Antologia Poética

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ANTOLOGIA POÉTICA METAPOEMAS BRASILEIROS

organizadores gloria viola felipe sanchez


Prefácio Poemas sobre poemas. Apesar de não parecer comum, muitos poetas e poetisas conhecidos têm em seus repertórios metapoemas, entre eles, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, entre muitos outros. Abaixo, se encontram doze poemas, de sete autores brasileiros diferentes, organizados na ordem cronológica de nascimento dos poetas. Iniciando esta antologia, nos encontramos presos em diversos temas, o que mais nos atraiu foi a metapoesia. O principal aspecto atraente deste tema foi a diversidade de formas que os metapoemas podem ser escritos. A metapoesia pode ser, tanto escrita de forma direta, quanto de forma subjetiva. Ao escrever esta antologia, eu notei que muitas analogias entre a poesia e coisas e atos banais da vida cotidiana, são feitas, além de diversas metáforas. Um trecho de um poema desta coleção, onde é possível notar esse recurso, de criação de analogias, pode ser encontrado no poema ​“Catar feijão” ​de João Cabral de Melo Neto. Este é apenas um exemplo, onde o autor cria um relação entre escrever poemas, e “catar” feijão. Além disso, ao longo desta antologia, é possível notar que vão sendo estabelecidos subtemas, dentro dos metapoemas. Alguns poetas escrevem sobre escrever poemas, outros sobre a forma e as características dos poemas, enquanto outros estabelecem relações entre poemas e a vida cotidiana e corriqueira.


metapoemas


Manuel Bandeira ​(1886-1968)

Desencanto Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. – Eu faço versos como quem morre. https://www.todamateria.com.br/poetas-brasileiros/

O Último Poema Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. https://www.pensador.com/frase/NTcyODQ/


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) Poesia Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e nao quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.

Procura da poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir.


Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. https://wp.ufpel.edu.br/aulusmm/2016/10/04/procura-da-poesia-carlos-drummondde-andrade/


Mario Quintana (1906-1994) Os poemas Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam voo como de um alçapão. Eles não têm pouso nem porto alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti… https://www.todamateria.com.br/poetas-brasileiros/

Eu Escrevi um Poema Triste Eu escrevi um poema triste E belo, apenas da sua tristeza. Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo, Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza... Nem importa, ao velho Tempo, Que sejas fiel ou infiel... Eu fico, junto à correnteza, Olhando as horas tão breves... E das cartas que me escreves Faço barcos de papel! https://www.recantodasletras.com.br/duetos/422692


Manoel de Barros (1916-2014) Tratado geral das grandezas do ínfimo: A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios. https://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/


João Cabral de Melo Neto (1920-1999) Poema da Desintoxicação Em densas noites com medo de tudo: de um anjo que é cego de um anjo que é mudo. Raízes de árvores Enlaçam-me os sonhos No ar sem aves vagando tristonhos. Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada.l O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. Ó face sonhada de um silêncio de lua, na noite da lâmpada pressiono a tua. Ó nascidas manhãs que uma fada vai rindo, sou o vulto longínquo de um homem dormindo. http://nuaideia.blogspot.com/2011/01/poema-de-desintoxicacao.html


Catar feijão 1. Catar feijão se limita com escrever: joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 2. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a como o risco. https://www.passeiweb.com/estudos/livros/catar_feijao


Ferreira Gullar (1930-2016) Não há vagas O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão. O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira. https://leopoldinense.com.br/coluna/658/semana-dos-poemas-de-ferreira-gullar


Falar

A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós, por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto. A poesia é, na verdade, uma fala ao revés da fala, como um silêncio que o poeta exuma do pó, a voz que jaz embaixo do falar e no falar se cala. Por isso o poeta tem que falar baixo baixo quase sem fala em suma mesmo que não se ouça coisa alguma. https://leopoldinense.com.br/coluna/658/semana-dos-poemas-de-ferreira-gullar


Posfácio Análise do poema "Não há vagas", de Ferreira Gullar Não há vagas Ferreira Gullar O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão. O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira.

O poema “Não há vagas” do autor Ferreira Gullar, publicado originalmente no livro ​“Toda poesia” ​em 1963​, ​pode ser considerado um


grande clássico do autor, devido às diversas metáforas criadas no livro, e como elas se relacionam com os leitores e com as ideias que o poema quer passar. O poema é dividido entre quatro estrofes. Na primeira, há o uso de aliteração, a repetição de consoantes. Em diversas situações, é repetido “Não cabe no poema” e depois um objeto ou fato simples e banal, como o preço do arroz. Além do mais, neste metapoema, o autor privilegia o uso de substantivos, como “a luz o telefone a sonegação” inseridos com o propósito de criar as metáforas que tornam este poema em uma logopeia, uma vez que o autor defende uma ideia implícita. Além disso, no início do poema, é utilizado o recurso linguístico, de quebra de frases, já que no início, o autor não mantém o mesmo padrão, separando ​“o preço” ​de ​“do arroz” em dois versos diferentes. Pensamos que ele faz isso propositalmente; como o assunto tratado no poema é o fato das coisas não caberem ao poema ele cortou alguns versos, para dar essa impressão de que nem os próprios versos do poema cabe a ele. De forma explícita, o poema cria alegorias e faz comparações entre objetos, fatos e situações banais, cotidianos, simples, como o trabalho de um funcionário público, o preço do feijão, o preço do arroz, e a poesia, dizendo que esses objetos e fatos não cabem no poema. Além disso, as metáforas criadas pelo poema podem ser interpretadas de diversas formas. Inicialmente, são apresentados os objetos, fatos e situações simples e básicas da vida. Em seguida, é repetido a mesma estrutura, apresentando que estes não cabem no poema. Nesta parte podemos identificar uma crítica social feita pelo autor, em relação a desigualdade. O ​“poema” pode ser interpretado como a sociedade, na qual não há vagas para os mais pobres, representados pelos objetos banais. Além disso, na terceira estrofe do poema, o autor apresenta aspectos que poderiam estar dentro do poema, ou seja, aceitos na sociedade. Eles seriam o ​“homem sem estômago” que poderia ser o homem rico, remediado. A ​“mulher de nuvens” ​que seria a mulher idealizada, e por fim a ​“fruta sem preço” ​que poderia representar aquela que só pode ser admirada, sem poder sem comprada. Essa estrofe


evidencia ainda mais a crítica social por trás do poema de Ferreira Gullar. Por fim, na quarta estrofe, o autor diz que ​“o poema não fede”, ​fazendo, possivelmente, uma relação entre pessoas objetos, ações, situações, fatos mais humildes e o mau cheiro, que seria uma má qualidade. Neste momento, o autor, de forma irônica, apresenta e deixa mais claro que na sociedade idealizada e desigual, não há vagas para os mais pobres. O texto, a primeira vista simples, é transformado em uma grande obra poética, devido às diversas metáforas que ele cria, aos diferentes recursos linguísticos e poéticos que o autor utiliza, e como ele relaciona ambos. Além disso, o assunto implícito, sendo ele de grande importância e de esfera nacional, faz com que o texto deixa de ser banal.


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