Carnaval Capixaba: histórias, honras e glórias

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Lucas Monteiro

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O CARNAVAL CAPIXABA

“Chega de bancar o inocente Agora vou mostrar quem é que sou Agora o povo vai me conhecer Aquela timidez já se acabou”. (Polha e Hamilton, Fim da Timidez)

Para entender o início dos festejos carnavalescos no Estado do Espírito Santo é preciso conhecer um pouco da história deste Estado. Pois, o desenvolvimento e crescimento do carnaval capixaba e demais formas de arte e cultura seguiram os mesmos rumos da economia e política local. Apesar da proximidade geográfica com o Rio de Janeiro, um dos Estados economicamente mais importantes do país e de onde surgiram ritmos, danças e elementos carnavalescos que fazem sucesso em todo o mundo, o Espírito Santo teve um progresso tardio. Na divisão das capitanias hereditárias, procedimento adotado por Portugal para povoar e administrar o território brasileiro, a região onde hoje está o Espírito Santo teve como donatário Vasco

Escudo da Capitania do Espírito Santo. (Arquivo Público Estadual)

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Fernandes Coutinho, um fidalgo português de poucas posses, mas muito prestígio, que havia se destacado nas conquistas portuguesas nos continentes africano e asiático. A chegada do donatário aconteceu em 1535, quando a bordo da caravela Glória, com cerca de sessenta degredados e três fidalgos, Jorge Menezes, Duarte Lemos e Valentino, Coutinho aportou na Prainha, onde hoje se encontra a sede do município de Vila Velha. Nessa época, a capitania ainda não tinha nome, mas como a chegada dos portugueses aconteceu em 23 de maio, dia em que naquele ano se comemorava o fim da festa religiosa do Divino Espírito Santo, o nome escolhido foi “Espírito Santo”. Devido à grande concentração indígena e sua forte resistência, os portugueses ficaram restritos a uma pequena área onde construíram um forte, denominado Forte da Barra. No carnaval de 2003, a G.R.E.S. Unidos da Piedade 6 contou parte desta história: “Foi quando um navegante aqui chegou Em nome da primeira invasão O dono dessa terra guerreou Bravamente ele lutou pra evitar a escravidão” Coutinho não tinha liderança sobre os homens que trouxe de Portugal. Em poucos anos eles se espalharam pelo território e o donatário ficou praticamente sozinho, sendo obrigado pelos índios a se mudar para a Ilha de Santo Antônio, atual município de Vitória, onde praticava agricultura de subsistência e montou pequenos engenhos de cana-de-açúcar. Vasco Fernandes Coutinho voltou a Portugal a bordo da mesma nau que o trouxe ao Brasil. Lá ele tentou apoio junto à Coroa Portuguesa para administrar a capitania, mas, entre homens e auxílio financeiro pouco conseguiu. Assim que retornou, faleceu em 1560. Depois de Coutinho, o nome mais marcante do período colonial do Espírito Santo é o do padre jesuíta José de Anchieta. Ele chegou ao Brasil com menos de vinte anos e se destacou por missões Vitória, minha Vitória-História, cidadania, simpatia e muito amor. Compositores: Francisco Velasco e Manoel de Souza. 6

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de catequese indígena nos estados que hoje compreendem a região sudeste do país. No carnaval de 2003, a escola de samba Mocidade Unida da Glória 7 foi campeã com um enredo em homenagem a Anchieta, no qual citava os locais por onde ele passou: “Em Iperoig defendeu a invasão Foi refém dos Tamoios junto à Confederação Fez poema na areia... milagres e até levitar E veio pra Vila encantado com o mar” Anchieta exerceu as funções de Provincial da Companhia de Jesus no Brasil e diretor do Colégio São Thiago, em Vitória, atual sede do governo do Estado. Em seus últimos anos de vida, o padre pediu dispensa dos trabalhos para morar em Reritiba, atualmente chamada de Anchieta, onde veio a falecer em 1597. Este primeiro século de colonização concentrou-se na baía de Vitória e representou pouco avanço econômico e político. A vinda dos jesuítas possibilitou maior contato dos portugueses com os nativos, que os auxiliavam até mesmo no combate às invasões. O acirramento da relação de Portugal com as demais nações europeias aumentou as tentativas de invasão das capitanias brasileiras. Devido a isso, a maioria das construções era voltada para a defesa da Vila de Vitória, cuja baía possui um porto natural. As estradas e caminhos, até mesmo para locais próximos, eram muito rudimentares e dificultavam a locomoção dos moradores, que se concentraram na região da Cidade Alta e Santo Antônio. Essa passagem foi retratada no samba de 2003, da G.R.E.S. Novo Império 8: “O tempo passou A minha ilha uma cidade se tornou Corsários franceses, ingleses e holandeses Vieram saquear E para se defender ela teve que se armar” De passo a passo, faço os passos até Anchieta. Compositores: Dito PR, Wilson Carneiro, José Carlos e Gugu. 8 Uma cidade presépio que se chama Vitória. Compositores: Fernando Monteiro e Zinho Furão. 7

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Enquanto as demais capitanias prosperavam como produtoras de cana-de-açúcar, no Espírito Santo vivia-se da pesca e roça de milho. Em 1693, um fato marcou a história da colônia e colocou a capitania em evidência perante a Corte. Nesse ano, foi encontrada uma lasca de ouro no Rio da Casca, um dos afluentes do Rio Doce, que cortava o território da capitania do Espírito Santo. A partir deste momento, todas as atenções do Coroa Portuguesa e dos demais donatários estavam voltadas para o Espírito Santo. Uma grande onda de invasão de piratas e estrangeiros marcou o período. Não demorou a descoberta das minas de ouro, prata e pedras preciosas no interior da capitania. No entanto, o fato que parecia ser decisivo para melhorar o desenvolvimento econômico do local tornou-se uma barreira para o seu crescimento. O comando português resolveu criar uma nova capitania, a Real Capitania das Minas Gerais, e dividiu o Espírito Santo em dois. Devido à grande retirada de minerais e pedras preciosas, invasões e dificuldade no controle do ouro que era levado das Minas Gerais e transportado para a Europa através do Porto de Vitória, em 1704, o Conselho Ultramarino definiu que apenas um caminho deveria ser utilizado para o transporte de ouro: a estrada real. A decisão soou como uma bomba no Espírito Santo. O decreto “Quantos mais caminhos houver, mais descaminhos haverá” foi aceito como um dogma entre os governantes locais. No carnaval de 2004 a Unidos de Jucutuquara 9 foi campeã do carnaval com um enredo que mostrava a situação da capitania neste período da história: “Portugal chegou, nosso ouro encontrou com o ciclo do minério nossa história começou Piratas e contrabandistas no nosso solo a desembarcar Mas pra defender os nossos fortes Bravos guardiões vão enfrentar E na onda do decreto: Quanto mais caminhos houver, mais descaminhos haverá!” Quanto mais caminhos houver, mais descaminhos haverá! Compositores: Eliel, Marina, Serginho, Ewerton e Sérgio Takataka. 9

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A partir de então estava proibida a abertura de estradas para o interior. A capitania foi utilizada como “barreira verde”, uma forma natural de barrar o acesso às minas e dificultar as invasões. O decreto teve duração de mais de 100 anos e, quando rompido, foi inevitável a comparação da Vila de Vitória com o Rio de Janeiro, que servia de padrão comportamental e organizacional para todo o restante do Brasil. Enquanto aqui se praticava a plantação, no Rio, a Corte havia instalado teatros, museus, palacetes e decorações nas ruas.

Cidade presépio vista de Vila Velha. (Acervo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)

As primeiras estradas ligando o Espírito Santo às outras províncias foram construídas por volta de 1820, mas ainda eram consideradas verdadeiros atoleiros, como a estrada do Rubim, que ligava Vitória a Vila Rica e a estrada litorânea que ligava ao Rio de Janeiro e a Bahia. Devido ao isolamento, os capixabas desenvolveram suas próprias formas de carnaval. A tradição católica era muito forte nos portugueses e também nos índios que, catequizados trabalhavam junto aos negros nas lavouras. Nos dias que antecediam a Quaresma, os fazendeiros organizavam reuniões em suas casas onde recebiam os amigos em encontros dançantes regados a muita comida e música. Nessas ocasiões, os negros e índios só participavam servindo comida e bebida aos convidados. Assim que os encontros terminavam, eles se juntavam aos demais para dançar ao som de instrumentos que eles mesmos 8

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produziam e que mais tarde dariam origem ao congo. Em meados do século XIX, teve fim o decreto da “Barreira Verde” e começaram a chegar os primeiros imigrantes em terras capixabas. Com eles vieram também diferentes formas de brincar o carnaval. Os italianos trouxeram a irreverência do carnaval de máscaras e a alegria das festas de rua. Mas não vieram a passeio, eles se tornaram responsáveis pelas lavouras de café que se espalhavam pelo interior da província. Desta época, mais precisamente em 1885, é encontrado o primeiro registro oficial de uma festa carnavalesca em solo capixaba. Este registro foi feito em janeiro pelo jornal O Cachoeirano, da cidade de Cachoeiro de Itapemirim, ao sul do estado. Em meio aos anúncios de venda de escravos, vinhos, luvas, saca-rolhas, tecidos e chapéus, constava um convite feito pelo próprio jornal para que a população aproveitasse os festejos da festa do “deus Momo”: “Edite 700 mil réis, Ruth 700 mil réis; Julião 500 mil réis. O Cachoeirano pede ao povo para neste ano de 1885, saudar a chegada do deus Momo com todas as alegrias e com todo o buliço dignos de deus infernal. Haverá bando desfilante acompanhado de música e um salão adredemente pronto” Nesta época, instalou-se a República Federativa, uma nova configuração na organização administrativa no Brasil. As antigas províncias tornam-se estados, as municipalidades passam a contar com prefeitura. O Conselho Municipal de Vitória decretou que 48% do orçamento extraído da regulamentação da cobrança de imposto predial seriam utilizados em obras públicas. A partir de então, começaram os investimentos para modernização da cidade. Para os primeiros governadores - Moniz Freire, Jerônimo Monteiro e Florentino Ávidos - o conceito de modernização estava centrado no paisagismo e nas condições básicas para transformar o centro de Vitória na “Sala de Visitas” do Espírito Santo. Nesta região, foram construídas praças, parques, avenidas e casarões. 9

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Avenida Jerônimo Monteiro no Centro de Vitória. (Arquivo Geral de Vitória)

A beleza do lugar aliada à segurança e limpeza fez com que boa parte da população se concentrasse ao seu entorno, criando bairros e comunidades que ainda hoje estão presentes. O crescimento de Vitória foi notável. Era dali que saíam as influências para as demais cidades que se instalavam no interior do Estado, como Cachoeiro de Itapemirim, São Mateus e Colatina. A interação com os comerciantes do Rio de Janeiro propiciou grande movimentação cultural na cidade a partir do século XX. Muitos capixabas viajavam ao Rio para participar das festividades de carnaval e quando voltavam à terra natal tinham em sua bagagem adereços, fantasias e letras de músicas cantadas na época. Inicialmente, foram trazidas as ideias de blocos, mas, com suas variações: o bate-bola carioca aqui ganhou a versão bate-moleque. Os participantes do grupo se vestiam com roupas rasgadas, que normalmente cobriam todo o corpo, tampavam a cara com fronhas e nas mãos seguravam galhos de árvores e latas vazias, com as quais faziam uma espécie de batucada, porém, sem ritmo e ordem. Nas tardes de carnaval os bate-moleques saiam pelas ruas da cidade fazendo sua batucada que servia tanto para anunciar sua chegada num determinado bairro quanto para intimidar os grupos rivais. 10

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Era comum que mais de um grupo resolvesse passar pela mesma rua ao mesmo tempo e por isso se enfrentavam. Ganhava o direito de brincar na rua o grupo que fizesse a batucada mais alta. Quem perdesse deveria procurar outro lugar para brincar. As crianças tinham verdadeiro pavor dos bate-moleques, que ganharam esse nome porque batiam em todo mundo que ousasse ficar a sua frente, e quando um destes grupos se aproximava elas saíam correndo para suas casas. Como normalmente os componentes do grupo eram do próprio bairro, eles paravam em frente às casas das crianças e ficavam chamando-as pelo nome, além de ameaçar invadir a casa para encontrar os medrosos.

Corso com integrantes cariocas participa do carnaval no centro de Vitória. Nesta época, os desfiles eram uma mistura de blocos com paradas militares. (Arquivo Pessoal de Guilherme Sá)

O entrudo também passou a ser praticado, mas, ao invés dos limões de cheiro aqui se usavam ovos podres, tomates e bolinhas de farinha que eram lançados nas ruas por grupos de bairros rivais. Normalmente a brincadeira acabava em briga e os organizadores eram detidos. Entre esses grupos, dois ficaram famosos como o Morcegos e o Diabos em Folia. Em ambos os grupos a maioria dos componentes eram os estivadores da firma de Antenor Guimarães, um rico empresário que na época de carnaval cedia um de seus galpões para os funcionários confeccionarem suas fantasias e realizarem suas festas. Os blocos dos estivadores não podiam se encontrar, apesar de serem formados por companheiros de trabalho. Sempre que se 11

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encontravam aconteciam brigas que antecipavam o fim do carnaval. Um dos pontos da cidade em que os grupos rivalizavam era a Rua Duque de Caxias, uma das mais movimentadas do centro. Num dos carnavais, a diocese de Vitória, já cansada das brigas e confusões dos estivadores, proibiu o grupo Diabos em Folia de participar do carnaval. O encarregado de dar a notícia ao grupo foi o cabo Queiroz, que aproveitou o ensejo para proibir também todas as fantasias que tivessem chifres e fossem contra os princípios da Igreja. Os Diabos não aceitaram ficar de fora da folia e decidiram criar um novo grupo que não usasse os chifres de diabo. No entanto, não conseguiam chegar a um acordo sobre o nome que iriam usar. E sempre que isso acontecia um dos componentes falava: “Está cruel. A vida está muito cruel”, uma espécie de jargão da época. Até que, de tanto ouvir aquela frase, decidiram que o novo nome do grupo seria Está Cruel e assim ficou por vários carnavais.

Esbórnia carnavalesca ilustrada na revista O Malho. Nomes de blocos cariocas serviam de inspiração para os capixabas. 12

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Não demorou muito para que surgissem os primeiros bailes de carnaval e consequentemente, os primeiros blocos de sujos e mascarados, formados por aqueles que não podiam frequentar os bailes. Os antigos encontros dançantes realizados nas casas senhoriais se tornaram mais requintados e passaram a acontecer em clubes e teatros. Além das fantasias, incorporaram-se também os shows com cantores e bandas que vinham do Rio de Janeiro, exclusivamente, para se apresentar. Entre os bailes mais famosos estavam os realizados pelos clubes Saldanha da Gama, Álvares Cabral, Vitória e Náutico Brasil. Alguns destes clubes organizavam blocos de salão, como o Solta a Nega, do Vitória, e o Bate-papo do Saldanha. Este último cresceu tanto que certa vez saiu das paredes do clube para desfilar pelas ruas da cidade junto aos demais blocos. Os bailes do Clube Vitória eram famosos por só permitir frequentadores da alta sociedade, por isso, o clube recebeu o apelido de aristocrático. Quando um integrante de outro clube visitava o Vitória era zombado pelos companheiros com uma marchinha criada por Moacyr e Clóvis Cruz cujos versos diziam: Maria, você é mulata, como é que pode ser aristocrata? Segundo os amigos da dupla, a marchinha foi criada para zombar da família Grijó, que depois de discussões no Clube Saldanha resolveu frequentar apenas os bailes do Clube Vitória. Já os blocos, mesmo sem nome ou música definida, desfilavam pelas ruas da cidade alta, no centro de Vitória, e se encontravam na Praça Costa Pereira, que durante muitos anos, serviu de ponto de referência para a cultura, política e economia local. Diferente do que aconteceu no Rio de Janeiro, onde as Grandes Sociedades eram compostas pelos ricos componentes dos bailes e passeios que exibiam suas fantasias e alegorias pelas ruas da cidade para fazer frente aos blocos de sujos e mascarados, no Espírito Santo, esse grupo era formado pelos próprios componentes dos blocos. Eram chamados de “Sociedade” os grupos mais organizados que possuíam maior número de componentes e até alegorias puxadas por cavalos. 13

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