Teu pobre e indigno pó", epíteto que geralmente os homens mais orgulhosos da igreja se aplicam a si próprios, e não raro os mais presos ao dinheiro e mais ordinários, caso em que as duas últimas palavras da frase não são muito impróprias. "Ouvimos falar de um bom homem que, intercedendo por seus filhos e netos, ficou tão obscurecido pela alucinante influência da sua expressão, que exclamou: "Ó Senhor, salva o Teu pó, e o pó do Teu pó, e o pó do pó do Teu pó". Quando Abraão disse, "Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza", a sua declaração foi vívida e expressiva; mas em sua forma mal citada, pervertida e exagerada, quanto mais depressa for reduzida a pó, melhor. Um miserável aglomerado de perversões da Escritura, rudes símiles e ridículas metáforas constituem uma espécie de gíria espiritual, fruto de ignorância ímpia, de imitação desfibrada ou de hipocrisia decorrente de ausência da graça; são ao mesmo tempo uma desonra para os que estão sempre repetindo essas coisas, e um aborrecimento intolerável para aqueles cujos ouvidos são atormentados por elas."
O Dr. Charles Brown, de Edimburgo, em admirável discurso numa reunião da New College Missionary Association, dá exemplos de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 85 citações truncadas peculiares à Escócia que, todavia, às vezes atravessa o rio Tweed. Com sua permissão, farei citação completa. "Há aquilo que se poderia denominar mescla infeliz, às vezes inteiramente grotesca, de textos da Escritura. Quem não conhece as seguintes palavras dirigidas a Deus em oração: "Tu és o alto e sublime, que habitas a eternidade e seus louvores"?, confusão de dois textos gloriosos, cada um deles glorioso se tomado isoladamente – ambos maculados, e um deles na verdade irremediavelmente perdido, quando assim combinados e misturados. Um é Isaías 57:15: "Porque assim diz o alto e sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é santo". O outro é o Salmo 22:3: "Porém tu és Santo, o que habitas entre os louvores de Israel'. A referência à habitação entre louvores da eternidade é, para dizer o mínimo, pobre. Não havia louvores na eternidade passada para serem habitados. Mas, que glória há em condescender Deus em habitar, em fazer Seu domicílio, entre os louvores de Israel, da igreja resgatada! "Depois há um exemplo nada menos que grotesco sob este título e, contudo, em tão freqüente uso que suspeito que geralmente se considera que tem a sanção da Escritura. Ei-lo: "Poríamos a nossa mão em nossa boca, e a nossa boca no pó, e clamaríamos: Imundos, imundos; ó Deus, tem misericórdia de nós, pecadores!" Trata-se de não menos de quatro textos reunidos, cada um deles belo, isoladamente. O primeiro é o de Jó 40:4: "Eis que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho na minha boca". O segundo é o de Lamentações 3:29: "Ponha a sua boca no pó; talvez assim haja esperança". O terceiro é o de Levítico 13:45, onde se diz ao leproso que cubra o lábio superior, e grite: "Imundo, imundo". E o quarto é a oração do publicano. Mas como é incongruente pôr alguém primeiro a mão na boca, depois a boca no pó, e, por último, clamar, etc.! "O único outro exemplo que dou é uma expressão quase universal entre nós, e, desconfio, considerada quase universalmente como registrada na Escritura: "Em teu favor há vida, e tua benignidade é melhor do que a vida". O fato é que isso também não passa de uma infeliz junção de duas passagens, em que o termo vida é empregado em sentidos completamente diversos, e mesmo incompatíveis, a saber, o Salmo 63:3, "Porque a tua benignidade é melhor do que a vida", onde evidentemente, vida significa a presente vida temporal. A outra passagem é o Salmo 30:5b - "no seu favor está a vida".
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"Uma segunda classe pode ser descrita como infelizes alterações da linguagem da Escritura. Terei necessidade de dizer que o Salmo 130, "Das profundezas", etc., é um dos mais preciosos de todo o livro de Salmos? Por que havemos de ter as palavras de Davi e do Espírito Santo dadas assim na oração pública, e com tanta freqüência, que os piedosos crentes de nossas igrejas vieram a adotá-las em suas orações comunitárias e domésticas: "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido, e abundante redenção para que sejas procurado"? Como são preciosas as singelas palavras registradas no salmo citado [versículo 4): "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido"; versículos 7.8: "no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção. E ele remirá a Israel de todas as suas iniqüidades"! "Outra vez, nesse abençoado salmo, as palavras do versículo 3, "Se tu, Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem subsistirá?", muito raramente nos são deixadas com sua manifesta simplicidade, mas têm que sofrer a seguinte mudança: "Se tu fores estrito em observar as iniqüidades", etc. Lembro-me de que nos meus tempos de estudante, costumávamos darlhe forma muito mais ofensiva: "Se tu fores estrito para observar e rigoroso para punir"! Outra mudança favorita é a seguinte: "Tu estás nos céus, e nós sobre a terra; pelo que sejam poucas e bem ordenadas as nossas palavras". O pronunciamento simples e sublime de Salomão (certamente cheio de instrução sobre o tema de que estou tratando) é: "Deus está nos céus, e tu estás sobre a terra; pelo que sejam poucas as tuas palavras" (Eclesiastes 5:2). Para outro exemplo desta classe, veja-se como são torturadas as sublimes palavras de Habacuque: "Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e não podes contemplar o pecado sem te aborreceres". As palavras do Espírito Santo são (Habacuque 1:13): "Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a vexação não podes contemplar". Precisaria dizer que a força da figura, "e a vexação não podes contemplar", quase se perde quando você acrescenta que Deus pode contemplá-la, só que não sem se aborrecer? "Uma terceira classe consiste de pleonasmos inexpressivos, de vulgares e banais redundâncias de expressão, na citação das Escrituras. Um desses casos tornou-se tão universal, que me aventuro a dizer que raramente você o omite quando a passagem em foco entra em cena. "Fica no meio de nós" (ou, como alguns preferem expressá-lo, de modo um tanto infeliz segundo penso, "em nosso meio"), "para abençoar-nos, e fazer-nos bem". Que idéia adicional há na última expressão, "e fazer-nos bem"? A
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passagem aludida é Êxodo 20:24: "em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti, e te abençoarei". Esta é a simplicidade da Escritura. O nosso acréscimo é: "para abençoar-nos, e fazer-nos bem". Em Daniel 4:35 lemos as nobres palavras: "não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" A mudança favorita é: "Ninguém pode impedir a tua mão de agir". "As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam." Isto sofre a seguinte alteração: "e não subiu ao coração do homem conceber as coisas". Constantemente ouvimos referência a Deus como Aquele "que ouve e responde a oração", mero pleonasmo vulgar e inútil, pois a idéia que a Escritura contém é de que se Deus ouve a oração, Ele responde – "Ó tu que ouves as orações! a ti virá toda a carne." "Ouve, Senhor, a minha oração". "Amo ao Senhor, porque ele ouviu a minha voz e a minha súplica." "Por que, outra vez, aquele chavão da oração pública, "As tuas consolações não são nem poucas nem pequenas"? Suponho que a referência seja às palavras de Jó: "Porventura as consolações de Deus te são pequenas?" Assim também raramente se ouve aquela oração do Salmo 74, "Atenta para o teu concerto; pois os lugares tenebrosos da terra estão cheios de moradas de crueldade", sem o acréscimo, "horrenda crueldade"; nem o chamamento à oração, em Isaías, "ó vós, os que fazeis menção do Senhor, não haja silêncio em vós, nem estejais em silêncio, até que confirme, e até que ponha a Jerusalém por louvor na terra", sem o acréscimo, "em toda a terra"; nem o apelo do salmista: "Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti", sem o acréscimo: "em toda a terra". "Estes últimos exemplos parecem coisas na verdade insignificantes. E são. Nem valeria a pena achar-lhes defeito, se ocorressem apenas ocasionalmente. Mas examinados como lugares comuns estereotipados, bem fracos em si mesmos, mas ocorrendo com tanta freqüência que dão a impressão de terem autoridade bíblica, humildemente acho que deviam ser desaprovados e descartados – banidos totalmente do culto presbiteriano. Talvez vocês se surpreendam ao saberem que a única autorização dada pela Escritura àquela expressão favorita e algo peculiar sobre o "perverso pecado que rola como doce manjar sob as suas línguas", está nas seguintes palavras do livro de Jó (20:12): "Ainda que o mal lhe seja doce na boca, e ele o esconda debaixo da sua língua"."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 88 Basta disto, porém. Só lamento ser forçado a estender-me tanto sobre um assunto infeliz como esse. Todavia, não posso deixar a matéria sem insistir com vocês que façam com exatidão literal todas as citações da Palavra de Deus. Deveria ser uma questão de honra entre os ministros citar sempre corretamente a Escritura. É difícil sempre fazê-lo com exatidão, e, porque é difícil, deveria constituir objeto do nosso maior cuidado. Nos salões de Oxford ou Cambridge seria considerado quase traição ou crime um membro proeminente da universidade citar erroneamente Homero, Virgílio ou Tácito; mas um pregador citar erradamente Davi, Moisés ou Paulo é coisa muito mais séria, e bem merecedora da mais severa censura. Notem que eu me referi a um membro proeminente da universidade, não a um principiante; e de um pastor esperamos pelo menos igual precisão em seu próprio departamento à daquele que faz parte de um corpo universitário. Vocês que sem vacilar crêem na teoria da inspiração verbal (para minha intensa satisfação), nunca deveriam fazer uma citação enquanto não puderem usar as palavras precisas, porque, de acordo com a explicação que vocês mesmos dão, pela alteração de uma única palavra pode-se perder por completo o sentido que Deus deu à passagem. Se não conseguem citar a Escritura corretamente, por que citá-la de qualquer modo em suas petições? Façam uso de uma expressão nova, oriunda da sua própria mente, e será tão aceitável para Deus como uma frase bíblica desfigurada ou mutilada. Lutem com todo o vigor contra as mutilações e perversões da Escritura, e renunciem para sempre a todas as frases bombásticas, pois constituem deformações da oração improvisada. Notei um hábito entre alguns – espero que vocês não tenham caído nisso – de orar com os olhos abertos. É inatural, inconveniente e de mau gosto. Ocasionalmente, os olhos abertos e elevados ao céu podem ser adequados e causar impressão, mas correr o olhar pelo ambiente enquanto se declara que se está falando com o Deus invisível, é detestável. Nos primeiros tempos da igreja os chamados pais
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 89 denunciaram esta prática imprópria. Deve-se fazer o mínimo de movimentos, se tanto, durante a oração. Raramente é bom levantar e mover o braço, como se se estivesse pregando. Contudo, os braços estendidos e as mãos cerradas são naturais e sugestivos, quando se está sob forte e santa comoção. A voz deve harmonizar-se com o assunto, e jamais deve ser tempestuosa ou arrogante. Ao falar com Deus, usem-se entonações reverentes e humildes. Não é verdade que até a natureza lhes ensina isto? Se a graça não o fizer, perco a esperança. Com especial atenção às suas orações nos cultos do dia do Senhor, talvez sejam úteis algumas observações. Para impedir que o mero costume e a rotina se entronizem entre nós, será bom variar quanto possível a ordem do culto. O que quer que o Espírito nos mova a fazer, façamos de uma vez. Até pouco tempo atrás eu não tinha ciência da extensão em que permitiram que se intrometesse o controle dos diáconos sobre os ministros em certas igrejas desafortunadas. Estou acostumado a dirigir sempre os cultos da maneira que considero mais adequada e edificante, e nunca ouvi sequer uma palavra de objeção, e creio que posso dizer que vivo nas mais amáveis relações de amizade com os meus cooperadores. Mas um irmão e colega de ministério me contou esta manhã que certa ocasião orou no início do culto matutino, em vez de mandar cantar um hino, e quando se retirou para o gabinete pastoral depois do culto, os oficiais lhe disseram que não queriam saber de inovações. Até aqui entendíamos que as igrejas batistas não estão sob a escravidão de tradições e de regras fixas quanto às maneiras de prestar culto, e, contudo, essas pobres criaturas, esses pretensos senhores, que bradam contra a liturgia formal, querem prender os seus ministros com indicações limitadoras produzidas pelo costume. É tempo de silenciar para sempre esse absurdo. Pretendemos dirigir o culto conforme nos mova o Espírito Santo, e como nos pareça melhor. Não queremos ser obrigados a cantar aqui e orar ali, mas queremos variar a ordem do culto para evitar a monotonia.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 90 Ouvi dizer que o sr. Hinton uma vez pregou o sermão no começo do culto, de modo que os retardatários puderam ter oportunidade de orar. E por que não? Alterações da regularidade fazem bem; a monotonia aborrece. Muitas vezes será uma coisa sumamente proveitosa deixar o povo serenamente sentado no mais profundo silêncio uns dois a cinco minutos. O silêncio solene dá nobreza ao culto. Verdadeira oração não é barulho imenso de lábios habituados ao clamor; mas é o silêncio d'alma, sim, profundo e intenso, d'alma que abraça os pés do seu Senhor.
Variem, pois, a ordem das suas orações, para manter a atenção e impedir que as pessoas passem pelo programa todo do mesmo modo como anda o relógio até os pesos irem até o chão. Variem a extensão das suas orações públicas. Não acham que às vezes seria muito melhor que, em vez de dar três minutos à primeira oração e quinze à segunda, dessem nove minutos a cada uma delas? Não seria melhor, às vezes, estender-se mais na primeira oração, e menos na segunda? Não seria melhor fazer duas orações de durarão tolerável, do que uma extremamente longa e outra extremamente curta? Não seria bom também ter um hino depois da leitura do capítulo, ou um versículo ou dois antes da oração? Por que não cantar quatro vezes, ocasionalmente? Por que não se contentar com dois hinos, ou só um, ocasionalmente? Por que cantar depois do sermão? Por outro lado, por que alguns jamais cantam no fim do culto? É aconselhável fazer sempre, ou mesmo freqüentemente, uma oração depois da pregação? Não causaria maior impressão se fosse feita de vez em quando? A direção do Espírito Santo não nos propiciaria uma variedade desconhecida no presente? Tratemos de ter algo de maneira que o nosso povo não venha a considerar qualquer forma do culto como determinada, e assim torne a cair na superstição da qual escapou. Variem os temas comuns das suas orações na intercessão. Há muitos tópicos que requerem a sua atenção: a igreja com suas fraquezas,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 91 suas infidelidades, suas tristezas e suas consolações; o mundo exterior, a vizinhança, os ouvintes não convertidos, os jovens, a nação. Não orem por tudo isso todas as vezes, ou senão as suas orações serão longas e provavelmente desinteressantes. Qualquer que seja o tópico predominante em seu coração, façam-no predominar em suas súplicas. Há um modo de seguir um curso na oração, se o Espírito Santo os guiar por ele, o que dará coesão ao culto, e se harmonizará com os hinos e com a prédica. É muito proveitoso manter unidade no culto, onde possível; não servilmente, mas com sabedoria, de sorte que o efeito seja unificante. Certos irmãos nem sequer procuram manter unidade no sermão, mas vagueiam da Inglaterra ao Japão e introduzem todos os assuntos imagináveis. Mas vocês, que já atingiram a preservação da unidade no sermão, poderiam ir um pouco além, e demonstrar algum grau de unidade no culto, sendo cuidadosos quanto ao hino, à oração e à leitura bíblica, para manter em proeminência o mesmo assunto. Pouco recomendável é a prática, comum em alguns pregadores, de reiterar o sermão na última oração. Pode ser instrutivo para os ouvintes, mas é um objetivo totalmente alheio à oração. É uma prática bombástica, escolástica e inconveniente; não a imitem. Como fugiriam de uma víbora, evitem todas as tentativas para conseguir fervor espúrio na devoção pública. Não se esforcem para parecer fervorosos. Orem segundo os ditames do seu coração, sob a direção Espírito de Deus, e se vocês estiverem embotados e tediosos, falem disso ao Senhor. Não será ruim confessar a sua falta de vida, deplorá-la e clamar por vivificação. Será uma oração real e aceitável. Mas o ardor fingido é uma vergonhosa forma de mentir. Nunca imitem os fervorosos. Vocês conhecem um bom homem que geme, e outro cuja voz vira grito estridente quando ele é arrebatado pelo ardor, mas, nem por isso vocês deverão gemer ou chiar para parecerem fervorosos como eles. Simplesmente sejam naturais do começo ao fim, e peçam a Deus que os guie nisso tudo.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 92 Finalmente – esta palavra lhes digo confidencialmente – preparem a sua oração. Vocês dirão com espanto: "Que será que o senhor poderá querer dizer com isso?" Bem, quero dizer o que alguns não querem. Uma vez foi discutida numa sociedade de ministros a questão: "É certo o ministro preparar a sua oração com antecedência?" Alguns afirmaram vigorosamente que não é certo; e agiram bem. Outros com igual vigor sustentaram que é certo. E não deveriam ser contraditados. Creio que ambas as partes tinham razão. Os irmãos do primeiro grupo entendiam por preparo da oração o estudo de expressões, e a colocação ordenada de uma linha de pensamento, o que todos eles diziam ser completamente oposto ao culto espiritual, no qual devemos deixar-nos nas mãos do Espírito de Deus para que Ele nos ensine tanto o assunto como as palavras. Com essas observações concordamos plenamente, pois, se um homem escreve as suas orações e estuda as suas petições, que use logo uma fórmula litúrgica. Mas os irmãos oponentes queriam dizer por preparo uma coisa completamente diversa. Não o preparo da cabeça, mas do coração, preparo que consiste em ponderar previamente na importância da oração, em meditar nas necessidades espirituais dos homens, e em recordar as promessas que havemos de pleitear – indo, desta forma, à presença do Senhor com uma petição escrita nas tábuas de carne do coração. Segura-mente isso é melhor do que ir a Deus à esmo, correr para o trono divino ao acaso, sem mensagem ou desejo definido. "Nunca me canso de orar", disse alguém, "porque sempre tenho uma mensagem definida quando oro." Irmãos, as suas orações são desta espécie? Vocês lutam para estar numa adequada disposição de espírito para dirigir as súplicas do seu povo? Vocês põem em ordem a sua causa quando vão comparecer perante o Senhor? Creio, meus irmãos, que devemos preparar-nos pela oração particular para a oração pública. Por uma vida vivida perto de Deus, devemos manter espírito de oração, e então não falharemos em nossas súplicas elevadas vocalmente. Se se deve tolerar alguma coisa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 93 além disso, deveria ser a dedicação à memorização dos Salmos e de porções da Escritura que contém promessas, súplicas, louvores e confissões, os quais possam ser de utilidade no ato de oração. De Crisóstomo se diz que aprendeu a Bíblia de cor, de modo que podia repeti-la a seu bel-prazer. Não admira que se chamasse boca de ouro. Agora, em nossa conversação com Deus, nenhuma linguagem pode ser mais apropriada do que as palavras do Espírito Santo – "Faze como disseste" sempre prevalecerá junto ao Altíssimo. Aconselhamos, pois, a memorização dos inspirados exercícios de devoção presentes na Palavra da Verdade. Depois, a contínua leitura das Escrituras os manterá sempre supridos de renovadas preces, que serão como ungüento derramado, impregnando toda a casa de Deus com a sua fragrância, quando apresentarem as suas petições em público perante o Senhor. Sementes de oração semeadas assim na memória, constantemente produzirão excelentes colheitas, quando o Espírito lhes aquecer a alma com fogo santo na hora da oração congregacional. Como Davi usou a espada de Golias para vitórias futuras, assim podemos empregar às vezes uma petição já respondida, e capacitar-nos a dizer com o filho de Jessé: "Não há outra semelhante; dá-ma", pois Deus tornará a cumpri-la em nossa experiência pessoal. Oxalá as vossas orações sejam fervorosas, cheias de fogo, veemência e poder. Rogo ao Espírito Santo que ensine todos os estudantes desta Escola a fazer oração pública, de modo que Deus seja servido sempre do melhor de cada um. Oxalá as suas petições sejam singelas e brotem do coração. E, ao passo que às vezes o povo de sua igreja pode achar que o sermão esteve abaixo do normal, possa também achar que a oração compensou tudo,
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O CONTEÚDO DO SERMÃO Os sermões devem conter ensino valioso, e sua doutrina deve ser sólida, substanciosa e abundante. Não subimos ao púlpito para falar por falar. Temos para transmitir instruções em extremo importantes, e não podemos dar-nos ao luxo de pronunciar belas nulidades. A nossa galeria de assuntos é quase ilimitada e, portanto, não poderemos escusar-nos se as nossas pregações forem vulgares e vazias de substância. Se falamos como embaixadores de Deus, nunca precisaremos queixar-nos de falta de assunto, pois a nossa mensagem chega a transbordar de tão cheia. O evangelho inteiro deve ser apresentado do púlpito; toda a fé uma vez entregue aos santos deve ser proclamada por nós. A verdade como se apresenta em Jesus deve ser declarada instrutivamente, de sorte que o povo não apenas escute, mas conheça o jubiloso som. Não servimos aos pés do altar do "Deus desconhecido", mas falamos aos cultuadores daquEle de quem está escrito: "em ti confiarão os que conhecem o teu nome". Dividir bem um sermão pode ser uma arte muito útil, mas, como fazê-lo se não houver nada para dividir? Um homem que só sabe dividir sermão é como um excelente trinchador diante de uma travessa vazia. Ser capaz de fazer um preâmbulo apropriado e atrativo, ter facilidade de falar com propriedade durante o tempo designado para o sermão, e de concluir com uma respeitável peroração, talvez pareça aos meros atores que é tudo que se requer. Mas o verdadeiro ministro de Cristo sabe que o verdadeiro valor de um sermão está, não em seu molde ou modo, mas na verdade que ele contém. Nada pode compensar a ausência de ensino; toda a retórica do mundo é apenas o que a palha é para o trigo, em contraste com o evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do semeador, é uma miserável zombaria, se estiver sem sementes. O maior sermão já pronunciado é um ostentoso fracasso, se a doutrina da graça de Deus está ausente dele; passa rapidamente por cima das cabeças dos homens como uma nuvem, mas não distribui chuva alguma sobre a terra
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 95 sedenta. E daí, para as almas anelantes por sabedoria pela experiência de premente necessidade, a lembrança dele é de desapontamento, ou pior. O estilo de um homem pode ser fascinante como o da autoria da qual alguém disse que costumava escrever com pena de cristal molhada em orvalho, em papel de prata, e para secá-lo usava pó de asa de borboleta. Mas para um auditório cujas almas estão em perigo iminente, o que será a mera elegância, senão "muito mais leve que a vaidade"? Não se julgam cavalos por suas campainhas e por seus arreios, e sim, por suas pernas, sua estrutura óssea e por seu sangue; e os sermões, quando criticados por ouvintes judiciosos, em grande parte são avaliados pela proporção de verdade do evangelho e pelo poder do espírito do evangelho que eles contém. Irmãos, ponderem os seus sermões. Não os avaliem por retalhos, mas por peças. Não façam as contas pela quantidade de palavras que pronunciam, mas lutem para serem avaliados pela qualidade da substância que apresentam. É loucura ser pródigo em palavras e avarento quanto à verdade. Seria destituído de juízo àquele que gostasse de se ouvir descrito à moda de um dos grandes poetas do mundo, que diz: "Graciano fala uma quantidade infinita de nada, mais que qualquer outro homem de Veneza. Suas razões são como dois grãos de trigo escondidos em duas arrobas de palha; você leva o dia todo para achá-los, e quando os acha, não valem a busca". Dirigir apelos aos sentimentos afetivos é excelente, mas se não vão acompanhados de instrução, são apenas um lampejo no panorama, é pólvora gasta, sem acertar o alvo. Estejam certos de que o mais fervoroso avivalismo se fará fumaça, se não for mantido pelo combustível do ensino. O método divino é pôr a lei na mente, e depois escrevê-la no coração; o julgamento é iluminado, e então as paixões são subjugadas. Leiam Hebreus 8:10, e sigam o modelo da aliança da graça. O comentário que Gouge faz sobre esse passo bíblico pode ser citado aqui com propriedade: "Nisto os ministros devem imitar a Deus e, com o máximo do seu esforço, devem instruir o povo sobre os mistérios da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 96 piedade, e ensinar-lhe o que crer e praticar, e depois concitá-lo a moverse e a agir, a fazer o que foi ensinado a fazer. De outra forma, o seu trabalho teria a probabilidade de ser em vão. Negligenciar esta linha de ação é uma das principais causas pelas quais os homens caem em tantos erros como acontece hoje em dia". Podemos acrescentar que esta última observação ganhou mais força em nossos tempos; é entre os rebanhos sem instrução que os lobos do papado fazem estragos. O ensino saudável é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à esquerda entre nós. É sadia informação sobre os assuntos bíblicos que os seus ouvintes desejam ardentemente, e precisam tê-la. Eles têm direito a explicações precisas da Escritura Sagrada, e se cada um de vocês for "um intérprete, um de mil", um verdadeiro mensageiro, dá-las-á com abundância. Qualquer coisa mais que esteja presente, a ausência da verdade instrutiva, edificante, à semelhança da ausência de farinha no pão, será fatal. Avaliados pelo seu sólido conteúdo em vez de pela sua área de superfície, muitos sermões são bem pobres exemplares do discurso sacro. Creio que tem fundamento a observação de que, se vocês ouvirem um prelecionador de astronomia ou geologia, durante um breve curso obterão uma visão razoavelmente clara do seu sistema. Mas, se ouvirem, não por doze meses apenas, mas por doze anos, a um pregador do tipo comum, não chegarão a nada que se pareça com uma idéia do seu sistema de teologia. Se é assim, é um grave mal, que não conseguiremos deplorar demais. Ah! as indistintas declarações de muitos sobre as mais grandiosas realidades eternas, e a obscuridade de pensamento de outros quanto a verdades fundamentais, têm dado muita ocasião à critica! Irmãos, se vocês não forem teólogos, não serão absolutamente nada nos seus pastorados. Poderão ser ótimos retóricos, profusos em expressões polidas; mas sem o conhecimento do evangelho, e sem aptidão para ensiná-lo, não passarão de metal que soa ou de sino que retine. Muitíssimas vezes a verbosidade é a folha de figueira que funciona como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 97 cobertura para a ignorância teológica. Ressonantes períodos são oferecidos em lugar de boa doutrina, e a retórica floresce em lugar de pensamento robusto. Essas coisas não deviam acontecer. A abundância de declamações vazias, e a falta de alimento para a alma transformarão o púlpito num estofo de enchimento, e inspirarão desprezo em vez de reverência. Se não formos pregadores instrutivos, e não alimentarmos de fato o povo, poderemos ser grandes recitadores de poesia elegante, e poderosos varejistas de foles de segunda mão, mas seremos como o antigo Nero, que tocava violino enquanto Roma ardia em chamas, e enviava navios a Alexandria em busca de areia para a arena, enquanto a população morria de fome por falta de trigo. Insistimos nisso – em que é preciso haver abundância de substância nos sermões – e, em seguida, em que essa substância deve ser coerente com o texto. Em regra, o sermão deve brotar do texto, e quanto mais evidente assim for, tanto melhor. Todas as vezes, porém, para dizer o mínimo, deve ter a mais estreita relação com ele. Deve se permitir larga amplitude no que se refere à espiritualização e à acomodação; mas a liberdade não deve degenerar em abuso, e sempre deve existir uma conexão, e algo mais que uma remota conexão – uma verdadeira relação entre o sermão e o seu texto. Outro dia me falaram de um extraordinário texto, que seria próprio ou impróprio conforme o pensamento da gente. Um rústico proprietário, membro da igreja, dera certo número de flamantes mantos escarlates às mais idosas senhoras da comunidade. Solicitou-se que estes seres resplendentes fossem à igreja no domingo seguinte, e se sentassem em frente do púlpito, do qual um dos pretensos sucessores dos apóstolos os edificou usando as palavras: "Nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles". Consta que, numa reunião subseqüente, quando o mesmo benfeitor da paróquia dera meio saco de batatas a cada pai de família, o tópico do domingo seguinte foi: "E disseram: isto é maná". Não posso dizer se a matéria desse caso e o texto
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 98 escolhido são congruentes. Suponho que sim, pois as probabilidades são de que toda a realização em foco era completamente doida. Alguns irmãos não querem mais saber do texto, logo depois de o terem lido. Havendo prestado toda a devida honra a essa passagem particular ao anunciá-la, não vêem mais necessidade alguma de referir-se a ela. Tiram o chapéu, por assim dizer, cumprimentando aquela parte da Escritura, e passam adiante a verdes campos e novas pastagens. Afinal de contas, por que esses homens tomam um texto? Por que limitam sua gloriosa liberdade pessoal? Por que fazem da Escritura uma plataforma só para que possam montar seu Pégaso sem freios? Certamente as palavras do Livro inspirado nunca se destinaram a ser fivelas de sapatos para ajudarem o tagarela firmar as suas botas de sete léguas com as quais possa saltar de um pólo a outro. O modo mais seguro de manter variações é obedecer à mente do Espírito Santo na passagem particular que se esteja considerando. Não existem dois textos exatamente iguais; alguma coisa na conexão ou na tendência de cada um dos textos aparentemente idênticos dá-lhes um sombreado diferente. Sigam as pegadas do Espírito e nunca serão repetitivos nem ficarão sem material; Suas veredas destilam gordura. Além disso, o sermão chega com muito maior poder às consciências dos ouvintes quando é pura e simplesmente a própria Palavra de Deus – não uma preleção sobre a Escritura, mas a Escritura mesma, exposta e imposta. É devido à majestade da inspiração que, quando você declara estar pregando sobre um versículo, não o tira da vista para dar lugar aos seus pensamentos pessoais. Irmãos, se vocês têm o hábito de manter diante de si o sentido preciso da Escritura, recomendo-lhes que se atenham à ipsissima verba, às palavras do Espírito Santo propriamente ditas; pois, embora em muitos casos os sermões tópicos sejam, não só permissíveis mas também muito apropriados, aqueles sermões que expõem as exatas palavras do Espírito Santo são os mais úteis e os mais convenientes para a maioria das nossas igrejas. Elas gostam de receber as palavras mesmas da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 99 Escritura explicadas e expostas. Muitos não são capazes de captar o sentido isolado da linguagem – de enxergar, por assim dizer, a verdade desencarnada. Mas quando ouvem as palavras precisas reiteradas muitas vezes, e cada expressão comunicada demoradamente, ao estilo de pregadores do tipo do Sr. Jay (de Bath) são sobremaneira edificados, e a verdade se fixa mais firmemente na memória deles. Sejam, pois, copiosamente substanciais os seus sermões, e que a matéria deles evolva da Palavra inspirada, como as violetas e as prímulas brotam naturalmente do solo fértil, ou como o mel virgem destila do favo. Cuidem para que as suas mensagens sejam valiosas e prenhes de ensinamentos realmente importantes. Não edifiquem com madeira, feno e palha, mas com ouro, prata e pedras preciosas. Dificilmente será necessário adverti-los contra as degradações mais grosseiras da eloqüência do púlpito, ou, senão, poderíamos citar o exemplo do notório orador Henley. Aquele aventureiro loquaz que Alexandre Pope imortalizou em sua obra satírica, Dunciad, costumava fazer dos acontecimentos sucedidos durante a semana os temas das suas chocarrices nos dias úteis, e os tópicos teológicos sofriam o mesmo destino aos domingos. Seu ponto forte consistia em sua graça vulgar, nas modulações da sua voz e no balanceio das mãos. O satirista diz dele: "Que absurdidade fluente escorre da sua língua." Cavalheiros, melhor nos fora nunca ter nascido do que dizerem com veracidade algo semelhante de nós. Com risco de nossas almas, temos que lidar com os fatos solenes da eternidade e com tópicos não gerados na terra. Todavia, existem outros métodos mais convidativos de edificar com madeira e feno, e convém que não se deixem ludibriar por eles. Esta observação é necessária, especialmente para aqueles cavalheiros que confundem declarações extravagantes com eloqüência, e expressões latinizadas com grande profundidade de pensamento. Certos instrutores de homilética, por seu exemplo – senão por seus preceitos – estimulam o emprego de grandiosas palavras fanfarronas e enfunadas, e, portanto, são os elementos mais perigosos para os pregadores jovens. Pensem num
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 100 discurso iniciado com uma asserção assombrosa e estupenda como a seguinte que, por sua grandiosidade original, os impressionará de imediato, com um sentimento do sublime e do belo: "O HOMEM É UM SER MORAL". Este gênio poderia ter acrescentado: "O gato tem quatro patas". Haveria tanta novidade naquela informação como nesta. Lembrome de um sermão pregado por um suposto profundo escritor que atordoava por completo o leitor com bombardeio de palavras de dois metros de comprimento, mas que, quando postas a cozer do modo certo, o suco de carne que sobrava era como este – O homem tem uma alma, sua alma viverá noutro mundo, e, portanto, deve cuidar-se para que venha a ocupar um lugar feliz. Ora, não se pode fazer objeção ao ensino, mas este não é tão novel que precise do toque de trombetas e de uma procissão de frases cheias de enfeites para apresentá-lo à atenção pública. A arte de dizer chavões elegantemente, pomposamente, grandiloqüentemente, bombasticamente, não se perdeu entre nós, embora a sua total extinção devesse "ser uma consumação a desejar-se devotadamente". Sermões desse tipo têm sido apresentados como modelos, e, todavia, são simples fragmentos de bexiga que caberiam na unha do dedo, soprados até lembrarem aqueles balões coloridos que os vendedores ambulantes levam pelas ruas para vendê-los por algumas moedas, para a delícia dos extremamente juvenis. O paralelo, lamento dizê-lo, está sendo benévolo, pois, em alguns casos, essas pregações só contém um matiz de veneno, a modo de coloração, que alguns do tipo mais fraco descobriram à sua própria custa. É infame subir ao púlpito e despejar sobre os ouvintes rios de oratória, cataratas de palavras, em que se dissolvem puras trivialidades quais pílulas infinitesimais, de medicina homeopática num atlântico de proclamação verbosa. Muito melhor dar ao povo massas de verdade em casca, não burilada, como pedaços de carne do cepo do açougue, retalhados de qualquer jeito, com osso e tudo, e até caídos no meio da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 101 serragem – sim, muito melhor dar isso do que, com ostentação e finura, apresentar-lhe num prato de porcelana uma deliciosa fatia de coisa nenhuma, decorada com salsa de poesia e temperada com molho de pedantismo. Será uma feliz circunstância se vocês forem de tal modo guiados pelo Espírito Santo que dêem claro testemunho de todas as doutrinas que constituem o evangelho ou que o circunscrevem. Não se deve reter nenhuma verdade. A doutrina retida, tão detestável na boca dos jesuítas, não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes. Não é verdade que algumas doutrinas sejam somente para os iniciados; não há nada na Bíblia que se envergonhe da luz. Os mais sublimes conceitos da soberania divina têm um enquadramento prático, e não são, como alguns pensam, meras sutilezas metafísicas. Os pronunciamentos característicos do calvinismo têm sua aplicação na vida diária e na experiência comum, e se vocês sustentarem essas idéias, ou as que lhes são opostas, não têm licença para ocultar as suas crenças. Em nove de dez casos, a reticência cautelosa é traição covarde. A melhor política é não ser político nunca, mas proclamar cada átomo da verdade na medida em que Deus lhe tenha ensinado. A harmonia requer que a voz de uma doutrina não sufoque as restantes, e também exige que as notas mais suaves não sejam omitidas por causa do volume maior dos outros sons. Todas as notas assinaladas pelo grande menestrel devem soar, cada nota tendo a sua intensidade e a sua ênfase proporcionais. A passagem marcada com forte não deve ser suavizada, e as passagens assinaladas com piano não devem retumbar como trovão, mas cada uma deve ter a sua devida intensidade de vibração sonora. Toda a verdade revelada em proporção harmônica, deve constituir o seu tema. Irmãos, se vocês desenvolverem no púlpito proposições que tratam de realidades importantes, é preciso que nunca jamais fiquem pairando em torno dos simples ângulos da verdade. As doutrinas não vitais à salvação da alma, nem essenciais ao cristianismo prático, não devem ser consideradas em todas as ocasiões de culto. Apresentem todos os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 102 aspectos da verdade na devida proporção, pois todas as partes da Escritura são proveitosas, e a vocês compete pregar não somente a verdade, mas toda a verdade. Não insistam perpetuamente numa só verdade. O nariz é uma parte importante da fisionomia humana, mas pintar somente o nariz não é método satisfatório de retratar a sua imagem; uma doutrina pode ser muito importante, mas uma exagerada estimativa dela pode ser de fatais conseqüências para um ministério harmonioso e completo. Não transformem doutrinas secundárias em pontos da maior importância. Não pintem as minúcias do pano de fundo do evangelho com o grosso pincel usado para os grandes objetos do primeiro plano. Por exemplo, os grandes problemas do sublapsarianismo e do supralapsarianismo, os mordazes debates sobre a filiação eterna, a zelosa discussão concernente à dupla procedência, e os esquemas pré e pósmilenários, por mais importantes que alguns possam julgá-los, são praticamente sem interesse para aquela piedosa viúva com sete filhos para sustentar com a sua agulha, que tem muito maior necessidade de ouvir da benignidade do Deus da providência do que desses mistérios profundos. Se vocês lhe pregarem sobre a fidelidade de Deus a Seu povo, ela ficará animada e se sentirá ajudada na batalha da vida; mas as questões difíceis a deixarão perplexa ou a farão dormir. Entretanto, ela é o tipo representativo de centenas daqueles que mais precisam do cuidado pastoral. O nosso tema principal são as boas novas do céu; as notícias da misericórdia mediante a morte expiatória de Jesus, misericórdia para o maior pecador que crê em Jesus. Devemos empenhar todo o nosso poder de julgamento, memória, imaginação e eloqüência na transmissão do evangelho; e não dediquemos à pregação da cruz os nossos pensamentos casuais enquanto assuntos de pequena importância monopolizam as nossas mais profundas meditações. Estejam certos de que, se trouxermos o intelecto de um Locke ou de um Newton, e a eloqüência de um Cícero, para sobrepor à simples doutrina de "crê e viverás", não encontraremos poder em
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 103 excesso. Irmãos, primeiramente e acima de todas as coisas, mantenhamse nas simples doutrinas evangélicas. Tudo mais que preguem ou deixem de pregar, certifiquem-se de apresentar incessantemente a salvadora verdade de Cristo, e Ele crucificado. Conheço um ministro cujos sapatos sou indigno de desamarrar e cuja pregação muitas vezes é pouco melhor do que uma pintura sagrada em miniatura – quase que poderia dizer, uma santa ninharia. É grandioso sobre os dez dedos da besta, os quatro rostos dos querubins, o significado místico da pele de texugo, os suportes típicos das varas da arca, e as janelas do templo de Salomão. Mas quase nunca toca nos pecados dos homens de negócio, nas tentações atuais e nas necessidades da época. Esse tipo de pregação lembra-me um leão empenhado em cagar ratinhos, ou um guerreiro metido numa cruzada por uma pipa d'água. Tópicos que mal se igualam em importância àquilo que Paulo chama de "fábulas profanas e de velhas" são transformados em grandes temas por aqueles teólogos microscópicos para os quais a sutileza refinada de um ponto é mais atraente do que a salvação de pecadores. Decerto vocês terão lido no Student's Manual (Manual do Estudante), de Todd, que Harcácio, rei da Pérsia, era perito caçador de toupeiras, e que Briantes, rei da Lídia, era igualmente au fait – com efeito – hábil no manejo da agulha. Mas essas trivialidades de modo nenhum provam que foram grandes reis. É bem parecido com isso o que acontece no ministério. Existe disso – mediocridade na atividade mental rebaixando a dignidade do embaixador do céu. Em certa classe e mentalidade desta época, o desejo ateniense de falar ou de ouvir alguma novidade parece predominar. Tais homens jactam-se de que têm nova luz, e se arrogam uma espécie de inspiração que os autoriza a condenarem todos os que estão fora da sua irmandade. Entretanto, a sua grande revelação se relaciona com algum simples ponto circunstancial do culto, ou com alguma obscura interpretação de profecia. Desta forma, à vista do grande estardalhaço e dos altos brados por tão pouca coisa, ocorre-nos:
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"Enfurecer o oceano pra fazer uma folha flutuar ou simples mosca tragar"
São piores ainda aqueles que desperdiçam tempo insinuando dúvidas sobre a autenticidade de textos, ou sobre a correção de afirmações bíblicas acerca de fenômenos naturais. Com pesar recordo ter ouvido numa noite de domingo um palavreado com nome de sermão cujo tema era uma arguta pesquisa quanto a se um anjo realmente descia e agitava as águas do tanque de Betesda, ou se era uma fonte intermitente a respeito da qual a superstição judaica tinha inventado uma lenda. Homens e mulheres sujeitos a perecer se reuniram para aprender o caminho da salvação, e lhes largaram uma frivolidade como esta! Foram em busca de pão, e receberam pedra; as ovelhas recorreram ao pastor, e não foram alimentadas. Raramente ouço um sermão, e quando ouço, sou lamentavelmente desafortunado, pois um dos últimos com que fui obsequiado levava a intenção de justificar Josué por destruir os cananeus, e outro, a de provar que não é bom que o homem esteja só. Quantas almas se converteram em resposta às orações feitas antes desses sermões, nunca pude verificar, mas a perspicácia me faz suspeitar que nenhuma ação de regozijo incomum perturbou a serenidade das ruas de ouro da Jerusalém celeste. Acreditando que minha próxima observarão é quase universalmente desnecessária, ponho-a em tela com modéstia – não sobrecarreguem o sermão com material demais. Não se deve tentar comprimir a verdade toda num discurso. Os sermões não devem ser sistemas completos de teologia. Sói acontecer existir muitas coisas para dizer, e dizê-las a ponto de fazer que os ouvintes voltem para casa nauseados em vez de esperançosos. Andando com um jovem pregador, um velho ministro apontou para uma lavoura de trigo e fez esta observação: "O seu último sermão tinha demasiado conteúdo, mas não bastante clareza, nem suficiente boa ordem; foi como aquela plantação de trigo – continha muito alimento cru, mas nenhum pronto para ser servido. Você deve
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 105 fazer os seus sermões parecidos com pães – prontos para a gente comer, e na forma conveniente". É de temer-se que as cabeças humanas (frenologicamente falando) não são tão capazes para a teologia agora como outrora, pois os nossos antepassados regozijavam-se com cinco quilos de teologia não dissolvida e sem enfeites, e podiam continuar a recebê-la durante três ou quatro horas numa tirada, mas a nossa geração mais degenerada, ou quem sabe mais ocupada, exige apenas uns trinta gramas de doutrina por vez, e essa tem que ser extrato concentrado ou essência, e não a substância integral da teologia. Nestes tempos precisamos falar muita coisa com poucas palavras, mas não demais, nem com demasiada ampliação. Um pensamento fixo na mente valerá mais do que cinqüenta pensamentos que entram por um ouvido e saem pelo outro. Um prego de alguns centavos levado para casa e pregado será mais útil do que uma porção de tachinhas frouxamente fincadas e que se soltarão em uma hora. O material do nosso sermão deverá ser bem ordenado, segundo as legitimas normas da arquitetura mental. Nada de inferências práticas no pedestal e de doutrinas no alto das paredes; nada de metáforas no alicerce e de proposições na cumeeira; nada de apresentar primeiro as verdades mais importantes e no fim os ensinamentos de valor secundário, a modo de anticlímax; ao contrário, o pensamento deve elevar-se, ascender, um degrau de ensino levando a outro, uma porta de argumentação conduzindo a outra, e o conjunto elevando o ouvinte até uma recâmara de cujos vitrais se vê a verdade resplandecente, engolfada na luz de Deus. Na prédica há lugar para tudo, e cada coisa tem o seu lugar. Nunca permitam que as verdades descambem em confusão. Não deixem que os seus pensamentos corram qual multidão em tropel, mas façam-nos marchar como uma tropa de infantaria. A ordem, que é a primeira lei do céu, não deve ser negligenciada pelos embaixadores do céu. Os seus ensinamentos doutrinários devem ser claros e inconfundíveis. Para isto, é preciso que primeiramente estejam claros
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 106 para você, meu irmão. Alguns pensam envoltos em fumaça e pregam metidos numa nuvem. O povo da sua igreja não quer névoas fulgentes, mas, sim, a sólida terra firme da verdade. As especulações filosóficas levam certas mentes a um estado de semi-intoxicação em que, ou vêem tudo em dobro, ou não vêm coisíssima nenhuma. Anos atrás, um estrangeiro perguntou ao diretor de certa faculdade de Oxford qual era o moto do brasão daquela universidade. Respondeulhe que era "Dominus illuminatio mea" (O Senhor é a minha luz) E também informou candidamente ao estrangeiro que, em sua opinião particular, um moto mais apropriado poderia ser "Aristoteles meae tenebrae" (Aristóteles das minhas trevas). Escritores sensacionalistas há que quase enlouquecem muitos homens íntegros que conscienciosamente lêem as suas lucubrações com a idéia de que devem manter-se atualizados com a nossa época, como se esta necessidade não exigisse também do nós que fôssemos aos teatros a fim de capacitar-nos para julgar as novas peças, ou que freqüentássemos os hipódromos para não sermos estreitos demais em nossas opiniões sobre as corridas e o jogo. De minha parte, creio que os principais leitores de livros heterodoxos são ministros, e que se estes não lhes dessem atenção, ficariam sem divulgação como natimortos. Livre-se o ministro de mistificar-se, e estará a caminho de tornar-se inteligível para a sua congregação. Ninguém que seja incapaz de fazer-se entender pode esperar ser levado em conta. Se dermos ao nosso povo a verdade pura, a sã doutrina bíblica, e tudo de tal modo verbalizado que nenhuma obscuridade o cerque, seremos verdadeiros pastores das ovelhas, e o proveito colhido por nossos ouvintes logo se fará patente. Esforcem-se para manter o conteúdo dos seus sermões com novíssimo vigor quanto lhes for possível. Não fiquem martelando cinco ou seis doutrinas com a invariável monotonia da repetição. Comprem um realejo teológico, irmãos, com cinco melodias ajustadas com esmero, e estarão habilitados para praticar como pregadores hiper-calvinistas em Zoar e Jiré, se também comprarem em alguma fábrica de vinagre um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 107 bom suprimento de amargo abuso contra arminianos e contra outros com os quais não concordem. O cérebro e a graça são optativos, mas o realejo e a losna são indispensáveis. Nós entendemos e nos alegramos que a gama da verdade é mais ampla. Tudo que esses bons homens sustentam sobre a graça e a soberania nós também mantemos tão firme e intrepidamente como eles, mas não ousamos fechar os olhos para outros ensinamentos da Palavra, e nos sentimos obrigados a dar plena prova do nosso ministério declarando todo o conselho de Deus. Com temas abundantes, diligentemente ilustrados por vivas metáforas e experiências, não seremos cansativos, mas, nas mãos de Deus, ganharemos os ouvidos e os corações dos nossos ouvintes. Ampliem e desenvolvam os seus ensinos; que eles sejam aprofundados com a sua experiência, e elevados com o seu progresso espiritual. Não pretendo dizer que preguem novas verdades, pois, ao contrário, afirmo que é feliz o homem que foi tão bem instruído desde o início que, depois de cinqüenta anos de ministério, nunca teve que se retratar de uma doutrina ou que lamentar uma omissão importante; mas o que quero dizer é que tratemos de aumentar constantemente a nossa profundidade e o nosso discernimento, e que isto acontecerá onde houver progresso espiritual. Timóteo não podia pregar como Paulo. As nossas primeiras produções têm que ser sobrepujadas pelas dos nossos anos de maior maturidade; não devemos usar aquelas como nossos modelos. É melhor queimá-las, ou preservá-las. só para lamentar o seu caráter superficial. Seria mau, de fato, se não soubéssemos mais depois de estarmos muitos anos na escola de Cristo. O nosso progresso pode ser lento, mas progresso tem que haver, ou se não, haverá motivo para suspeitar que falta vida interior ou que esta é tristemente doentia. Fixem definidamente nas suas mentes que ainda não alcançaram, e oxalá lhes seja dado graça que os impulsione para a frente, rumo àquilo que está além. Oxalá todos vocês venham a ser competentes ministros do Novo Testamento, e nem um pouco atrás dos mais notáveis pregadores, embora em si mesmos vocês continuem sendo nada.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 108 Diz-se que a palavra "sermão" significa "arremetida", e, portanto, quando fazemos e pregamos sermões, devemos ter em vista empregar o assunto em mão com energia e eficácia, e o assunto deve ser apto para tal emprego. Escolher apenas temas morais será usar um punhal de madeira; mas as grandes verdades da revelação são agudas como espadas. Apeguem-se a doutrinas que mexam com a consciência e com o coração. Permaneçam como inabaláveis campeões do evangelho que conquista almas. A verdade de Deus é adaptada ao homem, e a graça de Deus adapta o homem à verdade. Há uma chave que, na mão de Deus, pode dar corda na caixa de música da natureza humana; peguem-na e usem-na diariamente. Portanto, eu os concito a ficarem com o antiquado evangelho, e somente com ele, pois certamente é o poder de Deus para salvação. De tudo que eu gostaria de dizer-lhes, o resumo é este: Meus irmãos, preguem a CRISTO, sempre e para sempre. Ele é todo o evangelho. Sua pessoa, Seus ofícios e Sua obra devem constituir o nosso grande e todo-abrangente tema. O mundo continua precisando ouvir falar de Seu Salvador e do caminho para chegar a Ele. A justificação pela fé deve ser muito mais do que aquilo que tem sido o testemunho diário dos púlpitos protestantes. E se a essa verdade dominante se associarem mais geralmente as outras grandes doutrinas da graça, melhor para as nossas igrejas e para a nossa era. Se com o fervor dos metodistas pudermos pregar a doutrina dos puritanos, um grande futuro nos espera. O fogo de Wesley e a lenha de Whitefield causarão um incêndio que queimará as florestas de erro e aquecerão a própria alma desta frígida terra. Não somos chamados para proclamar filosofia e metafísica, mas o simples evangelho. A queda do homem, sua necessidade de novo nascimento, o perdão mediante a expiação, e a salvação como resultado da fé, são estes os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra. Temos bastante que fazer para aprender e ensinar estas grandes verdades, e anátema sejam aqueles aprendizados que nos desviam da nossa missão, ou aquela caprichosa ignorância que nos faz coxear
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 109 quando procuramos cumpri-la. Mais e mais estou zelando para que nenhuma teoria sobre profecia, governo da igreja, política, e mesmo sobre teologia sistemática, leve algum de nós a deixar de gloriar-se na cruz de Cristo. A salvação é um tema para o qual eu de bom grado alistaria todas as línguas santas. Sou ávido por testemunhas do glorioso evangelho do Deus bendito. Oxalá o Cristo crucificado fosse o fardo universal dos homens de Deus! As suas imaginações sobre o número da besta, as suas especulações napoleônicas, as suas conjeturas concernentes a um anticristo pessoal perdoem-me, considero-as todas apenas como ossos para cães. Enquanto os homens estão morrendo e o inferno vai ficando cheio, parece-me que é a máxima tolice ficar resmungando acerca de um Armagedom em Sebastopol ou em Sadowa ou em Sedan, e ficar espreitando por entre as cerradas folhas do destino para descobrir a sorte da Alemanha. Benditos os que lêem e ouvem as palavras da profecia do Apocalipse, mas é evidente que a mesma bênção não tem caído sobre os que simulam expô-las, pois o simples passar do tempo tem demonstrado que geração após geração deles erraram, e a raça atual os seguirá para o mesmo sepulcro inglório. Preferiria tirar um tição do fogo a explicar todos os mistérios. Ganhar uma alma, livrando-a de descer ao abismo, é um feito mais glorioso do que ser premiado como Doctor Sufficientíssímus na arena da controvérsia teológica. Trazer fielmente à luz o conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo será considerado no juízo final como serviço mais valioso do que o de solucionar os problemas da esfinge religiosa, ou de desfazer o nó górdio das dificuldades apocalípticas. Bem-aventurado o ministério do qual CRISTO É TUDO.
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A ESCOLHA DO TEXTO Espero, meus irmãos, que todos nós estejamos sentindo profundamente a importância de dirigir todas as partes do serviço divino com a máxima eficiência possível. Ao lembrar-nos de que a salvação de uma alma pode depender, instrumentalmente, da escolha de um hino, não deveríamos considerar fútil a pequenina questão da seleção de salmos e hinos. Um forasteiro incrédulo, entrando durante um dos nossos cultos no Exeter Hall, foi levado à cruz pelas palavras do verso de Wesley, "Jesus, amante de minha alma". "Jesus me ama?", perguntou ele. "Então, por que deveria eu viver em inimizade contra Ele?" Ao refletirmos, também, que Deus pode dar uma bênção muito especial a uma frase da nossa oração para a conversão de algum errante, e que orar sob a unção do Espírito Santo pode contribuir grandemente para a edificação do povo de Deus e trazer-lhe inumeráveis bênçãos, nós nos esforçaremos para orar exercitando o melhor dom e a máxima graça ao nosso alcance. Considerando ainda que na leitura da Bíblia podem ser distribuídos consolo e instrução copiosamente, deter-nos-emos sobre as nossas Bíblias abertas, e, devotamente procuraremos ser guiados àquela porção da Escritura que tenha maior probabilidade de fazer-se útil. A respeito do sermão, a nossa ansiosa preocupação é primeiramente quanto à seleção de um texto. Nenhum de nós olha o sermão sob uma luz tão negligente que chegue a conceber que um texto apanhado ao acaso será apropriado para toda e qualquer ocasião. Não somos da opinião de Sydney Smith, expressa quando recomendou a um irmão indeciso sobre um texto, que pregasse sobre, "Partos e medas, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia", como se qualquer coisa servisse para um sermão. Espero que, semanalmente, todos nós tenhamos como coisa da mais zelosa e séria consideração, quais serão os assuntos de que falaremos ao nosso povo no dia do Senhor, de manhã e de noite, pois, conquanto toda a Escritura seja boa e proveitosa, não é toda ela igualmente apropriada
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 111 para todas as ocasiões. Há tempo para tudo, e tudo é melhor quando é oportuno. Um sábio pai trabalha para dar a cada membro da sua família a sua porção de alimento na devida ocasião; não serve todas as rações indiscriminadamente, mas ajusta as refeições às necessidades dos comensais. Só um mero oficial, escravo da rotina, autômato inanimado do formalismo se contentará em agarrar o primeiro tópico que venha à mão. Aquele que cata assuntos como as crianças colhem botões-de-ouro e margaridas nas campinas, simplesmente como se oferecem, talvez esteja agindo de acordo com a sua posição de homem colocado por um protetor numa igreja, da qual o povo não o pode expulsar. Mas os que se proclamam chamados por Deus, e que foram escolhidos para as suas posições pela livre eleição dos crentes, precisam dar maior prova do seu ministério do que aquele que se acha nessa negligência. Dentre as muitas gemas temos que selecionar a jóia mais adequada à circunstância do momento. Não ousamos correr para o salão do banquete do Rei com uma confusão de provisões como se o festim devesse ser uma vulgar refeição de ovos fritos, mas, como servidores corteses, paramos para perguntar ao grande Dono da festa: "Senhor, que queres que sirvamos à Tua mesa hoje?" Alguns textos nos chocam por terem sido escolhidos com extrema infelicidade. Ficamos a indagar o que o pastor do célebre Disraeli disse acerca das palavras: "Em minha carne verei a Deus", quando pregou recentemente numa casa de uma aldeia por ocasião da colheita! Excessivamente infeliz também foi o texto usado no funeral de um clérigo assassinado (o Sr. Plow): "Assim dá ele aos seus amados o sono". Manifestamente tolo, e muito, foi ainda aquele que escolheu "Não julgueis, para que não sejais julgados", para um sermão pregado perante os jurados numa sessão do tribunal do júri. Não se deixem enganar pela sonoridade e pela aparente aptidão de palavras bíblicas. M. Athanese Coquerel confessa ter pregado numa terceira visita a Amsterdã baseado nas palavras: "É esta a terceira vez
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 112 que vou ter convosco" 2 Coríntios 13:1 – e bem pôde acrescentar que "teve grande dificuldade depois, em colocar no discurso algo que fosse próprio para a ocasião". Um caso paralelo foi o de um dos sermões pela morte da princesa Charlotte, sobre o texto: "Enfermando ela, morreu". Pior ainda é selecionar palavras miseravelmente engraçadas, como no caso de um recente sermão sobre a morte de Abraão Lincoln, baseado na sentença "E Abraão expirou e morreu". Conta-se que um estudante, o qual é de esperar-se nunca tenha saído de casa, pregou um sermão em público, diante do seu tutor, o Dr. Filipe Doddridge. Ora, o bom homem estava acostumado a postar-se justamente em frente do estudante e fitar-lhe diretamente o rosto. Avaliem, pois, a sua surpresa, senão indignação, quando o texto enunciado desfilou com estas palavras: "Estou há tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido, Filipe?" Cavalheiros, às vezes loucos viram estudantes. Esperemos que nenhum desse tipo desonre a nossa Alma Mater. Perdôo o homem que pregou perante aquele Salomão bêbedo, Tiago I da Inglaterra e VI da Escócia, baseando em Tiago 2:6; a tentação foi grande demais para que se lhe pudesse resistir. Outrossim, seja o infame execrado para todo o sempre, se existiu realmente o homem que celebrou a morte de um diácono com a tirada: "E aconteceu que o mendigo morreu". Perdôo o mentiroso que atribuiu a mim esse ultraje, mas espero que não tente aplicar as suas manhas infames a ninguém mais. Assim como devemos evitar a aplicação descuidada e acidental de tópicos, também devemos evitar uma regularidade monótona. Ouvi falar de um clérigo que tinha cinqüenta e dois sermões, e uns poucos sobressalentes para datas especiais do calendário litúrgico; pregava-os em ordem regular, ano após ano. No caso referido, o povo da igreja dele não tinha necessidade de rogar-lhe que lhe falasse as mesmas coisas no domingo seguinte, nem seria muito de admirar que fossem encontrados imitadores de Êutico em outros lugares além do terceiro andar!
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 113 Não faz muito tempo que um clérigo disse a um fazendeiro amigo meu: "Sabe, Sr. D., outro dia eu estava folheando os meus sermões e a verdade é que a casa pastoral é tão úmida, principalmente o meu gabinete, que os meus sermões ficaram todos mofados". O meu amigo, embora zelador da igreja, freqüentava um local de culto mantido por dissidentes, não foi rude a ponto de dizer: "bem feito!" Mas para os respeitáveis cidadãos do povoado que tinham ouvido muitas vezes os citados discursos, é possível que eles estivessem mofados em mais de um sentido. No ministério há pessoas que, tendo acumulado um pequeno estoque de sermões, repetem-nos ad nauseam (até à náusea), com horrível regularidade. Os irmãos itinerantes devem estar muito mais sujeitos a essa tentarão do que os que permanecem no mesmo lugar durante alguns anos. Se forem vítimas do hábito, isto será por certo o fim da sua utilidade, e enviará um intolerável calafrio de morte aos seus corações, de que depressa o seu povo tomará consciência quando os ouvirem papaguear as suas produções gastas pelo tempo. A melhor invenção para promover a preguiça espiritual deve ser o plano de conseguir um estoque de sermões para dois ou três anos, e repeti-los em ordem vezes sem conta. Se nós, meus irmãos, esperamos viver por muitos anos, senão a vida inteira, num só lugar, arraigados ali pelo afeto mútuo que se desenvolva entre nós e o nosso povo, temos necessidade de um método bem diferente daquele que serve para um mandrião ou para um evangelista itinerante. Imagino que para uns deve ser um fardo pesado, e para outros deve ser muito fácil achar assunto, como acontece com aqueles cuja sorte foi lançada com a instituição episcopal, em que o pregador geralmente se refere ao evangelho ou epístola ou lição para o dia, e se sente obrigado – não por lei, mas por uma espécie de precedente – a pregar com base num versículo tirado de uma dessas fontes. Seguindo o seu ciclo rotativo estereotipado o Advento, a Epifania, a Quaresma e o Pentecoste, ninguém precisa angustiar-se no coração com a pergunta: "Que direi a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 114 esta gente?" A voz da igreja é clara e definida: "Mestre, vá falando; aí está o seu trabalho; dedique-se totalmente a ele". Pode ser que haja algumas vantagens nesse arranjo prévio, mas o povo episcopal não parece partilhar muito delas, pois os seus escritores seculares estão sempre reclamando da aridez dos sermões, e lamentando a triste condição dos leigos resignados que são compelidos a ouvi-los. O hábito servil de seguir o curso do sol e a revolução dos meses, em vez de seguir o Espírito Santo, é, em minha opinião, suficiente para explicar o fato de que em muitas igrejas, sendo os seus próprios escritores os que julgam, os sermões não são nada melhores do que espécimes daquela "decente debilidade que protege os seus autores de erros grotescos e ao mesmo tempo lhes veda admiráveis belezas". Tenha-se, pois, por concedido que para nós é da máxima importância, não só pregar a verdade, mas pregar a verdade condizente com cada ocasião particular. O nosso esforço há de ser o de dissertar sobre assuntos que melhor se adaptem às necessidades do nosso povo, e que tenham maior probabilidade de evidenciar-se como canal da graça para os seus corações. Há alguma dificuldade na obtenção de textos? Lembro-me de que, em meus primeiros tempos, li em alguma parte de um volume de preleções sobre homilética, uma afirmativa que na ocasião me alarmou consideravelmente; tinha mais ou menos este sentido: "Se alguém tiver dificuldade para achar um texto, é melhor que volte de uma vez para a mercearia ou para o arado, pois evidentemente não tem a capacidade que se requer de um ministro". Ora, como essa fora muitas vezes a minha cruz e o meu fardo, indaguei-me a mim próprio se deveria recorrer a alguma forma de trabalho secular e deixar o ministério. No entanto, não o fiz, pois sempre tive a convicção de que, embora condenado pelo radical julgamento do preletor, sigo uma vocação à qual Deus manifestamente apôs o Seu selo. Fiquei com tal conflito de consciência pela severa observação referida, que perguntei a meu avô, que estivera no ministério uns
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 115 cinqüenta anos, se alguma vez tinha ficado embaraçado na escolha do seu tema. Disse-me francamente que esse fora sempre o seu maior problema, comparada com o qual, a pregação propriamente dita não era nenhuma preocupação. Lembro-me desta observação do venerando senhor: "A dificuldade não é porque não há bastantes textos, mas porque há tantos que fico em apuros entre eles". Irmãos, às vezes somos como o apaixonado por flores seletas que se vê rodeado de todas as belezas do jardim, com a permissão de escolher apenas uma. Quanto tempo hesita entre a rosa e o lírio, e com que dificuldade dá preferência a um dentre dez mil encantos floridos! Para mim, devo confessá-lo, a escolha de um texto ainda é um enorme embaraço – embarras de richesses, como dizem os franceses – embaraço de riquezas, bem diferente do aturdimento da pobreza; a inquietação por atentar para a mais premente dentre tantas verdades, todas clamando por ser ouvidas, tantos deveres necessitando todos de se fazerem cumprir, e tantas necessidades do povo, todas exigindo suprimento. Confesso que fico muitas vezes horas e horas orando e esperando por um assunto, e que esta é a maior parte do meu estudo. Tenho tido muito trabalho manipulando tópicos, ruminando pontos de doutrina, esquematizando versículos e, depois, enterrando cada um dos ossos deles nas catacumbas do esquecimento, saindo a navegar através de léguas de águas encapeladas, até ver as luzes vermelhas e conduzir o barco ao porto desejado. Creio que em quase cada sábado da minha vida fago sermões suficientes para um mês, se me sentisse em liberdade para pregá-los, mas não me atrevo a usá-los mais que um marujo honesto a levar para a praia uma carga de artigos de contrabando. Os temas deslizam diante da mente um após outro como as imagens passam pela lente do fotógrafo, mas enquanto a mente não for como a chapa sensível que retém o retrato, os assuntos não terão valor para nós. Qual é o texto certo? Como sabê-lo? Sabemo-lo mediante sinais de amigo. Quando um versículo der à sua mente um saudável espasmo, do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 116 qual não possa livrar-se, não precisará de outra orientação quanto ao tema certo. Semelhante ao peixe, você espicaça muitas iscas, mas quando o anzol o fisga bem, não vagará mais. Quando um texto nos pega, podemos estar certos de que o pegamos, e podemos com segurança entregá-lo com a alma. Para empregar outro símile, você toma na mão certo número de textos, e tenta esmiuçá-los; martela-os com força e empenho, mas o seu trabalho é inútil. Por fim acha um que se esmigalha ao primeiro golpe, e cintila ao cair em pedaços, e você percebe que dele refulgem jóias do mais raro esplendor. Ele cresce diante dos seus olhos como a semente da fábula que se desenvolveu e virou árvore enquanto o observador a olhava. Encanta-o e o fascina, ou o força a ajoelhar-se e põe sobre você o fardo do Senhor. Saiba então que esta é a mensagem que o Senhor quer que você entregue. E, com este sentimento, você ficará tão preso àquela passagem da Escritura, que não terá mais descanso enquanto não submeter toda a sua mente ao poder dela, e enquanto não a tiver transmitido conforme o poder que Deus lhe dá para fazê-lo. Espere por aquela palavra eleita, mesmo que tenha que esperá-la até quase à hora do culto. Isto não pode ser compreendido pelos homens frios e calculistas, que não se deixam mover por impulsos como nós, mas, para alguns de nós estas coisas são uma lei em nossos corações, lei que não nos atrevemos a transgredir. Permanecemos em Jerusalém até que nos seja dado poder. "Creio no Espírito Santo." É um artigo do credo, mas raramente os que o professam crêem no Espírito a ponto de se deixar mover por Ele. Muitos ministros parecem pensar que são eles que devem escolher o texto, que são eles que devem descobrir o sentido dele, que são eles que devem encontrar um discurso nele. Nós não pensamos assim. Naturalmente nos compete empregar as nossas volições, bem como o nosso entendimento e os nossos sentimentos, pois não acreditamos que o Espírito Santo nos compelirá a pregar sobre um texto contra a nossa vontade. Ele não nos trata como se fossemos caixas de música, dando-
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 117 nos corda e ligando-nos em certa melodia. Antes, aquele glorioso Inspirador de toda a verdade trata-nos como inteligências racionais, influenciadas por forças espirituais coerentes com a nossa natureza; além disso, as mentes devotas sempre desejam que a escolha do texto fique com o sapientíssimo Espírito de Deus, e não com seus entendimentos falíveis, e, portanto, colocam-se humildemente em Suas mãos, pedindolhe que condescenda em conduzi-las à porção de alimento na ocasião própria que Ele determinou para o Seu povo. Diz Gurnal: "Os ministros não possuem capacidade própria para a execução do seu trabalho. Ah! quanto tempo podem ficar virando e revirando os seus livros e enredando os seus miolos, até vir Deus em seu socorro, e então – como a caça de Jacó – a coisa é trazida à sua mão. Se Deus não nos trouxer a Sua assistência, escreveremos com caneta sem tinta. Se há alguém que mais que qualquer outro precisa andar na confiante dependência de Deus, esse alguém é o ministro do evangelho".
Se alguém me perguntasse, "Como conseguirei o texto mais apropriado?" eu responderia: "Clame a Deus por ele". Harrington Evans, em sua obra, Rules for Sermons (Regras para Sermões), lança como primeira delas a seguinte: "Busque a Deus em oração para a escolha de uma passagem. Indague os motivos pelos quais se decide por uma passagem. Veja que a pergunta seja bem respondida. Às vezes a resposta pode ser tal que deveria levar a mente a decidir-se contra a escolha feita". Se somente a orarão não o guiar ao desejado tesouro, será em todo caso um exercício proveitoso orar. Se a dificuldade em localizar um tópico o fizer orar mais que de costume, será uma grande bênção para você. Orar é o melhor estudo. Já no passado Lutero dizia: "Bene orasse est bene studuisse" (Orar bem é estudar bem), e o repisado provérbio agüenta repetição. Ore com meditativamente sobre a Escritura; é espremer uvas no tonel, é trilhar trigo no terreiro, junto ao celeiro, é fundir ouro extraindo-o do minério. A oração é bênção dupla: abençoa o pregador em seus apelos, e abençoa as pessoas por ele servidas. Quando o texto lhe vem em resposta à oração, ser-lhe-á o mais caro. Virá com
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 118 aroma e unção divinos, completamente desconhecidos do orador formalista para quem não importa se o tema é este ou aquele. Depois da oração, somos obrigados a empregar com muito empenho os meios próprios para concentrar os nossos pensamentos e conduzi-los pelo melhor canal. Considere a condição dos seus ouvintes. Reflita no estado espiritual deles como um todo e como indivíduos, e prescreva o remédio adequado à sua moléstia, ou prepare o alimento próprio para a necessidade prevalecente. Contudo, permita-me acautelálo contra a consideração dada aos caprichos dos seus ouvintes, ou às peculiaridades dos ricos e influentes. Não dê muito valor ao cavalheiro e à dama que ocupam o banco verde, se é que você é tão infeliz que tem esse abominável lugar de distinção numa casa onde todos são do mesmo nível. Veja que o grande contribuinte seja por todas as formas considerado como os demais, e não permita que sejam negligenciadas as fraquezas espirituais dele; mas ele não é a congregação toda, e você entristecerá o Espírito Santo se pensar que é. Olhe com igual interesse para os pobres nas alas da igreja, e escolha tópicos que estejam dentro das suas categorias de pensamento e que possam encorajá-los em suas muitas tristezas. Não permita que sua cabeça se volte por respeito àqueles membros parciais da igreja que têm sorrisos doces para uma porção do evangelho, e se fazem surdos para outras partes da verdade. Nunca use de subterfúgio, quer para fazer-lhes festa, quer para censurá-los. Pode dar-nos satisfação pensar que estão contentes, se são boas pessoas, e respeitamos as suas predileções, mas a fidelidade requer que não sejamos simples flautistas para os nossos ouvintes, só tocando as músicas que eles exigem, e sim, que sejamos como que a boca do Senhor para declarar todos os Seus conselhos. Retorno à observação: pense bem no que o seu povo realmente necessita para a sua edificação, e seja esse o seu tema. O famoso apóstolo do norte da Escócia, o Dr. Macdonald, dá um exemplo pertinente em seu Diary of Work in St. Kilda (Diário da Obra em Santa Kilda): "Sexta-feira, 27 de maio. Em nosso culto matutino de hoje, li
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 119 Romanos 12 e dei algumas explicações, o que me deu oportunidade para expor a relação entre a fé e a prática e para afirmar que as doutrinas da graça se harmonizam com a vida consagrada e levam à santidade do coração e da vida. Julguei necessário isto, pois do ponto elevado que eu tinha ocupado por alguns dias, temi que o povo se desviasse para o antinomismo, extremo tão perigoso como o arminianismo, se não mais". Tome em consideração os pecados que parecem predominantes na igreja e na sua congregação – Mundanismo, cobiça, negligência na oração, ira, orgulho, falta de amor fraternal, calúnia e outros males semelhantes. Leve em conta, afetuosamente, as provações do seu povo, e busque um bálsamo para as suas feridas. Não é necessário descer a minúcias, quer na oração, quer no sermão, quanto a essas provações dos freqüentadores da sua igreja, embora fosse esse o costume de um respeitável ministro que foi bispo nestas cercanias, e já foi para o céu. Em seu abundante amor por seu povo, costumava fazer tantas alusões a nascimentos, mortes e casamentos ocorridos com o seu rebanho, que um dos prazeres dos seus ouvintes assíduos deve ter consistido em descobrir a quem o ministro se referia nas várias partes da sua oração e do seu sermão. Vindo dele, isso era tolerado, e até admirado – mas, de nós seria ridículo. Um patriarca pode fazer com propriedade o que um jovem deve evitar escrupulosamente. O venerando clérigo que acabo de mencionar tinha aprendido essa arte de particularizar do seu pai, pois era de uma família em que os filhos, tendo notado alguma coisa particular ocorrida durante o dia, diziam uns aos outros: "Temos que esperar até o culto doméstico da noite, quando ficaremos sabendo tudo sobre isso". Mas estou fazendo digressão; este caso mostra como um excelente hábito pode degenerar em defeito, mas a regra que registrei não é afetada por ele. Em conjunturas particulares, ocorrerão certas provações a muitos dos freqüentadores dos cultos, e visto que essas aflições atrairão a sua mente para novos campos de pensamento, você agirá mal se for surdo ao seu chamamento.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 120 Repito, devemos observar o estado espiritual de nossos ouvintes, e, se notarmos que eles estão caindo numa condição de infidelidade; se temermos que eles correm o perigo de serem contaminados por alguma heresia perniciosa ou alguma imaginação perversa; se de fato alguma coisa, no caráter fisiológico da igreja como um todo, chocar a nossa mente – devemos apressar-nos a preparar um sermão que, pela graça de Deus, possa sustar a praga. Essas coisas são indicações, entre os ouvintes, que o Espírito de Deus dá ao pastor cuidadoso e cumpridor quanto ao seu curso de ação. O pastor cuidadoso examina com freqüência o seu rebanho, e orienta o seu modo de tratá-lo de acordo com o estado em que o encontra. Estará apto para fornecer com parcimônia um tipo de alimento, outro tipo com maior abundância, e remédio na devida quantidade, conforme o seu juízo experimentado achar necessário ou um ou outro. Estaremos bem orientados, se simplesmente nos associarmos ao "grande Pastor das ovelhas". Todavia, não permitamos que a nossa pregação feita de modo bem adaptado ao nosso povo degenere, assumindo a forma de pura reprimenda. Chamam o púlpito de "Cidadela dos Covardes", e este nome lhe vai bem em alguns aspectos, especialmente quando estultos sobem à plataforma e injuriosamente insultam os ouvintes expondo as suas faltas ou fraquezas à irrisão pública. Há uma personalidade – uma personalidade ultrajante. frívola e injustificável – que deve ser zelosamente evitada. É terrena, grosseira, e deve ser condenada sem limitação de palavras. Ao passo que há outra personalidade sábia, espiritual, celeste, que deve ser almejada incessantemente. A Palavra de Deus é mais aguda que qualquer espada de dois gumes, e, portanto, irmãos, é preciso deixar que a Palavra de Deus fira e mate, não havendo necessidade de que vocês mesmos cortem com palavras e atitudes. A verdade de Deus é penetrante. Deixem que ela penetre os corações dos homens sem acréscimos ofensivos da parte de vocês. É retratista de mau gosto aquele que precisa escrever o nome
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 121 embaixo do retrato quando este é pendurado na sala de visitas da família onde a própria pessoa retratada tem o seu lugar para sentar-se. Levem os seus ouvintes a perceberem que estão falando deles, sem contudo referirse aos seus nomes nem mesmo no mais remoto grau, e sem apontar para eles. Talvez ocorram ocasiões em que vocês podem ser forçados a ir ao ponto a que chegou Hugh Latimer quando, falando sobre suborno, disse: "Aquele que aceitou uma bacia e um jarro de prata como suborno pensa que isto nunca virá à luz. Mas ele pode saber que eu sei disso, e não só eu; há outros mais que o sabem. Oh, subornador! Oh, suborno! Quem assim recebe peitas nunca foi boa gente; e nem posso acreditar que o subornador possa vir a ser bom juiz". Aí há tanta reticência prudente como revelação ousada. Se vocês não forem além disso, ninguém se atreverá, em nome do decoro, a acusá-lo de personalidade severa demais. A seguir, observando o texto, o ministro deve considerar quais foram os seus tópicos anteriores. Seria insensato insistir perpetuamente numa doutrina em detrimento das outras. Alguns dos nossos irmãos mais profundos podem ser capazes de tratar do mesmo assunto numa série de pregações, e, com um giro do caleidoscópio, podem ser capazes de apresentar novas formas de beleza sem nenhuma alteração do assunto, mas a maioria de nós, dotada de habilidades menos férteis, achará melhor fazer estudos variados, e aplicar-se a mais ampla gama de verdades. Freqüentemente eu olho a lista dos meus sermões para ver se alguma doutrina escapou à minha atenção, ou se alguma graça cristã foi negligenciada em minhas ministrações. É bom averiguar se não temos sido demasiado doutrinários ultimamente, ou insuficientemente práticos, ou exclusivamente experimentais. Não desejamos degenerar até sermos antinomistas, nem, por outro lado, queremos rebaixar-nos à condição de simples mestres de fria moralidade, mas a nossa ambição é dar prova cabal do nosso ministério. Gostaríamos de dar a cada porção da Escritura aquela participação do nosso coração e da nossa cabeça que ela merece.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 122 Doutrina, preceitos, história, tipologia, salmos, provérbios, experiências, exortações, promessas, convites, ameaças, repreensão – gostaríamos de incluir o conjunto completo da verdade inspirada no âmbito dos nossos ensinos. Aborreçamos toda unilateralidade, todo exagero de uma verdade e menosprezo de outra, e esforcemo-nos para pintar o retrato da verdade com traços balanceados e cores mescladas, para que não a desonremos apresentando distorção em vez de simetria, e uma caricatura em lugar de uma cópia fiel. Supondo, contudo, irmão, que você orou naquele seu pequeno quarto, lutou muito e suplicou demoradamente, pensou no povo e nas suas necessidades, e ainda não pôde encontrar o texto – bem, não se perturbe com isso, nem dê lugar ao desespero. Se você tivesse que ir à guerra às suas expensas, ser-lhe-ia uma desgraça ficar sem pólvora, estando tão perto a batalha, mas como compete a seu Comandante prover o necessário, não há dúvida de que oportunamente distribuirá a munição. Se você confiar em Deus, Ele não falhará com você; não pode falhar. Continue clamando e velando, pois ao estudante industrioso o auxílio celestial é certo. Se você tivesse ficado andando para cima e para baixo ociosamente a semana inteira, e não tivesse se preocupado em prepararse bem, não poderia esperar a ajuda divina; mas, se fez o melhor que pôde, e agora está esperando saber a mensagem do seu Senhor, o seu rosto jamais sofrerá vexame. Irmãos, ocorreram-me dois ou três incidentes que talvez lhes pareçam estranhos, mas, então, eu sou estranho. Quando eu residia em Cambridge, tive que pregar certa noite, como de costume, num povoado próximo aonde eu tinha que ir a pé. Depois de ler e meditar o dia todo, não pude dar com o texto certo. Fizesse o que fizesse, nenhuma resposta vinha do oráculo sagrado, nenhuma luz raiava do Urim e Tumim; eu orava, meditava, ia de um versículo a outro, mas a mente não pegava nada, ou eu estava, como Bunyan diria, "muito virado e revirado em meus pensamentos". Em dado momento fui até a janela e olhei para fora. No outro lado da rua estreita em que eu morava, vi um pobre canário
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 123 solitário no telhado, cercado por um bando de pardais que o bicavam como se o quisessem despedaçar. Naquele momento o versículo me veio à mente – "A minha herança é para mim ave de várias cores; andam as aves de rapina contra ela em redor". Saí dali com a maior serenidade possível, ponderei a passagem durante minha longa e solitária caminhada, e preguei acerca do povo peculiar, e sobre as perseguições movidas por seus inimigos, e o fiz com liberdade e tranqüilidade para mim, e creio que para conforto dos meus rústicos ouvintes. O texto foi-me enviado, se não pelos corvos, certamente pelos pardais. Noutra ocasião, quando estava trabalhando em Waterbeach, tinha pregado domingo de manhã, e tinha ido para casa, para almoçar com um membro da igreja, como costumava. Ocorre, porém, que havia três cultos, e, infelizmente, o sermão da tarde vinha tão em cima do da manhã, que era difícil preparar a alma, especialmente quando o almoço é uma necessidade, mas séria inconveniência, quando se requer cérebro claro. Que pena! Aqueles cultos à tarde em nossas aldeias inglesas eram geralmente um melancólico desperdício de esforço. O rosbife e o pudim pesam na alma dos ouvintes, e o próprio pregador fica amortecido em seus processos mentais, enquanto a digestão reclama o domínio da hora. Graças a uma cuidadosa medida de dieta, mantive-me naquela ocasião bem animado e vigoroso, mas, para minha consternação, vi que se me fora a linha de pensamento elaborada previamente. Não consegui achar a pista do sermão que tinha preparado, e espremi a testa quanto pude, mas o tópico perdido não me vinha. O tempo era curto, a hora chegava, e um tanto alarmado eu disse ao honesto lavrador que, por minha vida, eu não conseguia lembrar o que tencionara pregar. "Ah!, exclamou ele, '"não tem importância; esteja certo de que terá uma boa palavra para nós". Justo naquele momento, um tição em brasa caiu fora do fogo da lareira a meus pés, enchendo de fumaça os olhos e o nariz da gente. "Aí", disse o lavrador, "aí está o texto para o senhor. Não é um tição arrebatado do incêndio'?" Não, pensei, não foi tirado, pois saltou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 124 fora sozinho. Ali estava um texto, uma ilustração, e um pensamento dominante, como um indez no ninho, chamariz de mais ovos. Veio-me maior luz, e certamente o sermão não foi pior do que as minhas efusões bem preparadas; foi melhor no melhor sentido, pois mais tarde vieram um ou dois declarar que se despertaram e se converteram com o sermão daquela tarde. Sempre considerei feliz circunstância ter esquecido o texto sobre o qual planejara pregar. Na rua New Park uma vez passei por uma experiência singular, da qual há testemunhas presentes nesta sala. Eu tinha passado com felicidade por todas as partes iniciais do culto de domingo à noite, e estava anunciando o hino anterior ao sermão. Abri a Bíblia para achar o texto que eu tinha estudado cuidadosamente como o tópico do discurso, quando na página oposta outra passagem da Escritura saltou sobre mim como um leão de uma moita, com muitíssimo mais poder do que eu sentira ao considerar o texto que havia escolhido. O povo cantava e eu suspirava. Eu estava espremido de ambos os lados, e minha mente pendia como em pratos de balança. Naturalmente eu estava desejoso de seguir a trilha que tinha planejado cuidadosamente, mas o outro texto não queria aceitar recusa, e parecia puxar-me pela orla do casaco, gritando: "Não, não! Você tem que pregar sobre mim. Deus quer que você me siga". Eu deliberava dentro de mim quanto ao meu dever, pois não queria ser nem fanático nem incrédulo, e por fim pensei comigo mesmo: "Bem, eu gostaria de pregar o sermão que preparei, e é grande risco meter-me a tragar nova linha de pensamento, mas como esse texto insiste em constranger-me, talvez seja do Senhor, e portanto me aventurarei com ele, venha o que possa vir". Quase sempre anuncio as minhas divisões logo depois do exórdio, mas nessa ocasião, contrariamente ao meu costume, não o fiz, pela razão que talvez alguns de vocês adivinhem. Passei pelo primeiro subtítulo com considerável liberdade, falando perfeitamente, de modo improvisado, quanto ao pensamento e à palavra. O segundo ponto foi tratado com a consciência de um poder incomum, tranqüilo e eficaz, mas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 125 eu não tinha idéia do que seria ou poderia ser o terceiro, pois o texto já não oferecia mais conteúdo, e eu nem poderia dizer agora o que teria feito, se não ocorresse um fato que eu nunca teria imaginado. Tinha-me metido em grande dificuldade obedecendo ao que julgava ser um impulso divino, e me sentia relativamente sossegado sobre isso, crendo que Deus me socorreria, e sabendo que ao menos poderia encerrar a reunião se não houvesse mais nada que dizer. Não tive que ficar deliberando, pois de repente ficamos em completa escuridão – o gás se acabara, e como os corredores da igreja estavam repletos de gente, e o lugar todo estava superlotado; havia grande perigo, mas também houve grande bênção. Que deveria fazer eu então? Os presentes assustaram-se um pouco, mas eu os tranqüilizei na hora dizendo-lhes que não se alarmassem por faltar a luz, pois logo seria reacendida, e quanto a mim, como não tinha manuscrito, podia falar com luz ou sem luz, desde que eles tivessem a bondade de sentar-se e ouvir. Se o meu discurso fosse muito elaborado, seria absurdo continuá-lo, e assim, no aperto em que eu estava, fiquei livre do embaraço. Voltei-me mentalmente para o bem conhecido texto que fala do filho da luz andando nas trevas, e do filho das trevas andando na luz, e vi que se me derramavam observações e ilustrações apropriadas, e quando as luzes se acenderam, vi diante de mim um auditório tão arrebatado e subjugado como nenhum homem jamais viu em sua vida. O estranho nisso tudo foi que, passadas algumas reuniões da igreja, duas pessoas foram à frente para fazer a sua confissão de fé, e declararam que foram convertidas naquela noite. A primeira deveu a sua conversão à primeira parte da pregação, sobre o novo texto que me viera, e a outra atribuiu o seu despertamento à última parte, ocasionada pela súbita escuridão. Assim, vocês vêem, a Providência favoreceu-me. Deixei-me aos cuidados de Deus, e os arranjos que Ele fez apagaram a luz na hora certa para mim. Alguns podem ridicularizar-me, mas eu adoro o Senhor; outros podem criticar-me, mas eu me regozijo.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 126 Qualquer coisa é melhor do que a mecânica produção e pregação de sermões, em que a direção do Espírito é praticamente ignorada. Todos os pregadores usados pelo Espírito Santo, não tenho dúvida, terão dessas recordações agrupando-se em torno do seu ministério. Portanto, digo: observem o curso da Providência; entreguem-se à orientação e ao auxílio do Senhor. Se tiverem feito solenemente o melhor que puderam para conseguir um texto, e o assunto não lhes vem, subam ao púlpito firmemente convictos de que receberão uma mensagem quando chegar a hora, mesmo que não tenham uma palavra naquele momento. Na biografia de Samuel Drew, famoso pregador metodista, lemos: "Detendo-se na casa de um amigo em Cornwall, depois da pregação, uma pessoa que assistira o culto, fazendo-lhe a observação de que, naquela ocasião, ele sobrepujara a sua capacidade habitual, confirmandolhe outros a mesma opinião, disse o Sr. Drew: "Se é verdade, é a coisa mais singular, porque o meu sermão foi pregado sem qualquer meditação prévia. Fui para o púlpito com a intenção de falar-lhes baseado noutro texto, mas, olhando a Bíblia que estava aberta, a passagem sobre a qual acabam de me ouvir, "Prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus", prendeu a minha atenção com tanta força que pôs em fuga as minhas idéias anteriores; e, conquanto eu nunca antes tivesse considerado aquela passagem, resolvi de imediato fazê-la o assunto do meu discurso. O Sr. Drew fez bem em ser obediente à direção celestial. Meus irmãos, em certas circunstâncias vocês se sentirão absolutamente compelidos a porem de lado o discurso bem estudado, e a confiarem no presente socorro do Espírito Santo, empregando alocução puramente improvisada. Talvez se vejam na situação do finado Kingman Nott, quando pregava no Teatro Nacional de Nova York. Numa de suas cartas ele diz: "O edifício estava abarrotado de gente, mormente de jovens e meninos do tipo mais grosseiro. Fui com o sermão em mente, mas logo que cheguei no palco, saudado com "Eh! eh!", e vendo a heterogênea e ruidosa multidão com que tinha que lidar, deixei de lado todos os pensamentos do sermão, e tomando a parábola do filho pródigo,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 127 tentei interessar nela os presentes, e consegui manter a maior parte deles dentro da casa e toleravelmente atentos". Que simplório teria sido ele se tivesse perseverado em sua inadequada preleção! Irmãos, rogo-lhes, creiam no Espírito Santo, e levem à prática a sua fé. Como adicional assistência prestada a um pobre pregador encalhado, incapaz de fazer sua mente navegar por falta de uma ou duas ondas de pensamento, recomendo-lhe, em tal caso, voltar insistentemente à Palavra de Deus, lendo um capítulo e ponderando seus versículos um por um; ou escolher um versículo, e exercitar bem a sua mente nele. Talvez não encontre o texto do seu sermão no versículo ou no capítulo que está lendo, mas a palavra certa lhe virá mediante o engajamento ativo da sua mente em assuntos santos. Conforme a relação dos pensamentos uns com os outros, um pensamento induzirá outro, e outro, até passar uma longa procissão deles diante da sua mente, dos quais um ou outro será o tema predestinado. Leia também bons e sugestivos livros, e eleve a sua alma através deles. Se os homens querem bombear água com uma bomba não usada recentemente, primeiro despejam água nele, e a bomba funciona. Mergulhe num dos puritanos, e estude completamente a obra, e logo se verá como um pássaro em vôo, mentalmente ativo e cheio de movimento. Deixe-me observar, porém, a modo de precaução, que devemos estar treinando sempre a busca de textos e o preparo de sermões. Devemos constantemente preservar a santa atividade das nossas mentes. Ai do ministro que ouse desperdiçar uma hora sequer. Leia o Essay on the Improvement of Time (Ensaio sobre o aproveitamento do tempo), de John Foster, e tome a decisão de nunca perder um segundo. O homem que perambula para cima e para baixo, de segunda-feira de manhã até sábado de noite, e sonha indolentemente que o texto do seu sermão lhe será enviado por um mensageiro angélico na última ou na penúltima hora da semana, está tentando a Deus, e merece ficar emudecido no dia do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 128 Senhor. Como ministros, não temos lazer; nunca estamos de folga, mas permanecemos em nossas torres de vigia dia e noite. Estudantes, digo-lhes solenemente, nada os escusará da mais rígida economia de tempo; desperdiçá-lo é um perigo para vocês. A folha do seu ministério logo fenecerá, a menos que, como o varão bemaventurado do Salmo primeiro, vocês meditem na lei do Senhor de dia e de noite. Desejo ansiosamente que vocês não joguem fora tempo em dissipação religiosa, ou em mexericos e em conversa frívola. Cuidado para não ficarem correndo desta reunião para aquela, escutando meras parolices, colaborando assim na indústria de inflar tagarelas. O homem que é grande nos salões de chá, nas festas noturnas e nas excursões da Escola Dominical, geralmente é pequeno em todos os demais lugares. O preparo para o púlpito é a primeira ocupação de vocês, e se negligenciarem nisso, não inspirarão confiança em si, nem no seu ministério. As abelhas produzem mel de manhã à noite, e nós temos que estar sempre armazenando provisões para o nosso povo. Não confio no ministério que ignora a laboriosa preparação. Quando viajávamos pelo norte da Itália, o nosso cocheiro dormiu na carruagem, e quando o chamamos de manhã, ergueu-se desperto, estalou o chicote três vezes, e disse que estava pronto. Não gostei muito de tão rápidos aprestos pessoais, e preferia que ele tivesse dormido noutro lugar, ou que eu ocupasse outro assento. Vocês que estão prontos para pregar em três tempos, perdoem-me se me sentar num banco em qualquer outra parte. O exercício mental costumeiro com vistas ao nosso trabalho é aconselhável. Os ministros devem ser sempre diligentes, principalmente no bom aproveitamento das oportunidades. Vocês, irmãos, às vezes não se acham maravilhosamente preparados para pregar? O Sr. Jay disse que quando se sentia nessas condições, costumava pegar papel e anotar textos e divisões de sermões, e guardá-los acumulados para lhe prestarem serviço nas ocasiões em que a sua mente não estivesse tão bem disposta assim. O chorado Thomas Spencer escreveu: "Conservo um pequeno livro em que anoto cada texto
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 129 da Escritura que me vem à mente com poder e dulçor. Se sonhasse com uma passagem da Escritura, eu também a anotaria, e quando me ponho à escrever, examino o livro, e nunca me acho em dificuldade quanto a um assunto". Estejam atentos em busca de assuntos quando andarem pela cidade ou pelo campo. Reflitam sobre este exemplo: "Fui induzido a um proveitoso impulso de meditação, sobre a maneira como o nosso bom Pastor cuida do Seu rebanho, ao ver alguns cordeiros expostos ao frio e uma pobre ovelha perecer por não receber os devidos cuidados." – Andrew Fuller's Diary (Diário de A. Fuller). Mantenham sempre os olhos e os ouvidos abertos, e ouvirão e verão anjos. O mundo está repleto de sermões – peguem-nos no vôo. O escultor crê, sempre que vê um rude bloco de mármore, que nele se esconde uma nobre estátua, e que basta desbastar as superfluidades para revelá-la. Assim também creiam vocês que dentro de cada vagem de todas as coisas há a amêndoa de um sermão para quem for sábio. Sejam sábios, e vejam o celeste em seu molde terreno. Ouçam as vozes dos céus, e as traduzam para a língua dos homens. Sejam sempre, ó homens de Deus, pregadores que fazem provisões para o púlpito, em todas as províncias da natureza e da arte, armazenando e preparando material toda hora e em todas as estações. Perguntam-me se é boa coisa anunciar os temas preparados e publicar listas de sermões previamente planejados. Respondo: Cada homem em sua ordem. Não sou juiz dos outros. Mas não me atrevo a tentar tal coisa, pois incorreria em memorável fracasso se me aventurasse a fazê-lo. Os precedentes vão muito contra a minha opinião, sobressaindo-se as séries de discursos de Matthew Henry, John Newton, e de um batalhão de outros mais. Contudo, só posso falar das minhas impressões pessoais, e deixo que cada qual seja a sua própria lei. Muitos teólogos eminentes deram valiosos cursos de sermões sobre tópicos ordenados previamente, mas nós não somos eminentes, e devemos aconselhar a outros que são como nós a serem cautelosos sobre como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 130 agir. Não ouso anunciar sobre o que pregarei amanhã, e muito menos sobre o que pregarei daqui a seis semanas ou seis meses, sendo que em parte a razão é esta – que tenho consciência de que não possuo aqueles dons peculiares que são necessários para interessar uma assembléia num assunto ou numa série de assuntos durante qualquer extensão de tempo. Irmãos de extraordinária capacidade de pesquisa e de profunda cultura podem fazê-lo, e irmãos que não possuem nada disso, e sem bom senso, podem ter a pretensão de fazê-lo, mas eu não posso. Sou obrigado a fazer grande parte da minha força depender da variedade, antes que da profundidade. É questionável se a grande maioria dos pregadores de temas em série não faria melhor queimando os seus programas, se quisessem ter êxito. Tenho nítida recordação, aliás, fúnebre recordação, de certa série de conferências sobre Hebreus que causaram profunda impressão em minha mente, mas da mais indesejável espécie. Muitas vezes tenho desejado que os hebreus tivessem guardado para si mesmos a Epístola aos Hebreus, pois ela deixou enfarado um pobre rapaz gentio. Quando se tinham apresentado sete ou oito conferências da série, só as pessoas muito bondosas podiam agüentá-las; estas naturalmente declaravam que nunca tinham ouvido exposições mais valiosas, mas aos de julgamento mais carnal parecia que cada sermão ficava mais enfadonho. O escritor, naquela epístola, exorta-nos a suportar a palavra de exortação, e foi o que fizemos. Serão como aquele todos os cursos de sermões? Talvez não, mas temo que as exceções são poucas, pois até se diz daquele maravilhoso expositor, Joseph Caryl, que começou as suas famosas preleções sobre Jó com oitocentos ouvintes, e terminou o livro com apenas oito! Um pregador profético alongou-se tanto sobre "a ponta pequena" de que fala Daniel, que certo domingo de manhã só lhe restaram sete ouvintes. Sem dúvida achavam "Estranho que uma harpa de mil cordas tocasse no mesmo tom por tanto tempo".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 131 Comumente, e para homens comuns, parece-me que discursos previamente organizados em série são um erro, nunca passam de benefício aparente, e geralmente são um verdadeiro mal. Certamente percorrer uma longa epístola requer muitíssimo gênio do pregador, e um mundo de paciência da parte dos ouvintes. Sinto-me impulsionado a fazer uma consideração mais profunda daquilo que acabo de dizer: Tenho a impressão de que muitos pregadores vigorosos e ardentes achariam que temas programados são grilhões. Se o pregador anuncia para o próximo dia do Senhor um tópico cheio de alegria, que requer vivacidade e exaltação de espírito, pode bem acontecer que, por várias causas, se sinta num tristonho e sobrecarregado estado mental; apesar disso, tem que pôr vinho novo no seu velho cantil e ir para a festa de casamento usando roupa de pano de saco e cinzas, e pior que tudo, pode ser obrigado a repetir isso um mês inteiro. É assim que deve ser? É importante que o orador esteja em sintonia com o seu tema; como, porém, assegurar-se isto, a não ser deixando a escolha do tópico às influências que operem na ocasião? O homem não é uma máquina a vapor correndo sobre trilhos de metal, e é insensato fixá-lo num encaixe. Grande parte do poder do pregador consiste em sua alma estar em harmonia com o assunto, e eu teria receio de determinar um assunto para uma certa data, pois, ao chegar a ocasião, poderia não estar na mesma clave. Além disso, não é fácil ver como um homem pode demonstrar dependência da direção do Espírito de Deus, se já prescreveu sua própria rota. Talvez vocês digam: "Que singular objeção, pois, por que não confiar nEle por vinte semanas se confia por uma?" Certo, mas nunca tivemos uma promessa para garantir-nos essa fé. Deus promete dar-nos graça conforme os nossos dias, mas nada diz de dotar-nos de um fundo de reserva para o futuro. "Dia a dia o maná forrava o chão; oh, tratem de aprender bem a lição!"
Exatamente assim nos virão nossos sermões, vigorosos, vindos do céu, quando necessário. Tenho zelo quanto a qualquer coisa que lhes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 132 impeça a dependência diária do Espírito Santo, e portanto registro a opinião já dada. A vocês, meus jovens irmãos, sinto-me seguro ao dizerlhes com autoridade: Deixem as ambiciosas tentativas de elaboradas séries de discursos aos mais velhos e mais capazes. Temos apenas uma pequena porção de ouro e prata mental; invistamos o nosso pequeno capital em mercadorias úteis, que alcancem mercado à disposição, e deixemos que os negociantes mais ricos comerciem com artigos mais caros e mais difíceis de sair. Não sabemos o que o dia trará – esperemos pelo ensinamento diário, e não façamos nada que nos impeça a utilização dos materiais que a providência pode lançar em nosso caminho hoje ou amanhã. Talvez vocês indaguem se deveriam pregar sobre textos que outras pessoas escolhem e pedem que preguem sobre eles! Minha resposta seria: como regra geral, nunca; e se houver exceções, que sejam poucas. Permitam-me lembrar-lhes que vocês não cuidam de uma loja à qual os fregueses podem vir e fazer os seus pedidos. Quando um amigo sugere um tópico, pensem bem, e considerem se é apropriado, e vejam se ele lhes vem com poder. Recebam o pedido com cortesia, pois é seu dever agir como cavalheiros e cristãos. Mas, se o Senhor a quem vocês servem não lançar a Sua luz sobre o texto, não preguem sobre ele, seja quem for que queira persuadi-los. Estou absolutamente certo de que, se esperarmos do Senhor os nossos assuntos, e fizermos disso objeto de oração, para sermos guiados retamente, seremos conduzidos pelo caminho certo. Mas se nos inflarmos com a idéia de que nós mesmos podemos fazer facilmente a escolha, veremos que até mesmo na seleção de um assunto, sem Cristo nada podemos fazer. Esperem no Senhor, irmãos, ouçam o que Ele quer falar, recebam a palavra diretamente da boca de Deus, e então partam como embaixadores recém-enviados pela corte celestial. "Esperai, pois, no Senhor."
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A ARTE DE ESPIRITUALIZAR Muitos que escrevem sobre homilética condenam em termos sem limites até a ocasional espiritualização de um texto. * "Escolha textos", dizem eles, "que dêem um sentido claro, literal; jamais viaje além do sentido óbvio da passagem; nunca se permita acomodar ou adaptar; isso é artifício de homens de cultura artificial, um estratagema de charlatães, miserável exibição de mau gosto e de atrevimento." A quem honra, honra, mas humildemente peço licença para discordar dessa opinião erudita, entendendo que é mais fastidiosa do que correta, mais plausível do que verdadeira. Grandes porções de verdadeiro bem podem ser feitas tomando-se ocasionalmente textos esquecidos, singulares, notáveis, incomuns; e estou persuadido de que, se apelarmos para um júri de pregadores práticos e de sucesso, não teóricos, mas homens da luta, teremos a maioria a nosso favor. Pode ser que os doutos rabis desta geração sejam demasiado sublimes e celestiais para condescender com homens de baixa condição; mas nós, que não temos cultura de alto nível, ou profundo saber, ou encantadora eloqüência de que nos jactar, julgamos prudente usar o mesmo método que os poderosos proscreveram, pois vemos nele um dos melhores modos de ficar fora da rotina da formalidade insípida, e ele nos fornece uma espécie de sal com que podemos dar sabor a verdades desagradáveis. Muitos grandes conquistadores de almas acharam bom para dar estímulo ao seu ministério, e para prender a atenção dos seus ouvintes, uma vez ou outra irromper por um caminho até então não palmilhado. A experiência não lhes ensinou que laboravam em erro, mas o contrário. Dentro de certos limites, irmãos, não tenham medo de espiritualizar, ou de tomar textos singulares. Continuem tratando das passagens da *
"A pregação alegórica avilta o gosto e agrilhoa o entendimento, tanto do pregador como dos ouvintes." – Adam Clarke. A regra de Wesley é melhor: "Seja parcimonioso nas alegorizações ou espiritualizações".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 134 Escritura, e não dêem apenas o seu significado manifesto, como estão obrigados a fazer, mas também extraiam delas os sentidos que talvez não estejam na superfície. Aceitem o conselho se tem valor, mas lhes recomendo que mostrem aos seus críticos superfinos que nem todos prestam culto à imagem de ouro erigida por eles. Aconselho-vos a empregarem a espiritualização dentro de certos limites e fronteiras, mas lhes rogo que não se precipitem, sob a capa deste conselho, lançando-se a incessantes e irrefletidas "imaginações", como George Fox lhes chamaria. Não se afoguem porque foram recomendados a se banharem, nem se enforquem num carvalho porque se diz que o tanino dele extraído é valioso adstringente. Uma coisa permissível levada ao excesso é vício, exatamente como o fogo é bom servo sob a chapa do fogão, porém mau mestre quando furioso numa casa incendiada. O exagero, mesmo numa coisa boa, causa indigestão e desagrado e em nenhum outro caso este fato é mais patente do que neste diante de nós. A primeira regra a ser observada é esta – não force violentamente um texto com uma espiritualização ilegítima. É pecar contra o bom senso. Quão terrivelmente a Palavra de Deus tem sido malhada e mutilada por certo bando de pregadores que torturam textos, fazendo-os revelar o que doutro modo jamais teriam falado. O Sr. "precipitado", de que nos fala Rowland Hill em sua obra Village Dialogues (Diálogos de Aldeia), é apenas um caso típico de um cardume numeroso. Aquela sumidade é descrita como desincumbindo-se de um discurso baseado em, "Eis que três cestos brancos estavam sobre a minha cabeça", do sonho do padeiro de Faraó. Fundado nisso, o "chocho malho triplamente consagrado", como lhe chamaria um amigo meu, discursou sobre a doutrina da Trindade! Um estimado ministro de Cristo, venerado e excelente irmão, um dos mais instrutivos ministros no seu condado, contou-me que um dia deu pela ausência de um trabalhador e sua esposa das reuniões da sua igreja. Notou a ausência deles seguidamente, domingo após domingo, e certa segunda-feira, encontrando na rua o homem, disse-lhe: "Ora, João,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 135 não o tenho visto ultimamente". "Pois é", foi a resposta; "não estávamos tirando proveito do seu ministério como antes". "Verdade João? Lamento muito ouvir isso." "Bem, eu e minha mulher gostamos das doutrinas da graça, e daí ultimamente temos ido ouvir o Sr. Bawler." "Ah! você se refere ao bom homem da High Calvinist Meeting (União Hiper Calvinista)?" "Sim, senhor; e estamos tão contentes! Recebemos muito boi alimento ali, numa medida transbordante. Estávamos quase morrendo de fome sob o seu ministério – mas, sempre o respeitamos como homem, senhor." "Está bem, meu amigo; naturalmente vocês devem ir aonde possam obter bom proveito para sua alma; só espero que seja bom. Mas, como lhes foi domingo passado?" "Ah! foi um dia extremamente animador para nós, senhor. De manhã tivemos – não me parece bem contar-lhe isto – contudo, tivemos momentos realmente preciosos." "Sim, mas, que foi, João?" "Bem, senhor, o Sr. Bawler nos fez penetrar abençoadamente naquela passagem: "Quando te assentares a comer com um governador, ... põe uma faca à tua garganta, se és homem glutão". "Que foi que ele tirou dessa passagem?" "'Bem, senhor, posso dizer-lhe o que ele tirou dela, mas, primeiro eu gostaria de saber o que o senhor teria dito sobre ela." "Não sei, João; creio que dificilmente escolheria esse texto, mas se tivesse que falar sobre ele, diria que uma pessoa dada a comidas e bebidas deve ter cuidado com o que vai fazer quando estiver na presença de grandes homens, se não se arruinará. Mesmo nesta vida a glutonaria é danosa." "Ah!", disse o homem, "esta é a sua maneira de interpretá-la segundo a letra morta. Como eu disse à minha mulher outro dia, desde que começamos a ouvir o Sr. Bawler, a Bíblia abriu-se para nós, de modo que podemos ver nela muito mais do que víamos." "Sim, mas, que disse o sr. Bawler sobre aquela passagem?" "Bem, ele disse que o glutão é o recém-convertido que por certo tem tremenda fome de pregação, e sempre está querendo comida, mas nem sempre tem o devido cuidado quanto à qualidade da comida." "E depois, João?" "Ele disse que se o recém-convertido se sentasse diante de um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 136 governador – isto é, de um pregador legalista ou de outro homem de convicção semelhante – seria a pior coisa para ele." "Mas, e quanto à faca, João?" "Bem, o Sr. Bawler disse que é uma coisa muito perigosa ouvir pregadores legalistas, pois isto certamente ia arruinar a vida do ouvinte, e tanto faz cortar a sua garganta agora como depois!" O assunto era, suponho, acerca dos efeitos prejudiciais sobre os cristãos novatos que ouvem a outros pregadores, e não os da corrente hipercalvinista. E eis a moral dele deduzida: Seria melhor que o irmão em foco cortasse a garganta do seu ex-pastor do que ir ouvi-lo! Isto sim é notável acomodação do texto. Ó vós, críticos, entregamos esses cavalos mortos aos vossos dentes brutais! Estraçalhai-os e devorai-os como quiserdes; não vos censuraremos. Ouvimos falar de outro "ator" que interpretou assim "Provérbios 21.17: "Necessidade padecerá o que ama os prazeres; o que ama o vinho e o azeite nunca enriquecerá". O livro de Provérbios é um dos campos favoritos dos espiritualizadores, que com os provérbios se divertem. O nosso grande homem utilizou-se do provérbio desta maneira: "O que ama os prazeres", isto é, o cristão que usufrui os meios da graça, "necessidade padecerá", quer dizer, será pobre, mas pobre de espírito; "o que ama o vinho e o azeite", a saber, o que se alegra com as provisões da aliança, e desfruta o óleo e o vinho do evangelho, "nunca enriquecerá", isto é, não será rico em sua própria opinião", mostrando a excelência dos pobres de espírito, e como estes, gozarão os prazeres do evangelho – sentimento muito bom, mas os meus olhos carnais não conseguem vê-lo no texto. Todos vocês já sabem da famosa explicação que William Huntingdon deu de Isaías 11:8: "E brincará a criança de peito sobre a toca do áspide, e o já desmamado meterá a sua mão na cova do basilisco". "A criança de peito", isto é, o bebê na graça, "brincará sobre a toca do áspide", "o áspide" quer dizer o arminiano; "a toca do áspide" quer dizer a boca do arminiano." Segue-se então uma descrição do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 137 esporte em que as mentes simples são mais que um trunfo sobre a sabedoria arminiana. Os elementos que professam a outra escola teológica em geral tiveram o bom senso de não devolver o cumprimento, caso em que os antinomianos ver-se-iam competindo com os basiliscos, e veriam os seus opositores desafiá-los zombeteiramente à boca da cova deles. Tal abuso só serve para prejudicar os que o praticam. Há melhores modos de expor e salientar as diferenças teológicas do que essa palhaçada. Da estupidez estufada de orgulho surgem resultados ridículos. Talvez baste um exemplo. Um respeitável ministro disse-me outro dia que fazia pouco tempo estivera pregando à sua congregação sobre as "vinte e nove facas" de Esdras. Estou certo de que ele sabia manejar com discrição esses agudos instrumentos, mas não pude abster-me de dizerlhe que esperava que ele não tivesse imitado o sapiente intérprete que via naquele curioso número de facas uma referência aos "vinte e quatro anciãos" de Apocalipse. Diz uma passagem de Provérbios: "Por três coisas se alvoroça a terra, e a quarta não a pode suportar: Pelo servo, quando reina; e pelo tolo, quando anda farto de pão; pela mulher aborrecida, quando se casa; e pela serva, quando fica herdeira da sua senhora". Um enlevado espiritualizador declara que isso é um lindo quadro descritivo da obra da graça na alma, e mostra o que alvoroça os arminianos, e os põe em pé de guerra. "O servo, quando reina", isto é, pobres servos como nós, quando feitos reinantes com Cristo; o "tolo, quando está farto de pão", pobres tolos como nós, quando somos alimentados com o trigo mais excelente da verdade do evangelho; a "mulher aborrecida, quando se casa", isto é, o pecador, quando se une a Cristo: e a "serva quando fica herdeira da sua senhora", isto é, quando nós, pobres criadas que estávamos sob a lei, escravas, fomos acolhidas aos privilégios de Sara, e nos tornamos herdeiras da nossa senhora." Eis aí alguns espécimes de excentricidades eclesiásticas, as quais são tão numerosas e valiosas como as relíquias que todo dia,se juntam
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 138 com tanta abundância no campo de batalha de Waterloo, aceitas pelos mais ingênuos como inestimáveis tesouros. Mas já vos enfarei, e não quero desperdiçar mais o nosso tempo. É preciso admoestar-vos a repudiarem todo esse abominável absurdo! Esses devaneios desonram a Bíblia, são um insulto ao bom senso dos ouvintes e um aviltamento deplorável do ministro. Contudo, esta não é a espiritualização que lhes recomendamos, como igualmente o cardo que se ache no Líbano não é o cedro do Líbano. Evitem, irmãos, a infantil perda de tempo e a ultrajante torção de textos que farão de vocês sábios entre tolos, ou tolos entre sábios. A segunda norma é: nunca espiritualizem assuntos indecorosos. É preciso dizer isto, pois a família "Precipitado" nunca se sente mais em casa do que quando fala de maneira que faz ruborizar a face da modéstia. Os escaravelhos são espécies de besouros que procriam na imundícia, e esse tipo de criatura tem o seu protótipo entre os homens. Não é que me vem à memória neste momento um teólogo cheio de sabor, que se estendeu com maravilhoso gosto e com patética unção a respeito da concubina cortada em dez pedaços? Azedo como é, não poderia tê-lo feito melhor. Que coisas abomináveis têm sido ditas sobre alguns dos mais rudes e horripilantes símiles de Jeremias e Ezequiel! Onde o Espírito Santo é velado e repassado de pudor, estes homens tiram o véu e falam como só as línguas perversas se aventurariam a falar. Não sou melindroso, longe disso, mas as explicações do novo nascimento com analogias sugeridas por um pré-natal, exposições do rito da circuncisão, e minuciosas descrições da vida conjugal, causam-me indignação e fazem com que me sinta inclinado a ordenar como fez Jeú, que os desavergonhados sejam lançados abaixo desde a sua alta posição infelicitada por seu descarado despundonor. Sei que se diz, "A vergonha domina a quem o mal imagina", mas assevero que as mentes puras não devem ser expostas sequer ao mais leve sopro de indelicadeza proveniente do púlpito. A mulher de César tem que estar livre de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 139 suspeita, e os ministros de Cristo têm que estar sem nódoa em seu viver e sem mácula em seu falar. Cavalheiros, os beijos e abraços em que alguns pregadores se deleitam são repugnantes. É melhor deixar em paz consigo o livro de Cantares de Salomão, do que arrastá-lo à lama como se faz muitas vezes. Especialmente os jovens devem ser escrupulosa e zelosamente sóbrios e puros em suas palavras. A um idoso se perdoa, não sei bem por que, mas um jovem ficará completamente sem desculpa, se ultrapassar a linha estreita da delicadeza. Em seguida, em terceiro lugar, nunca espiritualizem uma passagem com o fim de mostrar que são extraordinariamente inteligentes. Tal intenção é iníqua, e o método empregado será uma tolice. Somente um egrégio simplório procurará ser notado fazendo o que nove entre dez poderiam fazer muito bem feito. Certo candidato uma vez pregou um sermão sobre a palavra "mas", esperando com isso captar a simpatia dos congregados que, pensou ele, seriam arrebatados pelos poderes de um irmão capaz de alargar-se tão maravilhosamente sobre uma simples conjunção. Seu assunto parece ter consistido no fato de que, não importa o que haja de bom no caráter de um homem, ou de admirável em sua posição, o certo é que existe alguma dificuldade, algum sofrimento com relação a todos nós. "Naamã era um grande homem diante do seu senhor, mas – ". Quando o orador desceu do púlpito, os oficiais disseram: "Bem, senhor, seu sermão foi deveras singular, mas – o senhor não é o homem para o lugar; podemos ver isto com clareza". Ai da inventiva quando é tão comum, e com ela põe uma arma nas mãos do próprio adversário! Lembre-se de que a espiritualização não é uma esplêndida exibição de talento, mesmo que você tenha competência para fazê-la bem, e de que, sem discrição, é o método que mais se presta para revelar a sua egrégia insensatez. Cavalheiros, se aspiram a emular Orígenes em suas interpretações extravagantes e ousadas, talvez seria bom ler antes a sua biografia e observar as tolices às quais a sua maravilhosa mente foi arrastada por
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 140 permitir que uma desenfreada fantasia usurpasse a autoridade absoluta do seu critério de julgamento. E se se meterem a competir com os vulgares declamadores de uma geração passada, deixem-me lembrar-lhes que hoje em dia o gorro e os sinos já não desfrutam o mesmo patrocínio de poucos anos atrás. Prosseguindo, a quarta advertência é – nunca pervertam a Escritura para dar-lhe um sentido inusitado, pretensamente espiritual, para que não seja achado culpado face àquela solene maldição que resguarda e fecha o rol dos livros divinamente inspirados. O Sr. Cook, de Maidenhead, sentiu-se obrigado a separar-se de William Huntingdon porque este interpretou o sétimo mandamento como palavras ditas pelo Senhor ao Seu Filho dizendo: "Não cobiçarás a mulher do diabo, isto é, do não eleito". Só se pode dizer – horrível! Talvez fosse um insulto à sua razão e à sua religião dizer, detestem pensar em tal profanação. Instintivamente vocês o evitam. Outra coisa mais – em nenhum caso permitam que os seus ouvintes esqueçam que as narrativas que vocês espiritualizam são fatos, e não apenas mitos ou parábolas. O sentido primário da passagem não deve afogar-se na torrente da sua imaginação; deve ser declarado definidamente e ter preeminência. A acomodação que fizer do texto nunca deverá eliminar o sentido original e próprio, nem mesmo empurrálo para um plano secundário. A Bíblia não é uma compilação de hábeis alegorias ou de instrutivas tradições poéticas; ensina fatos concretos e revela tremendas realidades. Faça com que a sua plena convicção desta verdade se manifeste a todos quantos acompanham o seu ministério. Serão péssimos dias para a igreja, se o púlpito vier a endossar a cética hipótese de que a Escritura Sagrada é apenas o registro de refinada mitologia, em que glóbulos da verdade se dissolvem em oceanos de pormenores poéticos e imaginários. Contudo, há um terreno legítimo para a espiritualização, ou seja, para o dom particular que leva os homens a espiritualizarem fatos. Por exemplo, muitas vezes tem sido demonstrado a vocês, irmãos, que os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 141 tipos oferecem amplo escopo ao exercício do talento santificado. Por que precisam andar por aí para encontrar "mulheres aborrecidas" sobre quem pregar, quando têm diante de si o tabernáculo no deserto, com todo o seu aparelhamento sagrado, as ofertas queimadas, as ofertas pacificas, e todos os diferentes sacrifícios que eram oferecidos perante o Senhor? Por que lutar por novidades. quando o templo e todas as suas glórias estão diante de vocês? A maior capacidade para a interpretação tipológica achará abundante emprego nos indubitáveis símbolos da Palavra de Deus, e será seguro praticar esse exercício, porque os símbolos foram ordenados por Deus. Quando tiverem exaurido todos os tipos do Velho Testamento, terão deixado ainda à sua disposição uma herança de mil metáforas. Benjamim Keach, em seu laborioso tratado, prova de maneira sumamente prática, que minas de verdades se ocultam nas metáforas da Escritura! A propósito, sua obra abre os flancos a muita crítica por fazer as metáforas, não só correrem com quatro, mas com muitas pernas, como um centípede; mas não merece a condenação que lhe imputa o Dr. Adam Clarke, quando diz que o livro de Keach fez mais que qualquer obra dessa natureza para rebaixar o gosto dos pregadores e do povo. Uma discreta explanação das alusões poéticas da Escritura Sagrada será muito aceitável aos seus ouvintes, e, com a bênção de Deus, não pouco proveitosa. Mas, supondo que tenham exposto todos os tipos geralmente aceitos, e que tenham esclarecido os emblemas e as expressões figuradas, o seu gosto por símiles e o seu prazer neles terão que ir dormir? De modo nenhum. Quando o autor sagrado vê mistério em Melquisedeque, e Paulo fala de Hagar e Sara desta forma: "O que se entende por alegoria", dão-nos precedente para a descoberta de alegorias bíblicas noutros lugares além dos dois mencionados. Na verdade, os livros históricos não somente nos dão aqui e ali uma alegoria, mas parecem em seu conjunto global arranjados com vistas ao ensino simbólico.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 142 O Sr. Andrew Juke, no prefácio da sua obra sobre os tipos em Gênesis, mostra como, sem violência, uma pessoa devota pode construir uma teoria extremamente elaborada: "Como base ou fundamento do que vem a seguir, primeiro se nos mostra o que provém do homem, e todas as formas de vida que, pela natureza ou pela graça, podem desenvolver-se da raiz do velho Adão. Este é o livro de Gênesis. Então vemos que, seja bom ou mau que veio de Adão, tem que haver redenção; assim um povo eleito pelo sangue do Cordeiro é salvo do Egito. Disso trata Êxodo. Conhecida a redenção, chegamos à experiência dos eleitos como tendo necessidade de acesso a Deus o Redentor no santuário, e o aprendizado do caminho para ele. Obtemos isto em Levítico. Depois, no deserto deste mundo, como peregrinos egressos do Egito, da casa da servidão, rumo à terra prometida além do Jordão, ficamos sabendo das provações da viagem, desde aquela terra de maravilhas e do saber humano até à terra que mana leite e mel. Este é o livro de Números. Em seguida vem o desejo de trocar o deserto pela terra melhor; a entrada na qual se sabe que, por algum tempo depois da redenção, os eleitos ainda evitam; respondendo ao desejo dos eleitos, em certo estágio, de conhecer o poder da ressurreição, para viverem, mesmo no presente, como nos lugares celestiais. Seguem-se as regras e os preceitos que devem ser obedecidos, se isso há de se fazer. Deuteronômio, reiteração da lei, segunda purificação, fala do modo de progredir. "Depois disso chega-se de fato a Canaã. Atravessamos o Jordão; experimentamos na prática a morte da carne, e o que significa sermos circuncidados, e desfazer-nos do opróbrio do Egito. Sabemos agora o que é ressuscitar com Cristo e lutar, não contra carne e sangue, mas contra os principados e as potestades nos lugares celestiais. Este é o livro de Josué. Então vem o fracasso dos eleitos nos lugares celestiais, fracasso resultante das alianças feitas com os cananeus, em vez de se sobreporem a eles. Juízes no-lo mostra. Depois, as diferentes formas de governo, que a igreja pode conhecer, passam em revista nos livros de Reis, desde o primeiro estabelecimento de governo em Israel até a sua extinção, quando, devido seu pecado, o governo da Babilônia sobrepuja o dos eleitos. "Conhecido isto, com toda a sua vergonha, vemos os remanescentes dos eleitos, cada qual de acordo com a sua capacidade, fazendo o que está a seu alcance para, se possível, restaurar Israel: uns, como Esdras, voltando para construir o templo, isto é, para restaurar as formas do culto verdadeiro;
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alguns vindo, como Neemias, para construir os muros, isto é, para restabelecer, com a permissão dos gentios, uma débil imitação da antiga comunidade política; enquanto em Ester um terceiro remanescente se vê cativo, mas fiel, salvo providencialmente, embora o nome de Deus (e isto é uma característica da sua condição) nunca apareça em parte alguma do registro todo".
Longe de mim recomendar-lhes que sejam fantasiosos como às vezes é, o engenhoso autor que acabo de citar, mercê da sua tendência para o misticismo, todavia, lerão a Palavra com interesse cada vez maior se forem leitores bastante atentos para notar o curso geral dos livros da Bíblia, e a sua subseqüência como sistema de tipos. Outrossim, a faculdade que possibilita o bom emprego da espiritualização consiste em generalizar os grandes princípios universais desdobrados em fatos diminutos e isolados. Esta é uma busca engenhosa, instrutiva e legítima. Talvez vocês não se decidissem a pregar sobre "pega-lhe pela cauda", mas a observação que disso nos vem é muito natural: "há um jeito certo de pegar cada coisa". Moisés pegou a serpente pela cauda, e assim há um modo de agarrar as nossas aflições e vê-las enrijecer-se em nossas mãos, transformando-se numa vara prodigiosa; há um modo de sustentar as doutrinas da graça, um modo de confrontar-nos com os ímpios, e assim por diante. Em centenas de incidentes escriturísticos podemos achar grandes princípios gerais que talvez em nenhum lugar estejam expressos com tantas palavras. Tomem os seguintes exemplos, fornecidos pelo Sr. Jay. Do Salmo 74:14, "Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto", ele ensina que os maiores inimigos do povo de Deus, povo peregrino, serão mortos, e de que a lembrança da misericórdia revigorará os santos. De Gênesis 35:8, "E morreu Débora, a ama de Rebeca, e foi sepultada ao pé de Betel, debaixo do carvalho cujo nome chamou "Alom-Bacute", ele discursa sobre bons servidores e sobre a certeza da morte. Com base em 2 Samuel 15:15, "Então os servos do rei disseram ao rei: Eis aqui os teus servos, para tudo quanto determinar o rei, nosso senhor", mostra ele que essa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 144 linguagem pode com propriedade ser adotada pelos cristãos, e dirigida a Cristo. Se alguém fizer objeção à forma de espiritualização que o Sr. Jay tão eficiente e judiciosamente se permitiu fazer, só pode ser uma pessoa cuja opinião não tem por que influir em vocês nem um pouco. Dentro da minha capacidade pessoal, tenho tomado a liberdade de fazer a mesma coisa, e os esboços dos meus sermões desse tipo podem ser encontrados em meu opúsculo Evening by Evening (Noite a Noite), e uma irrigação menos liberal em seu companheiro, Morning by Morning (Manhã a Manhã). Um notável exemplo de um bom sermão firmado numa base forçada e injustificável, é o de Everard, em seu Gospel Treasury (Tesouro do Evangelho). No discurso sobre Josué 15:16-17, onde as palavras são estas: "E disse Calebe: Quem ferir a Quiriate-Séfer, e a tomar, lhe darei a minha filha Acsa por mulher. Tomou-a pois Otniel, filho de Quenaz, irmão de Calebe; e deu-lhe a sua filha por mulher"; aqui o curso da elocução do pregador se baseia na tradução dos nomes próprios hebraicos, de maneira que ele propicia esta leitura: "Um bom coração disse: Quem ferir a cidade das letras, e a tomar, lhe darei a ruptura do véu. E Otniel viu nisso o tempo próprio ou a oportunidade de Deus, e se casou com Acsa, isto é, desfrutou a ruptura do véu, pelo que teve a bênção das fontes superiores e das fontes inferiores". Não haveria outro método para mostrar que devemos procurar o sentido interno da Escritura, e não ficar nas meras palavras, ou na letra do Livro? As parábolas do nosso Senhor, em sua apresentação e em seu vigor, fornecem o mais amplo escopo para a imaginação amadurecida e disciplinada, e se todas elas já passaram por vocês, ficam ainda os milagres, ricos de ensinos simbólicos. Não pode haver dúvida de que os milagres são sermões por meio de ações de nosso Senhor Jesus Cristo. Vocês têm Seus "sermões em palavras" em Seu ensino incomparável, e os Seus "sermões em atos" em Seus feitos sem par. Apesar de defeitos doutrinários, verão que Trench, sobre os milagres, é extremamente útil
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 145 nesta direção. Todas as poderosas obras de nosso Senhor estão repletas de ensinamentos. Tomem a história da cura do surdo-mudo. Os males que a pobre criatura padecia são eminentemente sugestivos quanto ao estado de perdigão do homem, e o modo de agir de nosso Senhor ilustra muito instrutivamente o plano da salvação. "Tirando-o à parte de entre a multidão" – é preciso fazer a alma dar-se conta da sua personalidade e individualidade, e deve ser levada a estar a sós. "Meteu-lhe os dedos nos ouvidos", indicando assim a fonte do defeito; os pecadores são convencidos do seu estado. "E, cuspindo" – o evangelho é um meio simples e desprezado, e o pecador, quanto à salvação, tem que se humilhar para recebê-la. "Tocou-lhe na língua", indicando também onde reside o defeito – o nosso senso de necessidade cresce em nós. "E, levantando os olhos ao céu" – Jesus lembrou a Seu paciente que todo o poder vem de cima – lição que todo suplicante deve aprender. "Suspirou", mostrando que as tristezas do Médico são os meios da nossa cura. Depois disse, "Efatá; isto é, abre-te" – eis aí a palavra eficaz da graça, que produz uma cura imediata, perfeita e duradoura. Tratem de aprender todas as lições desta única exposição, e sempre acreditem que os milagres de Cristo são uma grande galeria de quadros que ilustram a Sua obra entre os filhos dos homens. No entanto, seja isto uma instrução a todos quantos manuseiam parábolas ou metáforas, para que sejam discretos. O Dr. Gill é um personagem cujo nome deve ser sempre mencionado com honra e respeito nesta casa, em que seu púlpito ainda permanece, mas a sua exposição da parábola do filho pródigo parece-me ser absurda em alguns pontos. O douto comentador diz-nos que "o bezerro cevado" é o Senhor Jesus Cristo! A gente estremece ao ver a espiritualização chegar a isto. Depois há também a sua exposição da parábola do bom samaritano. O animal sobre o qual foi colocado o homem ferido é de novo o nosso Senhor, e os "dois dinheiros" que o bom samaritano deu ao hospedeiro
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 146 são o Velho e o Novo Testamentos, ou as ordenanças do batismo e da ceia do Senhor. A despeito desta precaução, vocês podem permitir grande amplitude na espiritualização a homens de raro temperamento poético, entre os quais João Bunyan. Cavalheiros, já leram alguma vez a espiritualização que João Bunyan fez do templo de Salomão? É uma realização sumamente notável, e mesmo sendo um pouco forçada, é repassada de santíssima ingenuidade. Tomem, como um espécime em particular, uma das suas mais rebuscadas explanações, e vejam se pode ser melhorada. É sobre "as folhas da porta do templo". "As folhas desta porta ou portal eram dobradiças, como já lhes disse, e assim, como foi sugerido, trazem consigo alguma significação. Por causa disto a pessoa, principalmente um novo discípulo, pode equivocar-se facilmente, pensando estar aberta toda a passagem, quando apenas uma parte o está, permanecendo três partes dela ainda sem se lhe revelar. Pois essas portas, como já disse, nunca antes foram abertas completamente, quero dizer, no antítipo; nunca o homem tinha visto todas as riquezas e a plenitude que há em Cristo. Assim digo que o recém-vindo, caso julgasse pela visão presente, especialmente se tivesse pequena capacidade de ver, poderia enganar-se facilmente; por conseguinte os novos discípulos ficam, na maioria, com um medo terrível de que nunca entrarão lá. "Que dizes, recém-vindo? Não é este o caso que se dá com a tua alma? Pois te parece que és muito grande, sendo na verdade tão grande, exageradamente inchado pecador! Mas, ó tu, pecador, não temas; as portas são dobradiças, e podem abrir-se mais, e depois abrir-se mais ainda. Portanto, ao chegares a esse portal, e imaginares que não há espaço suficiente para que entres, bate, e ela se te abrirá mais amplamente, e serás recebido (Lucas 11:9; João 6:37). Assim, pois, sejas quem fores, chegado à porta da qual o templo era um tipo, não te fies em tuas primeiras concepções das coisas, mas crê que há graça abundante. Ainda não sabes o que Cristo pode fazer; as portas são dobradiças. "Ele é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos" (Efésios 3:20). Os gonzos sobre os quais essas portas giram, eram, como lhes falei, de ouro; quer dizer que ambas giravam sobre motivos e impulsos de amor, e também suas aberturas eram ricas. Gonzos de ouro na porta, para Deus girar em torno deles. As ombreiras em que essas portas se fixavam eram de
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oliveira, dessa árvore gorda e oleosa, para mostrar que nunca se abrem com relutância ou com lentidão, como portas a cujos gonzos falta óleo. Elas estão sempre oleosas, e assim se abrem com facilidade e rapidez aos que batem. Daí se lê que Aquele que habita nessa casa faz dádivas e ama por Sua livre graça, e nos faz o bem de todo o coração. Sim, diz Ele, "alegrar-me-ei por causa deles, fazendo-lhes bem; e os plantarei nesta terra certamente, com todo o meu coração e com toda a minha alma" (Jer. 3:12,14,22; 32:41; Apoc. 21:6; 22:17). Portanto, o óleo da graça, simbolizada por esta oliveira, ou essas ombreiras de oliveira, em que estão fixas estas portas, fazem que elas se abram soltas ou francas para a alma."
Quando Bunyan revela o significado de serem as portas de faia, quem senão ele diria: "A faia é também a casa da cegonha, ave imunda, como Cristo é abrigo e amparo dos pecadores"? "Pois quanto à cegonha, diz o texto, a faia é sua casa; e Cristo diz aos pecadores que percebem sua necessidade de amparo: "Vinde a mim, e encontrareis descanso". Ele é um refúgio para os oprimidos, refúgio em tempo de aflição (Deut. 14:18; Lev. 11:19; Sal. 104:17 e 74:2-3; Mat. 11:27-28; Heb. 6:17-20)". Em sua "Casa da Floresta do Líbano" Bunyan é ainda mais enigmático, mas leva adiante a sua empreitada como nenhum outro homem poderia tê-lo feito. Ele acha que as três filas de colunas, de quinze colunas cada uma, são um enigma demasiado difícil para ele, e desiste, não porém antes de fazer algumas bravias tentativas sobre isso. O Sr. Bunyan é o principal, o maior, o chefe de todos os alegoristas, e não deve ser seguido por nós às profundezas da comunicação típica e simbólica. Ele era um mergulhador, nós não passamos de vadeadores; não devemos ir além dos nossos níveis de profundidade. Sinto-me tentado, antes de encerrar esta palestra, a dar um ou dois esboços de espiritualizações que conheci nos meus primeiros tempos. Nunca esquecerei um sermão pregado por um homem sem instrução, mas notável, que foi meu vizinho próximo no campo. Obtive dos seus próprios lábios as anotações do discurso, e eu esperava que permanecessem como puras notas, e nunca mais fossem usadas para pregação neste mundo. O texto era: "O avestruz, o mocho e o cuco".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 148 Talvez o texto não lhes dê a impressão de ter conteúdo muito rico; foi a impressão que me deu, e, portanto, perguntei inocentemente: "E as cabeças (i. é, divisões do sermão) como eram?" Ele respondeu astutamente: "Cabeças? Ora, torça os pescoços das aves, e terá três pura e simplesmente: o avestruz, o mocho e o cuco". Mostrou que essas aves eram imundas sob a lei, e claros tipos dos pecadores impuros. Os avestruzes são pessoas que roubam sorrateiramente, e também pessoas que adulteram as suas mercadorias e trapaceiam, enganando o próximo às escondidas, sem que este suspeite que elas são uns patifes. Quanto aos mochos, tipificam os ébrios, ativos de noite, mas de dia quase dão com a cabeça num poste, de tão sonolentos. Há mochos entre os cristãos professos também. O mocho depenado é uma ave muito pequena. Só parece grande porque tem muitas penas. Assim, muitos crentes professos são só penas, e se você pudesse arrancar as suas jactanciosas profissões de fé, bem pouca coisa sobraria deles. A seguir, os cucos são os membros do clero da igreja, que dão sempre a mesma nota, toda vez que abrem a boca na igreja, e vivem à custa dos ovos de outros pássaros, com as suas taxas eclesiásticas e com os dízimo. Os cucos são também, penso eu, os crentes no livre arbítrio, no poder da vontade, que estão sempre dizendo: "cum-pra-tu-do-tu-do". Não é isso na verdade uma coisa muito boa? Contudo, vindo do homem que pregou o sermão, não pareceu nem notável nem extraordinário. O mesmo venerável irmão pregou um sermão igualmente singular, mas muito mais original e útil. Os que o ouviram lembrá-lo-ão até o dia da sua morte. Baseou-se no texto: "O preguiçoso não assará a sua caça". O bom ancião inclinou-se no alto do púlpito, e disse: "Então, meus irmãos, ele era mesmo um mandrião!" Esse foi o exórdio. Depois prosseguiu dizendo: "Ele foi a uma caçada e, depois de muita dificuldade, pegou uma lebre, e foi preguiçoso demais para assá-la. Era um sujeito preguiçoso mesmo!" O homem nos fez sentir quão ridícula é uma preguiça assim, e depois disse: "Mas vocês não têm autoridade para acusar esse homem,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 149 pois fazem justamente a mesma coisa. Ouvem falar da vinda de um pregador popular de Londres, atrelam o cavalo à carroça, viajam vinte ou trinta quilômetros para ouvi-lo e, depois de terem ouvido o sermão, esquecem-se de tirar proveito dele. Cagam a lebre e não a assam; vão cagar a verdade e depois não a recebem". Daí continuou, para mostrar que, assim como a carne precisa de cozimento para ficar boa para ser assimilada pelo organismo – não creio que fosse esta a sua terminologia – assim a verdade precisa passar por certo processo antes de poder ser recebida pela mente, a fim de que sejamos alimentados com ela e cresçamos. Disse que ia mostrar como se cozinha um sermão, e o fez da maneira mais instrutiva. Começou como começam as receitas dos livros de culinária – "Primeiro pegue a lebre." "Assim", disse ele, "primeiro pegue um sermão baseado no evangelho." Aí declarou que havia muitos sermões que não valia a pena caçar, e que, lamentavelmente, eram muito raros os bons sermões, e valia a pena vencer qualquer distância para ouvir um discurso calvinista, sólido e no velho estilo. Portanto, depois de pego o sermão, poderia ser necessário fazer muita coisa acerca dele, pois, dada a deficiência do pregador, poderia haver boa parte não aproveitável, que teria que ser lançada fora. Aqui se alongou sobre discernir e julgar o que ouvimos, e sobre não acreditar em todas as palavras de qualquer pregador. Seguiram-se depois instruções sobre como assar um sermão: atravessem-no de ponta a ponta com o espeto da memória, girem-no no cavalete da meditação, ao fogo do coração realmente cálido e fervoroso, e deste modo o sermão ficará bem assado e pronto para dar verdadeira nutrição espiritual. Dou-lhes apenas o esboço, e embora possa parecer-lhes algo risível, não foi considerado assim pelos ouvintes. Estava repleto de alegorias, e prendeu a atenção do auditório do começo ao fim. "Olá, caro senhor, como vai?", foi como o saudei certa manhã. "Alegra-me vê-lo tão bem em sua idade." "Sim", disse ele, "estou em boa forma para um velho, e praticamente não sinto fraqueza nenhuma." "Espero que o seu bom estado de saúde continue durante anos ainda, e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 150 que, como Moisés, desça ao túmulo sem se escurecerem os seus olhos e sem perder o seu vigor." "Ótimo tudo isso!", disse o velho cavalheiro, "mas, em primeiro lugar, Moisés nunca desceu ao túmulo, mas subiu a ele; e, em segundo lugar, qual é o significado de tudo isso que está falando? Por que os olhos de Moisés não se escureceram?" "Suponho, senhor", disse eu com muita brandura, "que o seu modo natural de viver e o espírito tranqüilo o ajudaram a conservar as suas faculdades e a fazer dele um vigoroso ancião." "Muito provável", disse ele, "mas não era nisso que eu estava pensando; qual o sentido, o ensinamento espiritual da coisa toda? Não será este? – Moisés é a lei, e que glorioso fim o Senhor deu à lei no monte em que consumou a Sua obra!Com que dulçor os Seus terrores foram postos a dormir com um beijo da boca de Deus! E, note bem, a razão pela qual a lei não nos condena mais, não é que os seus olhos se escureceram, como se ela não pudesse ver o nosso pecado, ou porque perdeu o seu vigor com o qual pudesse amaldiçoar e punir; mas Cristo a levou ao alto do monte, e gloriosamente lhe deu fim." Era essa a sua maneira comum de falar, e assim era o seu ministério. Paz para as suas cinzas! Apascentou ovelhas nos primeiros anos da sua vida, e foi pastor de homens depois disso, e, como costumava dizer-me, "achava os homens muito mais dóceis do que aqueles tímidos animais". Os conversos que acharam o caminho do céu sob o seu trabalho foram tantos que, quando os lembramos, ficamos como aqueles que viram o coxo saltando pela palavra de Pedro e João; estavam dispostos a criticar, mas, vendo o homem que fora curado, de pé junto de Pedro e João, nada puderam dizer contra. Com isto encerro, reafirmando a opinião de que, guiados pela discrição e pelo bom siso, podemos empregar ocasionalmente a espiritualização com bom efeito para os nossos ouvintes; certamente os interessaremos e os manteremos despertos.
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A VOZ Nossa primeira regra quanto à voz seria – não pensem muito nisso, pois, conseguir a voz mais agradável nada é, se não houver algo que dizer, e por melhor que seja a utilização dela, será como uma carruagem bem dirigida, vazia no seu interior, a menos que vocês transmitam por meio dela verdades importantes e oportunas a seu povo. Sem dúvida Demóstenes estava certo atribuindo um primeiro, segundo e um terceiro lugar à boa transmissão; mas que valor terá, se o homem não tiver nada para transmitir? O homem dotado de voz inexcedivelmente excelente, mas destituído de cabeça bem informada e de coração fervoroso, será "uma voz que clama no deserto", ou, para usar a expressão de Plutarco, "Vox et praeterea nihil" (Voz, e nada mais). Tal homem pode brilhar no coro, mas é inútil no púlpito. A voz de Whitefield, sem o poder do coração, não teria deixado sobre os seus ouvintes efeitos mais duradouros do que os do violino de Paganini. Irmãos, vocês não são cantores, mas pregadores; sua voz é de secundária importância; não se envaideçam com ela, nem se lamentem como se fossem inválidos por causa dela, como tantos o fazem. Uma trombeta não precisa ser feita de prata; um chifre de carneiro basta. É preciso, porém, que agüente rude uso, pois as trombetas são para os conflitos bélicos, não para os salões de recepção da moda. Por outro lado, não subestimem demais as suas vozes, pois a qualidade excelente delas contribui grandemente para conduzir ao resultado que vocês esperam produzir. Confessando o poder da eloqüência, Platão menciona o tom de voz do orador. "Tão poderosamente", diz ele, "a elocução e o tom do orador repercutem em meus ouvidos, que dificilmente lá pelo terceiro ou quarto dia caio em mim, percebendo em que ponto da terra estou; e por algum tempo fico querendo acreditar que estou vivendo nas ilhas dos bem-aventurados."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 152 Verdades sumamente preciosas podem ser grandemente maculadas por serem transmitidas em tom monótono. Uma vez ouvi um ministro muito estimado, mas que zumbia tristemente, como "uma humilde abelha num jarro" – metáfora vulgar, sem dúvida, mas que oferece descrição tão exata que traz à minha mente neste instante, e de modo bem destacado, o som do zunido, e me faz lembrar a paródia da Elegia, de Gray: "Da vista o tênue tema já se esvai, e dormente quietude o ar retém, salvo onde o cura voa e a zumbir vai fazendo o seu rebanho dormir bem".
Que lástima, um homem transmitir do coração doutrinas de indubitável valor, em linguagem a mais apropriada, e cometer suicídio harpejando numa corda só, quando o Senhor lhe deu um instrumento de muitas cordas para tocar! Ah! aquela voz enfadonha! Zumbia e zumbia, como uma roda de moinho, sempre no mesmo tom nada musical, quer seu dono falasse do céu quer falasse do inferno, da vida eterna ou da ira perpétua. Podia ficar, por acidente, um pouco mais alta ou mais suave, conforme o comprimento da frase, mas o tom era sempre o mesmo, uma cansativa vastidão de som, um uivante deserto de linguagem falada em que não havia alívio possível, nem variação, nem musicalidade nada, senão uma horrível mesmice. Quando o vento sopra através da harpa eólia, ele ondula em suas vibrações através de todas as cordas, mas o vento celestial, passando por alguns homens, desgasta-se numa corda só, e isso, na maior parte, tremendamente fora da harmonia do todo. Somente a graça poderia capacitar os ouvintes a edificar-se debaixo do tantã de alguns ministros. Creio que um júri imparcial daria um veredicto de sono justificável em muitos casos em que o som proveniente do pregador acalenta os ouvintes, fazendo-os dormir com a sua nota sempre repetida. O Dr. Guthrie caridosamente atribui o sono dos dorminhocos de certa igreja escocesa à má ventilação do local de reuniões; este fator tem algo que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 153 ver com isso, mas a má condição das válvulas da garganta do pregador talvez seja uma causa mais poderosa ainda. Irmãos, em nome de tudo que é sagrado, toquem todo o carrilhão do seu campanário, e não importunem o seu público com o blim-blem-blom de um pobre sino rachado. Quando derem atenção à voz, tenham o cuidado de não caírem nos maneirismos habituais e comuns dos dias atuais. Raramente um homem em doze no púlpito, fala como homem varonil. Estes maneirismos enfatuados não se restringem aos protestantes, pois o abade Mullois observa, "em todos os demais lugares, os homens falam; falam no balcão e na tribuna. Já no púlpito, porém, não falam, pois ali só encontramos linguagem fictícia e artificial, e tons falsos. Este estilo de falar só se tolera na igreja porque, infelizmente, está por demais generalizado ali; em nenhum outro lugar seria tolerado. Que se pensaria de um homem que conversasse daquela maneira numa sala de visitas? Certamente provocaria muitos sorrisos. Há algum tempo havia um guarda do Panteão – bom sujeito a seu modo – que, ao enumerar as belezas do monumento, adotava precisamente o tom de muitos de nossos pregadores, pelo que nunca deixou de provocar a hilaridade dos visitantes, que tanto se divertiam com o seu modo de falar, como com os objetos de interesse que ele lhes mostrava. O homem que não faz transmissão natural e genuína, não deveria ter a permissão de ocupar o púlpito. Pelo menos dali, tudo que é falso deveria ser banido sumariamente. Nestes tempos de desconfiança, tudo que é falso deveria ser posto de lado; e o melhor modo pelo qual a gente pode corrigir-se nesse aspecto, quanto à pregação, é ouvir muitas vezes a certos pregadores monótonos ou apaixonados. Sairemos com tanto desgosto e com tanto horror da sua apresentação, que preferiremos reduzir-nos ao silêncio, a imitá-los. No momento em que você abandona o natural e o genuíno, perde o direito de ser crido, bem como o direito de ser ouvido.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 154 Irmãos, vocês podem andar por aí, visitando igrejas e congregações, e verão que a imensa maioria dos nossos pregadores tem um tom de voz santo para os domingos. Tem uma voz para a sala de visitas e para o quarto de dormir, e outro tom completamente diverso para o púlpito, de sorte que, se não são dúplices, de língua pecaminosamente, são-no por certo literalmente. No momento em que alguns homens cerram a porta do púlpito, deixam para trás a sua varonilidade pessoal, e se tornam tão formais quanto o porteiro da comunidade. Quase que poderiam gabar-se com o fariseu de que não são como os demais homens, conquanto seria blasfêmia dar graças a Deus por isso. Deixam de ser carne e osso, já não falam como homens, mas adotam um ganido, um roto gaguejar, um ore rotundo (boca redonda) ou algum outro modo desgracioso de fazer barulho, tudo isso para impedir toda suspeita de que não estão sendo naturais e não estão falando do que está cheio o seu coração. Quando é posta a veste sacral, quantas vezes fica patente que ela é a mortalha do verdadeiro homem, e o efeminado emblema do formalismo! Há dois ou três modos de falar que ouso dizer que vocês reconhecerão tê-los ouvido muitas vezes. Aquele estilo engrandecido, doutoral, inflado, bombástico, que há pouco chamei de ore rotundo, não é tão comum agora como costumava ser, mas ainda é admirado por alguns. (Desafortunadamente, não se pode representar o preletor aqui com nenhuma forma de letra de imprensa conhecida, quando se pôs a ler um hino com voz grandiosa, ondulante e empolada.) Quando um respeitável cavalheiro estava certa vez soprando vapor desse jeito, um homem no corredor da igreja disse que pensava que o pregador "tinha engolido um bolinho quente", mas outro cochichou: "Não, Jack, não foi isso: ele tragou um diabinho". Posso imaginar o Dr. Johnson falando desse modo em Bolt Court; e de homens aos quais esse estilo é natural, sai com grandiosidade olímpica; mas no púlpito, fora com toda imitação dele, para sempre! Se vem naturalmente, muito bem e muito bom, mas imitá-lo é trair a decência comum. Na verdade, no púlpito, toda imitação é parente chegado de um pecado imperdoável.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 155 Há outro estilo do qual lhes rogo que não achem engraçado. É o método de enunciação que se diz ser muito feminilmente elegante, adocicado, delicado, tipo criadinha de salão, fútil. Opaco e enfadonho, não sei como descrevê-lo melhor. A maioria de nós já teve a infelicidade de ouvir estas ou algumas outras espécies do amplo gênero de falsetes, maneirismos e altos vôos bombásticos. Ouvi-as nas mais diversas variedades, desde as formas recheadas à Johnson, até a rala magreza do frágil e gentil sussurro; desde o urro dos touros de Basã até o tip, tip, tip do tentilhão. Pude seguir a pista de alguns deles até os seus antepassados (refiro-me aos seus antepassados ministeriais) de quem recolheram originalmente estes modos seráficos de falar, melodiosos, santificados, belos em todos os aspectos – mas, devo acrescentar honestamente, detestáveis! A indubitável ordem do registro genealógico da sua oratória é como se segue: Soquinho, que era filho de Gaguejo, que era filho de Sorrisinho, que era filho de Dândi, que era filho de Maneirismo; ou Rebolante, que era filho de Pomposa, que era filho de Ostentação – de muitos filhos o pai era o mesmo. Entendam, até onde esses horrores de som sejam naturais, não os condeno – fale cada criatura em sua própria língua. Mas o fato é que em nove de cada dez casos, estes dialetos sagrados, que espero logo hão de ser línguas mortas, são inaturais e forçados. Estou persuadido de que esses tons, semitons e "monotons" são babilônicos, e absolutamente não pertencem ao dialeto de Jerusalém, pois o dialeto de Jerusalém tem a sua característica distintiva, que é o modo de falar próprio do homem, e esse modo é o mesmo, fora do púlpito e dentro dele. O nosso amigo da sofisticada escola do ore rotundo nunca foi visto falando fora do púlpito como o faz estando nele, ou falando na sala de visitas no mesmo tom que emprega no púlpito: "Você terá a bondade de me servir outra chávena de chá? Usarei açúcar, se isto lhe aprouver". Far-se-ia ridículo se agisse assim, mas o púlpito há de ser favorecido com a escória da sua voz, que a sala de visitas não toleraria.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 156 Sustento que as melhores notas de que a voz de um homem é capaz deveriam ser dedicadas à proclamação do evangelho, e são precisamente as que a natureza lhe ensina a usar numa conversação séria. Ezequiel servia a seu Senhor com as suas faculdades mais musicais e melodiosos, de modo que Deus lhe disse: "E eis que tu és para eles como uma canção de amores, canção de quem tem voz suave, e que bem tange". Ah! isso de nada valeu, porém, para o duro coração de Israel, pois nada lhe valerá exceto o Espírito de Deus; todavia, assentou bem ao profeta proclamar a Palavra do Senhor no melhor estilo de voz e de modos. Prosseguindo, se vocês têm quaisquer idiossincrasias no falar, desagradáveis ao ouvido, corrijam-nas, se possível. 1 Admite-se que é mais fácil ao professor sugerir-lhes isto do que a vocês praticá-lo. Entretanto, para os jovens que se acham no alvor do seu ministério, a dificuldade não é insuperável. Irmãos oriundos da zona rural têm na boca o sabor do seu rústico regime de vida, lembrando-nos irresistivelmente os novilhos de Essex, os leitões de Berkshire ou os animais anões de Suffolk. Quem poderá deixar de reconhecer os dialetos de Yorkshire e Somersetshire, que não são apenas pronúncias regionais, mas entonações regionais também? Seria difícil descobrir a causa, mas o fato bastante claro é que em alguns condados da Inglaterra as gargantas dos homens parecem cobertas de pigarro, como chaleiras usadas durante muito tempo, e noutros elas soam como música de um instrumento de latão, com defeituoso som metálico. Estas variações da natureza podem ser belas em sua ocasião e lugar, mas o meu gosto nunca pode apreciá-las. Do agudo e dissonante chiado, como o de uma tesoura enferrujada, livremo-nos a todo risco. A mesma coisa a fala inarticulada e densa em que nenhuma palavra é pronunciada completamente, mas os substantivos, os adjetivos e os verbos viram uma espécie de picadinho. Igualmente objetável é aquela 1
"Cuidado com qualquer coisa que seja grosseira ou sofisticada, na gesticulação, nas frases ou na pronúncia." – João Wesley.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 157 maneira fantasmagórica de falar em que a pessoa fala sem mover os lábios, no mais horrível ventriloqüismo; tons sepulcrais podem servir para levar alguém a tornar-se agente funerário, mas não se chama Lázaro para fora do túmulo com gemidos surdos. Um dos meios mais seguros de você matar-se é falar da garganta, e não da boca. Este uso errôneo da natureza será vingado terrivelmente por ela; fujam da pena evitando a ofensa. Talvez seja bom neste ponto concitá-los a que, tão logo se dêem conta de que estão gaguejando muito durante um discurso, tratem de expurgar de uma vez o insinuante, mas ruinoso hábito. Não há nenhuma necessidade dele e, embora os que agora são suas vítimas talvez nunca possam romper as cadeias, vocês, principiantes na oratória, podem desprezar esse exasperante jugo. É até preciso dizer, abram a boca quando falam, pois muito resmungo desarticulado resulta de se manter a boca meio fechada. Não é à toa que os evangelistas escreveram a respeito de nosso Senhor: "E, abrindo a sua boca, os ensinava". Abram bem as portas pelas quais há de sair marchando tão benéfica verdade! Além disso, irmãos, evitem o emprego do nariz como órgão da expressão oral, pois as melhores autoridades concordam que a função que lhe cabe é a de cheirar. Tempo houve em que era correto falar fanhoso, mas nesta era degenerada farão melhor em obedecer à evidente sugestão da natureza, deixando que a boca faça o seu trabalho sem interferência do aparelho olfativo. Se estiver presente um estudante americano, terá que me escusar por salientar esse ponto para chamar-lhe a atenção. Detestem também a prática de alguns que não pronunciam a letra "r". Esse hábito é "deveuas uinoso e uidículo, deveuas uepugnante e uepuensível". Ocasionalmente um irmão tem a ventura de possuir um cativante e delicioso balbucio. Talvez esteja entre os menores males, quando o próprio pregador é franzino e simpático, mas arruinaria a todo aquele que visasse à virilidade e ao poder. Mal posso imaginar Elias gaguejando a Acabe, ou Paulo graciosamente entrecortando as suas palavras na Colina de Marte.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 158 Pode haver algo peculiarmente patético em olhos fracos e lacrimejantes, bem como num estilo titubeante; iremos mais longe, admitindo que, quando essas coisas decorrem de intensa paixão, são sublimes. Alguns, porém, as possuem de nascimento, e as utilizam com excessiva liberdade. Para dizer o mínimo, vocês não têm por que imitálos. Falem como a natureza educada lhes sugerir, e farão bem; mas que seja a natureza educada, não a crua, rude e sem cultivo. Como sabem, Demóstenes trabalhava a duras penas com a sua voz, e Cícero, fraco por natureza, fez longa viagem à Grécia para corrigir o seu modo de falar. Tendo nós temas muito mais nobres, não tenhamos menor ambição pela excelência. "Privem-se de tudo mais", diz Gregório de Nazianzeno, "mas, deixem-me a eloqüência, e nunca deplorarei as viagens que fiz para estudá-la." . Falem sempre de maneira que sejam ouvidos. Conheço um homem de peso enorme, e que deveria poder ser ouvido a quase um quilômetro, mas é tão insipidamente indolente que em seu pequeno local de culto você mal pode ouvi-lo da parte da frente da galeria. Que utilidade tem um pregador que os homens não conseguem ouvir? A modéstia deveria levar o homem sem voz a dar seu lugar a outros mais bem dotados para a obra de proclamar as mensagens do Rei. Alguns falam bastante alto, mas sem clareza; suas palavras se sobrepõem umas às outras, ou brincam de pular sela, ou passam rasteira umas nas outras. Falar de maneira clara e definida é mais importante do que ter muito fôlego. Dê boa oportunidade a uma palavra; não quebre as costas dela com a sua veemência, nem lhe arranque as pernas em sua pressa. É odioso ouvir um grandalhão murmurar e sussurrar quando os seus pulmões são bastante fortes para possibilitar-lhe falar bem alto. Mas, ao mesmo tempo, ainda que o pregador sempre grite vigorosamente, não será bem ouvido se não aprender a lançar para frente as suas palavras com o devido espaço entre elas. Falar muito devagar é serviço miserável, e sujeita os ouvintes mentalmente ágeis à doença chamada "horrores". É impossível ouvir um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 159 homem que rasteja a um quilômetro por hora. Uma palavra hoje, outra amanhã, é uma espécie de fogo lento de que somente os mártires poderiam gostar. Falar depressa demais, com violência e furor que resultam numa linguagem completamente bombástica, não tem desculpa alguma. Não tem, nem nunca poderá ter poder, exceto para os idiotas, pois transforma numa turbamulta o que deveria ser um exército de palavras, e terá a máxima eficiência em afogar os sentidos em torrentes de som. Ocasionalmente se ouve um enfurecido orador de fala indistinta, cuja impetuosidade o precipita a uma tal confusão de sons, que logo a gente se lembra dos versos de Lucan: "Sua língua mole um tom murmurante confunde, dissonante e diverso dos humanos sons; lembra o latir dos cães ou o uivar dos lobos, o soturno piar do mocho á meia-noite; das cobras o silvar, do leão o "rugir, das ondas o entrechoque, a esbater-se na praia; o gemido do vento na frondosa mata e o espocar do trovão na lacerada nuvem. Todas estas coisas numa só".
É castigo que não dá para agüentar duas vezes, ouvir quem confunde transpiração com inspiração, e dispara como um cavalo selvagem como um vespão no ouvido, até perder o fôlego, só fazendo pausa para encher de novo os pulmões. A repetição desta indecência várias vezes num sermão não é incomum, mas é muito penosa; pausa feita a cada passo, para impedir aquele "ufa, ufa" que produz mais piedade pelo orador ofegante do que simpatia pelo assunto tratado. Nossos ouvintes nem devem perceber que respiramos. O processo de respiração deve passar tão despercebido como a circulação do sangue. Não fica bem deixar que a simples função animal de inspirar e expirar ocasione algum hiato em nosso discurso. Não forcem a voz ao máximo na pregação comum. Dois ou três varões fervorosos aqui presentes andam fazendo-se em pedaços com seus berros desnecessários; os seus pobres pulmões estão irritados, e suas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 160 laringes estão inflamadas, por causa dos seus furiosos gritos, que parecem incapazes de reprimir. Ora, está muito bem atender à exortação: "Clama em alta voz, não te detenhas", mas o conselho apostólico é: "Não te faças nenhum mal." Quando as pessoas podem ouvi-lo com a metade da voz, é bom economizar a força excedente para as ocasiões em que seja necessária. "Não gastes demais; falta não terás", pode aplicar-se aqui como em qualquer outra parte. Sejam econômicos com esse enorme volume de som. Não dêem aos seus ouvintes dor de cabeça, quando o desejo é dar-lhes dor de coração. A intenção é impedir que durmam nos bancos, mas, lembrem-se de que não é preciso estourar os tímpanos deles. "O Senhor não estava no vento." Trovão não é raio. Os homens não ouvem na proporção do barulho produzido; na verdade, barulho demais ensurdece a gente, cria repercussões e ecos, e efetivamente prejudica o poder dos seus sermões. Adaptem suas vozes ao auditório; quando vinte mil estão diante de vocês, abram os registros e estrondem com todo o vigor, mas não num recinto em que cabem apenas uma vintena ou duas. Sempre que entro num lugar para pregar, inconscientemente calculo quanto som é necessário para enchê-lo, e depois de uma poucas frases, a minha tonalidade já está ajustada. Se puderem fazer o homem que está no outro extremo do templo ouvir, se puderem ver que ele está captando o seu pensamento, poderão estar seguros de que os que estão mais perto podem ouvi-los, e não será necessário pôr mais força – talvez seja bom diminuí-la um pouco. Experimentem e vejam. Por que falar de modo que seja ouvido na rua, quando lá não há ninguém para ouvir? Seja um recinto fechado, seja ao ar livre, vejam que os mais distantes ouvintes possam acompanhá-los, e isto será suficiente. A propósito, devo observar que os irmãos deveriam, por misericórdia dos enfermos, atentar sempre com muito cuidado para a força das suas vozes nos quartos de doentes e nas igrejas em que se sabe que alguns estão muito fracos. É cruel sentar-se ao pés do leito de um enfermo e gritar: "O SENHOR É O MEU PASTOR: NADA ME FALTARÁ". Se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 161 vocês agirem impensadamente assim, o pobre homem dirá logo que tiverem descido as escadas: "Ai !Ai! Como me dói a cabeça! Alegra-me que o homem tenha ido embora, Mary; esse salmo é muito precioso e parece tão tranqüilo, mas ele o leu como raios e trovões, e quase me deixou surdo!" Lembrem-se vocês, irmãos mais jovens e solteiros, que suaves sussurros servirão melhor ao desvalido do que o rufar de tambores e o estampido de trabucos. Observem cuidadosamente a regra que manda variar a intensidade da voz. A velha regra era: comece de modo bem suave, vá subindo o tom gradativamente, e no fim produza as suas notas mais altas. Que esses regulamentos sejam estourados à boca do canhão; são inoportunos e enganosos. Falem baixo ou alto, conforme a emoção do momento lhes sugira, e não observem normas artificiais e fantasiosas. Regras artificiais são uma abominação total. Como M. de Cormorin satiricamente o coloca: "Seja apaixonado, troveje, entusiasme-se, chore, até à quinta palavra da terceira frase do décimo parágrafo da folha dez. Como seria fácil! Sobretudo, quão espontâneo!" Imitando um pregador popular, a quem isto era inevitável, certo ministro se acostumou a falar em tão baixa tonalidade, que ninguém conseguia ouvi-lo. Todos se inclinavam para diante, temendo que algo importante se estivesse perdendo no ar, mas o esforço era vão; um santo sussurro era tudo que podiam discernir. Se o irmão não fosse capaz de falar, ninguém o teria acusado, mas era a coisa mais absurda fazer o que fazia quando em curto lapso de tempo provava o poder dos seus pulmões enchendo o edifício de sonoras frases. Se a primeira parte do seu discurso não era importante, por que não omiti-la? Se tinha algum valor, por que não apresentá-la audivelmente? Efeito, cavalheiros, era o fim que tinha em vista. Ele sabia que alguém que falava daquele modo tinha produzido efeitos grandiosos, e esperava rivalizar com ele. Se algum de vocês ousar cometer tal loucura com o mesmo objetivo detestável, de coração eu preferiria que essa pessoa nunca tivesse entrado nesta instituição. Digo-lhes com a maior
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 162 seriedade que essa coisa chamada "efeito" é odiosa porque é falsa, artificial e ardilosa manha, e, portanto, é desprezível. Nunca façam nada para obter efeito, mas desprezem os estratagemas das mentes estreitas que andam em busca da aprovação dos peritos em pregação que constituem uma raça tão odiosa para o verdadeiro ministro como os gafanhotos para o lavrador oriental. Mas estou fazendo digressão; sejam claros e definidamente audíveis logo no início. Os seus exórdios são bons demais para serem cochichados para o espaço. Apresentem-nos com ousadia e conquistem a atenção desde o começo com a sua entonação máscula. Não partam do ponto mais alto, como regra geral, pois não conseguirá mais quando estiver aquecido com o trabalho; todavia, falem com clareza desde as primeiras palavras. Abaixem a voz, quando isso for pertinente, reduzindo-a até a um sussurro, pois as expressões orais suaves, deliberadas e solenes não somente dão alívio aos ouvidos, mas também são grandemente aptas para atingir o coração. Não tenham medo de tonalidades baixas, pois, se lhes imprimirem força, serão tão ouvidas como os gritos. Vocês não precisam falar em alta voz a fim de serem ouvidos bem. De William Pitt diz Macaulay: "Sua voz, mesmo quando afundava até tornar-se um sussurro, era ouvida até nos mais distantes bancos da Casa dos Comuns". Tem-se dito que não é a arma de fogo mais ruidosa que atira mais longe a bala; o estampido de um rifle é tudo, menos barulhento. Não é a altura da sua voz que é eficiente, mas a força que você lhe dá. Estou certo de que poderia sussurrar e ser ouvido em todos os cantos do nosso grande Tabernáculo, e, igualmente, estou certo de que poderia gritar e berrar de um jeito que ninguém poderia compreenderme. A coisa poderia ser feita aqui, mas talvez seja desnecessário o exemplo, pois receio que alguns de vocês são capazes de fazer isso com notável sucesso. As ondas de ar podem chocar-se com os ouvidos em tão rápida sucessão que nenhuma impressão compreensível causam ao nervo auditivo. A tinta é necessária para a escrita, mas se você derramar o tinteiro numa folha de papel, não transmitirá com isso nada que tenha
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 163 algum significado. Assim é com o som. O som é a tinta, mas, requer-se manejo – não quantidade – para produzir uma escrita inteligível para o ouvido. Se a sua única ambição for competir com – "Estentor o forte, com pulmões de bronze, sobrepuja, e longe, o poder enorme de cinqüenta línguas",
então, berre para o Elísio tão rapidamente quanto possível, mas se quiser ser compreendido e, assim, ser útil, evite a crítica de que é "fraco e barulhento". Vocês sabem, irmãos, que os sons estridentes vão longe; o singular grito usado pelos viajores nas regiões agrestes da Austrália deve o seu extraordinário poder à sua estridência. Ouve-se de muito mais longe um sino do que um tambor; e, muito singularmente, quanto mais musical for um som, maior será o seu raio de alcance. Não é preciso dar murros no piano, mas extrair o judicioso som, dos melhores registros. Portanto, vocês se sentirão em liberdade para abrandar o tom muitas vezes quanto ao volume, e estarão dando grande alívio, tanto aos ouvidos dos ouvintes como aos seus próprios pulmões. Experimentem todos os métodos, desde o do malho até o do suave veludo. Irmãos, sejam gentis como o zéfiro e furiosos como um furacão. Sejam, na verdade, justamente o que toda pessoa de bom senso é em seu falar quando conversa naturalmente, intercede veementemente, sussurra confidencial, apela sentidamente, ou proclama com clareza. Depois da moderação da força dos pulmões, eu coloria a regra – modulem os tons da voz. Alterem a tonalidade com freqüência e variem a intensidade do som constantemente. Dêem oportunidade ao baixo, ao soprano e ao tenor. Rogo-lhes que façam isso por piedade de si mesmos e dos que os ouvem. Deus tem pena de nós e arranja as coisas de modo que satisfaçam ao anseio por variação; tenhamos pena dos nossos semelhantes, e não os importunemos com o tédio da mesmice. É uma grande barbaridade infligir aos tímpanos de uma pobre criatura humana a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 164 angústia de ser como perfurados por broca ou verruma do mesmo som durante meia hora. Que meio mais rápido de tornar a mente idiota ou lunática poder-se-ia conceber do que o perpétuo zumbido de uma abelha, ou o zunido de uma mosca varejeira no órgão da audição? Que desculpa teríamos pela qual deveríamos ser tolerados em tanta crueldade para com as desamparadas vítimas que se assentam sob as ministrações do tantã do nosso tambor? Muitas vezes a bondosa natureza poupa as infelizes vítimas do zunido do pleno efeito das nossas torturas, fazendo-as mergulhar num suave repouso. Contudo, não é isto que vocês querem; então falem com variações na voz. Quão poucos ministros se lembram de que a monotonia dá sono. Receio que a denúncia feita por um escritor na Review Imperial seja literalmente válida quanto a numerosos irmãos meus. "Sabemos todos como o ruído de água corrente, ou o murmúrio do mar, ou os suspiros do vento sul entre os pinheiros, ou os queixumes dos pombos do mato induzem a um delicioso e sonolento langor. Longe de nós dizer que a voz de um clérigo moderno se parece, no mínimo grau, com qualquer desses suaves sons; todavia, o efeito é o mesmo, e poucos podem resistir às letárgicas influências de uma longa dissertação feita sem a mais ligeira variação de tom ou alteração da expressão."
De fato, o uso muito excepcional da frase, "um discurso que desperta", mesmo por aqueles que mais conhecem do assunto, traz consigo a implicação de que a grande maioria das arengas de púlpito é de tendência decididamente soporífera. É um grave mal quando o pregador "Deixa os ouvintes perplexos – entre os dois, que decidir: "Vigiai e orai" diz o texto, e o sermão diz, "a dormir!"
Por mais musical que uma voz possa ser em si mesma, se vocês continuarem tocando perpetuamente na mesma corda, os seus ouvintes irão sentir que as suas notas, pela distância que percorrem, vão ficando mais suaves. Em nome da humanidade, parem de entoar assim e passem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 165 a falar racionalmente. Se este conselho não conseguir mudá-los, tenho tanto zelo neste ponto que, se vocês não seguirem o meu conselho por dó dos seus ouvintes, fá-lo-ão por dó de si próprios, pois, como a Deus em Sua infinita sabedoria sempre aprouve aplicar uma penalidade a todo pecado contra as Suas leis naturais, bem como contra as morais, assim o mal da monotonia é freqüentemente vingado mediante aquela perigosa doença chamada dysphonia clericorum, ou seja, "disfonia dos clérigos". Quando certos irmãos nossos são tão amados por seus ouvintes que não se opõem a pagar uma bela soma para livrar-se deles por alguns meses, quando uma viagem a Jerusalém é recomendada e providenciada, a bronquite de diferente ordem é tão extraordinariamente dirigida para o bem, que o meu presente argumento não perturbará a sua equanimidade. Mas não é a sorte que nos cabe; bronquite para nós significa miséria de verdade e, portanto, para evitá-la deveríamos seguir quaisquer sugestões sensatas. Se vocês quiserem estragar as suas gargantas, poderão fazê-lo depressa, mas, se quiserem conservá-las, notem bem o que terão agora diante de si. Muitas vezes nesta sala comparei a voz com um tambor. Se o tamborileiro bater sempre no mesmo lugar, a pele se gastará logo e se abrirá um buraco ali; mas, quanto mais tempo duraria se tivesse variado os golpes e tivesse usado a superfície inteira da pele de percussão do tambor! Assim, é com a voz humana. Se usarem sempre o mesmo tom, acabarão abrindo um buraco na parte da garganta mais exercitada na produção daquela monotonia, e em pouco tempo estarão sofrendo de bronquite. Tenho ouvido cirurgiões afirmarem que a bronquite dos dissidentes difere da que a Igreja da Inglaterra apresenta. Existe uma fala eclesiástica fanhosa muito admirada na igreja oficial, uma espécie de grandeza de campanário na garganta, um linguajar declamatório e um retumbar de palavras aristocrático, teológico, clerical, supranatural, subhumano. Pode-se ilustrar com os seguintes espécimes: "A lei nos serviu de aio", descrevendo comparativamente o pregador as virtudes do alho
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 166 aplicadas à lei. Notável, senão impressionante, compreensão e aplicação de um texto da Escritura! Quem não conhece aquela santa maneira de pronunciar – "Caríssimamente amados irmãos, a Escritura nos comove em diversos lugares"? Repica em meus ouvidos como o Big Ben – a par com juvenis lembranças de monótonos repiques de "O príncipe Albert, Albert, príncipe de Gales, e toda a família Real. ... Amém". Ora, se o homem que fala com tanta falta de naturalidade não pegar bronquite ou alguma outra doença, só posso dizer que as doenças de garganta devem ser soberanamente distribuídas. Nas manias de linguagem dos nãoconformistas já dei um golpe, e acredito que é por causa delas que laringe e pulmões se debilitam, e os homens sucumbem, reduzindo-se ao silêncio e indo parar no túmulo. Irmãos, se vocês quiserem saber no que me baseio para apoiar a ameaça que lhes fiz, passo-lhes a opinião do Sr. Macready, o eminente autor trágico, que merece ser ouvido respeitosamente porquanto olha a questão de um ponto de vista não parcial, mas experimental. "Garganta distensa em geral não resulta tanto de exercitar o órgão como da qualidade do exercício; isto é, não é tanto por falar muito tempo ou por falar alto, como por falar com voz simulada. Receio não ser compreendido nesta afirmação, mas suponho que não há uma pessoa em dez mil que, ao dirigir-se a um grupo de ouvintes, empregue a sua voz natural; e este hábito é mais especialmente observável no púlpito. Creio que a distensão da garganta é causada por violentos esforços feitos naqueles tons artificiais, e que a irritação grave, e muitas vezes a ulceração, é a conseqüência. "O trabalho requerido pelos deveres de uma igreja num dia inteiro não é nada, no que diz respeito ao trabalho propriamente dito, comparado com a realização artística de um dos principais personagens de Shakespeare, e suponho que também nada é, comparado com qualquer das grandes exibições feitas pelos nossos principais estadistas nas Casas do Parlamento. E me sinto seguro de que o desarranjo que chamam de "mal de garganta de pregador" geralmente se pode atribuir ao modo de falar, e não à extensão do tempo ou à violência do esforço que se empregue. Vi vários veteranos contemporâneos de palco ficarem sofrendo da garganta, mas não
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creio que se pudesse considerar essa doença como predominante entre os elementos eminentes dessa arte."
Os atores e os jurisconsultos têm muita ocasião para forçar as suas energias vocais. Contudo, não existe uma coisa chamada mal de garganta de tribunal, ou bronquite de ator trágico; simplesmente porque esses homens não se atrevem a servir o público da maneira tão desmazelada como alguns pregadores servem a seu Deus. O excelentíssimo senhor doutor Samuel Fenwick, num tratado popular sobre "Doenças da Garganta e dos Pulmões", diz com a maior sabedoria: "Do que se afirmou a respeito da fisiologia das cordas vocais, ficará evidente que falar continuadamente no mesmo tom é muito mais fatigante do que se fazerem freqüentes alterações na intensidade da voz, porque, no primeiro caso, força-se um só músculo ou um só conjunto de músculos, ao passo que no segundo, diferentes músculos são postos em ação, e assim dão-se descanso uns aos outros. Do mesmo modo, levantar o braço em ângulo reto em relação ao corpo cansa-nos em cinco ou dez minutos, porque somente um conjunto de músculos tem que agüentar o peso; mas estes mesmos músculos podem trabalhar o dia inteiro se a sua ação for alternada com a de outros. Portanto, sempre que ouvimos um clérigo zunindo durante o culto, e do mesmo jeito e no mesmo tom lendo, orando e exortando, podemos estar perfeitamente certos de que ele está dando às suas cordas vocais dez vezes mais trabalho do que o absolutamente necessário."
Talvez seja este o ponto próprio para reiterar uma opinião que várias vezes expressei neste recinto, que o autor que citei me faz lembrar. Se os ministros falassem com maior freqüência, as suas gargantas e os seus pulmões estariam menos sujeitos à doença. Disto estou bem seguro; é questão de experiência pessoal e de ampla observação, e minha confiança é que não estou enganado. Cavalheiros, pregar duas vezes por semana é muito perigoso, mas descobri que cinco ou seis vezes é saudável, e que até doze ou quatorze vezes não é excessivo. Um verdureiro veria que anunciar aos gritos couve-flor e batatas um dia por semana seria esforço mais laborioso, mas quando em seis dias sucessivos enche as ruas, avenidas e becos com o seu sonoro
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 168 estrépito, não achará nenhuma dysphonia pomariorum (disfonia dos fruteiros) ou "mal de garganta de verdureiro" afastando-o dos seus modestos trabalhos. Agradou-me ver a minha opinião – de que pregar poucas vezes é a raiz de muitos males, declarada explicitamente assim pelo Dr. Fenwick. "Todas as indicações que aqui registrei serão ineficazes, creio eu, sem a sistemática e diária prática da voz. Nada parece ter tanta tendência para produzir esta doença como falar prolongadamente, alternando-se isto com longos intervalos de repouso, coisa à qual os clérigos estão particularmente sujeitos. Qualquer pessoa que der um momento de consideração ao assunto entenderá prontamente isto. Se um homem ou qualquer outro animal for destinado a qualquer esforço muscular incomum,e treinado nisso regularmente todos os dias, tornará fácil o trabalho que de outra forma seria quase impossível realizar. Mas a maioria dos que exercem a carreira eclesiástica se submete a grande intensidade de esforço muscular falando apenas um dia por semana, ao passo que nos restantes seis dias raramente eles elevam a voz acima do diapasão normal. Se um ferreiro ou um carpinteiro passasse desse modo pela fadiga ligada ao exercício da sua ocupação profissional, não só ficaria despreparado para ela, mas também perderia a aptidão que tivesse adquirido. O exemplo dos mais célebres oradores que o mundo já viu prova as vantagens da regular e constante prática da alocução; e em razão disto recomendo com a máxima ênfase a todas as pessoas sujeitas a esta questão que leiam em voz alta uma ou duas vezes por dia, empregando o mesmo grau de voz que emprega no púlpito, e dando especial atenção à postura do peito e da garganta, e à clara e adequada articulação das palavras."
O Sr. Beecher é da mesma opinião, pois observa: "Os jornaleiros mostram aquilo que o pregão ao ar livre faz com os pulmões do pregador. Que faria o orador de fala apagada e fraca, que mal consegue alcançar duzentos ouvintes com a sua voz, se tivesse que gritar anunciando a venda de jornais? Os jornaleiros de Nova York ficam de pé no início de uma rua, e mandam as suas vozes rua abaixo, por toda a extensão dela, como um atleta faria rolar uma bola por uma pista. Aconselhamos os homens que se estão preparando para profissões que exigem oratória a que se dediquem por algum tempo ao trabalho de vendedor ambulante. Os novos ministros poderiam compartilhar do serviço dos camelôs durante
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algum tempo, até que soubessem abrir a boca e tivessem á laringe vigorosa e resistente".
Cavalheiros, uma regra necessária é – adaptem sempre a sua voz ao seu assunto. Não mostrem júbilo quando o assunto é melancólico e, por outro lado, não se arrastem pesadamente quando os tons deveriam saltitar ágeis e alegres, como se estivessem dançando ao som das melodias dos anjos do céu. Não me alongarei sobre esta regra, mas fiquem certos de que é da maior importância e, se for seguida obedientemente, sempre assegurará atenção, desde que a sua exposição a mereça. Adaptem sempre a voz ao assunto e, acima de tudo, sejam naturais em todas as coisas. Fora para sempre com a servidão a regras e modelos. Não imitem as vozes de outrem, mas se por uma invencível propensão as reproduzem, então imitem as melhores qualidades de cada orador, e o mal estará diminuído. Eu mesmo, por uma espécie de influência irresistível, sinto-me arrastado a ser um imitador, de sorte que uma viagem pela Escócia ou Gales afetará substancialmente a minha pronúncia e a minha entonação por uma semana ou duas. Lutar contra isso eu luto, mas aí está, e o único remédio que conheço para curá-lo é deixar que o defeito morra de morte natural. Cavalheiros, volto à minha regra – usem as suas vozes naturais. Não sejam macacos, mas homens; não papagaios, mas homens capazes de originalidade em todas as coisas. Diz-se que a maneira mais conveniente de um homem usar a barba é aquela em que a barba cresce ajustando-se ao rosto, na cor e na forma. Os seus próprios modos de falar deverão estar ao máximo em harmonia com os seus métodos de pensamento e com a sua personalidade. A mímica é para o teatro; o homem ilustrado em sua personalidade santificada é para o santuário. Eu repetiria até ao cansaço esta regra, se pensasse que vocês poderiam esquecê-la; sejam naturais, sejam naturais, sejam perpetuamente naturais. Uma simulação da voz ou uma imitação da maneira do Dr. Silvertongue (Língua de Prata), o eminente teólogo, ou mesmo de um estimadíssimo preceptor ou diretor, inevitavelmente os arruinará. Dou-
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 170 lhes a incumbência de lançar fora o servilismo da imitação e de elevar-se à originalidade viril. Diletos irmãos, somos obrigados a acrescentar – esforcem-se para educar a voz. Não lamentem as penas e os trabalhos requeridos para realizar isso, pois, como já se observou bem, "Por mais prodigiosos que sejam os dons da natureza a seus eleitos, só podem ser desenvolvidos e levados à sua extrema perfeição pelo trabalho e pelo estudo". Pensem em Miguel Ângelo trabalhando uma semana sem trocar de roupa, e em Handel deixando côncava como uma colher cada tecla do seu cravo pela prática incessante. Cavalheiros, depois disso, nunca falem de dificuldade ou cansaço. É quase impossível ver a utilidade do método de falar de Demóstenes, com pedras na boca, mas qualquer um pode perceber como é útil argumentar com as ruidosas e encapeladas ondas, para que fosse capaz de fazer-se ouvir nas tumultuadas assembléias dos seus patrícios; e por que falava enquanto subia correndo morro acima para que os seus pulmões acumulassem força, graças ao seu uso laborioso, a razão é tão óbvia como recomendável é a abnegação. Cabe-nos usar todos os meios possíveis para aperfeiçoar a voz, com a qual havemos de expor o glorioso evangelho do Deus bendito. Tenham grande cuidado com as consoantes, enunciando com clareza cada uma delas; são as feições e as expressões das palavras. Pratiquem infatigavelmente, até darem a cada uma das consoantes o que lhe é devido; as vogais têm a voz que lhes é própria, e portanto podem falar por si mesmas. Em todas as outras questões exerçam uma disciplina rígida até dominarem a sua voz e tê-la à mão como um corcel bem treinado. Os cavalheiros de peito estreito são aconselhados a exercitar-se com halteres todas as manhãs, ou melhor ainda, com aqueles peitorais que esta escola providenciou para vocês. Irmãos, vocês precisam ter ampla caixa torácica e devem fazer o melhor que puderem para consegui-la. Não falem com as mãos metidas nos bolsos do colete, contraindo deste modo os pulmões, mas lancem para trás os ombros, como fazem os cantores públicos. Não se inclinem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 171 sobre uma escrivaninha enquanto falam e nunca abaixem a cabeça sobre o peito enquanto pregam. Para cima, e não para baixo, façam curvar-se o corpo. Fora com todas as gravatas apertadas e com coletes fechados até em cima; dêem lugar ao pleno desempenho dos foles e tubos sonoros. Observem as estátuas dos oradores gregos e romanos, olhem um quadro de Paulo feito por Rafael, e, sem artificialismo pedante, adotem com naturalidade as atitudes elegantes e convenientes ali retratadas, pois são as melhores para a voz. Peçam a um amigo que lhe diga quais são as suas falhas, ou melhor ainda, acolham bem um inimigo que os vigie com rigor e os aguilhoe com selvageria. Que bênção será para o sábio um crítico irritante assim, mas quão intolerável para o tolo! Corrijam-se a si mesmos, com diligência e com freqüência, ou cairão inadvertidamente em erros, os tons falsos se desenvolverão, ou hábitos desordenados se formarão insensivelmente; portanto, façam autocríticas com incessante vigilância. Não considerem pouco aquilo pelo que vocês possam vir a ser um pouco mais útil. Mas, cavalheiros, jamais degenerem nesta atividade, transformando-se em janotas do púlpito, que pensam que a gesticulação e a voz são tudo. Meu coração padece quando ouço falar de homens que tomam a semana toda para fazer um sermão, sendo que o preparo todo consiste em repetir as suas preciosas produções diante do espelho! Ai desta era, se corações destituídos da graça hão de ser perdoados por amor à graça das suas maneiras. Oxalá nos dêem todas as vulgaridades do mais rude pregador itinerante dos rincões mais afastados, antes que a perfumada lindeza do donaire efeminado. Como eu não os aconselharia a serem fastidiosos com suas vozes, tampouco os recomendaria que imitassem o Sr. Taplash (amigo de Rowland Hill) com o seu anel de diamante, seu lenço repassado de fino perfume, e seu monóculo. Os elementos refinados estão deslocados no púlpito; deveriam ser colocados numa vitrina, com uma etiqueta: "Este artigo elegante completo, com o Dr. Fulano incluído, 10 libras e 10 xelins".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 172 Talvez seja este o momento para observar que seria bom se todos os pais dessem mais atenção aos dentes dos seus filhos, desde que dentes defeituosos podem causar sério prejuízo a um orador. Há homens de articulação defeituosa que deveriam procurar logo um dentista (refirome, é claro, a um dentista cientificamente perito e experimentado), pois alguns dentes postigos ou algum outro acerto simples seriam uma bênção permanente para eles. O meu dentista anota mui sensatamente em sua circular: "Quando se perdem alguns ou todos os dentes, segue-se uma contração dos músculos do rosto e da garganta, os outros órgãos da voz que estavam habituados aos dentes ficam prejudicados e são deslocados da sua função normal, produzindo uma falha, um entorpecimento ou uma depressão, como num instrumento musical deficiente numa nota. Em vão se esperará sinfonia perfeita e inflexão proporcional e harmoniosa com a nota, a tonalidade e o volume da voz, se os órgãos forem deficientes e, naturalmente, a articulação ficará defeituosa. Esse defeito aumenta muito o esforço para falar, para dizer o mínimo, e em muitíssimos casos, o resultado é gaguejo, ou uma queda rápida ou brusca da fluência, ou uma transmissão fraca. De deficiências mais sérias, quase certamente resultarão chiados e estalos".
Quando o mal for este e a cura estiver ao nosso alcance, temos a obrigação de utilizar-nos dela, por amor do nosso trabalho. Os dentes podem parecer coisa sem importância, mas convém lembrar que nada é pequeno numa Vocação tão grande como a nossa. Nas observações subseqüentes mencionarei questões menores ainda, mas o faço com a profunda impressão de que sugestões sobre coisas insignificantes podem ser de valor incalculável para livrar-lhes de graves omissões ou erros grosseiros. Finalmente, com relação às suas gargantas, eu gostaria de dizer – cuidem delas. Tenham o cuidado de limpá-las bem quando estiverem perto da hora de falar, mas não fiquem a limpá-las constantemente enquanto estiverem pregando. Um irmão muito estimado, meu conhecido, fala sempre deste jeito – "Prezados amigos – hem, hem – é um assunto – hem – muito importante o que agora – hem, hem – lhes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 173 apresento, e – hem, hem – lhes peço que me dêem – hem, hem – a sua mais cuidadosa – hem atenção". Evitem isto com o máximo empenho. Outros, por falta de limpeza da garganta, falam como se estivessem entupidos e a ponto de expectorar; seria melhor que o fizessem de uma vez, em lugar de deixar enjoado o ouvinte com repetidos sons desagradáveis. Fungar e aspirar pelo nariz são desculpáveis quando o pregador está resfriado, mas são extremamente desagradáveis, no entanto se se tornam habituais, deveriam ser indiciados como infrações contra o "decreto dos aborrecimentos". Rogo escusas, pois pode parecer vulgar mencionar essas coisas, mas se derem atenção às claras e francas observações feitas nesta sala de aulas poderão livrar-se de muitos motejos feitos ás suas custas mais tarde. Depois de terem pregado, cuidem das suas gargantas, não as envolvendo com agasalhos exagerados. Com base em experiência pessoal, aventuro-me a dar-lhes este conselho de maneira um tanto confidencial. Se alguns de vocês possuem cachecóis de lã deliciosamente quentes, com os quais talvez estejam associadas as mais ternas recordações da mãe ou da irmã, estimem-nos – mas entesourem-nos no fundo do baú; não os exponham a nenhum uso vulgar envolvendo com eles os seus pescoços. Se algum colega quiser morrer de gripe, basta usar uma cálida manta estreita ao redor do pescoço; depois, numa noite qualquer a esquecerá e pegará um resfriado daqueles, que durará pelo resto da sua vida. Raramente se vê um marinheiro com o pescoço agasalhado. Não. Ele sempre o mantém nu e exposto, com colarinho aberto e baixo, e se chega a usar gravata, é das pequenas e de laço solto, de modo que o vento possa soprar em torno do seu pescoço. Sou firme seguidor desta filosofia, e nunca me desviei dela nestes últimos quatorze anos, tendo sofrido resfriado muitas vezes antes disso, e raramente depois. Se acham que lhes falta algo, deixem crescer a barba, ora! Hábito muito natural, bíblico, másculo e benéfico. Um dos nossos irmãos, aqui presente, já faz anos que acha isso muito útil. Foi compelido a sair da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 174 Inglaterra por perder a voz, mas ficou forte como Sansão, agora que as suas melenas ficam sem tosquiar. Se suas gargantas ficarem afetadas, consultem um médico, ou, se não puderem fazer isso, dêem a atenção que lhes aprouver à seguinte idéia: Jamais comprem nenhum dos dez mil emolientes compostos – xaropes, pastilhas, descongestionantes – que a propaganda popular exalta. Podem servir-lhes por uma vez, removendo o incômodo do momento, mas arruínam a garganta com as suas qualidades relaxantes. Se quiserem melhorar as suas gargantas, tomem uma boa porção de pimenta – da boa pimenta de Caiena, e outras substâncias adstringentes, na quantidade que o seu estômago puder agüentar. Não vão além dessa medida, porque precisam lembrar-se de que devem cuidar do estômago, bem como da garganta, e se o aparelho digestivo sofrer desarranjo, nada poderá funcionar bem. O bom senso ensina que os adstringentes só podem ser úteis. Alguma vez vocês ouviram falar que o curtidor transforma pele crua em bom couro deixando-a embebida em açúcar? Tampouco servirão ao propósito dele o bálsamo-de-tolu, a ipecacuanha e o melado, mas justamente o contrário; se ele quer enrijecer e fortalece a pele, coloca-a numa solução de casca de carvalho ou tanino, ou de alguma substância adstringente capaz de fazer contrair-se o material e de fortalecê-lo. Quando comecei a pregar no Exeter Hall, a minha voz era fraca para aquele local – tão fraca como as vozes em seu curso normal, e muitas vezes me faltava completamente quando pregava na rua. Mas no Exeter Hall (lugar geralmente difícil para ser usado para pregação, por sua excessiva largura, desproporcional ao seu comprimento), eu sempre tinha bem perto de mim um vidrinho de vinagre com pimenta e água. Um gole daquilo parecia dar novas forças à garganta, sempre que esta ia ficando cansada e a voz parecia sucumbir. Quando a minha garganta se enfraquece um pouco, normalmente peço ao cozinheiro que me prepare uma tigela de caldo de carne, com tanta pimenta quanta se pode agüentar, e até aqui isso tem sido um soberbo remédio.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 175 Todavia, como não estou qualificado para a prática da medicina, vocês não me darão mais atenção nas questões médicas do que a qualquer outro charlatão. Minha convicção é que metade das dificuldades relacionadas com a voz nos nossos primeiros tempos desaparecerá com o passar dos anos e, com a prática, desenvolverá uma segunda natureza. Quero encorajar os que de fato são zelosos, a perseverarem. Se sentem a Palavra do Senhor arder como fogo nos seus ossos, até a gagueira poderá ser vencida, e o medo, com os seus resultados paralisantes, poderá ser banido. Coragem, jovens irmãos! Perseverem, e Deus, a natureza e a prática os ajudarão.
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ATENÇÃO Praticamente nunca notei a presença do assunto de que vamos tratar em nenhum livro de homilética – fato deveras curioso, pois é matéria de suma importância, fazendo jus a mais de um capítulo. Suponho que os sábios em homilética acham que os seus volumes estão inteiramente temperados com este assunto, e que não têm por que no-lo dar em pedaços, uma vez que, como o açúcar no chá, ele impregna todo o conjunto do seu sabor. O tópico omitido é: COMO OBTER E RETER A ATENÇÃO DOS NOSSOS OUVINTES. A atenção deles tem que ser conquistada, ou nada se poderá fazer com eles; e tem que ser retida, ou poderemos continuar levando as palavras a passear, sem colher benefício algum. Acima do cabeçalho das proclamações militares os nossos oficiais ingleses sempre apõem a palavra "ATENÇÃO!", com enormes letras, e precisamos de uma palavra como essa para colocar no alto de todos os nossos sermões. Precisamos da fervorosa, singela, desperta e continuada atenção dos que compõem a congregação. Se a mente dos homens estiver vagando longe, não poderá receber a verdade, e é como se estivesse inativa. O pecado não pode ser arrancado dos homens enquanto estiverem dormindo, como Eva foi arrancada do lado de Adão. Precisam estar acordados, compreendendo o que dizemos e sentindo a sua força, ou então podemos ir dormir também. Há pregadores que pouco se importam se estão sendo ouvidos ou não, desde que preencham o tempo determinado. É-lhes de somenos importância se o público ouve para a eternidade ou se ouve em vão. Quanto mais depressa esses ministros dormirem no cemitério e pregarem por meio do epitáfio gravado nos seus túmulos, tanto melhor. Alguns irmãos falam para o alto, dirigindo-se ao ventilador, como se buscassem a atenção dos anjos; outros olham para baixo, para o seu livro, como se estivessem absortos a pensar, ou tivessem a si próprios como ouvintes e se sentissem muito honrados com isso. Por que esses
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 177 irmãos não pregam nos prados, edificando as estrelas do firmamento? Se a sua prédica não tem relação com os seus ouvintes, bem que poderiam fazer isso com evidente propriedade. Se o sermão for um solilóquio, quanto mais sozinho estiver o executante, melhor. A um pregador racional (e nem todos são racionais) só pode parecer essencial interessar todos os seus ouvintes, do mais velho ao mais novo. Nem mesmo as crianças devemos fazer com que fiquem desatentas. "Fazer com que fiquem desatentas", o senhor diz, "quem faz isso?" Afirmo que a maioria dos pregadores o faz. E quando as crianças não ficam quietas numa reunião, a culpa é tanto nossa como delas. Você não poderia introduzir uma breve estória ou parábola de propósito para os pequeninos? Você não pode captar o olhar do menino que está na galeria e o da garota embaixo, agitados, e com um sorriso trazê-los à ordem? Muitas vezes eu falo com os olhos aos rapazes órfãos que ficam aos pés do meu púlpito. Queremos todos os olhos fitos em nós e todos os ouvidos abertos para nós. Para mim é um aborrecimento se mesmo um cego não me olha com o seu rosto. Se vejo alguém virandose para os lados, cochilando, cochichando ou olhando o relógio, julgo que não estou atingindo o alvo e que de algum modo devo conquistar aquelas mentes. Muito raramente tenho de queixar-me, e quando o faço, meu plano geral é queixar-me de mim mesmo, e reconhecer que não tenho direito à atenção se não sei captá-la. Agora, há algumas congregações cuja atenção você não consegue prontamente; não se preocupam em interessar-se. É inútil repreendê-las; seria como atirar um penacho numa ave para apanhá-la. O fato é que na maior parte dos casos há outra pessoa que você deve repreender, e essa pessoa é você mesmo. Pode ser dever dos ouvintes dar atenção, mas é muito mais dever seu fazê-los prestar atenção. Você tem que atrair os peixes para o seu anzol, e se eles não vêm, você deve culpar o pescador, e não os peixes. Constrange-os a ficarem quietos por um pouco, e a ouvirem o que Deus, o Senhor, quer falar às suas almas. O ministro que recomendou à velha senhora a tomar rapé para evitar o sono, foi
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 178 censurado pela resposta que recebeu – que se ele pusesse mais rapé no sermão, ela ficaria bem desperta. Devemos lançar bastante rapé no sermão, ou algo mais forte ainda para despertar os ouvintes. Lembre-se de que para alguns elementos da audiência não é fácil manter-se atentos; muitos deles não estão interessados no assunto, e não há qualquer operação da graça nos seus corações que os leve a confessar que o evangelho tem algum valor especial para eles. A respeito do Salvador que você apregoa, pode dizer-lhes: "Nada vos significa contemplar a cruz? Nada vos significa a morte de Jesus?"
Muitos deles sucumbiram durante a semana sob o peso das preocupações com os seus negócios. Deviam transferir o seu fardo para o Senhor; mas você age sempre assim? Você acha sempre fácil escapar das inquietações? Você é capaz de esquecer em casa a esposa exausta e os filhos doentes? Não há dúvida nenhuma de que muitos entram na casa de Deus sobrecarregados de preocupações com as suas atividades diárias. O agricultor lembra-se dos campos que precisam ser arados ou semeados; é um domingo chuvoso, e ele fica refletindo sobre o dourado panorama dos trigais novos. O mercador vê aquela fatura desonrada ondulando diante dos seus olhos, e o comerciante calcula as suas perdas por alheias dívidas irrecuperáveis. Não me espantaria se as cores dos adornos das senhoras e o ranger das botinas dos cavalheiros perturbassem a muitos. Há molestos insetos ao redor, você sabe: Belzebu, o deus dos insetos, cuida para que onde houver uma festa do evangelho, os convidados sejam atormentados com pequenas contrariedades. Muitas vezes mosquitos mentais picam o homem enquanto você lhe está pregando, e ele fica pensando mais em distrações fúteis do que no seu discurso; é de admirar muito que ele aja assim? Você tem que mandar embora os mosquitos e conseguir que os ouvintes não fiquem distraídos com outros pensamentos, retirando-os do canal em que estiveram rodando seis dias e colocando.os num canal próprio para o dia do Senhor. Você precisa ter força de alavanca suficiente em seu discurso
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 179 e em seu assunto para erguê-los acima da terra à qual estão apegados, e elevá-los para mais perto do céu. Com os ouvintes acontece freqüentemente que é muito difícil prestar atenção por causa do lugar e da atmosfera. Por exemplo, se o lugar é como esta sala neste momento, selada contra o ar puro. com todas as janelas fechadas, eles têm trabalho bastante para respirar, e não podem pensar em mais nada. Quando as pessoas inalam repetidamente o ar que já esteve nos pulmões dos outros, toda a maquinaria da vida se desengrena, e elas ficam mais propensas a ter dor de cabeça do que dor de coração. A segunda melhor coisa depois da graça de Deus para o pregador é o oxigênio. Ore para que se abram as janelas do céu, mas comece abrindo as janelas do seu salão de cultos. Verifique muitos dos nossos templos rurais, e receio que também as nossas capelas urbanas, e verá que as janelas não foram feitas para serem abertas. O bárbaro estilo moderno de construção não nos dá mais teto do que um celeiro, nem mais aberturas para ventilação do que encontraríamos num calabouço oriental onde o tirano esperava que o seu prisioneiro morresse pouco a pouco. Que pensaríamos de uma casa em que as janelas não pudessem ser abertas? Algum de vocês alugaria uma moradia dessas? Entretanto, a arquitetura gótica e o orgulho tolo levam muitas pessoas a renunciarem à salutar janela de caixilhos por pequeninos buracos no teto, ou por alçapões para pássaros no lugar das janelas, e assim os locais se tornam menos confortáveis do que a fornalha de Nabucodonosor para Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. Sob a condição de que tais capelas fossem convenientemente postas no seguro, eu não poderia orar por sua preservação do fogo. Mesmo onde as janelas podem ser abertas, muitas vezes ficam fechadas meses inteiros, e de domingo a domingo a atmosfera impura não é renovada. Não se deveria tolerar isto. Conheço algumas pessoas que não ligam para essas coisas, e já ouvi a observação de que as raposas não morrem pelo mau cheiro das suas covas. Mas eu não sou raposa, e o ar viciado nos deixa lerdos, a mim e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 180 aos meus ouvintes. A sensação do ar fresco percorrendo o edifício poderia ser para o público a melhor coisa depois do evangelho; pelo menos o colocaria em adequada disposição mental para receber a verdade. Durante os dias da semana, dê-se ao trabalho de retirar o empecilho causado pelo ar poluído. Na capela em que eu pregava anteriormente, na Park Street, mencionei várias vezes aos oficiais a minha opinião de que seria melhor tirar as vidraças superiores das janelas de estrutura de ferro, pois as janelas não eram de abrir. Falei disso diversas vezes, e nada consegui. Providencialmente, porém, aconteceu que numa segunda-feira alguém tirou a maior parte daquelas vidraças, e de maneira magistral, quase tão bem como se os vidros tivessem sido retirados por um vidraceiro. Houve considerável consternação e muita conjetura quanto a quem teria cometido o crime, e propus que se oferecesse uma recompensa de cinco libras pela descoberta do ofensor que, quando encontrado, deveria receber a quantia de presente. Não se concretizou a recompensa e, portanto, não me senti na obrigação de delatar o indivíduo. Espero que ninguém desconfie de mim, pois, se vocês desconfiarem, terei que confessar que ando com a bengala que fez o oxigênio entrar naquele sufocante edifício. Às vezes os modos do nosso público são avessos à atenção. Não têm o hábito de prestar atenção. Prestam serviço freqüentando a capela, mas não prestam atenção ao pregador. Estão acostumados a olhar em torno cada vez que alguém entra no recinto, e chegam a qualquer hora, e às vezes com muito sapateado, ranger de botas e bater de portas. Uma vez eu estava pregando a pessoas que continuamente olhavam para os lados, e adotei o expediente de dizer: "Agora, amigos, como vocês estão muito interessados em saber quem chega, e como o muito olhar em volta de vocês me perturba muitíssimo, se quiserem, eu descreverei cada pessoa que entrar, de modo que podem ficar sentados e olhando para mim, e façam pelo menos uma demonstração de decência". Descrevi um cavalheiro que entrou, que sucedeu ser um amigo que, sem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 181 ofensa, pude retratar como "um cavalheiro muito respeitável que acabou de tirar o chapéu", e assim por diante; e depois dessa única tentativa, achei que não era necessário descrever mais ninguém, porque ficaram chocados com o que eu estava fazendo, e lhes afirmei que eu tinha ficado muito chocado por tornarem necessário que eu reduzisse a conduta deles àquele absurdo. Curei-os na ocasião, dando – espero que para sempre – muita alegria a seu pastor. Suponhamos agora que tudo isso foi acertado. Você pôs para fora do recinto o ar viciado e corrigiu os modos do povo. O que vem em seguida? Para conseguir a atenção, a primeira regra de ouro é, sempre diga algo que valha a pena ouvir. Na maioria, as pessoas possuem um instinto que as leva a desejar ouvir coisa boa. Têm também um instinto similar, que seria melhor você anotar, a saber, um instinto que as impede de ver benefício em ouvir atentamente meras palavras. Não é crítica severa dizer que há ministros cujas palavras são grandemente proporcionais aos seus pensamentos. De fato, as suas palavras escondem os seus pensamentos, se é que eles têm algum. Despejam montões de palha, e, talvez haja em algum lugar um ou dois feixes de aveia, mas seria difícil dizer onde. As igrejas não ficarão muito tempo escutando palavras, palavras, palavras e nada mais. Não me ocorre que entre os mandamentos exista um que diga: "Não serás verboso", mas talvez esteja compreendido neste mandamento: "Não furtarás"; pois é defraudar os ouvintes dar-lhes palavras em vez de alimento espiritual. "Na multidão de palavras não falta transgressão", mesmo no melhor pregador. Dê aos seus ouvintes algo que eles possam entesourar e recordar; algo que tenha a probabilidade de ser-lhes útil, a melhor matéria do melhor de todos os lugares, sólida doutrina da Palavra de Deus. Dê-lhes o maná repassado do frescor dos céus; não a mesma coisa repetida o tempo todo, sempre da mesma forma, ad nauseam (até causar náusea), como pão de cadeia fornecido da mesma forma o ano inteiro. Dê-lhes algo notável, algo que possa levar um homem a levantar-se no meio da noite para ouvir, e que valha uma caminhada de oitenta
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 182 quilômetros para ouvi-lo. Irmãos, vocês são capazes de fazer isso. Façam-no continuamente, e terão toda a atenção que possam desejar. Disponham com bastante clareza a boa matéria que vocês lhes querem dar. Há muita coisa incluída nisto. É possível amontoar uma imensa massa de coisas boas, tudo em desordem. Desde o dia em que fui à venda com uma cesta e comprei meio quilo de chá, duzentos gramas de mostarda e dois quilos de arroz, e, de caminho para casa vi uma matilha de cães e achei necessário segui-los através de cercas e valados (como sempre fazia quando menino), e ao chegar em casa vi que os artigos estavam amalgamados – o chá, a mostarda e o arroz – numa terrível confusão, compreendi a necessidade de embalar os meus assuntos em porções bem firmes, amarradas com o cordão do meu discurso. E isto me faz manter-me no estilo "primeiro, segundo e terceiro", por mais fora da moda que esteja este método na atualidade. O povo não tomará vosso chá misturado com mostarda, nem gostará dos vossos sermões desordenados, nos quais vocês não podem saber qual é a cabeça e qual a cauda, porque não têm nem uma nem outra, mas são como o cãozinho peludo do Sr. Bright, cuja cabeça e cauda são iguais. Coloquem diante dos homens a verdade de maneira lógica e ordenada, de modo que possam lembrá-la com facilidade, e eles a receberão mais prontamente. Além disso, certifiquem-se de que falam com clareza, porque, por mais excelente que seja o argumento, se o ouvinte não o entende, não lhe é útil. Se é para usar frases que estejam completamente fora do conhecimento dele, e todos de expressão não ajustados à sua mente, tanto faz vocês falarem na sua língua ou na de Kamchatka.* Subam ao nível dele, se se tratar de homem simples; desçam à sua capacidade de compreensão, se for uma pessoa instruída. Vocês dão risada por eu torcer os termos desta maneira, mas acho que ser claro para os iletrados é mais "subir" do que ser refinado para os polidos. De qualquer forma, é o mais difícil dos dois, e mais parecido com o modo de falar do Salvador. É *
Península asiática, outrora parte da Sibéria. Nota do Tradutor.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 183 sábio andar num passo em que os seus ouvintes podem acompanhá-lo, em vez de dar-se ares de importância e ir por cima das cabeças deles. O nosso Senhor e Mestre foi o Rei dos pregadores e, contudo, nunca esteve acima da compreensão de ninguém, salvo naquilo que se refere à grandiosidade e glória do Seu assunto. Suas palavras e declarações eram tais que Ele falava como "o santo menino Jesus". Cogitem os seus corações boa matéria, arrumada com clareza e simplicidade, e é mais que certo que vocês ganharão o ouvido, como também o coração. Atentem também para o modo de apresentar a mensagem; visem com ela a incentivar a atenção dos ouvintes. E aqui devo dizer – como regra geral, não leiam os seus sermões. Tem havido uns poucos leitores de sermões que exercem grande poder, como, por exemplo, o Dr. Chalmers, que não poderia ter tido audiência mais atenta se falasse improvisadamente. Mas o caso é que não suponho que somos iguais ao Dr. Chalmers. Homens eminentes assim podem ler, se o preferirem, mas para nós "há um caminho ainda mais excelente". A melhor leitura que já ouvi tinha gosto de papel, e ficou entalada na minha garganta. Não me agradou, porque minha digestão não é tão boa que possa dissolver folhas de papel. É melhor dispensar o manuscrito, mesmo que vocês sejam obrigados a recitar. Melhor ainda se vocês não precisarem nem de recitar nem de ler. Se tiverem que ler, tratem de fazê-lo com perfeição. Sejam dos melhores leitores, e terão que o ser, se quiserem garantir atenção. Deixem-me dizer aqui – se quiserem ser ouvidos, não exagerem na alocução improvisada, pois isso é tão ruim como a leitura, e talvez pior, a menos que o manuscrito tenha sido redigido improvisadamente, quero dizer, sem estudo prévio. Não vá para o púlpito para dizer a primeira coisa que venha à mão, pois na maioria dos homens a coisa impensada é mera espuma. Os seus ouvintes precisam de discursos preparados com muita oração e muito trabalho. O povo não quer alimento cru; deverá recebê-lo cozido e pronto para ser servido. Devemos dar do íntimo das nossas almas, com as palavras que surgirem naturalmente, o assunto preparado tão completamente tal qual o pudesse fazer o escritor de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 184 sermões; de fato, deve ser mais bem preparado ainda, se é que queremos falar bem. O melhor método é, em meu juízo, aquele em que o homem não apresenta improvisadamente a matéria, mas, as suas palavras são improvisadas. A linguagem lhe vem de improviso, mas o tema foi objeto de muito pensamento, e, como mestre em Israel, fala do que sabe, e testifica do que viu. A fim de conseguirem a atenção, ajam de maneira tão agradável quanto possível. Por exemplo, não cedam ao uso do mesmo tom de voz. Variem continuamente a voz. Variem também a velocidade no falar – lancem-se rápidos como o fulgor do relâmpago, e, daí a pouco, prossigam com serena majestade. Mudem a tônica, alterem a ênfase e evitem o falar cantante. Variem a tonalidade; usem às vezes o baixo, deixando os trovões rolarem nele; outras vezes falem como deveriam fazê-lo geralmente – com os lábios, e dêem tom coloquial à pregação. Faça tudo para haver mudança. A natureza humana tem fome de variações, e Deus no-las provê na natureza, na providência e na graça; tenhamo-las nos sermões também. Contudo, não me delongarei muito nisto, pois os pregadores têm fama de despertar e manter a atenção somente com o assunto que apresentam, sendo muito imperfeito o seu modo de falar. Se Richard Sibbes, o puritano, estivesse aqui esta tarde, garanto que a atenção estaria firmemente posta em qualquer coisa que dissesse, e, entretanto, ele gaguejava horrivelmente. Um dos seus contemporâneos diz que ele gaguejava e sibilava demais. Não é necessário muita procura de exemplos em nossos púlpitos modernos, pois há muitos deles. Devemos lembrar, porém, que Moisés era pesado de boca e de língua, e, apesar disso, todos os ouvidos ficavam atentos às suas palavras. Paulo provavelmente labutou com a mesma fraqueza, pois diziam que o seu falar era desprezível; todavia, não temos certeza disso, porque era só crítica dos seus inimigos. O poder de Paulo era grande nas igrejas, mas nem sempre era capaz de manter a atenção quando o seu sermão era comprido, pois pelo menos um ouvinte dormiu enquanto ele pregava, e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 185 com séria conseqüência. O modo de falar não é tudo. Entretanto, se tiverem ajuntado bom material, será uma lástima transmiti-lo mal. Um rei não andaria numa carruagem empoeirada; as gloriosas doutrinas da graça não devem ser anunciadas com desalinho. As retas e reais verdades devem viajar num carro de ouro. Apresentem os mais nobres dos seus brancos corcéis, e façam que a música soe melodiosamente das trombetas de prata, enquanto a verdade percorre as ruas. Se as pessoas não prestarem atenção, não lhes demos motivo para acharem desculpa em nossa comunicação defeituosa. Contudo, se não conseguirmos corrigir-nos neste aspecto, sejamos diligentes ao máximo para compensar isso com a riqueza do nosso assunto, e em todas as ocasiões façamos o melhor que pudermos. Como regra geral, não façam introdução muito longa. É sempre uma pena construir um grande pórtico para uma casa pequena. Uma excelente senhora cristã ouviu uma vez a John Howe, e, como ele gastou cerca de uma hora no prefácio, a observação dela foi que o bom e querido servo de Deus demorou tanto tempo pondo a mesa, que ela perdeu o apetite; não podia esperar que houvesse algum jantar depois de tudo. Arrume a mesa depressa, sem fazer barulho com os pratos e talheres. Talvez vocês tenham visto certa edição da obra, Rise and Progress of Religion in the Soul (Surgimento e Progresso da Religião na Alma), da autoria de Doddridge, com um ensaio introdutório de John Foster. O ensaio é maior e melhor do que o livro, e priva Doddridge da oportunidade de ser lido. Não é um absurdo? Evitem este erro em suas produções pessoais. Eu prefiro fazer a introdução do meu sermão bem à maneira do pregoeiro público, que toca a sua sineta e grita: "Ó, sim! Ó, sim! Isto é para dar notícia", apenas para fazer o público saber que ele tem notícias para dar-lhe e quer ser ouvido. Para conseguir isso, a introdução deve conter algo extraordinário. É bom disparar uma estrondosa carga com canhoneio como alerta para a ação. Não comecem com todo o impulso e tensão da mente, mas, não obstante, façam-no de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 186 modo que todos sejam levados a esperar bons momentos. Não façam do seu exórdio uma pomposa introdução de coisa nenhuma, mas, façam dele um passo para algo ainda melhor. Sejam vívidos já bem no início. Irmãos, na prédica não se repitam a si próprios. Eu costumava ouvir um pregador que tinha o hábito de, depois de ter pronunciado cerca de uma dúzia de frases, dizer: "Como já observei", ou, "Repito o que antes fiz notar". Bem, alma bondosa, como não havia nada de especial no que ele tinha dito, a repetição só servia para revelar com maior clareza a nudez da terra. Se foi muito bom, e vocês o disseram com ênfase, por que retornar àquilo? Se foi algo fraco, por que exibi-lo segunda vez? Ocasionalmente, é claro, a repetição de umas poucas frases pode ser muito expressiva; qualquer coisa povo ser boa ocasionalmente, e, contudo, pode ser péssima como hábito. Quem se espanta porque o povo não o ouve da primeira vez, quando sabe que tudo tornará a vir? Ademais, não repitam a mesma idéia vez após vez, empregando outras palavras. Façam surgir algo novo em cada frase. Não fiquem a vida toda martelando o mesmo prego; a Bíblia é grande; permitam que o povo desfrute o comprimento e a largura da Palavra de Deus. E, irmãos, não pensem que é necessário ou importante dar, toda vez que pregam, um sumário completo de teologia, ou uma compilação formal de doutrinas, à moda do Dr. Gill – não que eu queira desacreditar o Dr. Gill ou falar uma palavra contra ele – seu método é admirável para um corpo de teologia, ou para um comentário, mas não se presta bem para a pregação. Conheço um teólogo cujos sermões, sempre que impressos, parecem compêndios teológicos, mais próprios para uma sala de aulas do que para o púlpito. Soam insípidos nos ouvidos do público. Os nossos ouvintes não querem os puros ossos da definição técnica, mas carne e sabor. As definições e diferenciações são boa coisa, mas, quando constituem o artigo principal do sermão, lembram-nos o jovem cujo discurso se compunha de várias distinções importantes. Sobre essa apresentação um velho oficial observou que havia uma distinção que o pregador omitira, a saber, a distinção entre carne e ossos. Se os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 187 pregadores não fizerem esta distinção, todas as suas outras distinções não lhes trarão muita distinção. Para manter a atenção, evitem alongar-se muito. Um velho pregador costumava dizer a um jovem que pregava uma hora: "Meu caro amigo, não me importa acerca do que você pregue, mas gostaria que sempre pregasse cerca de quarenta minutos". Raramente devemos ir muito além disso – quarenta minutos, ou, digamos, três quartos de hora. Se um sujeito não puder dizer tudo que tem para dizer nesse tempo, quando o dirá? Mas houve alguém que disse que gostava de "fazer justiça ao seu tema". Muito bem, mas, não deveria fazer justiça aos seus ouvintes, ou, pelo menos, ter um pouco de misericórdia deles, e não os reter demasiado tempo? O tema não se queixará de vocês, mas o povo sim. Em alguns lugares da zona rural, principalmente à tarde, os sitiantes têm que ordenhar as vacas, e um deles queixou-se amargamente comigo de um jovem – creio que desta escola – "Sr. Spurgeon, ele devia ter terminado às quatro horas, mas continuou por mais meia hora, e lá estavam todas as minhas vacas esperando pela ordenha! Como se sentiria ele se fosse uma vaca?" Havia muito sentido nessa interrogação. A Sociedade Protetora de Animais devia ter processado aquele jovem declamador. Como podem os criadores de gado ouvir com proveito quando suas cabeças estão cheias de vacas? A mãe acha moralmente certo, durante os dez minutos extras do sermão, que a criança esteja chorando, ou que o fogo se apague, e ela nem pode pôr, e nem põe mesmo, o coração nas suas ministrações. Vocês a estão retendo dez minutos além do trato que ela aceitara, e vê isso como uma injustiça da parte de vocês. Existe uma espécie de pacto moral entre vocês e a congregação, de que não haverão de cansá-la por mais de uma hora e meia, e se a retiverem por mais tempo, isto equivalerá a uma infração de um tratado e a um ato de desonestidade prática da qual não deveriam fazer-se culpados. A brevidade é uma virtude que está ao alcance de todos nós; não percamos a oportunidade de ganhar o crédito que ela traz. Se me
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 188 perguntarem como fazer para encurtar os sermões, dir-lhes-ei, estudemnos melhor. Passem mais tempo no gabinete, para que necessitem menos tempo no púlpito. Geralmente nos alongamos mais quando temos menos a dizer. O homem com muito material bem preparado provavelmente não excederá quarenta minutos; quando tem menos que dizer, irá aos cinqüenta minutos, e quando não tem absolutamente nada, precisará de uma hora para dizê-lo. Dêem atenção a estas pequeninas coisas, e elas os ajudarão a reter a atenção dos ouvintes. Irmãos, se vocês quiserem ter a atenção dos seus ouvintes – tê-la completa e constantemente, isto só se pode realizar se eles forem conduzidos pelo Espírito de Deus a um elevado e devoto estado mental. Se os seus ouvintes forem suscetíveis de ensino, gente de oração, ativos, fervorosos, devotas, virão à casa de Deus com o propósito de receber uma bênção. Tomarão os seus lugares com atitude piedosa, pedindo a Deus que lhes falem por intermédio de vocês; ficarão atentos a cada palavra, e não se cansarão. Terão apetite pelo evangelho, pois conhecem o dulçor do maná celestial, e estarão ávidos por recolher as porções que lhes cabem. Ninguém jamais terá uma igreja á qual pregar que supere a minha neste aspecto. Na verdade, os melhores ouvintes, para o pregador, são geralmente aqueles com quem ele está mais familiarizado. É-me relativamente fácil pregar no Tabernáculo; o meu povo vem com o propósito de ouvir alguma coisa, e a sua expectativa ajuda o seu cumprimento. Se fosse ouvir outro pregador com a mesma expectação, creio que em geral ficaria satisfeito, conquanto haja exceções. Quando o pregador está iniciando o seu pastorado; não pode esperar que os seus ouvintes lhe dêem aquela fervente atenção obtida por aqueles que são como pais entre os próprios filhos, amado pelo seu povo por mil lembranças, e estimado por sua idade e experiência. A nossa vida, na integra, deve ser tal que acrescente peso às nossas palavras, de sorte que nos anos da maturidade sejamos capazes de brandir a invencível eloqüência de um caráter mantido através de muito tempo, e possamos obter, não somente a atenção, mas também a afetuosa veneração do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 189 nosso rebanho. Se com as nossas orações, lágrimas e labutas o nosso povo se tornar espiritualmente sadio, não precisaremos ter medo de perder a sua atenção. Um povo com fome de justiça, e um ministro ansioso por alimentar as suas almas, agirão na mais suave harmonia entre si, quando o vínculo comum a ambos for a Palavra de Deus. Se vocês tiverem necessidade de outra orientação para obter a atenção, devo dizer-lhes, estejam vocês mesmos interessados, e interessarão outros. Há mais nessas palavras do que parece, e, portanto, seguirei aqui um costume que condenei agora há pouco, repetindo a frase – estejam vocês mesmos interessados, e interessarão outras pessoas. O assunto que vão apresentar deve pesar tanto sobre suas mentes, que vocês dedicarão todas as suas faculdades, no que elas têm de melhor, à entrega de suas almas quanto ao referido tema; então, quando os seus ouvintes virem que o tópico os absorveu, aos poucos se absorverão também. Vocês se admiram se o povo não presta atenção a um homem que acha que não tem algo importante para dizer? Espantam-se porque o povo não é todo ouvidos quando o pregador não fala de todo o coração? Maravilham-se de que os pensamentos dos ouvintes vagueiem por entre assuntos reais para eles quando vêem que o pregador está perdendo tempo com matérias de que trata como se fossem ficção? Romaine costumava dizer que era bom entender a arte de pregar, mas infinitamente melhor conhecer o coração da pregação; e nesta afirmativa não há pouco peso. O coração da prédica, o lançamento da alma nela, o fervor que clama como pela própria vida, é metade da batalha pela conquista da atenção. Ao mesmo tempo, vocês não poderão manter a mente dos homens em total atenção só com o fervor, se não tiverem nada para dizer. As pessoas não ficarão às suas portas para sempre a ouvir um sujeito tocar bumbo; sairão para fora a fim de ver o que está acontecendo, mas quando virem que é muita bulha por nada, baterão a porta e entrarão em casa de novo, como que dizendo: "Você nos logrou, e não gostamos".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 190 Tenham alguma coisa para dizer, digam-na com fervor, e a congregação se porá a seus pés. Talvez seja supérfluo notar que para grande parte do nosso público é bom que haja bom número de ilustrações em nossos discursos. Temos o exemplo de nosso Senhor para isso; e a maioria dos maiores pregadores têm sido abundantes em símiles, metáforas, alegorias e historietas. Cuidado para não exagerar nisso. Outro dia li o diário de uma dama alemã que se converteu do luteranismo à nossa fé, e fala de certo povoado onde ela mora: "Existe aqui um posto missionário, e jovens descem para pregar-nos. Não quero incriminar esses jovens cavalheiros, mas eles nos contam muitas estorinhas bonitas, e não vejo muita outra coisa no que eles dizem. Também ouvi algumas das suas pequenas estórias antes, e daí, eles não me despertam muito interesse como o fariam se nos falassem de alguma boa doutrina das Escrituras".
Sem dúvida a mesma coisa passou pela mente de muitos outros. "Estórias bonitas" são muito boas, mas nunca funciona confiar nelas como sendo a grande atração de um sermão. Além disso, estejam alertas quanto a certas "belas estorinhas" dessas, pois a sua época chegou e passou; essas pobres coisas estão surradas de tanto uso, e deviam ir para o baú de trapos. Ouvi algumas delas tantas vezes que eu mesmo poderia contá-las, mas não há por quê. Do estoque de historietas bem que poderíamos nos livrar, tanto a nós como aos nossos ouvintes. Anedotas antigas nos deixam doentes, quando os engraçadinhos as reeditam como suas idéias próprias, e historietas que os nossos bisavós ouviam fazem o mesmo efeito na mente. Cuidado com aquelas compilações de ilustrações extremamente populares, que se acham nas mãos de todos os professores da Escola Dominical, pois ninguém lhes agradecerá a repetição daquilo que toda gente já sabe de cor. Se vocês contarem historietas, cuidem para que tenham algum grau de novidade e originalidade. Mantenham os olhos abertos, e colhem com as suas mãos flores do jardim e do campo. Serão muito mais aceitáveis do que exemplares murchos tirados de ramalhetes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 191 alheios, por mais belos que estes possam ter sido outrora. Ilustrem rica e pertinentemente, porém, não tanto com parábolas importadas de fontes estrangeiras, como com símiles apropriados que brotem do próprio tema. Todavia, não pensem que a ilustração é tudo; é a janela, mas de que serve a luz que passa por ela, se vocês não têm nada para a luz revelar? Enfeitem os seus pratos, mas, lembrem-se de que o assado é o principal ponto a considerar, não o enfeite. É preciso dar instrução real e ensinar sólida doutrina, se não as suas figuras darão desalento aos seus ouvintes, e eles ansiarão por carne espiritual. Em seus sermões cultivem o que o padre Taylor chama de "o poder da surpresa". Há grande porção de força nisso para obter-se atenção. Não digam o que todos esperam que digam. Mantenham as suas frases fora dos sulcos rotineiros. Se vocês já disseram, "A salvação é só pela graça", não acrescentem sempre, "e não por méritos humanos" mas variem e digam, "A salvação é só pela graça; a justiça própria não tem nenhum canto para esconder a cabeça". Receio não poder recordar uma frase do Sr. Taylor de maneira que lhe faça justiça, mas é mais ou menos assim: "Alguns de vocês não progridem muito na vida ministerial porque vão para frente um trecho da rota, e logo vogam de volta, como um barco num rio de regime de marés, que avança com a correnteza só para ser trazido de volta com o refluxo da maré. Assim vocês fazem bom progresso por um pouco, e depois, de repente" – que disse ele? – "ficam encalhados em alguma enseada lamacenta". Também não repetiu ele para nós dizeres com este sentido: "Ele estava certo de que se eles fossem convertidos, andariam retamente e manteriam os seus bois fora da lavoura do vizinho"? Recorrer ocasionalmente a este sistema de surpresa manterá uma audiência em estado de adequada expectativa. No ano passado, mais ou menos nesta época do ano, sentei-me na praia de Mantone, no Mar Mediterrâneo. As ondas iam e vinham mansamente, pois ali existe pouca maré, ou nenhuma, e o vento era brando. As ondas se arrastavam languidamente uma após outra, e eu lhes dava pouca atenção, embora
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 192 estivessem bem aos meus pés. De súbito, como se tomado de nova paixão, o mar arremessou uma enorme vaga que me ensopou completamente. Tranqüilo como eu estava, vocês podem compreender prontamente com que rapidez me pus de pé, e com que velocidade se desfez o meu devaneio. Observei a um colega de ministério que estava ao meu lado: "Isto nos mostra como pregar; para despertar os ouvintes precisamos assustálos com alguma coisa que eles não esperavam". Irmãos, peguem-nos de surpresa. Façam cair raios de um céu límpido. Quando tudo estiver calmo e brilhante, façam irromper a tempestade e, por contraste, aumentem os seus terrores. Lembrem-se, porém, que nada terá valor se vocês dormirem enquanto estiverem pregando. Será possível isso? Oh, possível! Faz-se todo domingo. Muitos ministros estão mais que meio dormindo durante o sermão inteiro; na verdade, nunca estiveram acordados em tempo nenhum, e provavelmente nunca estarão, a menos que estoure um tiro de canhão perto das suas orelhas. Frases mansas, expressões gastas pelo uso, e enfadonhas monotonias dominam os seus discursos, e se admiram de que o público fique tão sonolento; eu confesso que não me admiro. A pausa ajuda muito a garantir a atenção. Retesem as rédeas de repente uma vez ou outra, e os passageiros da sua carruagem se despertarão. O moleiro vai dormir enquanto as rodas do moinho giram; mas, se por qualquer motivo a moagem pára, o bom homem dá um salto e grita: "Que é que foi?" Num sufocante dia de verão, se nada eliminar a sensação de sono, sejam muito breve, cantem mais vezes que de costume, ou convidem um ou dois irmãos para orarem. Um ministro que viu que o público ia dormir, sentou-se, dizendo: "Vi que todos vocês estavam repousando, e pensei em repousar eu também". Andrew Fuller mal começara um sermão, quando viu que o povo ia dormir. Disse ele: "Amigos, amigos, amigos, isto não pode ser. Algumas vezes pensei que quando vocês dormiam, a culpa era minha, mas agora vocês estão dormindo antes de eu começar, e a culpa só pode ser de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 193 vocês. Rogo-lhes que acordem e me dêem oportunidade de fazer-lhes algum benefício". É isso mesmo. Saibam fazer pausa. Façam paradas de quietude que despertem. Falar é prata, mas o silêncio é ouro quando os ouvintes estão desatentos. Continuem, mais, mais, mais e mais, com assuntos que são lugares comuns e com voz monótona, e estará embalando o berço, e sono mais profundo será o resultado; dêem um puxão no berço, e o sono fugirá. Sugiro ainda que, a fim de assegurar a atenção durante todo um discurso, devemos fazer que o povo sinta que tem interesse naquilo que lhe estamos falando. Este é, de fato, um ponto extremamente essencial, porque ninguém dorme enquanto espera ouvir algo que lhe convém. Tenho ouvido falar de algumas coisas muito estranhas, mas nunca ouvi dizer que uma pessoa dormiu enquanto se lia um testamento no qual esperava uma herança, nem ouvi dizer que algum prisioneiro dormiu quando o juiz estava fazendo o sumário para a sentença, e sua vida estava em perigo. O interesse próprio estimula atenção. Preguem sobre temas práticos, atuais e de interesse pessoal, e garantirão que os ouçam fervorosamente. Será bom impedir que os assistentes atravessem os corredores da nave para lidar com o gás ou com as lâmpadas, ou para passar os pratos da coleta, ou para abrir janelas. Diáconos e auxiliares trotando pelo recinto são uma tortura que jamais deve ser suportada com paciência, e se deve pedir bondosa mas decididamente que suspendam as suas perambulações. Os retardatários também precisam ser corrigidos, e nesse sentido devemos fazer gentis arrazoados e admoestações. Tenho certeza que o diabo dá a mão a muitos distúrbios ocorridos na igreja reunida, irritando os nossos nervos e distraindo os nossos pensamentos. O bater de uma porta, a queda seca de uma bengala no piso, ou o choro de uma criança, todas estas coisas são instrumentos nas mãos do maligno para estorvar o nosso trabalho; podemos, pois, muito justificadamente, pedir aos nossos ouvintes que protejam o nosso serviço útil dessa classe de agressões.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 194 Dei-lhes uma regra de ouro para obter a atenção no começo, a saber, sempre digam alguma coisa que valha a pena ouvir; agora lhes vou dar uma regra de diamante, e concluirei. Irmãos, revistam-se do Espírito de Deus, e depois não questionem acerca do surgimento ou não da atenção. Venham revigorados do gabinete pastoral e da comunhão com Deus, para falar de todo o coração e de toda a alma aos homens por Deus, e haverão de ter poder sobre eles. Vocês possuem cadeias de ouro na boca que os prenderão com segurança. Quando Deus fala os homens devem ouvir, e embora Ele fale por meio de um pobre e frágil homem como eles mesmos, a majestade da verdade os compelirá a acatar a Sua voz. O poder sobrenatural deverá ser a sua confiança. Dizemos-lhes, irmãos, aperfeiçoem-se na oratória, cultivem todos os campos do conhecimento, façam que o seu sermão seja tudo o que deve ser intelectual e retoricamente (vocês não devem deixar por menos esse serviço), mas ao mesmo tempo lembrem que não é "por força nem por poder" que os homens são regenerados ou santificados, mas "por meu Espírito, diz o Senhor". Às vezes vocês não se sentem vestidos de zelo como de um manto, e plenamente cheios do Espírito de Deus? Nessas ocasiões vocês tiveram um público ouvindo atentamente, e, em pouco tempo, um público crente; mas se vocês não forem assim dotados de poder do Alto, não serão para os ouvintes nada mais que um músico que toca um belo instrumento, ou que canta uma agradável canção com clara voz, alcançando os ouvidos, mas não o coração. Se vocês não atingirem o coração, logo os ouvidos se cansarão. Revistam-se, pois, irmãos, do poder do Espírito de Deus, e preguem aos homens como os que têm que dar logo um relatório, e desejam que o mesmo não seja doloroso para os seus ouvintes, nem mortificante para si próprios, mas que seja para a glória de Deus. Irmãos, que o Senhor seja com vocês, enquanto avançam em nome dEle e bradam: "Quem tem ouvidos, ouça".
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A CAPACIDADE DE FALAR DE IMPROVISO Não vamos discutir aqui a questão se os sermões devem ser escritos e lidos, ou escritos, decorados e repetidos, ou ainda se se devem empregar copiosas anotações ou nenhuma. Nenhum desses itens constitui o assunto agora em consideração, embora possamos aludir incidentalmente a cada um deles; mas nesta oportunidade vamos falar da alocução improvisada em sua mais autêntica e completa forma – o discurso de improviso, sem preparação especial, sem notas ou premeditação. Nossa primeira observação será que não recomendamos a ninguém que tente pregar desde modo como regra geral. Se o tentasse, certamente conseguiria, cremos nós, produzir um vácuo no seu local de reuniões. Os seus dons de dispersão se manifestariam claramente. Pensamentos não estudados provenientes do intelecto sem prévia pesquisa, sem que os temas em mãos tenham sido investigados nem um pouco, só podem ser de qualidade muito inferior, mesmo que sejam de homens talentosos. E como nenhum de nós teria a afrontosa ousadia de glorificar-nos como homens de gênio ou como maravilhas de erudição, temo que os nossos pensamentos não premeditados sobre a maioria dos assuntos não seriam dignos de atenção. As igrejas não haverão de ser mantidas unidas senão por um ministro capaz de instruir; encher simplesmente o tempo com oratória não basta. Em toda parte os homens pedem que os alimentem, que os alimentem realmente. Aqueles religionários novidadeiros, cujo culto público em geral consiste de preleções feitas por qualquer irmão que queira apresentar-se de momento e falar, não obstante o seu lisonjeiro incitamento aos ignorantes e tagarelas, quase sempre definham e desaparecem; porque, mesmo os homens que adotam as idéias caracterizadas pela mais contundente excentricidade, concebendo que o Espírito quer que cada membro do corpo seja uma testemunha, logo se impacientam ao ouvirem os absurdos de outra gente, embora contentes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 196 por dispensar os seus próprios. Enquanto isso, a maior parte do bondoso público se cansa da ignorância prosaica, e volta para as igrejas das quais se deixara levar, ou voltaria se os seus púlpitos fossem supridos de ensino sólido. Mesmo o movimento dos quacres, com todas as suas excelentes virtudes, mal pode sobreviver à pobreza de pensamento e de doutrina, demonstrada em muitas das suas assembléias por oradores que falam de improviso. O método de realizar ministrações despreparadas é um fracasso na prática, e teoricamente defeituoso. O Espírito Santo não fez promessa de fornecer alimento espiritual aos santos por intermédio de um ministério improvisado. Ele jamais fará para nós o que nós mesmos podemos fazer. Se podemos estudar e não o fazemos, se podemos ter um ministério estudioso e não o exercitamos, não temos direito de apelar para a intervenção divina para cobrir os déficits da nossa ociosidade ou da nossa excentricidade. O Deus da providência prometeu alimentar o Seu povo com alimento temporal; mas se nos reuníssemos para um banquete e ninguém tivesse preparado nem um só prato porque todos tinham fé no Senhor de que a comida seria dada na hora exata, o festival não seria muito satisfatório, pois a estultícia seria repreendida pela fome; como, na verdade, se dá no caso dos banquetes espirituais do tipo improvisado. Contudo os receptáculos espirituais dos homens raramente são "oradores" tão poderosos como os seus estômagos. Cavalheiros, conto regra, não tentem seguir um sistema de coisas que geralmente é tão sem proveito que as poucas exceções só confirmam a regra. Todos os sermões devem ser bem ponderados e preparados pelo pregador; e, quanto possível, todo ministro deve, com muita oração por direção divina, penetrar plenamente no seu tema, exercitar todas as suas faculdades mentais com originalidade, e reunir todas as informações que estejam ao seu alcance. Examinando de todos os ângulos a matéria toda, o pregador deve refletir nela, mastigá-la e digeri-la; e, tendo-se ele próprio alimentado com a Palavra, deve depois preparar a mesma nutrição para outros. Os nossos sermões devem ser o nosso sangue vital
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 197 mental – o fluxo do nosso vigor espiritual e intelectual; ou, para mudar a figura, devem ser diamantes bem lapidados e bem guarnecidos – intrinsecamente preciosos, e trazendo as marcas do labor. Não permita Deus que ofereçamos ao Senhor algo que não nos custe nada. Com muito empenho advirto-os a todos contra a leitura dos seus sermões, mas lhes recomendo, como exercício sumamente saudável, e como grande auxílio com vistas à consecução de poder na pregação improvisada, que freqüentemente os escrevam. Aqueles de nós que escrevem muito noutras modalidades, para a imprensa etc., talvez não precisem tanto desse exercício; mas, se vocês não usam a caneta de outros modos, será prudente escreverem ao menos alguns dos seus sermões, e revisá-los com grande esmero. Deixem-nos em casa depois, mas continuem a escrevê-los, para que fiquem livres de um estilo desmazelado. M. Bautain, em sua admirável obra sobre a alocução improvisada, observa: "Você nunca será capaz de falar bem em público se não adquirir tal domínio do seu próprio pensamento que o capacite a decompô-lo em suas partes, analisá-lo em seus elementos, e depois, quando necessário recompô-lo, reuni-lo e concentrá-lo de novo por um processo de síntese. Pois bem, esta análise da idéia, que a expõe, por assim dizer, diante dos olhos da mente, só se executa bem escrevendo. A caneta é o escalpelo que disseca os pensamentos, e nunca você poderá conseguir discernir claramente tudo que se contém numa concepção, ou atingir o seu escopo bem determinado, a não ser quando escreve o que contempla interiormente. Então você se compreende a si próprio, e faz com que outros o compreendam".
Não recomendamos o plano de aprender de cor os sermões, repetindo-os depois de memória. Isso é ao mesmo tempo um cansativo exercício de uma capacidade inferior da mente, e uma indolente negligência de faculdades outras e superiores. O plano mais árduo e mais recomendável é suprir a mente de material sobre o assunto do discurso, e depois transmiti-lo com palavras apropriadas que se sugiram a si mesmas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 198 na hora. Isto não é prédica improvisada; as palavras são improvisadas, como creio que sempre devem ser, mas os pensamentos resultam de pesquisa e estudo. Só pessoas negligentes pensam que isso é fácil. É a um só tempo o mais trabalhoso e o mais eficiente modo de pregar, e tem suas virtudes próprias, das quais não posso falar particularmente agora, visto que isto nos levaria para longe do ponto em questão. Nosso assunto trata da alocução pura, casta e genuinamente improvisada, e a ele voltamos. Esse poder é extremamente útil e, na maioria dos casos, pode ser adquirido com um pouco de diligência. Muitos o possuem, mas não tantos que eu seja incorreto se disser que o dom é raro. Os improvisatori da Itália possuíam em tal extensão o poder de falar de improviso, que as suas poesias sobre assuntos sugeridos no palco pelos espectadores chegavam muitas vezes a centenas e até milhares de versos. Produziam tragédias completas tão espontaneamente como nas fontes a água borbulha, e rimavam meia hora ou uma hora inteira ao estímulo do momento, e talvez também ao estímulo de um pouco de vinho italiano. Suas obras impressas raramente vão acima da mediocridade e, todavia, um deles, Perfetti, obteve a coroa de louros com que somente Petrarca e Tasso tinham sido premiados. Muitos deles nestes dias produzem na hora versos ao nível das capacidades dos seus ouvintes, e os prendem fascinados. Por que nós não adquirimos esse poder para a prosa? Não seremos capazes, suponho, de produzir poesias, nem precisamos desejar essa faculdade. Sem dúvida, muitos de vocês têm versificado um pouco (pois, qual de nós, num momento de fraqueza, não o fez?), mas deixamos as coisas de meninos, agora que a sóbria prosa de vida e morte, céu e inferno, e pecadores que perecem, requer todo o nosso pensamento. Muitos advogados possuem em alto grau o dom de falar de improviso. Haveriam de ter algumas virtudes! Algumas semanas atrás uma infeliz criatura foi processada pelo horrível crime de caluniar um advogado. Foi bom para ele que eu não fui o seu juiz, pois se eu fosse levado a cuidar razoavelmente de um crime tão difícil e atroz, eu o teria
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 199 entregue para ser interrogado durante a duração da sua vida natural, esperando, por amor à misericórdia, que fosse curta. Mas muitos dos cavalheiros do tribunal são oradores sempre preparados para falar, e como vocês vêem claramente, eles devem ser também, em considerável grau, improvisadores, porque lhes seria impossível prever sempre a linha de argumentação que as provas, ou o temperamento do juiz, ou as alegações da parte contrária poderiam exigir. Por melhor que se prepare um caso, terão que surgir e surgirão pontos que requererão mente viva e língua fluente para lidar com eles. De fato, tenho ficado admirado ao observar as réplicas espirituosas, agudas e em todos os aspectos apropriadas que o causídico arremessa, sem meditação prévia, em nossos tribunais. O que um advogado pode fazer defendendo a causa do seu cliente, certamente eu e você devemos ser capazes de fazer pela causa de Deus. Não se deve permitir que a tribuna forense sobrepuje o púlpito em excelência. Com a ajuda de Deus, seremos tão competentes no uso das armas intelectuais como quaisquer outros homens, sejam eles quem forem. Certos membros da Casa dos Comuns exercitaram a capacidade de falar improvisadamente com grandes resultados. Normalmente, de todas as tarefas que nos obrigam a ouvir, a mais miserável é a de escutar a casta comum de oradores da Casa dos Lordes e dos Comuns. Oxalá se proponha que, quando for abolida a pena de morte, os que forem achados culpados de homicídio, sejam obrigados a ouvir uma seleção dos mais áridos oradores do parlamento. Que a Sociedade Real pelos Direitos Humanos o impeça. Todavia, alguns membros da Casa são capazes de falar de improviso, e de falar bem. Imagino que algumas das coisas mais belas que foram ditas por John Bright, Gladstone e Disraeli, foram muito bem o que Southey chamaria de jatos do grande gêiser quando a fonte está em plena atividade. Naturalmente os seus longos discursos sobre orçamento, sobre o decreto de reforma, etc., foram elaborados ao máximo mediante manipulações prévias; mas muitos dos seus discursos mais curtos foram,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 200 sem dúvida, produtos da hora, e contudo estão cercados por espantoso volume de poder. Atingirão os representantes da nação uma perícia no falar maior do que a dos representantes da corte celestial? Irmãos, ambicionem fervorosamente este valioso dom, e partam para conquistá-lo. Todos vocês estão convencidos de que a capacidade que estamos considerando é por certo uma inapreciável possessão para o ministro. Será que ouvimos um coração solitário cochichar: "Eu gostaria de tê-la, pois daí não teria necessidade de estudar tão arduamente"? Ah! Neste caso você não deve tê-la; é indigno desta dádiva, e não está apto para que lhe seja confiada. Se você procura o dom para usá-lo como travesseiro para uma cabeça preguiçosa, está muito enganado, pois a posse desse poder o envolverá numa soma imensa de trabalho para aumentá-lo ou mesmo conservá-lo. É como a lâmpada mágica da fábula, que não acendia se não fosse bem esfregada, e se tornava um simples globo opaco quando cessava a fricção. O que o ocioso deseja para sua comodidade, podemos, contudo, cobiçar pelo melhor de todos os motivos. Ocasionalmente se ouve ou se lê sobre homens que concordam, por bravata, em pregar sobre textos dados a eles na hora no púlpito, ou no gabinete pastoral; essas exibições de vanglória são repulsivas e tocam as raias da profanação. Também poderíamos fazer exibições ilusionistas no dia do Senhor, como saltimbancos da oratória. Recebemos os nossos talentos para fins bem diferentes. Confio em que vocês nunca se permitirão essa prostituição do dom. Proezas de alocução ficam bem numa agremiação de debates, mas no ministério são abomináveis, mesmo quando um Bossuet se preste para isso. A capacidade de falar de improviso é inapreciável, porque possibilita ao homem, ao estímulo do momento, numa emergência, comunicar-se com propriedade. Estas emergências surgem. Acidentes ocorrem nas mais ordeiras assembléias. Eventos singulares podem alterar completamente o curso dos seus pensamentos. Você percebe claramente
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 201 que o assunto escolhido seria inoportuno, e, como homem prudente, muda sem demora para alguma outra coisa. Quando se fecha a velha estrada e não há outro recurso senão o de abrir novo caminho para a carruagem, se você não estiver qualificado para dirigir os cavalos por um campo arado bem como pela estrada empedrada pela qual esperava viajar, você se verá lançado fora da boléia, e os companheiros sofrerão o prejuízo. É grande aquisição poder, numa reunião pública, depois de ouvir os discursos dos seus irmãos e achar que foram muito frívolos, ou talvez, por outro lado, muito enfadonhos, serenamente, sem aludir a eles, neutralizar o mal e levar a assembléia a uma linha de pensamento mais proveitosa. Este dom pode ser da máxima importância na reunião eclesiástica, na qual podem surgir questões que seria difícil prever. Nem todos os perturbadores de Israel já morreram. Acã foi apedrejado, com sua mulher e seus filhos, mas outros da sua família devem ter escapado, pois o certo é que a raça se perpetuou, e deve ser tratada com prudência e vigor. Em algumas igrejas, certos homens turbulentos se levantam e falam, e quando fazem isso, é de grande importância que o pastor replique prontamente e de modo convincente, para que não permaneçam más impressões. O pastor que vai à reunião eclesiástica no espírito do Mestre, sentindo-se seguro de que, confiando no Espírito Santo, será perfeitamente capaz de responder a qualquer espírito amolante, senta-se tranqüilo, mantém a calma, sobe no conceito geral a cada lance, e consegue uma igreja pacífica. Mas o irmão despreparado fica agitado, provavelmente se acalora, compromete-se, e herda um mundo de aborrecimentos. Além disso, um homem pode ser convidado para pregar à última hora, por não ter chegado o ministro esperado, ou por ter adoecido de repente; numa reunião pública pode sentir-se impelido a pregar embora tivesse decidido ficar em silêncio; e em qualquer forma de exercício religioso podem ocorrer emergências que tornarão a alocução feita de improviso preciosa como o ouro de Ofir.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 202 O dom é valioso. Como obtê-lo? A indagação leva-nos a observar que alguns jamais o obterão. Tem que haver uma adaptabilidade natural, para a alocução improvisada. É como no caso da arte poética: um poeta nasce, não se faz. "A arte pode desenvolver e aperfeiçoar o talento do orador, mas não pode produzi-lo." Todas as regras de retórica e todos os artifícios da oratória não conseguem tornar eloqüente um homem; é dom do céu, e onde inexiste, não pode ser adquirido. Este "dom de comunicação", como lhe chamamos, nasce com algumas pessoas, provavelmente herdado do lado materno.1 Para outras o dom é negado; o fato de que têm boca, e ainda mais o fato de que têm cérebro, nunca lhes concederão que se tornem oradores fluentes e expeditos. Talvez possam fazer desses homens tartamudos moderados, e vagarosos transmissores de verdades sóbrias, mas eles nunca serão oradores capazes de improvisar. Se não forem rivais de Matusalém na idade, e tampouco da teoria darwiniana, que extrai um arcebispo da Cantuária de uma ostra, poderão desenvolver-se e transformar-se em oradores. Se não houver um dom natural de oratória, um irmão pode chegar a uma posição respeitável noutras profissões, mas não é provável que brilhe como um astro de particular esplendor na alocução improvisada. Se um homem quiser falar desprovido de qualquer estudo, normalmente precisará estudar muito. Talvez seja um paradoxo, mas a sua explicação está na superfície. Se sou moleiro, e me trazem um saco à porta para que o encha de farinha de primeira em cinco minutos, o único modo pelo qual posso fazê-lo é mantendo o celeiro do meu moinho sempre cheio, para que possa logo abrir a boca do saco, enchê-lo de farinha e entregá-lo. Não estou moendo na ocasião, de modo que a entrega é improvisada; mas estive moendo antes, e assim tenho farinha para servir o freguês.
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"Há homens estruturados para falar bem, como há pássaros estruturados para cantar bem, abelhas para produzir mel, e o castor para construir." M. Bautain.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 203 Assim, irmãos, é preciso que tenham estado moendo, ou não terão farinha. Vocês não serão capazes de transmitir de improviso bom pensamento se não tiverem o hábito de pensar e alimentar as suas mentes com alimento abundante e nutritivo. Trabalhem arduamente em todos os momentos disponíveis. Aprovisionem as suas mentes ricamente, e então, como negociantes com os seus armazéns atulhados, terão mercadorias prontas para os seus fregueses, e, tendo arrumado as suas boas coisas nas prateleiras das suas mentes, poderão fazê-las descer a qualquer hora sem o trabalhoso processo de ir ao mercado, classificar, embrulhar e preparar. Não acredito que algum homem seja capaz de manter continuamente com sucesso o dom da alocução improvisada, exceto empregando ordinariamente mais afã do que normalmente acontece com os que escrevem os seus discursos e os confiam à memória. Tomem isto como uma regra sem exceções, que para poderem transbordar espontaneamente, precisam estar abastecidos até às bordas. Coletar um fundo de idéias e expressões é extremamente útil. Há riqueza e pobreza em cada um desses aspectos. Aquele que possui muita informação, bem ordenada e compreendida inteiramente, com a qual está intimamente familiarizado, será capaz de, como algum príncipe de fabulosa riqueza, espalhar ouro à direita e à esquerda por entre a multidão. Para vocês, cavalheiros, uma íntima familiaridade com a Palavra de Deus, com a vida espiritual interior, com os grandes problemas do tempo e da eternidade, será indispensável. A boca fala do que está cheio o coração. Acostumem-se a meditações celestiais, examinem as Escrituras, deleitem-se na lei do Senhor, e não precisarão ter receio de falar das coisas que já experimentaram e apalparam da boa Palavra de Deus. Os homens bem podem ser lerdos de língua ao discutirem temas fora do alcance da sua experiência. Mas vocês, aquecidos pelo amor ao Rei, e desfrutando comunhão com Ele, verão os seus corações compondo boa matéria, e suas línguas serão como penas de hábeis escritores.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 204 Cheguem às raízes das verdades espirituais mediante conhecimento experimental delas, e assim estarão aptos para expô-las a outros. A ignorância da teologia não é rara em nossos púlpitos, e o que causa espanto não é que haja tão poucos oradores capazes de improvisar, mas que haja tantos quando são tão raros os teólogos. Jamais teremos grandes pregadores, enquanto não tivermos grandes teólogos. Vocês não podem construir um navio de guerra de um ramo de parreira, nem se podem formar de estudantes superficiais grandes pregadores, capazes de comover as almas. Se quiserem ser fluentes, quer dizer, capazes de fluir. encham-se de todo o conhecimento, e principalmente do conhecimento de Cristo Jesus o seu Senhor. Mas nós observamos que um fundo de expressões também seria de muita ajuda ao orador que improvisa; e, realmente, um vocabulário rico somente se torna secundário ante um depósito de idéias. As belezas de linguagem, as elegâncias no falar, e acima de tudo as frases vigorosas devem ser selecionadas, rememoradas e imitadas. Não devem levar consigo aquela caneta tinteiro de ouro e anotar cada palavra polissílaba que encontrarem em sua leitura para introduzi-la no seu próximo sermão, mas devem saber o que as palavras significam para que possam avaliar o poder de um sinônimo, julgar o ritmo de uma frase e medir a força de um expletivo. Vocês têm que dominar as palavras; estas devem ser os gênios a seu serviço, os seus anjos, os seus raios trovejantes, ou as suas gotas de mel. Os simples ajuntadores de palavras são colecionadores de conchas de ostras, vagens de feijão e bagaço de maçã; mas, para o homem que tem ampla informação e pensamento profundo, as palavras são salvas de prata nas quais se servem maçãs de outro. Atentem para que tenham uma boa equipe de palavras para puxar o carro dos seus pensamentos. Também creio que o homem que quiser falar bem, improvisadamente, deve ter todo o cuidado de escolher um tópico que ele mesmo compreenda. Este é o ponto principal. Desde que vim para Londres, para habituar-me a falar improvisadamente eu nunca estudei
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 205 nem preparei nada para a reunião de oração de segunda-feira à noite. De há muito escolhi essa ocasião como a oportunidade para uma exortação de improviso. Mas vocês notarão que nessas ocasiões não escolho difíceis tópicos expositivos ou temas abstrusos, mas me restrinjo a simples fala caseira sobre os elementos da nossa fé. Ao pôr-me de pé nessas ocasiões minha mente faz uma revisão, e indaga: "Que assunto já ocupou o meu pensamento durante o dia? Que encontrei nas leituras que fiz durante a semana passada? Que é que se impõe mais ao meu coração nesta hora? Que me sugerem os hinos ou as orações?" É inútil levantar-se diante de uma assembléia e esperar ser inspirado para assuntos sobre os quais você não sabe nada; se for insensato a esse ponto o resultado será que, como você não sabe nada, provavelmente nada dirá, e o povo não será edificado. Mas não vejo por que um homem não pode falar improvisadamente sobre um assunto de que ele entende plenamente. Qualquer comerciante, bem versado em sua linha de negócios, pode explicá-la a você sem precisar retirar-se para meditação; e certamente devemos estar de igual modo familiarizados com os princípios básicos da nossa fé santa; não devemos ficar embaraçados quando chamados para falar sobre tópicos que constituem o pão cotidiano das nossas almas. Não vejo que benefício se ganha nesse caso com o mero trabalho manual de escrever antes de falar; porque, ao fazêlo, o homem escreveria improvisadamente, e é provável que a escrita improvisada fosse coisa ainda mais fraca do que a elocução improvisada. O lucro de escrever está na oportunidade de cuidadosa revisão; mas como os escritores talentosos são capazes de expressar corretamente já de início os seus pensamentos, da mesma forma se dá com os oradores capazes. O pensamento do homem que se acha firme sobre os seus pés, dilatando-se sobre um tema que conhece bem, pode estar muito longe de ser pensamento que lhe ocorreu pela primeira vez; pode ser a nata das suas meditações aquecidas pelo calor do seu coração. Tendo antes estudado bem o assunto, embora não no momento, pode comunicar-se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 206 muito poderosamente; ao passo que outro homem, sentando-se para escrever, pode escrever somente as suas primeiras idéias, provavelmente vagas e insípidas. Neste caso, não tentem falar de improviso, a menos que tenham estudado bem o tema – paradoxo que é conselho da prudência. Lembro-me de ter sido provado duramente certa ocasião, e se não fosse versado na prática de falar de improviso, não sei como me teria saído. Esperavam-me para pregar em certa capela que estava apinhada de gente, mas não cheguei na hora, pois fui atrasado por uma obstrução na estrada de ferro. Assim, outro ministro dirigiu o culto e, quando cheguei ao local, esbaforido pela pressa, ele já estava pregando. Vendo-me aparecer e entrar por entre as fileiras de bancos, parou e disse: "Aí está ele", e, olhando-me, acrescentou: "Vou dar-lhe o lugar; venha terminar o sermão". Perguntei-lhe qual era o texto e até que ponto havia chegado com ele. Disse-me qual era o texto e que tinha acabado de passar pela primeira divisão. Sem hesitação, tomei o discurso a partir daquele ponto e concluí o sermão; e me envergonharia de qualquer homem aqui presente que não pudesse fazer a mesma coisa, sendo as circunstâncias tais que me tornaram a tarefa notavelmente fácil. Em primeiro lugar, o outro ministro era meu avó, e, em segundo lugar, o texto era – "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus". O indivíduo teria que ser um animal mais bronco do que aquele que Balaão montou se, em tal conjuntura, não tivesse achado algo que falar. "Pela graça sois salvos" fora comentado como indicando a fonte da salvação.. Quem não poderia continuar, descrevendo a cláusula seguinte, "por meio da fé", como o canal? Ninguém teria necessidade de estudar muito para demonstrar que recebemos a salvação por meio da fé. Contudo, naquela ocasião, tive uma provação adicional pois, quando tinha avançado um pouco e estava ficando aquecido para o meu trabalho, a mão de alguém bateu-me aprovadoramente, e uma voz disse: "Está bem, está bem; diga-lhes isso de novo, para que não o esqueçam". Imediatamente repeti a verdade e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 207 pouco depois, quando me estava tornando mais profundamente experimental, puxaram-me gentilmente pela ponta do casaco, e o velho cavalheiro ficou em pé na frente e disse: "Ora, o meu neto pode falarlhes isto em termos de uma teoria, mas eu estou aqui para dar-lhes testemunho disto como matéria de experiência prática; sou mais velho que ele, e devo dar-lhes meu testemunho como velho". Daí, depois de nos dar a sua experiência pessoal, disse: "Aí, pois, meu neto pode pregar o evangelho muito melhor do que eu, mas ele não pode pregar um evangelho melhor, não é?" Bem, cavalheiros, facilmente posso imaginar que se eu não possuísse um pouco de capacidade de falar de improviso naquela ocasião, poderia ter ficado um tanto perturbado; mas do modo como foi, o sermão me veio tão naturalmente como se tivesse sido preparado. A aquisição de outro idioma fornece um bom exercício para a prática da alocução improvisada. Levado a relacionar-se com as raízes das palavras e com as regras de oratória, e sendo compelido a notar as diferenças das duas línguas, o homem se desenvolve gradativamente até conhecer bem as partes do discurso, os modos, tempos e inflexões; como um operário, familiariza-se com as suas ferramentas e as manipula como companheiros cotidianos. Não sei de exercício melhor do que o de traduzir tão depressa quanto possível um trecho de Virgílio ou Tácito e depois, com reflexão, corrigir os erros. Pessoas que não conhecem coisa melhor acham que é jogar fora todo o tempo passado sobre os clássicos, mas se esses estudos fossem postos ao serviço do orador sacro, deveriam ser mantidos em todas as nossas instituições colegiais. Quem não vê que a constante comparação dos termos e expressões idiomáticas das duas línguas só pode favorecer a facilidade de expressão? Ademais, quem não vê que com esse exercício a mente se capacita para apreciar refinamentos e sutilezas de significado, e assim adquire o poder de distinguir entre coisas que diferem? – poder essencial para um expositor da Palavra de Deus, e para um arauto da Sua verdade. Cavalheiros, aprendam a montar e desmontar toda a maquinaria da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 208 linguagem, marquem cada dente de roda e cada roda, cada cavilha, cada raio, e se sentirão mais seguros para dirigir a máquina, mesmo em velocidade de expresso, se as emergências o exigirem. Todo o que quiser adquirir esta arte precisa praticá-la. Foi mediante lentos passos, como diz Burke, que Charles Fox tornou-se o mais brilhante e poderoso mestre do debate que já viveu. Ele atribuía o seu sucesso à resolução tomada quando ainda era bem jovem, de falar bem ou mal pelo menos uma vez por noite. "Durante cinco períodos letivos completos", costumava dizer, "eu falei todas as noites menos uma, e apenas lamento não ter falado naquela noite também". A princípio não podia fazê-lo para outro auditório senão às cadeiras e livros do seu escritório, imitando o exemplo de um cavalheiro que, solicitando admissão nesta escola, garantiu-me que durante dois anos tinha se exercitado na pregação improvisada no seu próprio quarto. Os estudantes que moram juntos poderiam ser de grande ajuda mútua, desempenhando alternadamente as partes de audiência e orador, com pequena e amigável crítica no fim de cada tentativa. A conversação também pode ser de essencial utilidade, se for questão de princípio fazê-la sólida e edificante. O pensamento deve estar ligado á linguagem oral, esse é o problema; e pode ajudar um homem a solucioná-lo, se ele se esforçar para pensar em voz alta em suas meditações privadas. Isto se me tornou tão habitual, que acho muito útil poder, na devoção particular, orar ouvindo a minha voz; ler em voz alta é mais benéfico para mim do que o processo silencioso; e quando estou elaborando mentalmente um sermão, é um alívio para mim o falar comigo mesmo conforme vão fluindo os pensamentos. É evidente que isto só resolve a metade da dificuldade, e vocês têm que praticar em público para dominarem a tremedeira ocasionada pela visão dos ouvintes; mas, meio caminho é grande parte da jornada. O bom discurso de improviso é exatamente a comunicação de um pensador prático – homem bem informado, que medita por sua conta e deixa que os seus pensamentos marchem através de sua boca para o ar livre.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 209 Pensem alto quanto puderem quando estiverem sozinhos, e logo estarão na via principal para o sucesso nesta questão. A discussão e os debates na sala de aulas são de vital importância como um passo a mais, e eu gostaria de exortar os irmãos mais retraídos a participarem deles. A prática de convocá-los para falarem sobre um tópico sorteado ao acaso de um vaso com ampla escala de temas escolhidos foi introduzida entre vocês, e devemos recorrer a ela com mais freqüência. O que condenei como parte do culto podemos usar livremente como exercício escolar entre nós. Isso foi planejado para experimentar a prontidão e o domínio próprio do indivíduo, e os que falham nisso provavelmente são tão beneficiados como os que se saem bem, pois o conhecimento de si mesmo pode ser tão útil para uns como a prática para outros. Irmãos, se a descoberta de que vocês são toscos ainda na oratória os levar a estudos mais afinados e a esforços mais resolutos, talvez seja o verdadeiro caminho à eminência última. Em acréscimo à prática recomendada, devo exortar cada irmão quanto à necessidade de ser calmo e confiante. Como diz Sydney Smith, "Muito talento é desperdiçado por falta de um pouco de coragem". Esta não é fácil de ser adquirida pelo orador novato. Vocês, oradores principiantes, não simpatizam com Blondin, o equilibrista? Irmãos, vocês não se sentem às vezes, quando estão pregando, como se estivessem andando numa corda em pleno ar, e não tremem e se perguntam se chegarão com segurança à outra extremidade? Às vezes, quando vocês estão fazendo floreios com aquela vara balançante, e contemplando aquelas lantejoulas metafóricas que esplendem de poesia sobre suas audiências, não ficam temerosos de sempre se exporem a esses riscos de uma queda súbita, ou, deixando de lado a figura, não se perguntam se serão capazes de concluírem a frase, ou se acharem um verbo para o nominativo, ou um acusativo para o verbo? Tudo depende de estarem calmos e imperturbáveis. Presságios de fracasso e medo dos homens os arruinarão. Prossigam, confiando em Deus, e tudo estará bem.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 210 Se vocês cometerem um erro gramatical e estiverem meio inclinados a retroceder para corrigi-lo, logo cometerão outro, e a hesitação os envolverá como numa rede. Deixem-me cochichar – pois isto se destina somente aos seus ouvidos – é sempre ruim ir para trás. Se cometerem um erro verbal, prossigam, e não lhe dêem atenção. Quando eu estava aprendendo a escrever, meu pai me deu uma boa regra que acredito que é igualmente útil quando se aprende a falar. Ele costumava dizer: "Quando estiver escrevendo, se cometer um erro na ortografia de uma palavra, ou redigir uma palavra errada, não a risque, fazendo um borrão, mas veja como pode sem demora alterar o que ia dizer, de maneira que se enquadre no que escreveu e não deixe vestígios do erro". Assim, na oratória, se a frase não terminar da melhor maneira, encerre-a doutro modo. É de bem pouco valia retroceder para corrigir, pois assim você chama a atenção para a falha que talvez poucos tenham notado, e você desvia a mente do assunto para a linguagem, que é a última coisa que o pregador deve fazer. Contudo, se o seu lapsus linguae (deslize no linguajar) for notado, todas as pessoas de bom senso perdoarão o jovem principiante, e terão maior admiração por você do que se agisse diferentemente, por dar pouca importância a esses escorregões, e por impulsionar-se de todo o coração rumo ao seu objetivo principal. Um novato na oratória pública é como um cavaleiro não acostumado a montar; se o cavalo tropeça, ele fica com medo de cair ou de ser lançado por cima da cabeça do animal, ou, se este for impetuoso, fica certo de que ele fugirá. E o olhar de um amigo, ou a observação feita por um rapazinho o fará angustiado como se estivesse amarrado ao lombo do grande dragão vermelho. Mas quando o homem está bem acostumado a montar, não conhece perigos e não encontra nenhum, porque a sua coragem os impede. Quando um orador crê, "Sou senhor da situação", normalmente o é. A sua confiança afasta os desastres que a tremedeira com certeza produziria. Meus irmãos, se de fato o Senhor os ordenou ao ministério, vocês têm as melhores razões para serem ousados e calmos, pois a quem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 211 terão que temer? Terão que entregar a mensagem do Senhor conforme Ele os capacite e, se isso for feito, não serão responsáveis perante ninguém mais, senão seu Mestre celestial, que não é juiz intratável. Irmãos, vocês não entram no púlpito para luzir como oradores, ou para gratificar as predileções dos seus ouvintes; são mensageiros do céu e não escravos dos homens.2 Lembrem-se das palavras do Senhor a Jeremias, e receiem temer. "Tu, pois, cinge os teus lombos, e levanta-te, e dize-lhes tudo quanto eu te mandar; não desanimes diante deles, porque eu farei com que não temas na sua presença." (Jeremias 1:17). Confiem no presente socorro do Espírito Santo, e o temor do homem que traz uma armadilha os abandonará. Quando vocês forem capazes de sentir-se em casa no púlpito, e puderem olhar em torno e falar ao público como irmãos falando a irmãos, então serão capazes de improvisar; não, porém, antes disso. O acanhamento e a timidez, que têm tanta beleza em nossos irmãos mais jovens, serão sucedidas pela verdadeira modéstia que se esquece de si, e não se preocupa tanto com a sua reputação como com que Cristo seja pregado da maneira mais enérgica possível. Para chegar ao santo e benéfico exercício da alocução improvisada, o ministro cristão precisa cultivar uma confiança singela como de criança na assistência imediata do Espírito Santo. "Creio no Espírito Santo", diz o Credo. É de temer-se que muitos não fazem deste um verdadeiro artigo de fé. Ir para cima e para baixo a semana inteira perdendo tempo, e depois lançar-se ao amparo do Espírito, é presunção ímpia, é tentativa de fazer do Senhor um ministro da nossa preguiça e auto-complacência; mas numa emergência o caso é muito diferente. Quando um homem se vê inevitavelmente chamado para falar sem nenhum preparo, pode com a mais plena confiança entregar-se ao 2
"A princípio a minha maior solicitude costumava ser quanto àquilo que eu acharia para dizer; espero que agora seja mais quanto a que não fale em vão. Pois o senhor não me enviou para cá para eu conseguir caracterizar-me como orador sempre pronto, mas para ganhar almas para cristo e edificar o Seu povo. Muitas vezes quando começo fico indeciso sobre como prosseguir, mas insensivelmente uma após outra as coisas se oferecem, e, em geral, as partes melhores e mais úteis do meu sermão ocorrem como algo novo enquanto prego." – John Newton, Letters to a Student in Divinity.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 212 Espírito de Deus. Está fora de dúvida que a mente divina entra em contato com o intelecto, ergue-o para cima da sua fraqueza e confusão, dá-lhe elevação e força, e o capacita a compreender e expressar a verdade divina de maneira muito superior às suas capacidades desassistidas. À semelhança dos milagres, essas intervenções não se destinam a substituir os nossos esforços, nem a afrouxar a nossa diligência, mas constituem a assistência do Senhor com que podemos contar numa emergência. Seu Espírito estará sempre conosco, mas especialmente quando estivermos sob rigorosa pressão de serviço. Por zelosamente que os admoeste a não falarem puramente de improviso mais do que se lhes imponha a obrigação, enquanto não estiverem um tanto amadurecidos no ministério, contudo os exorto a falar desse modo sempre que compelidos a fazê-lo, crendo que naquele exato momento ser-lhes-á dado o que haverão de falar. Se vocês forem bastante felizes para adquirir a capacidade de falar de improviso, rogo que se lembrem de que poderão perdê-la em pouco tempo. Levei este golpe em minha própria experiência, e me refiro a isto porque é a melhor demonstração que lhes posso fazer. Se por dois domingos sucessivos fago o meu esboço um pouco mais longo e mais completo que de costume, vejo na terceira ocasião que preciso dele mais longo ainda; e também observo que, se ocasionalmente me apóio um pouco mais na recordação dos meus pensamentos e não sou tão improvisador como costumava ser, há um desejo direto e mesmo uma crescente necessidade de composição prévia. Se um homem começa a andar com uma bengala só por capricho, logo virá a depender duma bengala; se vocês concedem óculos aos seus olhos, depressa estes os exigirão como acessório permanente; e se vocês andassem de muletas durante um mês, no fim desse período elas seriam quase necessárias para os seus movimentos, embora naturalmente as suas pernas fossem firmes e sadias como as de qualquer pessoa. Maus usos criam natureza má. Vocês têm que praticar continuamente a alocução
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 213 improvisada, e se para conseguir oportunidades convenientes tiverem que usar muitas vezes da palavra em choupanas, nas salas de aulas das nossas aldeias, ou a dois ou três à beira do caminho, o seu proveito será conhecido de todos os homens. Podem poupar-se de muita surpresa e desgosto se forem prevenidos de que haverá muitas variações em seu poder de comunicação. Hoje a sua língua pode ser a caneta de um ágil escritor, e amanhã os seus pensamentos e as suas palavras podem estar igualmente congelados. Os seres vivos são sensíveis, e são afetados por uma variedade enorme de forças; só sobre as coisas puramente mecânicas se podem fazer cálculos com absoluta certeza. Não estranhem, irmãos, se freqüentemente acharem que fracassaram, nem se admirem se finalmente evidenciar-se que nessas ocasiões obtiveram o melhor sucesso. Não esperem tornaremse auto-suficientes; nenhum hábito ou exercício poderá torná-los independentes da assistência divina; e se pregarem bem quarenta e nove vezes quando solicitado à última hora, isto não escusa a auto-confiança na qüinquagésima vez, pois se o Senhor os abandonar, vocês estarão em apuros. Suas variáveis disposições de fluência e de dificuldade tenderão, com a graça de Deus, a mantê-los humildemente elevando o olhar ao Forte em busca de forças. Acima de todas as coisas, que cada um cuide para que a sua língua não ultrapasse o seu cérebro. Guardem-se contra uma fluência débil, uma prosa fanfarrona, uma facilidade para dizer coisa nenhuma. Que prazer ouvir falar do tombo de um irmão que tinha a presunção de poder manter-se com a sua própria capacidade quando na realidade não tinha nada para dizer! Oxalá essa consumação sobrevenha a todos os que erram naquela direção. Meus irmãos, é um dom horrível de se possuir, o de poder dizer coisa nenhuma numa extensão extrema. Absurdo alongado, sensaboria parafrástica, banalidade e fanfarronada, são bastante comuns e são o escândalo e a vergonha da improvisação. Mesmo quando sentimentos sem valor são expressos lindamente e verbalizados com primor, de que valem? Do nada, nada provém. A
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 214 alocução improvisada sem estudo é nuvem sem chuva, poço sem água, dom fatal, que ofende igualmente ao que o possui e ao seu rebanho. Certos homens têm-me solicitado admissão nesta Escola, admissão que lhes tenho negado porque, sendo completamente destituídos de instrução e de senso da sua ignorância, a sua limitada vaidade e a sua volubilidade enorme fizeram deles sujeitos perigosos para o treinamento. Alguns até me fizeram lembrar a serpente do Apocalipse que lançou água pela boca numa torrente a tal ponto abundante que a mulher por pouco não foi arrastada por ela. Recebendo corda como relógios, vão falando, falando, falando, até acabar a corda, e bem-aventurado aquele que menos relações mantém com eles. Os sermões desses pregadores são como Snug, na parte do marceneiro quando fez o papel do leão. "Você pode fazer isso improvisadamente, pois nada fará senão rugir." É melhor perder, ou antes nunca possuir, o dom da comunicação improvisada, do que degradar-nos reduzindo-nos a simples produtores de ruído, representações vivas do que Paulo chama de metal que soa ou sino que retine. Eu poderia ter dito muito mais se estivesse estendido o assunto àquilo que é geralmente denominado pregação improvisada, isto é, o preparo do sermão à medida que os pensamentos fluem e deixando para encontrar as palavras durante a comunicação da mensagem; mas este é outro assunto e, embora vista como grande conquista por alguns, é, creio eu, um requisito indispensável para o púlpito, e de modo nenhum constitui um luxo dos gênios apenas; mas disto falaremos noutra ocasião.
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AS CRISES DE DESÂNIMO DO MINISTRO Como está registrado que Davi, no calor da batalha, abateu-se, assim se pode escrever de todos os servos do Senhor. Crises de depressão acometem a maioria de nós. Animados como possamos ser normalmente, a intervalos temos que ser derrubados. O forte nem sempre está vigoroso, o sábio nem sempre é expedito, o bravo nem sempre é corajoso, e o alegre nem sempre está feliz. Pode ser que existam aqui e ali homens de aço a quem o ralar e o rasgar não causam nenhum dano perceptível, mas por certo a inércia desgasta mesmo a estes; e quanto aos homens comuns, o Senhor sabe e os faz saber que não passam de pó. Sabendo pela mais penosa experiência o que significa uma profunda depressão de espírito, sendo visitado por ela freqüentemente e a intervalos não demorados, achei que poderia ser consolador para alguns dos meus irmãos se partilhasse meus pensamentos sobre isso para que os mais jovens não imaginem que algo estranho lhes acontece quando tomados em alguma ocasião pela melancolia; e para que os mais deprimidos saibam que a pessoa sobre quem o sol está brilhando jubilosamente nem sempre andou na luz. Não é necessário provar com citações de biografias de ministros eminentes que a maioria deles, senão todos, passou por períodos de terrível prostração. A vida de Lutero poderia ser suficiente para dar mil exemplos, e ele não era de modo nenhum do tipo mais fraco. Seu espírito grandioso esteve muitas vezes no sétimo céu da exultação, e com igual freqüência às bordas do desespero. Nem mesmo seu leito de morte ficou livre de temporais, e ele soluçou no seu último sono como um fatigado menino grande. Em vez de multiplicar casos, demoremos nas razões pelas quais estas coisas são permitidas. Por que será que os filhos da luz andam às vezes em trevas espessas? Por que será que os arautos da alvorada às vezes se acham numa noite que vale por dez?
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 216 Não será primeiro porque são homens? Sendo homens, estão enquadrados na fraqueza e são herdeiros da tristeza. Com acerto disse o sábio nos textos apócrifos de Eclesiástico 40:1-5,8: "Grande fardo foi imposto a todos os homens, e um pesado jugo posto sobre os filhos de Adão, desde o dia em que eles saem do ventre da mãe até ao dia da sua sepultura (em que eles entram) no seio da mãe comum de todos. Os seus cuidados, os sobressaltos do coração, a apreensão do que esperam, e o dia em que tudo acaba (perturbam-nos a todos), desde o que está sentado sobre um trono de glória, até àquele que jaz abatido na terra e na cinza; desde aquele que está vestido de púrpura e traz coroa, até ao que se cobre de linho cru. Tudo é furor, inveja, inquietação, perplexidade, temor da morte, rancor obstinado e contendas. Isto acontece a todos os viventes, desde os homens até aos animais, mas para os ímpios é sete vezes pior".
A graça nos protege de grande parte disso, mas devido não termos maior porção da graça, continuamos sofrendo até males que poderiam ser evitados. Mesmo sob a economia da redenção, é mais que evidente que temos que suportar debilidades; de outra forma não haveria necessidade do prometido socorro do Espírito nessas circunstâncias. É preciso que às vezes enfrentemos durezas. Aos homens de bem foram prometidas tribulações neste mundo, e os ministros podem esperar maior parte do que outros, para aprenderem a simpatizar com o sofredor povo do Senhor, e assim possam ser aptos pastores de um rebanho enfermo. Poderiam ter sido enviados espíritos desencarnados para proclamarem a Palavra, mas não teriam penetrado os sentimentos dos que, estando neste corpo, gemem deveras, sobrecarregados que estão; os anjos poderiam ter sido ordenados evangelistas, mas os seus atributos celestiais os teriam incapacitados para terem compaixão dos ignorantes; poderiam ter sido modelados homens de mármore, mas a sua natureza impassível seria um sarcasmo para a nossa fragilidade e uma zombaria das nossas necessidades. Foi a homens, e homens sujeitos às paixões humanas, que o sapientíssimo Deus escolheu para serem os Seus vasos de bênçãos; daí estas lágrimas, estas perplexidades, estas quedas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 217 Além disso, na maioria somos, de um modo ou de outro, fisicamente defeituosos. Aqui e ali encontramos um ancião que não se lembra de que alguma vez tenha sido posto de lado. Mas a grande maioria de nós trabalha com uma ou outra forma de deficiência do corpo ou da mente. Certas doenças do corpo, principalmente as relacionadas com os órgãos do aparelho digestivo, o fígado e o baço, são tremendas fontes de desânimo, e, lute o homem quanto puder contra tais influências, haverá momentos e circunstâncias em que por algum tempo o vencerão. Quanto às doenças mentais, haverá alguém que seja inteiramente são? Não estamos todos um pouco fora do equilíbrio? Mentes há que parecem ter um matiz sombrio essencial á sua própria individualidade. Pode se dizer deles: "A melancolia os marcou para si"; mentes finas aliás, e governadas pelos princípios mais nobres, mas muito inclinadas a olvidar o alvor da prata e a lembrar somente a nuvem. Homens assim podem cantar com o poeta: "Partido o coração, harpas desafinadas, por música, suspiros e gemidos, são nossas canções para a melodia das lachrymae, que a pele e ossos estamos reduzidos"
Thomas Washbourne. Estas enfermidades podem não ser infensas à carreira do homem de especial valor; pode até ser que lhe sejam impostas pela sabedoria divina como necessária habilitação para o seu peculiar curso de serviço. Algumas plantas devem as suas qualidades medicinais ao pântano em que crescem; outras ás sombras de que dependem para florescer. Há frutos preciosos que vicejam graças à lua, bem como graças ao sol. Os barcos precisam de vela e também de lastro; puxar uma carreta não é difícil quando a estrada desce morro abaixo. Provavelmente em muitos casos foi a dor que desenvolveu o gênio, dando caga à alma que de outra forma poderia ter ficado a dormir como um leão em sua cova. Não fosse
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 218 por sua asa quebrada, alguns poderiam ter-se perdido nas nuvens, até mesmo alguns daqueles pombos seletos que agora trazem nas suas bocas o ramo de oliveira e mostram o caminho para a arca. Mas quando no corpo e na mente há causas que predispõem ao abatimento do espírito, não é para espantar-nos se em momentos tenebrosos o coração sucumba a elas; o que causa espanto em muitos casos é – e se se pudesse pôr por escrito a vida interior, os homens poderiam ver que é assim – como alguns ministros não largam do seu trabalho de jeito nenhum, e ainda trazem um sorriso no rosto. A graça continua tendo os seus triunfos, e a paciência os seus mártires; mártires em nada menos dignos de honra porque as chamas atingem os seus espíritos mais do que os seus corpos, e a sua fogueira é invisível aos olhos humanos. Os serviços ministeriais de Jeremias são tão aceitáveis como os de Isaías, e mesmo o rabugento Jonas é um verdadeiro profeta do Senhor, como Nínive pôde bem perceber. Não desprezem os coxos, pois está escrito que eles pegam a presa; honrem, porém, aqueles que, em seu desalento, prosseguem ainda. Lia, de olhos tenros ou baços, foi mais frutífera do que a formosa Raquel, e as aflições de Ana foram mais divinas do que a vanglória de Penina. "Bem-aventurados os que choram", disse o Varão de Dores, e que ninguém os repute diferentemente quando as suas lágrimas vêm temperadas pela graça. Temos o tesouro do evangelho em vasos de barro, e se no vaso houver um defeito aqui e ali, que ninguém se espante. Quando empreendemos a nossa obra fervorosamente, tomamo-nos vulneráveis à depressão. Quem pode agüentar o peso das almas sem às vezes afundar no pó? As entranhadas aspirações pela conversão dos homens, se não plenamente satisfeitas (e quando são?), consomem de angústia e desapontamento a alma. Ver os interessados irem por água abaixo, os piedosos se esfriarem, os crentes professos abusarem dos seus privilégios, e os pecadores ficarem mais descarados – ver estas coisas não é suficiente para esmagar-nos contra o solo? O Reino não vem como queremos, o venerável Nome não é santificado como desejamos, e por
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 219 isso temos que chorar. Como podemos sentir-nos doutro modo se não entristecidos, enquanto os homens não crêem em nossa mensagem, e não se revela o braço do Senhor? Todo trabalho mental tende a cansar-nos e a deprimir-nos, pois o muito estudo enfado é da carne; mas o nosso trabalho é mais que mental – é do coração, é labuta do íntimo da nossa alma. Quantas vezes, nas noites do dia do Senhor, nós nos sentimos como se a vida se nos esvaísse por completo! Depois de despejar as nossas almas sobre os nossos ouvintes, sentimo-nos como um jarro vazio que uma criança poderia quebrar. Provavelmente, se fôssemos mais semelhantes a Paulo, e velássemos pelas almas numa proporção mais nobre, saberiam.os melhor o que é ser consumido pelo zelo da casa do Senhor. É nosso dever e nosso privilégio esgotar as nossas vidas por Jesus. Não nos compete sermos espécimes vivos de homens em fina conservação, mas, sim, sacrifícios vivos, destinados a serem consumidos; cabe-nos gastar e gastar-nos, e não banhar-nos em alfazema e mimar a nossa carne. Esse trabalho de alma que um fiel ministro realiza produz ocasionais períodos de exaustão, quando o coração e carne falham. As mãos de Moisés ficaram pesadas na intercessão, e Paulo clamou: "E para estas coisas quem é idôneo?" Mesmo João Batista parece ter sofrido suas crises de desânimo. e os apóstolos ficaram cheios de assombro e tiveram angustioso medo. A nossa posição na igreja também conduz a isto. Um ministro plenamente habilitado para o seu trabalho normalmente será em si mesmo um espírito que está acima, além e à parte dos demais. O mais afeiçoado dentre o seu povo não pode penetrar os seus pensamentos, cuidados e tentações peculiares. Nas fileiras militares os homens andam ombro a ombro, com muitos companheiros, mas conforme o oficial sobe na hierarquia, os homens da sua posição vão sendo cada vez em menor número. Há muitos soldados, poucos capitães, menos coronéis, mas somente um comandante-em-chefe. Assim, em nossas igrejas, o homem que o Senhor eleva como líder vem a ser, no mesmo grau em que é
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 220 homem superior, homem solitário. Os picos de montanhas ficam solenemente isolados e falam a sós com Deus quando Ele visita as suas terríveis soledades. Os homens de Deus que se elevam acima dos seus semelhantes mantendo mais íntima comunhão com as realidades celestiais, em seus momentos de maior fraqueza acham falta da simpatia humana. Como seu Senhor no Getsêmani, buscam em vão receber conforto dos discípulos que dormem ao seu redor; choca-os a apatia do seu pequeno grupo de irmãos, e voltam para a sua agonia secreta com uma carga muito mais pesada a premi-los, porque encontram dormindo os seus mais caros companheiros. Ninguém senão quem a suportou conhece a solidão de uma alma que ultrapassou os seus irmãos, em dedicação ao Senhor dos Exércitos; ela não se atreve revelar-se, temendo que os homens chamem-na de loucura; não consegue ocultar-se, pois um fogo queima seus ossos. Somente diante do Senhor ela acha repouso. A comissão do Senhor enviando os Seus discípulos dois a dois põe de manifesto que Ele sabia o que havia nos homens; mas, para um homem como Paulo parece que não se achou parceiro. Barnabé, Silas, Lucas eram montes baixos demais para poderem conversar com uma sumidade tipo Himalaia como o apóstolo dos gentios. Esta solidão que, se não me engano muitos dos meus colegas experimentam, é fértil fonte de depressão; e os nossos encontros fraternais de ministros, e o cultivo de santo intercâmbio com as mentes afins, com a bênção de Deus nos ajudarão grandemente a escapar do lago. Pouca dúvida pode haver de que os hábitos sedentários tendem a produzir desânimo em alguns temperamentos. Burton, em sua Anatomy of Melancholy (Anatomia da Melancolia), tem um capítulo sobre esta causa do abatimento; e, citando um dentre miríades de autores de cuja contribuição se serve, diz: "Os estudantes negligenciam os seus corpos. Os outros homens olham por suas ferramentas: o pintor lava os seus pincéis; o ferreiro cuida do malho, da bigorna e da forja; o lavrador conserta os ferros do seu arado e
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afia o seu machado, se estiver cego: o falcoeiro ou caçador terá especial cuidado dos seus falcões, cães, cavalos etc.; o músico aperta e desaperta as cordas do seu alaúde, afinando-o – somente os estudiosos negligenciam o instrumento (quero dizer, os seus cérebros e os seus espíritos) que usam diariamente."
Disse bem Lucan: "Não torça demais o cordão para que não arrebente". Ficar sentado muito tempo numa só posição, com os olhos fitos num livro, ou movendo uma caneta, é, em si mesma, fatigante à natureza; mas, acrescentem-se a isto um quarto mal ventilado, um corpo que passou muito tempo sem exercício muscular, e um coração sobrecarregado de preocupações, e teremos todos os elementos necessários para arranjar um fervente caldeirão de desespero, principalmente nos sombrios meses de cerração: "Quando o dia é envolto num manto, quando a mata insalubre goteja, e a folha se incrusta na lama".
Se um homem for de natureza alegre como um pássaro, dificilmente poderá manter-se assim ano após ano contra esse processo suicida. Fará do seu escritório uma prisão e de seus livros carcereiros de um presídio, enquanto do lado de fora da sua janela a natureza acena-lhe com a vida saudável e chama-o para a alegria. Aquele que esquece o zumbir das abelhas na urze, o arrulho dos pombos selvagens na floresta, o canto dos pássaros no arvoredo, o ondular do regato por entre o junco, e os lamentos do vento entre os pinheiros, não tem por que se espantar caso o seu coração olvide cantar e sua alma fique pesarosa. Passar um dia respirando o ar fresco das montanhas, ou fazer uma excursão na umbrosa tranqüilidade das copadas faias, servirá para varrer as teias de aranha das cabeças cheias de vincos dos nossos fatigados ministros que já andam meio mortos. Uma tragada de ar marinho, ou uma firme caminhada contra o vento, não dará graça à alma, que é o que há de melhor, mas dará oxigênio ao corpo, coisa que vem em segundo lugar. "Coração pesaroso em ar pesado está; todo vento que sobe, a angústia expulsará."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 222 As samambaias e os coelhos, os ribeiros, as trutas, os abetos e os esquilos, as primaveras e as violetas, o terreiro da fazenda, o feno recémcolhido, e os lúpulos fragrantes – todas essas coisas são o melhor remédio para os hipocondríacos, os mais seguros tônicos para os decadentes, a melhor restaurarão dos que sofrem estafa. Por falta de oportunidade, ou de inclinação, estes grandes remédios são negligenciados, e o estudante vai se tornando uma vítima auto-imolada. As ocasiões mais propícias para as crises de desânimo, na medida em que eu as tenho experimentado, podem ser resumidas num breve catálogo. Dentre elas devo mencionar em primeiro lugar a hora de grande sucesso. Quando um desejo há muito tempo acalentado finalmente se cumpre, tendo Deus sido grandemente glorificado por nosso intermédio, havendo-se alcançado grande triunfo, então estamos sujeitos a desfalecer. Talvez se pudesse imaginar que, em meio a favores especiais, a nossa alma pairaria nas alturas do êxtase e se regozijaria com júbilo indescritível, mas o que se dá geralmente é o inverso. Raramente o Senhor expõe os Seus guerreiros aos perigos da exultação pela vitória. Ele sabe que poucos deles podem suportar um teste desses e, portanto, quebra-lhes a taça com rigor. Vejam Elias depois de ter caído fogo do céu, depois de terem sido mortos os sacerdotes de Baal, depois que a chuva alagou a terra árida! Para ele nada de notas de música de autocomplacência, nada de pavonear-se como um conquistador em roupagens de vitorioso. Ele foge de Jezabel, e, sentindo a repulsão do seu distúrbio intenso, suplica pedindo para morrer. Aquele que nunca haveria de ver a morte anseia pelo repouso do sepulcro, como César, o monarca do mundo, em seus momentos de pesar chorava como uma menina doente. A pobre natureza humana não pode agüentar tensões como as que advém das vitórias celestiais; tem que sobrevir uma reação. O excesso de alegria ou de emoção tem que ser pago com depressões subseqüentes. Enquanto uma provação dura, a força é igual à emergência; mas quando passa, a fraqueza natural reivindica o direito de mostrar-se. Sustentado
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 223 secretamente, Jacó pode lutar a noite inteira, mas tem que coxear de manhã, depois de concluída a peleja, para que não se gabe além da medida. Paulo pode ser arrebatado ao terceiro céu e ouvir coisas indizíveis, mas um espinho na carne, um mensageiro de Satanás para esbofeteá-lo, tem que ser a seqüela inevitável. Os homens não podem suportar felicidade sem mistura; mesmo os bons homens não estão habilitados ainda para terem "suas frontes cingidas de lauréis e murta", sem que sofra secreta humilhação para mantê-los no lugar próprio. Arrancados do solo em turbilhão por um avivamento, levados para as alturas pela popularidade, exaltados pelo sucesso na conquista de almas, seríamos como a palha que o vento dispersa, se a disciplina da graça e da misericórdia não quebrasse as naves da nossa vanglória com poderoso vento oriental, e não nos fizesse ir a pique, desnudos e desamparados, lançando-nos na Rocha dos Séculos. Antes de alguma grande realização, certa medida da mesma depressão geralmente ocorre. Divisando as dificuldades que se nos antepõem, os nossos corações sucumbem dentro de nós. Os filhos de Enaque se agigantam diante de nós, e somos como gafanhotos aos nossos próprios olhos na presença deles. As cidades de Canaã são muradas até aos céus, e quem somos nós para esperar capturá-las? Estamos dispostos a largar as armas e a fugir o mais depressa possível. Nínive é uma grande cidade, e deveríamos fugir para Társis, e não ir ao encontro das suas ruidosas multidões. Já procuramos um navio que nos leve tranqüilamente para longe do terrível cenário, e só o medo do temporal refreia os nossos covardes passos. Foi esta a minha experiência quando no começo me tornei pastor em Londres. O meu sucesso me aterrorizou; e a idéia da carreira que parecia abrir-se, muito longe de entusiasmar-me, lançou-me às maiores profundezas, das quais pronunciei o meu miserere e não achei lugar para cantar gloria in excelsis. Quem era eu para continuar liderando tão grande multidão? Queria ir para a minha obscuridade aldeã, ou emigrar para a América e encontrar um ninho no ermo onde fosse idôneo para as
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 224 coisas que se exigissem de mim. Mas precisamente aí a cortina estava se levantando sobre a obra da minha vida, e temi o que poderia sobrevir. Eu espero que não tenha sido falta de fé, mas eu estava temeroso e completamente tomado pelo senso da minha inépcia. Estava com medo de uma obra que a Providência repassada da graça divina preparava para mim. Senti-me como simples criança, e tremi quando ouvi a voz que dizia: "Levanta-te, malha as montanhas, e faz delas palha". Esta depressão me sobrevém sempre que o Senhor está preparando maior bênção para o meu ministério; a nuvem é negra antes de romperse, e produz escuridão antes de entregar o seu dilúvio de misericórdia. A depressão passou a ser para mim como um profeta rusticamente vestido, um João Batista, anunciando a próxima vinda de bênçãos mais ricas do meu Senhor. Assim pensaram homens muito melhores. O brunimento do vaso aparelha-o para uso do Senhor. A imersão no sofrimento precede o batismo do Espírito Santo. O jejum abre o apetite para o banquete. O Senhor se revela no interior do deserto, enquanto o Seu servo cuida das ovelhas e o aguarda em solitário temor. O deserto é o caminho para Canaã. O fundo vale leva para a montanha altaneira. A derrota é preparativo para a vitória. O corvo é enviado antes da pomba. A hora mais escura da noite precede o raiar do dia. Os marinheiros descem às profundezas, mas a onda seguinte os faz subir aos céus; suas almas se derretem de angústia antes de serem trazidos por Ele ao porto desejado. Em meio a uma longa tirada de trabalho ininterrupto, pode-se achar a mesma aflição. Não se pode dobrar o arco o tempo todo sem temer quebrá-lo. O repouso é necessário à mente tanto quanto o sono ao corpo. Nossos sabbaths – nossos domingos – são os nossos dias de trabalho, e se não descansarmos nalgum outro dia, ficaremos prostrados. Mesmo a terra precisa ficar sem lavradio e ter os seus períodos sabáticos; assim conosco. Daí a sabedoria e compaixão do nosso Senhor, quando disse aos Seus discípulos: "Vinde vós aqui à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco". O quê?! Quando o povo está desfalecido? Quando as multidões estão como ovelhas nas montanhas sem pastor? E Jesus fala
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 225 de descanso? Quando os escribas e fariseus, quais lobos vorazes, rondam o rebanho, leva Ele os Seus discípulos para um tranqüilo lugar de repouso? Algum zelote queimando como ferro em brasa denuncia esse atroz esquecimento das presentes e prementes necessidades? Deixe-o enfurecer em sua estultícia! O Mestre sabe de algo melhor do que esgotar os Seus servos e extinguir a luz de Israel. O tempo de repouso não é tempo perdido. É economia juntar novas forças. Vejam o ceifeiro no dia de verão, com tanto que ceifar antes de pôr-se o sol. Faz pausa em seu labor. É preguiçoso? Busca a sua pedra e começa a esfregá-la para cima e para baixo em sua foice, soando "roque-froque, roque-froque, roque-froque". Essa música é ociosa? Estará ele desperdiçando preciosos momentos? Quanto poderia colher durante o tempo que passa tocando aquelas notas na lâmina da foice! Mas ele está afiando a ferramenta, e conseguirá muito mais quando tornar a por força naqueles longos movimentos que fazem a erva cair prostrada em fiadas diante dele. Exatamente assim uma pequena pausa prepara a mente para prestação de maior serviço à boa causa. Os pescadores têm que consertar as suas redes, e de vez em quando nós temos que reparar o nosso desgaste mental e pôr o nosso maquinismo em ordem para serviços futuros. Mover o remo dia a dia, como o escravo das galés que não conhece dia de descanso, não presta para os mortais. A corrente que toca o moinho corre, e corre sempre, sem parar, mas nós necessitamos ter nossas pausas e nossos intervalos. A quem pode ajudar ficar sem fôlego quando se continua a corrida sem interrupção? Mesmo os animais de carga devem ser deixados no pasto ocasionalmente; o próprio mar faz pausa na baixa-mar e na preamar; o solo guarda o sábado dos meses hibernais; e o homem, ainda quando elevado à posição de embaixador de Deus, ou descansa ou desfalecerá; ou limpa a sua lâmpada, ou terá luz fraca; ou reabastece a sua energia, ou ficará velho prematuramente. É sábio tirar férias ocasionais. Na contagem final, faremos mais, fazendo menos de vez em
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 226 quando. Seguir no trabalho mais e mais, para sempre, sem recreação, pode servir para os espíritos emancipados deste "barro pesado", mas enquanto estivermos neste tabernáculo, temos que uma vez ou outra gritar, alto!! e servir ao Senhor mediante santa inação e consagrado lazer. Que nenhuma tenra consciência duvide da legitimidade de deixar o serviço ativo por algum tempo, mas aprenda com a experiência de outros a necessidade e o dever de fazer oportuno repouso. Um golpe esmagador às vezes deixa o ministro muito abatido. O irmão em que mais se confiava torna-se um traidor. Judas levanta o calcanhar contra o homem que confiava nele, e o coração do pregador lhe falha na hora. Todos nós estamos prontos demais para ver uma arma carnal, e dessa propensão surgem muitas das nossas tristezas. O golpe é igualmente demolidor quando um honrado e estimado irmão se rende a alguma tentação, e leva à desgraça o santo nome pelo qual era chamado. Qualquer coisa é melhor do que isto. Isto leva o ministro a ansiar por uma cabana em algum vasto deserto onde possa ocultar a cabeça para sempre, e não ouvir mais as zombarias blasfemas dos ímpios. Dez anos de trabalho não tiram tanto da vida como o que perdemos em poucas horas por causa de Aitofel, o traidor, ou de Demas, o apóstata. As contendas, também, e as divisões, as calúnias e as críticas tolas, muitas vezes prostram santos homens e os fazem ir "como com uma espada nos ossos". As palavras duras ferem profundamente certas mentes delicadas. Muitos dos melhores ministros, pela própria espiritualidade do seu caráter, são excessivamente sensíveis – sensíveis demais para um mundo como este. "Um coice que mal move um cavalo, mata um bom teólogo." Pela experiência a alma enrijece-se para os rudes golpes que são inevitáveis em nossa guerra; mas, no início, essas coisas nos abalam completamente e nos mandam para casa envoltos no horror de grandes trevas. As provações de um verdadeiro ministro não são poucas, e as que são causadas por crentes professos ingratos são mais duras de agüentar do que os mais grosseiros ataques de inimigos confessos. Oxalá nenhum
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 227 homem que anda em busca de tranqüilidade mental e de quietude na vida entre no ministério; se o fizer, fugirá dele desgostoso. A poucos toca passar pelo horror de densas trevas como o que me coube experimentar depois do deplorável incêndio ocorrido no Teatro Musical de Surrey. Senti-me oprimido além da conta e fora dos limites por um enorme fardo de miséria. O tumulto, o pânico, as mortes, estiveram dia e noite diante de mim e tornaram minha vida uma carga. Então cantei em meu pesar: "O tumulto dos meus pensamentos apenas aumentou minha aflição; fana-se o espírito, e fica desolado e débil o meu pobre coração".
Desse pesadelo de terror fui despertado num momento pela abençoada aplicação à minha alma do texto: "Deus com a sua destra o elevou". O fato de que Jesus continua sendo grandioso, sofram os Seus servos o que sofrerem, conduziu-me de volta à razão calma e à paz. Se tão terrível calamidade sobrevier a um dos meus irmãos, oxalá tenha paciente esperança e aguarde pela salvação de Deus. Quando as aflições se multiplicam, e os desencorajamentos se seguem uns aos outros em longa sucessão, como mensageiros de Jó, daí, também, em meio à perturbação da alma ocasionada pelas más notícias, o desânimo despoja o coração de toda a sua paz. O constante gotejar dissolve pedras, e as mentes mais bravias sentem-se corroídas pelas repetidas aflições. Se um guarda-comida escassamente suprido é provação agravada pela doença da esposa ou pela perda de um filho, e se as observações nada generosas dos ouvintes vêm seguidas pela oposição dos presbíteros e pela frieza dos membros da igreja, então, como Jacó, somos capazes de lamentar: "Todas estas coisas vieram sobre mim". Quando Davi retornou a Ziclague e viu que a cidade fora queimada, os seus bens foram saqueados, suas esposas foram raptadas, e as suas próprias tropas estavam prontas para apedrejá-lo, lemos: "Davi se reanimou no Senhor seu Deus". E foi bom para ele agir assim pois, do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 228 contrário, teria desfalecido se não cresse que veria a bondade do Senhor na terra dos viventes. Angústias acumuladas aumentam o peso umas das outras; dão-se as mãos e, como bandos de salteadores, destroem brutalmente o nosso conforto. Onda após onda é trabalho duro para o nadador mais vigoroso. O lugar em que dois mares se encontram força demais a quilha mais navegável. Se houvesse uma pausa sistemática entre as bofetadas da adversidade, o espírito ficaria prevenido; mas quando vêm súbita e pesadamente, como pancadas de saraiva grossa, bem pode acontecer que o peregrino fique aterrorizado. O último grama da carga quebranta o lombo do camelo, e quando esse último grão é lançado sobre os nossos lombos, por que espantar-nos se por um pouco de tempo ficamos prontos para render o espírito?! Este mal também nos atinge sem que saibamos a razão, caso em que é a coisa mais difícil eliminá-lo. Não se pode arrazoar com depressão desmotivada. Tampouco pode a harpa de Davi encantá-la e expulsá-la com os seus suaves argumentos. É como lutar com o nevoeiro, enfrentar esta situação informe, indefinível e trevosa de desamparo. Nem a gente mesmo tem dó de si neste caso, porque parece irrazoável, e até pecaminoso, ficar angustiado sem causa evidente; e, todavia, o homem está deveras angustiado, no mais profundo do seu espírito. Se os que se riem dessa melancolia apenas sentissem por uma hora a sua dor, o riso deles seria silenciado pela compaixão. Uma disposição resoluta poderia talvez sacudi-la de nós, mas onde poderíamos achar resolução quando todo o ser está frouxo? O médico e o pastor podem unir as suas habilidades nesses casos, e ambos se vêem de mãos ocupadas, e mais que ocupadas. O ferrolho de metal que tão misteriosamente tranca a porta da esperança e mantém os nossos espíritos em tétrica prisão, requer mão celestial que o force a abrir-se; e quando se vê essa mão, clamamos com o apóstolo: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação; que nos consola em toda a nossa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 229 tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados de Deus" (2 Coríntios 1.3-4). É o Deus de toda a consolação que pode: "Com doce e esquecido antídoto varrer do pobre peito o perigoso entulho que pesa no coração".
Simão afunda enquanto Jesus não o toma pela mão. O demônio no interior do ser rasga e fere a pobre criança enquanto a palavra de autoridade não lhe ordena que saia dela. Quando nos dominam horríveis temores, e nos vemos prostrados por intoleráveis demônios da noite, só precisamos que surja o Sol da Justiça, e os males gerados em nossas trevas serão expulsos; entretanto, nada menos que isto porá em fuga o pesadelo da alma. Timothy Rogers, autor de um tratado sobre a melancolia, e Simon Browne, escritor de alguns hinos notavelmente belos, experimentaram em seus próprios casos como é vão o socorro do homem, se o Senhor retirar a luz da sua alma. Se se perguntar por que tantas vezes os servos do Rei Jesus têm que atravessar o Vale da Sombra da Morte, a resposta não está longe. Tudo isso promove o modo de agir do Senhor, que se resume nestas palavras: "Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor". Os instrumentos serão empregados, mas a sua fraqueza intrínseca se manifestará claramente; não se fará nenhuma divisão da glória, nenhuma diminuição da honra devida ao Grande Trabalhador. O homem será esvaziado de si, e depois será enchido do Espírito Santo. Em sua própria apreensão do fato, ele será como uma folha seca levada pela tempestade, e depois será fortalecida transformando-se num muro de bronze contra os inimigos da verdade. Encobrir ao obreiro o orgulho é a grande dificuldade. O sucesso ininterrupto e a alegria inapagável por ele iriam além do que as nossas cabeças podem suportar. Nosso vinho tem que ser misturado com água, se não, transtorna os nossos miolos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 230 Meu testemunho é que os que são honrados pelo Senhor em público, geralmente têm que sofrer castigo secreto, ou têm que carregar uma cruz peculiar, a fim de que de algum modo não se exaltem a caiam no lago do diabo. Com que freqüência o Senhor chama Ezequiel de "Filho do homem"! Em meio aos seus vôos penetrando esplendores superlativos, exatamente quando, com os olhos límpidos, é capacitado a contemplar a glória sublime, a expressão "Filho do homem" cai em seus ouvidos, serenando o coração que, de outra forma, poderia intoxicar-se com a honra a ele conferida. Tais mensagens humilhantes mas salutares murmuram aos nossos ouvidos as nossas depressões; falam-nos de maneira inequívoca que somos apenas homens, frágeis, débeis, sujeitos a desfalecer. Mediante todos os tombos dos Seus servos, Deus é glorificado, pois eles são levados a engrandecê-lo quando Ele os coloca a Seus pés, e precisamente quando prostrados no pó, sua fé lhe rende louvor. Falam com o maior dulçor da Sua fidelidade, e ficam firmados com a maior solidez em Seu amor. Homens amadurecidos assim, como são alguns idosos pregadores, dificilmente ter-se-iam produzido se não tivessem sido esvaziados vaso a vaso, e não tivessem sido levados a ver a sua própria vacuidade e a vaidade de todas as coisas que os cercam. Glória seja dada a Deus pela fornalha, pelo malho e pela lima. O céu estará todo cheio de bem-aventurança porque nos enchemos de angústia cá embaixo, e a terra será mais bem cultivada por causa do nosso treinamento na escola da adversidade. A lição da sabedoria é: não desfaleçam pela aflição de alma. Não a considerem coisa estranha, mas parte da experiência ministerial comum. Se o poder da depressão for extraordinário, não pensem que toda a sua utilidade está perdida. Não repudiem a sua confiança, pois terá por prêmio grande recompensa. Mesmo que o pé do inimigo esteja sobre os vossos pescoços, tenham esperança de levantar-se e dominá-lo. Lancem o fardo do presente, o pecado do passado e o medo do futuro, todos juntos, aos cuidados do Senhor, que não abandona os Seus santos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 231 Vivam o dia presente – sim, a hora. Não ponham confiança em disposições de espírito e em sentimentos. Atentem mais para um grão de fé que para uma tonelada de agitação emocional. Confiem em Deus somente, e não se inclinem a ceder às necessidades de ajuda humana. Não se surpreendam quando os amigos falharem com vocês: este é um mundo falho. Jamais contem com a imutabilidade dos homens; com a inconstância vocês podem contar sem temer decepção. Os discípulos de Jesus O abandonaram; não se espantem, então, se os vossos adeptos se apartarem indo atrás de outros mestres: como não eram tudo o que vocês tinham quando eles estavam em vossa companhia, nem tudo vos deixou quando partiram. Sirvam a Deus com todas as suas forças enquanto arde a candeia, e depois, quando se apagar por algum tempo, terão o mínimo para lamentar. Contentem-se em nada ser, pois é o que são. Quando a vacuidade oprimir dolorosamente a consciência, ralhem consigo mesmos, lembrando-se de que nunca sonharam estar cheios, exceto no Senhor. Dêem pouco valor às recompensas atuais; sejam agradecidos pelos pequenos prêmios recebidos durante o percurso, mas busquem a recompensadora alegria vindoura. Continuem servindo ao Senhor com redobrado fervor quando não se lhes apresentar nenhum resultado visível. Qualquer simplório pode seguir pelo caminho estreito na luz; a rara sabedoria da fé nos capacita a prosseguir no escuro com precisão infalível, visto que ela põe a mão na do Grande Guia. Entre este ponto e o céu ainda poderá ocorrer mau tempo, mas o Senhor da aliança tomou providências para tudo. Em nada saiamos do caminho que a vocação divina induziu-nos a seguir. Bom ou ruim, o púlpito é nossa torre de vigia, e o ministério é a nossa guerra; compete-nos, quando não pudermos ver o rosto de Deus, confiar à sombra das Suas asas.
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A CONVERSAÇÃO COMUM DO MINISTRO Nosso tema agora será a conversação comum que o ministro mantém quando se mistura com os homens em geral e se supõe que esteja bem descontraído. Como deverá ordenar o seu falar entre os seus semelhantes. Primeiramente e acima de tudo, permitam-me dizer, que ele trate de não se dar ares ministeriais, mas que evite tudo que seja bombástico, oficial, vaidoso e pretensioso. "Filho do homem" é um nobre título; foi dado a Ezequiel, e a Alguém que foi maior do que ele. Não deixem que o embaixador do céu seja outra coisa que filho do homem. Na verdade, é bom que se lembre de que quanto mais simples e despretensioso ele for, mais intensamente se assemelhará àquele menino-homem, o santo menino Jesus. É possível fazer esforço demais para ser grande ministro, e isso resulta em tornar-se homem bastante pequeno; mas, quanto mais verdadeiro homem você for, mais verdadeiramente será o que um servo do Senhor deve ser. Os mestres e os ministros geralmente têm uma aparência que lhes é peculiar; num sentido errôneo, eles "não são como os demais homens". Como demasiada freqüência eles são pássaros mosqueados, dando a impressão de que não se sentem à vontade entre os outros habitantes da região, mas, sim, sem jeito e fora do comum. Sempre que vejo um flamingo com o seu andar altivo e grave, uma coruja piscando na sombra, ou uma cegonha seriamente perdida em seus pensamentos, sou irresistivelmente levado a lembrar-me de alguns dos meus dignos irmãos, colegas de magistério e de ministério, que são tão maravilhosamente extraordinários em todas as ocasiões, que mal chegam a ser divertidos. É fácil adquirir o modo respeitável, imponente, nobre, importante, austero; mas vale a pena adquiri-lo? Theodore Hook uma vez marchou até um cavalheiro que desfilava na rua com grande pompa, e lhe perguntou: "O senhor não é uma personalidade de grande importância?" – e às vezes a gente se sente
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 233 inclinado a fazer a mesma coisa com certos irmãos de traje clerical. Conheço irmãos que, dos pés à cabeça, no traje, no tom, nos modos, na gravata e nas botinas, são tão completamente clericais que nenhuma partícula de virilidade é visível. Um recente rebento da teologia precisa andar pelas ruas de batina, e outro da Igreja Anglo-Católica publicou nos jornais com muita satisfação que atravessara a Suíça e a Itália usando em toda parte o seu barrete de clérigo; poucos rapazes teriam tido tanto orgulho de um abominável gorro. Nenhum de nós corre perigo de ir tão longe assim em nosso modo de vestir-nos; mas podemos assemelhar-nos àquilo em nosso maneirismo. Alguns parecem ter um colarinho branco apertando as suas almas; a sua masculinidade é sufocada por aquele trapo engomado. Certos irmãos mantêm um ar de superioridade que eles julgam impressionante, mas que é simplesmente ofensivo, e eminentemente oposto ás suas pretensões como seguidores do humilde Jesus. O orgulhoso duque de Somerset dava ordens a seus criados por meio de sinais, não condescendendo em falar com seres tão baixos; os filhos dele nunca ficavam sentados em sua presença, e quando dormia de tarde, suas filhas ficavam, uma de cada lado dele, durante o seu augusto repouso. Quando elementos vaidosos como Somerset entram no ministério, assumem dignidade de outras maneiras quase igualmente absurdas. "Parado aí; sou mais santo do que tu", é o que está escrito na testa deles. Uma vez, um bem conhecido ministro foi censurado por um sublime irmão por sua indulgência para com algum luxo, e o grande argumento foi a despesa. "Bem, bem", replicou ele, "pode haver algo nisso. Mas, lembre-se, não gasto com a minha fraqueza a metade do que você gasta com goma". Este é o artigo que estou criticando, a terrível goma ministerial. Se algum de vocês cedeu nisso, vigorosamente o exorto a ir lavar-se "sete vezes no Jordão", e tire-a de si, sem deixar nenhuma partícula dela. Estou persuadido de que uma razão pela qual os nossos operários tão universalmente querem distância dos ministros é porque detestam as suas maneiras artificiais e antimasculinas. Se nos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 234 vissem, no púlpito e fora dele, agindo como homens de verdade, e falando com naturalidade, como homens sinceros, eles nos rodeariam. Ainda vale a observação de Baxter: "A falta de tom e de expressão familiares é um grande defeito da maioria das nossas prédicas, coisa que devemos ter todo o cuidado de corrigir". O erro do ministério é que os ministros querem clericalizar o evangelho. Temos que ter humanidade junto com a nossa "divindade" (teologia), se é que desejamos ganhar as massas. Toda gente é capaz de perceber afetações e provavelmente o povo não se deixa levar por elas. Irmãos, joguem fora as suas pernas-depau, e andem firmados em seus pés; dispam-se do seu eclesiasticismo e vistam-se da verdade. Contudo, um ministro é um ministro, esteja onde estiver, e deve lembrar-se de que está sempre em serviço. Um policial ou soldado pode ficar de folga, mas o ministro nunca. Mesmo em nossas recreações devemos continuar perseguindo o grande objetivo das nossas vidas, pois somos chamados para sermos diligentes "a tempo e fora de tempo". Não há situação em que possamos achar-nos fora do alcance da pergunta do Senhor: "Que fazes aqui, Elias?", e devemos ser capazes de responder logo: "Tenho algo para fazer por Ti neste lugar, e estou tentando fazêlo". É claro que de vez em quando o arco tem que ficar solto, frouxo, ou se não perderá a sua elasticidade, mas não há necessidade de cortar-lhe a corda. Estou falando por ora do ministro em suas ocasiões de descontração, e mesmo então digo que ele deve conduzir-se como embaixador de Deus, e apegar-se ás oportunidades de fazer o bem. Isto não estragará o seu repouso, e, sim, o santificará. O ministro deve ser como certa câmara que vi em Beaulieu, em New Forest, onde jamais se vê uma teia de aranha. É um grande quarto de despejo, e nunca é varrido. Apesar disso, nenhuma aranha o mancha com os emblemas da negligência. O teto é de castanheiro e, por alguma razão, não sei qual, as aranhas não se aproximam dessa madeira em nenhuma época do ano. A mesma coisa me foi mencionada nos corredores da Winchester School. Disseram-me: "Nunca vem nenhuma
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 235 aranha aqui". As nossas mentes devem de igual forma estar livres de hábitos ociosos. Nos nossos lugares públicos de descanso para os carregadores da cidade de Londres podemos ler as palavras, "Descanse, mas não vagabundeie"; e contém conselho digno de atenção. Não chamo de indolência o dolce far niente. Há um doce não fazer nada que é justamente o melhor remédio do mundo para a mente exausta. Quando a mente fica fatigada e em desordem, repousar não é mais ociosidade do que o sono; e ninguém diria que dormir no tempo próprio é preguiça. É muito melhor estar dormindo industriosamente do que ficar preguiçosamente acordado. Irmão, esteja pronto para fazer o bem, mesmo em seus períodos de repouso e em suas horas de lazer, e assim será de fato um ministro, e não lhe será preciso proclamar que o é. Fora do púlpito, o ministro cristão deve ser sociável. Ele não é enviado ao mundo para ser um eremita, ou um monge de La Trappe – da ordem dos trapistas. Sua vocação não consiste em postar-se no alto de uma coluna o dia todo, acima dos seus semelhantes, como aquele desatinado Simão Estilita dos velhos tempos. Não lhe cabe ficar pipilando no alto de uma árvore, como um rouxinol invisível, mas ser homem entre os homens, a dizer-lhes: "Sou como vocês, em tudo quanto se relaciona com o homem". De nada vale o sal no saleiro; tem que ser posto na comida; e a nossa influência precisa penetrar e temperar a sociedade. Afastando-se dos outros, como poderá beneficiá-los? O nosso Mestre foi a uma festa de casamento, comia com publicanos e pecadores, e contudo era mais puro do que aqueles beatos fariseus cuja glória estava em manter-se separados dos seus semelhantes. É preciso dizer a alguns ministros que eles são da mesma espécie dos seus ouvintes. É um fato notório mas bem o podemos declarar, que os bispos, os cônegos, os arcedíagos, os prebendados, os deãos rurais, os párocos, os vigários, e até os arcebispos, não passam de homens afinal de contas; e Deus não cercou um recanto sagrado da terra para lhes servir de câmara clerical, para ficarem sozinhos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 236 Não seria uma coisa má se houvesse um ressurgimento da santa conversação no pátio da igreja e no pátio de reuniões. Gosto de ver o arvoredo de grandes teixos com assentos ao redor. Parecem dizer: "Sente-se aqui, amigo, e fale sobre o sermão. Aí vem o pastor. Ele se juntará a nós, e teremos um bate-papo santo e agradável". Não é com todos os pregadores que nos interessaríamos em manter conversa; mas há alguns que, para conversar uma hora com eles, a gente daria uma fortuna. Gosto de um ministro cujo rosto me convida para fazê-lo meu amigo – um homem em cujo limiar de porta se lê: "Salve", "Bem-vindo", e se sente que não há necessidade daquela advertência encontradiça: "Cuidado com o cão". Dêem-me um homem que as crianças rodeiam, como os insetos rodeiam um jarro de mel; elas são juízes de primeira classe de um bom homem. Quando Salomão foi testado pela rainha de Sabá quanto à sua sabedoria, dizem os rabinos que ela levou consigo algumas flores artificiais, lindamente confeccionadas e delicadamente aromatizadas, como fac-símiles de flores verdadeiras. Ela pediu a Salomão que descobrisse quais eram artificiais e quais eram naturais. O sábio mandou os seus servos abrirem a janela, e quando as abelhas entraram, voaram imediatamente para as flores naturais, e não deram a mínima atenção às artificiais. Assim vocês verão que as crianças têm os seus instintos, e descobrem depressa quem é amigo delas, e acreditem que o amigo das crianças é alguém que vale a pena conhecer. Tenham uma boa palavra para dizer a todos e a cada membro da família – aos moços, às moças, às menininhas, a todos. Não se sabe o que um sorriso e uma frase cordial podem fazer. Quem tem o dever de fazer muito com os homens precisa amá-los e sentir-se à vontade com eles. O indivíduo destituído de cordialidade, melhor seria que fosse agente funerário e enterrasse os mortos, porque nunca terá sucesso quanto a influenciar os vivos. Encontrei algures a observação de que para ser pregador popular é preciso ter entranhas. Receio que a intenção desta observação seja
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 237 criticar suavemente certos irmãos pela tremenda corpulência que vieram a ter; mas há verdade nela. O homem deve ter grande coração, se quiser ter uma grande congregação. O seu coração deve ter tão ampla capacidade como aqueles nobres portos ao longo da nossa costa marítima, que têm largueza suficiente para abrigar toda uma frota. Quando um homem tem coração grande e amoroso, os homens vão a ele como os navios a um porto, e sentem paz quando ancorados a sota-vento da sua amizade. Tal homem é cordial, tanto em particular como em público; seu sangue não é frio, não é sangue de peixe, mas é cálido como a lareira a que vocês se aquecem. Nenhum orgulho e egoísmo lhes causa calafrios quando vocês se aproximam dele; ele mantém abertas todas as suas portas para recebê-lo, e num instante vocês ficam à vontade junto dele. Gostaria de persuadir vocês, cada um de vocês, a serem homens desse tipo. O ministro cristão deve ser alegre também. Não creio em andar por aí como certos monges que vi em Roma, que se saúdam uns aos outros em tons sepulcrais, e transmitem a prazenteira informação: "Irmão, temos que morrer", e a essa vívida saudação, cada um dos vívidos irmãos da ordem responde: "Sim, irmão, temos que morrer". Alegrou-me ser certificado, com base nessa boa autoridade, de que todos esses sujeitos indolentes estão prestes a morrer; de modo geral, é quase a melhor coisa que eles podem fazer. Mas, enquanto não se dá esse acontecimento, eles poderiam usar uma forma de saudação mais confortante. Sem dúvida há algumas pessoas que se impressionam com a aparência muito solene dos ministros. Ouvi falar de alguém que se convenceu de que tem que haver algo na religião católica romana, por causa da aparência extremamente faminta e chupada de certo eclesiástico. "Olhem", disse aquele, "como o homem está que é quase esqueleto por seus jejuns diários e suas vigílias noturnas! Como ele mortifica a sua carne!" Ora, as probabilidades são de que o emaciado sacerdote estivesse labutando com alguma doença interna, da qual se alegraria de coração se pudesse livrar-se, e não fosse o domínio do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 238 apetite, mas a falta de digestão, que o tivesse reduzido tanto; ou talvez uma consciência atribulada, que o tivesse desgastado, reduzindo-lhe assim o peso. Certamente nunca achei um texto que mencione a proeminência dos ossos como evidência da graça. Se fosse assim, "O Esqueleto Vivo" deveria ser exibido, não apenas como uma curiosidade da natureza, mas como padrão de virtude. Alguns dos maiores velhacos do mundo têm sido na aparência tão mortificados como se vivessem de gafanhotos e mel silvestre. É erro vulgar supor que um semblante melancólico seja índice de coração agraciado. Recomendo jovialidade a todos os que desejam ganhar almas para Cristo; não leviandade e ostentação fútil, mas espírito cordial e feliz. Pegam-se mais moscas com mel do que com vinagre, e haverá mais almas levadas para o céu pelo homem que usa o céu no rosto, do que pelo que traz o tártaro no semblante. Os jovens ministros, e, na verdade, todos os demais, quando na companhia de outras pessoas, devem ter o cuidado de não monopolizar toda a conversação. Estão bem qualificados para fazê-lo, sem dúvida. Digo isso por sua capacidade para ensinar e por sua facilidade de expressão. Mas devem lembrar-se de que as pessoas não estão interessadas em receber instrução perpetuamente; gostam de ter a sua vez na conversa. Nada agrada tanto a algumas pessoas, como deixá-las falar, e talvez lhes seja benéfico agradá-las. Certa noite passei uma hora com um personagem que me honrou dizendo que achava que eu era uma companhia encantadora, com conversa muitíssimo instrutiva; contudo, não hesito em confessar que eu não disse quase nada, mas deixei que só ele falasse. Pelo exercício da paciência, ganhei a sua boa opinião e a oportunidade de lhe falar noutras ocasiões. À mesa não se tem mais direito de falar tudo, do que de comer tudo. Não devemos considerar-nos o Senhor Oráculo, diante de quem nenhum cão deve abrir a boca. Não. Permita-se que todos os membros do grupo contribuam dos seus depósitos, e terão os melhores
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 239 pensamentos sobre as palavras piedosos com as quais vocês procuram temperar o discurso. Haverá algumas ocasiões nas quais vocês estarão presentes, especialmente no início do seu ministério, quando todos ficarão atemorizados pela majestade da sua presença, e o povo será convidado porque o novo ministro estará ali. Tal posição faz-me lembrar a mais fina estatuária do Vaticano. Abre-se uma pequena sala, corre-se uma cortina, e, eis aí! diante de você ergue-se o grande Apolo! Se lhe couber a penosa sorte de ser o Apolo do grupo, dê fim ao absurdo! Se eu fosse o Apolo, gostaria de sair do pedestal e apertar a mão de toda gente, e melhor seria que você fizesse a mesma coisa, pois, mais cedo ou mais tarde, o alvoroço que fazem em torno de você terá fim, e o procedimento mais sábio será dar-lhe cabo você mesmo. O culto do herói é uma espécie de idolatria, e não deve ser estimulado. Os heróis agem bem quando, fazendo como os apóstolos em Listra, ficam horrorizados com as honras que lhes prestam, e correm pelo meio do povo, gritando: "Varões, por que fazeis essas coisas? Nós também somos homens como vós, sujeitos às mesmas paixões". Os ministros não precisarão fazer isso por muito tempo, pois, os seus estultos admiradores são bem capazes de virar-se contra eles e, se não os apedrejarem quase até à morte, irão até onde sua ousadia lhes permitir, em sua grosseria e menosprezo. Conquanto eu diga, "Não exagere no falar, e não assuma importância que não passa de impostura", digo porém, não seja mudo. As pessoas formarão uma estimativa a respeito de você e do seu ministério por aqui que notam em seu falar particular tanto como em seus discursos em público. Muitos jovens se arruinaram no púlpito por serem indiscretos na sala de visitas, e perderam toda a possibilidade de serem úteis por causa da sua insensatez ou frivolidade em meio a outras pessoas. Não seja um pedaço de pau inanimado. Na Feira de Antuérpia, entre muitas curiosidades anunciadas com enormes quadros e grandes alardes, avistei uma barraca em que havia "uma grande maravilha" que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 240 se podia ver por apenas uns níqueis; era um homem petrificado. Não gastei a quantia exigida para a entrada, pois eu tinha visto de graça muitíssimos homens petrificados, no púlpito e fora dele – sem vida, negligentes, destituídos de bom senso, e completamente inertes, apesar de se ocuparem da atividade mais importante que o homem poderia exercer. Procure mudar a conversa, dando-lhe uso proveitoso. Seja comunicativo, alegre etc., mas labute para realizar alguma coisa. Por que você deveria semear vento ou arar pedra? Considere-se, depois de tudo, a si próprio como muito responsável pela conversação que é mantida onde você se encontra, pois é esta a estima em que normalmente será tido – que você será o timoneiro da conversação. Portanto, conduza-a para um bom rumo. Faça isso sem ser rude e sem forçar. Mantenha em boa ordem os pontos da linha, e o trem correrá pelos trilhos sem um solavanco. Esteja preparado para agarrar com destreza as oportunidades, e conduzir imperceptivelmente as coisas pela trilha desejada. Se o seu coração estiver posto nisto, e se o seu espírito estiver desperto, isto será bastante fácil, especialmente se você elevar uma oração pedindo direção. Nunca me esqueço da maneira como um indivíduo sedento apelou para mim em Clapham Common. Eu o vi num enorme carro no qual levava um pacote extremamente pequeno, e lhe perguntei por que não punha o pacote no bolso e deixava o veículo em casa. Disse-lhe eu: "É esquisito ver um carro tão grande para uma carga tão pequena". Ele parou e, olhando-me seriamente no rosto, disse: "Sim, senhor, é esquisito; mas, você sabe, hoje mesmo vi uma coisa mais esquisita ainda. Andei por aí trabalhando e suando todo este bendito dia, e até agora não encontrei nem um só cavalheiro que me parecesse disposto a dar-me uma garrafa de cerveja, até que encontrei você". Achei que ele manobrou com muita habilidade aquela virada na conversação, e nós, com muito melhor assunto em nossas mentes, devemos ser igualmente capazes de apresentar o tópico em que o nosso coração está posto. O homem agiu com tanta facilidade, que tive inveja
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 241 dele, pois eu não achei coisa simples assim apresentar o meu próprio tópico à sua consideração. Entretanto, se eu tivesse pensado tanto em como fazer-lhe bem quanto ele em como obter uma bebida, estou certo de que teria tido sucesso em atingir o meu objetivo. Se por todos os modos havemos de salvar alguns, devemos, como o nosso Senhor fez, falar à mesa com bom propósito em mente – sim, e à beira do poço, pelo caminho, na praia do mar, em casa e no campo. Ser um santo palestrante em prol de Jesus pode ser um ofício tão frutífero como ser um pregador fiel. Tenha em mira um alto grau de excelência em ambos os exercícios, e se for pedido o auxílio do Espírito Santo; você realizará o seu desejo. Aqui talvez eu deva inserir uma regra que, não obstante, creio que é completamente desnecessária com referência a cada um dos honoráveis irmãos a quem me dirijo nesta oportunidade. Não freqüentem as mesas dos ricos para obter o apoio deles, e nunca se façam uma espécie de parasita das recepções e dos banquetes. Quem é você que deva ser um bajulador deste ou daquele ricaço, quando os pobres do Senhor, os Seus enfermos, e as Suas ovelhas errantes precisam de você? Sacrificar o gabinete pastoral pela sala de visitas é um crime. Ser um agenciador da sua igreja, e surpreender as pessoas nas suas casas para atraí-las de modo que lotem os bancos da sua igreja, é uma degradação a que homem nenhum deve submeter-se. Ver ministros de diferentes denominações alvoroçando-se em volta de um homem rico, como abutres rodeando um camelo morto, deixa a gente enojado. Foi deliciosamente sarcástica aquela carta "de um velho e amado ministro a seu querido filho", por ocasião de sua entrada no ministério, da qual o seguinte extrato fere o ponto em questão. Dizem que ela foi transcrita da Smellfungus Gazette, mas desconfio que o nosso amigo Paxton Hood sabe tudo sobre a sua autoria. "Mantenha também um olho vigilante posto em todas as pessoas, especialmente as ricas ou influentes, que provavelmente venham para a sua cidade. Visite-as, e procure ganhá-las por meio de ato de devoção realizados na sala de visitas. Assim você poderá servir aos interesses do Mestre de maneira extremamente eficiente. É preciso tratar bem as pessoas,
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e o resultado de longa experiência confirmará a minha convicção, de há muito acariciada, de que o poder do púlpito é uma ninharia, comparado com o poder da sala de visitas. Precisamos imitar e santificar, mediante a Palavra de Deus e oração, os exercício dos jesuítas. Estes obtinham sucesso, não tanto com o púlpito como o que tinham com o locutório. Neste você pode sussurrar – pode conhecer as pessoas em todas as suas pequenas idéias pessoais. "O púlpito é um lugar muito desagradável; é claro que é o grande poder de Deus, e assim por diante, mas é a sala de visitas que conta, e o ministro, mesmo que for bom pregador, não terá a mesma possibilidade de sucesso que terá aquele que for um perfeito cavalheiro. Tampouco homem nenhum terá qualquer perspectiva de êxito numa sociedade culta, se não for, não obstante tudo o que seja, um cavalheiro. Sempre admirei a caracterização do apóstolo Paulo feita por Lorde Shaftesbury em sua obra, Characteristics (características), de que ele era um fino cavalheiro. E eu lhe digo: seja um cavalheiro. Não que eu tenha necessidade de dizê-lo, mas estou persuadido de que somente desta maneira podemos esperar a conversão da nossa crescente classe média. Temos que mostrar que a nossa religião é a religião do bom senso e do bom gosto; que desaprovamos as emoções fortes e os fortes estimulantes; e, ah, meu caro rapaz, se você quiser ser útil, ore fervorosamente muitas vezes em seu quarto, para que você seja um cavalheiro. Se me perguntassem qual é o seu primeiro dever, eu diria, seja cavalheiro; e o segundo, seja cavalheiro; e o terceiro, seja cavalheiro".
Os que recordam certa classe de pregadores que floresceram há cinqüenta anos, verão a agudeza da sátira deste extrato. O mal acha-se grandemente mitigado agora. Na verdade, receio que estejamos indo para o outro extremo. Com toda a probabilidade, uma conversação sensata às vezes pende para a controvérsia, e aqui muito bom homem topa com um tropeço. O ministro sensato será particularmente gentil na argumentação. Acima de todos os demais homens, ele não deve cometer o erro de imaginar que há força no mau gênio e poder no falar zangado. Um pagão que estava no meio de uma multidão em Calcutá, ouvindo um missionário discutir com um brâmane, sabia quem estava certo apesar de não entender a língua sabia que estava errado aquele que perdera a calma primeiro.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 243 Na maioria dos casos, este é um modo muito precioso de julgar. Procure evitar discutir com as pessoas. Dê sua opinião, e permita que elas dêem as suas. Se você vê que uma vara é torta, e quer que o povo veja como ela é torta, ponha um bastão reto ao lado dela, e bastará. Mas se você for levado a uma controvérsia, empregue argumentos bem duros e palavras bem suaves. Muitas vezes não conseguimos convencer um homem dando puxões na sua razão, mas você pode persuadi-lo conquistando o seu afeto. Outro dia eu tive a desgraça de precisar de um par de botinas novas, e embora tenha pedido ao camarada que as fizesse grandes como canoas, tive que fazer um esforço terrível para calçá-las. Com um par de calçadeiras labutei como os homens que estavam a bordo do navio de Jonas, mas tudo em vão. Foi nesse instante que o meu amigo pôs na minha frente um pequeno pedaço de giz francês, e o trabalho foi feito num momento. Maravilhosa e gentilmente persuasivo era aquele giz francês. Cavalheiros, levem sempre consigo um pequeno giz francês à sociedade, um belo pacote de persuasão cristã, e logo descobrirão as virtudes dele. E finalmente, com toda a sua amabilidade, o ministro deve ser firme em seus princípios, e destemido para proclamá-los e defendê-los em todos os agrupamentos sociais. Quando ocorre uma boa oportunidade, ou se ele tiver produzido uma, não se demore a aproveitá-la. Forte em seus princípios, fervoroso na entonação e afetuoso de coração, fale como homem, e agradeça a Deus o privilégio. Não há necessidade de reticência – ela é desnecessária. As mais doidas fábulas dos espíritas, os mais rústicos sonhos dos reformadores utópicos, a mais tola tagarelice da cidade, e a mais fútil absurdidade do mundo frívolo, exigem quem os ouça, e os conseguem. E Cristo, não será ouvido? Sua mensagem de amor ficará sem ser proferida, por temer-se acusação de intrusão ou de hipocrisia? Far-se-á da religião um tabu – proibido o melhor e o mais nobre de todos os temas? Se esta for a regra de alguma sociedade, não concordaremos com ela. Se não a pudermos pôr fora de ação,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 244 deixaremos a sociedade entregue a si mesma, como os homens abandonam uma casa contagiada pela lepra. Não podemos consentir que nos amordacem. Não há razão por que devamos ser amordaçados. Não iremos a nenhum lugar aonde não podemos levar conosco o nosso Mestre. Enquanto outros tomam a liberdade de pecar, nós nos renunciaremos à nossa liberdade de repreendê-los e adverti-los. Utilizada com sabedoria, a nossa conversação comum pode ser um poderoso instrumento para o bem. Encadeamentos de conceitos podem ser iniciados com uma só frase que talvez leve á conversão pessoas jamais alcançadas por nossos sermões. O método de segurar as pessoas pela lapela, ou de levar-lhes a verdade individualmente, tem obtido grande sucesso. Este é outro assunto, e dificilmente ficará bem sob o título de conversação comum. Mas concluiremos dizendo que é de esperar-se que nós, em nosso falar comum, não mais do que no púlpito, nunca sejamos vistos como uma refinada espécie de pessoas, cuja ocupação é tornar agradáveis as coisas para todos, e que nunca, por qualquer motivo ou circunstância possível, causam inquietação a quem quer que seja, por mais ímpias que suas vidas sejam. Tais pessoas vão e vêm entre as famílias dos seus ouvintes, e se divertem com elas, quando deviam chorar sobre elas. Sentam-se às suas mesas e se banqueteiam em sua comodidade, quando deviam exortá-las a fugirem da ira vindoura. São como o alarme americano de que ouvi falar, que era garantido que não o despertaria, se você não quisesse que o despertasse. Quanto a nós, cabe-nos semear, não somente no terreno plano e bom, mas também nas rochas e nos caminhos pisados, e no último e grande dia ter uma feliz colheita. Que o pão lançado por nós às águas em horas extraordinárias e em ocasiões estranhas, seja encontrado de novo depois de muitos dias!
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AOS OBREIROS MAL EQUIPADOS Que hão de fazer os ministros mal equipados? Por mal equipados quero dizer que têm poucos livros, e escasso ou nenhum recurso com que comprar mais. Este estado de coisas não devia existir em caso nenhum; as igrejas deviam cuidar que isto se tornasse impossível. Na medida máxima da sua capacidade, deviam suprir o seu ministro, não só de alimento necessário para o sustento da vida física, mas de nutrição mental, para que sua alma não morra de fome. Uma boa biblioteca deve ser considerada como parte indispensável da equipagem da igreja; e os diáconos, cuja atividade consiste em "servir às mesas", serão sábios se, sem negligenciarem a mesa do Senhor, ou dos pobres, e sem diminuírem os suprimentos da mesa de jantar do ministro, derem uma olhada na mesa do seu gabinete, e a mantiverem suprida de novas obras e de livros básicos com razoável abundância. Seria bom investimento de dinheiro, e seria produtivo muito além do que se poderia esperar. Em vez de se fazerem eloqüentes sobre o poder decrescente do púlpito, os líderes da igreja deveriam empregar os meios legítimos para melhorar-lhe o poder, suprindo o pregador de alimento que o faça pensar. Coloquem de lado o chicote, é o meu conselho a todos os resmungões. Há alguns anos procurei induzir as nossas igrejas a terem bibliotecas para os ministros como coisa natural, e algumas poucas pessoas dotadas de raciocínio viram o valor da sugestão e começaram a executá-la. Com muita satisfação tenho visto aqui e ali estantes supridas de uns quantos volumes. Gostaria imensamente que esse começo tivesse sido dado em toda parte, mas, ah! temo que somente uma longa sucessão de ministros famintos levará os avarentos à convicção de que a parcimônia com um ministro é falsa economia. As igrejas que não podem oferecer um generoso estipêndio, devem fazer algumas emendas fundando uma biblioteca como parte permanente do seu patrimônio; e, fazendo-lhe acréscimos freqüentemente, ela logo se tornará valiosa.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 246 O gabinete pastoral do meu venerável avó tinha uma coleção de muitos volumes antigos e valiosos dos puritanos, que passavam de ministro a ministro. Bem me lembro de certos tomos de peso, cujo principal interesse para mim estava em suas curiosas letras iniciais adornadas com pelicanos, grifos mitológicos, meninos brincando, ou patriarcas trabalhando. Pode se objetar que os livros se perderiam pela mudança dos usuários, mas eu correria esse risco. E, como um pouco de atenção aos catálogos, os administradores poderiam manter as bibliotecas com a mesma segurança com que mantêm os bancos do templo e o púlpito. Se não se adotar este esquema, experimente-se outro mais simples. Que todos os subscritores comprometidos com o sustento do pregador acrescentem dez por cento ou mais às suas contribuições, com o fim expresso de dar sustento ao cérebro dele. Receberão de volta a recompensa através dos melhores sermões que ouvirão. Se se garantisse uma pequena renda anual aos ministros pobres para ser sagradamente gasta em livros, ser-lhes-ia uma dádiva do céu, e uma incalculável bênção para a comunidade. As pessoas sensatas não esperam que uma horta lhes dê legumes ano após ano, a menos que enriqueçam o solo; não esperam que uma locomotiva funcione sem combustível, ou que um boi ou um asno trabalhe sem receber alimento. Que não esperem, pois, receber sermões instrutivos de homens a quem se veda o armazém de conhecimentos por não poderem comprar livros. Mas a questão é, que farão os homens que não têm recursos, que não contam com uma biblioteca da igreja, e que não recebem verba para prover-se de livros? Observemos de imediato que, se tais homens tiverem êxito, deve-se-lhes maior honra do que aos que têm abundantes meios. Conta-se que os seus companheiros de trabalho tiraram de Quintin Matsys todas as suas ferramentas, menos o seu martelo e a sua lima, e que ele produziu sem elas a sua famosa cobertura de poço; tanto maior honra para ele! Grande crédito se deve àqueles que, trabalhando para
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 247 Deus, fizeram grandes coisas sem ferramentas utilizáveis. Seu labor teria sido aliviado grandemente, se as possuíssem; mas o que realizaram é por demais maravilhoso. Na atual Exposição Internacional de Kensington, a Escola de Culinária do Sr. Buckmaster é admirada, principalmente porque produz pratos saborosos com ingredientes inferiores. Com uma mancheia de ossos e um pouco de macarrão, ele serve iguarias palacianas. Se ele dispusesse de todos os ingredientes empregados na culinária francesa, e os empregasse todos, toda gente diria: "Bem, qualquer um faria isso"; mas quando ele lhes mostra sobras de carne e ossos, e lhes diz que os comprou no açougue por uma ninharia, e que com isso pode preparar um prato para uma família de cinco ou seis membros, todas as boas senhoras arregalam os olhos e se maravilham que alguém possa fazer tal prodígio; e quando passa a uns e outros o seu prato, e eles o provam e vêem quão delicioso é, enchem-se de admiração. Ao trabalho, então, irmão pobre, pois você pode ter sucesso em fazer grandes coisas no seu ministério, e as boas vindas com, "Bem está, servo bom e fiel", serão tanto mais enfáticas porque você trabalhou debaixo de sérias dificuldades. Se um homem somente pode adquirir uns poucos livros, o meu primeiro conselho a ele será: compre os melhores. Se não puder gastar muito, gaste bem. Os melhores sempre serão os mais baratos. Deixe as meras diluições e atenuações aos que podem arcar com tais luxos. Não compre leite com água, mas consiga leite condensado, e ponha você mesmo quanta água quiser. Esta época está cheia de fiandeiros de palavras – compiladores profissionais que pilam um grão de tema pulverizando-o tão fino que chega a cobrir uma folha de papel de cinco acres; estes homens têm a sua utilidade, como a têm os artífices em ouro, mas para você não têm utilidade nenhuma. Outrora os fazendeiros do nosso litoral costumavam carrear cargas de algas e colocá-las em seus terrenos; a parte mais pesada era a água; agora secam as algas e poupam um mundo de trabalho e de despesas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 248 Não compre sopa rala; adquira essência de carne. Obtenha muito do pouco. Dê preferência a livros que abundem naquilo que James Hamilton costumava chamar de "sulco bíblico", ou a essência dos livros. Você precisa de livros modelares exatos, condensados, confiáveis, e deve providenciar para que os tenha. Ao preparar as suas Horae Biblicae Quotidianae (Horas Bíblicas Cotidianas), admirável comentário da Bíblia, o Dr. Chalmers usou somente a Concordance (Concordância), a Pictorial Bible (Bíblia Ilustrada), a Synopsis (Sinopse), de Poole, o Comentário de Mathew Henry, e a Researches in Palestine (Pesquisas na Palestina), de Robinson. "São estes os livros que uso", disse ele a um amigo; "harmonizam-se com a. Bíblia; não preciso fazer nada mais que isso, no meu estudo da Bíblia". Isto mostra que os que têm provisões ilimitadas às suas ordens acham, apesar disso, suficientes uns poucos livros básicos. Se o Dr. Chalmers vivesse agora, provavelmente pegaria The Land and the Book (A Terra e o Livro), de Thomson, em lugar de Pesquisas, de Robinson, e trocaria a Bíblia Ilustrada por Daily Bible Illustrations (Ilustrações Bíblicas Diárias), de Kitto; pelo menos eu recomendaria esta alteração à maior parte dos homens. Isto prova claramente que alguns pregadores dos mais eminentes achavam que podiam fazer coisa melhor com poucos livros do que com muitos, ao estudarem as Escrituras, e, conforme eu entendo, esta é a nossa principal ocupação. Desista, pois, sem queixas, dos muitos livros, os quais são como as navalhas do popular Hodge, livros feitos "só para serem mercadejados". Tais livros nada valem, no entanto sempre acham compradores. Quanto ao Comentário de Matthew Henry, já mencionado, aventuro-me a dizer que nenhum ministro fará investimento melhor do que comprar aquela exposição sem par. Consiga-o, ainda que tenha que vender o casaco para adquiri-lo. A regra que em seguida firmo é, domine os seus livros. Leia-os completamente. Banhe-se neles até ficar saturado. Leia-os e releia-os,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 249 mastigue-os, e digira-os. Faça que penetrem o íntimo do seu ser. Examine minuciosamente um bom livro várias vezes, e faça anotações e análises dele. O estudante verá que a sua constituição mental é mais influenciada por um livro dominado completamente do que por vinte livros que só leu por alto, dando-lhe lambidas, como diz o provérbio clássico, "Como os cães bebem no Nilo". Pouco saber e muito orgulho vêm da leitura apressada. É possível empilhar livros no cérebro, até que este não consegue funcionar. Alguns homens perdem a capacidade de pensar por eliminarem a meditação por amor a demasiada leitura. Empanturram-se do conteúdo de livros, e se tornam dispépticos mentais. Livros em cima do cérebro causam doença. Meta o livro dentro do cérebro, e você crescerá. Na obra Curiosities of Literature (Curiosidades da Literatura), de D'Israeli, há uma invectiva de Luciano sobre os que se jactam de possuírem grandes bibliotecas, das quais nunca lêem nem um volume nem tiram proveito. Começa comparando uma pessoa dessas com um piloto que nunca aprendeu a arte da navegação, ou com um aleijado que usa chinelos bordados mas não consegue firmar-se neles. Depois ele exclama: "Por que você compra tantas livros? Você não tem cabelo, e compra um pente; é cego, e tem que comprar um fino espelho; é surdo, e quer possuir o melhor instrumento musical!" – censura muito bem merecida pelos que pensam que apenas a posse de livros lhes garantirá cultura. Certa medida dessa tentação nos ocorrerá a todos; pois não é que nos achamos mais sábios depois de termos passado uma hora ou duas numa livraria? Um homem poderia muito bem sentir-se mais rico por ter inspecionado os depósito do Banco da Inglaterra. Na leitura de livros, oxalá o seu lema seja: "Muito, não muitos". Além de ler, pense, e sempre mantenha o pensamento proporcional à leitura, e a sua pequena biblioteca não será grande infortúnio. Há muito bom senso na observação de um escritor na Quarterly Review (Revista Trimestral) há muitos anos. "Dê-nos aquele querido livro, conseguido barato na banca, ao preço de um jantar, manuseado,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 250 com as orelhas arrancadas, rachado na lombada, e arrebentado nos cantos, com anotações nas folhas em branco, rabiscado nas margens, manchado e chamuscado, rasgado e desgastado, alisado no bolso, enodoado pela fuligem, umedecido na relva e empoeirado entre as cinzas, sobre o qual você sonhou no bosque e cochilou em frente das brasas, mas leu, releu e tornou a ler, de capa a capa. É por meio desse livro em particular, e seus três ou quatro sucedâneos singulares, que se transmite mais cultura verdadeira do que por todas as miríades de livros que pesam e entortam as estantes de uma milha de extensão da biblioteca universitária de Oxford – a Bodleian Library". Mas, se você acha que deve ter mais livros, recomendo-lhes empréstimos parcimoniosos e judiciosos. É bem provável que você tenha alguns amigos que possuem livros e que sejam suficientemente bondosos para permitir-lhe que os use por algum tempo; e o advirto especialmente a devolver tudo que lhe seja emprestado, a devolvê-lo a tempo e em bom estado, para que lho emprestem de novo. Espero que não me seja necessário falar muito sobre a devolução de livros, como teria sido há alguns meses, pois recentemente deparei com uma afirmação feita por um clérigo, que fez muito pela elevação da minha opinião sobre a natureza humana, pois ele declara que conhece pessoalmente três cavalheiros que de fato devolveram guarda-chuvas emprestados! Lamento dizer que ele se move num círculo muito mais favorável do que eu, pois conheço pessoalmente vários jovens que tomaram livros emprestados e nunca os devolveram. Outro dia, certo ministro, que me emprestara cinco livros, que usei por dois anos ou mais, escreveu-me um bilhete pedindo-me a devolução de três. Para sua surpresa, recebeu-os de volta por encomenda postal, e os outros dois que ele tinha esquecido. Eu tinha mantido cuidadosamente uma lista dos livros que me foram emprestados e, portanto, pude fazer a devolução completa ao dono. Estou certo de que ele não esperava a pronta chegada deles, pois me escreveu uma carta com um misto de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 251 espanto e de gratidão, e quando eu tornar a visitar o escritório dele, estou certo de que receberá bem um novo pedido de empréstimo. Creio que todos vocês conhecem os versos escritos nos livros de muita gente: "Se um amigo pedir-te por empréstimo, certamente atendido ele será, para ler-te, estudar-te, não emprestar-te, mas devolver-te a mim. Não que o conhecimento transmitido reduza as provisões da erudição, mas descobri que os livros emprestados não me voltam jamais".
Walter Scott costumava dizer que os seus amigos podiam ser contadores medíocres, mas estava convicto de que eram bons "guardalivros". Alguns até tiveram que fazer como certo estudioso que, ao lhe pedirem que emprestasse um livro, mandou o recado pelo criado de que não deixaria o livro sair da sua sala, mas que o cavalheiro que pedira o empréstimo podia vir e sentar-se ali, e ler quanto tempo quisesse. A réplica foi inesperada mas completa quando, estando a apagar-se-lhe o fogo, mandou pedir à mesma pessoa que emprestasse um fole, e recebeu como resposta que o dono não o emprestaria fora da sua sala, mas o cavalheiro podia vir e soprar com o fole quanto tempo quisesse. Os empréstimos judiciosos podem fornecer-lhe muita leitura, mas lembre-se do machado emprestado (2 Reis 6:5) e tenha cuidado com o que tomar emprestado. "O ímpio toma emprestado, e não paga." Caso a fome de livros aflija a terra, há um livro que todos vocês têm, e esse é a sua Bíblia. E o ministro com a sua Bíblia é como Davi com a sua funda e pedra, plenamente equipado para a peleja. Ninguém poderá dizer que não tem poço donde tirar, enquanto as Escrituras estiverem a seu alcance. Na Bíblia temos uma perfeita biblioteca, e quem a estudar completamente, será um erudito melhor do que se tivesse devorado a biblioteca de Alexandria inteira. Compreender a Bíblia deve
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 252 ser a nossa ambição; devemos estar familiarizados com ela, tão familiarizados como a dona de casa o está com a sua agulha, o comerciante com o seu livro-razão, o marinheiro com o seu navio. Devemos conhecer o seu roteiro geral, o conteúdo de cada livro, as minúcias das suas histórias, doutrinas e preceitos, e tudo que lhe diz respeito. Falando de Jerônimo, pergunta Erasmo: "Quem senão ele jamais aprendeu de cor toda a Escritura? ou a absorveu, ou meditou nela com ele?" Diz-se de Witsius, culto holandês, autor da famosa obra sobre The Covenants ("As Alianças"), que também era capaz, não somente de repetir cada palavra da Escritura nas línguas originais, mas também de dar o contexto e as críticas dos melhores autores. E ouvi falar que um velho ministro de Lancashire era "uma concordância ambulante", e que podia dar o capítulo e o versículo de qualquer passagem citada, ou viceversa, podia dizer corretamente as palavras quando se mencionava o lugar onde ocorrem. Isso pode ter sido uma proeza da memória, mas o estudo requerido só pode ter sido altamente proveitoso. Não digo que vocês precisam aspirar a isso; mas se o fizessem, o lucro valeria a pena. Foi este um dos pontos fortes daquele gênio singular, William Huntington (que agora não condeno nem recomendo), que, quando pregava, citava incessantemente a Escritura Sagrada, e costumava, cada vez que o fazia, dar o capítulo e o versículo. E para mostrar a sua independência do livro impresso, tinha o deselegante hábito de tirar a Bíblia de cima do púlpito. O homem que aprendeu, não apenas a letra da Bíblia, mas o seu espírito interior, não será um tipo inferior, quaisquer que sejam as deficiências com que ele trabalhe. Vocês conhecem o antigo provérbio, "Cave ab homine unius libri" – Cuidado com o homem de um só livro. Este é um terrível antagonista. O homem que tem a Bíblia na ponta da língua e no fundo do coração é um campeão em Israel. Você não pode competir com ele. Você pode ter um verdadeiro arsenal, mas o conhecimento que ele tem da Escritura o sobrepujará, pois é uma espada
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 253 como a de Golias, da qual disse Davi: "Não há outra semelhante". O amável William Romaine, creio eu, na última parte da sua vida, pôs fora todos os seus livros, não lendo outra coisa senão a Bíblia. Era erudito, mas foi monopolizado pelo Livro, e este o fez poderoso. Se formos levados a fazer a mesma coisa por necessidade, lembremos que alguns a fizeram por escolha, e não lamentemos a nossa sorte, pois as Escrituras serão mais doces que o mel ao nosso paladar, e nos farão "mais sábios do que os antigos". Jamais nos faltarão temas santos se estudarmos continuamente o volume inspirado; ao contrário, não só acharemos temas ali, mas também ilustrações, pois a Bíblia é a melhor ilustradora de si mesma. Se você quiser historieta, símile, alegoria ou parábola, dirija-se ás páginas sagradas. A verdade escriturística nunca parece mais atraente do que quando é adornada com jóias tiradas do seu próprio tesouro. Tenho lido ultimamente os livros de Reis e de Crônicas, e me enamorei deles. Estão repletos de instruções divinas, como os Salmos ou os profetas, se os lermos com os olhos abertos. Acho que era Ambrósio que costumava dizer: "Adoro a infinidade da Escritura". Ouço a mesma voz que soou nos ouvidos de Agostinho, concernente ao Livro de Deus: "Tolle, lege" – Toma, lá. Talvez você venha a viver isolado em alguma aldeia, onde não encontrará alguém que esteja acima do seu nível com quem conversar, e onde encontrará bem poucos livros que valha a pena ler. Então, leia e medite na lei do Senhor de dia e de noite, e será "como a árvore plantada junto a ribeiros de águas". Faça da Bíblia o seu braço direito, o companheiro da todas as horas, e terá poucos motivos para lamentar o seu equipamento deficiente em coisas inferiores. Irmãos, gostaria imensamente de inculcar-lhes a verdade de que um homem pobremente equipado pode compensar isso com farto pensamento. Pensar é melhor do que possuir livros. Pensar é um exercício da alma que tanto desenvolve as suas faculdades como as educa. Alguém perguntou a uma menina se ela sabia o que era a alma e, para surpresa de todos, ela disse: "Senhor, a minha alma é o meu
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 254 pensar". Se isto estiver correto, algumas pessoas têm muito pouca alma. Sem pensamento, a leitura não pode beneficiar a mente, mas pode iludir o homem com a idéia de que está ficando mais sábio. Os livros são uma espécie de ídolos para alguns homens. Como a imagem para o católico romano visa a fazê-lo pensar em Cristo, e com efeito o mantém longe de Cristo, assim os livros visam a fazer os homens pensarem, mas muitas vezes são um empecilho para o pensamento. Quando George Fox pegou uma aguda faca e cortou um par de calções de couro para si próprio e, desligando-se das modas da sociedade, ocultou-se numa árvore oca para ficar ali meses a pensar, estava se tornando um homem de pensamento diante de quem os homens de livros rapidamente batiam em retirada. Que alvoroço ele causou, não só entre papismos, episcopados e presbitérios do seu tempo, mas também entre os mui versados dignitários dos dissidentes. Ele varreu totalmente as teias de aranha dos céus, e fez os cupins de livros passarem maus bocados. O pensamento é a espinha dorsal do estudo, e se mais ministros pensassem, que bênção seria! Somente queremos homens que pensem na verdade revelada de Deus, e não sonhadores que façam desenvolver-se religiões dos seus próprios sentidos. Hoje em dia estamos praguejados com um bando de sujeitos que acham de firmar-se sobre a cabeça e de pensar com os pés. A sua noção de meditação consiste em romancear. Em vez de considerar a verdade revelada, excogitam um prato de sua invenção pessoal em que o erro, o absurdo e a presunção aparecem em partes quase iguais; e a esse caldo chamam "pensamento moderno". Precisamos de homens que procurem pensar direito, e ainda pensar com profundidade, porque estarão pensando os pensamentos de Deus. Longe de mim concitá-los a imitar os jactanciosos pensadores desta época, que esvaziam os seus salões de culto, e depois se ufanam de que pregam a ouvintes cultos e intelectuais. Miserável hipocrisia! Pensar fervorosamente nas coisas em que cremos firmemente é coisa inteiramente diversa, e a isto os incito. Pessoalmente devo muito a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 255 muitas horas, e mesmo dias, passados a sós, debaixo de um velho carvalho, às margens do rio Medway. Por motivo de estar um tanto mal de saúde na época em que eu estava deixando a escola, foi-me permitido considerável lazer, e, armado de excelente vara de pescar, peguei alguns peixinhos, e me deleitei com muitos sonhos fagueiros, de mistura com sondagens do coração, e muito ruminar conhecimentos adquiridos. Se os meninos pensassem, seria bom dar-lhes menos trabalho em salas de aula e mais oportunidade para pensarem. Só empanturrar-se, sem nenhuma digestão, deixa a carne destituída de músculos, e isto é ainda mais deplorável mentalmente do que fisicamente. Se a sua igreja não for suficientemente numerosa para dar-lhe uma biblioteca, irmão, exigirá menos do seu tempo e, tendo tempo para meditar, você se sairá até melhor do que os seus colegas que dispõem de muitos livros e de pouco espaço de tempo para serena contemplação. Sem livros, o homem pode aprender muito mantendo os olhos abertos. Da história atual, dos incidentes que transpiram debaixo do seu nariz, dos fatos registrados no jornal, dos assuntos da conversação comum – disso tudo ele pode aprender. A diferença entre ter e não ter olhos é maravilhosa. Se você não tem livros, experimente os olhos. Mantenha-os abertos por onde andar, e encontrará algo que vale a pena ver. Você não é capaz de aprender da natureza? Cada flor está à sua espera, para ensiná-lo. Olhe "os lírios" e aprenda das rosas. Não é só à formiga que você pode ir, mas todos os seres vivos se oferecem para darlhe instrução. Há uma voz em cada rajada de vento, e uma lição em cada grão de pó que ela arrasta. Sermões cintilam de manhã em cada folha de relva, e homilias adejam ao seu redor ao cair das folhas secas. Uma floresta é uma biblioteca, uma lavoura é um tomo de filosofia, a rocha é história, e o rio em seu leito é um poema. Vá, você que tem os olhos abertos, e descubra lições de sabedoria por toda parte, em cima no céu, embaixo na terra, e nas águas debaixo da terra. Comparados com estas riquezas, os livros são coisas pobres.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 256 Além disso, por limitadas que sejam as suas bibliotecas, você pode estudar-se a si próprio. Este é um misterioso volume, a maior parte do qual você não leu. Se alguém pensa que se conhece completamente, engana-se, pois o 'livro mais difícil que você jamais leu é o seu próprio coração. Outro dia eu disse a uma pessoa cheia de dúvidas, que parecia estar vagando num labirinto: "Pois bem, não posso compreendÊ-lo, mas isto não me dá vexame, porque nunca pude compreender-me a mim" – e realmente eu quis dizer isso mesmo. Observe os rodeios e giros e singularidades da sua mente, e as estranhas peculiaridades da sua experiência pessoal; a depravação do seu coração e a obra da graça divina; a sua tendência para pecar e a sua capacidade para santificar-se; quanta afinidade você tem com o diabo e, todavia, quão unido está a Deus! Note com que sabedoria você pode agir quando ensinado por Deus, e como se comporta estultamente quando entregue a si próprio. Verá que o estudo do seu coração é de imensa importância para você, como vigia das almas dos outros. A experiência pessoal de um homem deve servirlhe de laboratório em que ele testa os remédios que prescreve para outros. Até mesmo os seus erros e fracassos lhe instruirão, se os levar ao Senhor. Homens absolutamente sem pecado seriam incapazes de compadecer-se de homens e mulheres imperfeitos. Estude os tratamentos que o Senhor dá à sua alma, e você saberá mais das maneiras como Ele age com os outros. Leia outros homens. São tão instrutivos como os livros. Suponhamos que chegasse a um dos nossos grandes hospitais um estudante jovem e tão pobre que não pudesse comprar livros de cirurgia. Ser-lhe-ia por certo grande prejuízo. Mas, se ele conhecesse o programa do hospital, se assistisse às operações realizadas, e observasse as ocorrências clínicas dia após dia, não me espantaria se ele se tornasse um cirurgião tão habilitado como os seus colegas mais favorecidos. A sua observação lhe mostraria o que, sozinhos, os livros não poderiam mostrar. E, ficando por perto para ver a amputação de uma perna, o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 257 curativo de uma ferida, a ligação de uma artéria rota, ele poderia, no mínimo, pegar cirurgia prática o bastante para prestar-lhe serviço imenso. Pois bem, muita coisa que o ministro precisa saber ele tem que aprender pela observação dos fatos. Todos os pastores sábios têm andado pelos hospitais, espiritualmente falando, e lidado com perguntadores, hipócritas, extraviados, aflitos e presunçosos. O homem que teve sólida experiência prática nas coisas de Deus, e que observou os corações dos seus semelhantes – não tendo nada a impedir-lhe os passos – será um homem muito mais útil do que aquele que só sabe o que leu. É uma lástima, um homem ser um estudante janota, que sai da sala de aulas como de uma caixa de embalagem. para um mundo que jamais viu, para lidar com pessoas que nunca tinha observado, e para manipular fatos com os quais nunca tivera contato pessoal. "Não seja neófito", diz o apóstolo. E é possível ser um neófito, e, contudo, ser um erudito consumado, um clássico, um matemático, e um teólogo teórico. Devemos ter conhecimento prático das almas humanas, e, se tivermos abundância desse conhecimento, a escassez de nossos livros será uma aflição leve. "Mas", indaga um irmão inquiridor, "como se pode ler um homem?" Ouvi falar de um cavalheiro de quem se dizia que você nunca poderia deter-se com ele por cinco minutos sob uma arcada qualquer sem que ele lhe ensinasse alguma coisa. Esse era um sábio. Mas seria mais sábio ainda aquele que nunca parasse debaixo de uma arcada sem aprender alguma coisa de outrem. Os sábios tanto podem aprender de um tolo como de um filósofo. O tolo é um esplêndido livro em que ler, porque todas as folhas estão abertas diante de você. Há uma pitada de comicidade nesse gênero, que o incita a prosseguir na leitura, e, se você não colher mais nada, fica advertido a não publicar a sua própria tolice. Aprenda dos santos experimentados. Que coisas profundas alguns deles podem ensinar-nos, a nós, mais jovens! Que casos exemplares os pobres de Deus podem narrar, das intervenções providenciais do Senhor a favor deles! Como se gloriam na divina graça que os sustenta e na
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 258 fidelidade de Deus para com a Sua aliança! Que novas luzes eles derramam muitas vezes sobre as promessas, revelando significados ocultos aos carnalmente sábios, mas tornados claros aos corações simples! Você não sabe que muitas promessas estão escritas com tinta invisível, e têm que ser expostas ao fogo da aflição para que se vejam as letras? Santos provados são grandes instrutores de ministros. Em relação ao perguntador, quanto se pode obter dele! Tenho enxergado muita asneira minha enquanto converso com almas inquiridoras. Fui ludibriado por um pobre rapaz quando tentava levá-lo ao Salvador. Eu pensava que o tinha seguro, mas ele se esquivava vez após vez, com o perverso engenho da incredulidade. Às vezes os perguntadores realmente inquietos me surpreendem com a sua singular habilidade para combater a esperança; os seus argumentos são intermináveis, e incontáveis os seus problemas. Eles nos colocam repetidamente num beco sem saída. Afinal a graça de Deus nos capacita a trazê-los à luz, no entanto, não antes de vermos a nossa própria ineficiência. Nas inusitadas perversidades da descrença, as singulares interpretações ou falsas proposições que os desalentados dão aos seus sentimentos e às declarações bíblicas, muitas vezes você achará um mundo de instruções. Eu preferiria que um jovem passasse uma hora com os perguntadores ou com os mentalmente deprimidos do que uma semana em nossas melhores aulas, no que diz respeito ao treinamento prático para o pastorado. Um ponto mais – esteja muitas vezes ao lado dos leitos de morte. São livros iluminados. Ali você lerá a porta autêntica da nossa religião e aprenderá os seus segredos. Que gemas esplêndidas são levadas à praia pelas ondas do Jordão! Que lindas flores crescem em suas ribanceiras! Os mananciais sempiternos do país da glória lançam para o alto os seus jatos, e as gotas do orvalho gotejam deste lado da estreita corrente! Tenho ouvido humildes homens e mulheres na hora da sua partida falarem como inspirados, proferindo estranhas palavras, resplandecentes de suprema glória. Não as aprenderam dos lábios de ninguém debaixo da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 259 lua; só podem tê-las ouvido quando estavam sentados nos subúrbios da Nova Jerusalém. Deus sussurra em seus ouvidos em meio às suas dores e fraquezas, e depois eles nos contam um pouco do que o Espírito lhes revelou. Largarei todos os meus livros, se puder ver os Elias do Senhor subirem em seus carros de fogo.