TransMissão n.º 10

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N.º 10 | Ano 6 | Agosto de 2018 | Semestral | € 0,01

Revista oficial da Sociedade Portuguesa de Transplantação

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Reportagem no Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de São João, que, após cerca de 20 anos a realizar transplantes autólogos de medula com sucesso, em 2016, iniciou o transplante alogénico de células progenitoras hematopoiéticas

UMA VIDA COM O CORAÇÃO NAS MÃOS A frase que titula esta edição foi eleita pelo Prof. Manuel Antunes como mote da sua Lição de Jubilação, que proferiu a 20 de julho passado, dia do seu 70.º aniversário, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – pág.3. Forçado a aposentar-se do Serviço Nacional de Saúde por limite de idade, o fundador e até agora diretor do Centro de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC, que se tornou internacionalmente conhecido pela técnica de reparação da válvula mitral, dedicou 43 anos da sua vida a devolver a esperança a quem já só restava uma sentença de morte. Em entrevista, o cirurgião cardiotorácico conta um pouco da sua «vida plena» e garante que o seu caminho no transplante cardíaco está longe do fim Pág.20

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Volvidos 49 anos desde que a equipa liderada pelo Prof. Linhares Furtado realizou o primeiro transplante de órgãos em Portugal, e tendo como palco a mesma cidade de Coimbra, as ações do 10.º Dia do Transplante centraram-se no tema da arte e despertaram muitas emoções


SUMÁRIO APONTAMENTOS 3. Balanço da Lição de Jubilação do Prof. Manuel Antunes 4. Percurso do Prof. Alfredo Mota, homenageado em jornadas de Urologia IN VIVO 6. Reportagem no Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de São João, que faz transplante alogénico de células progenitoras hematopoiéticas desde 2016 TransFORMAR 9. Antevisão do XIV Congresso Português/XVII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação (11 a 13 de outubro, em Coimbra) 10. Cobertura do 10.º Dia do Transplante, este ano dedicado ao tema da arte 14. Balanço do V Congreso de la Sociedad Española de Trasplante, no qual decorreu o III Encontro Ibérico de Transplantação, coincidindo com o 27th International Congress of the The Transplantation Society 17. Lisboa vai receber a 33rd European Immunogenetics and Histocompatibility Conference, entre 8 e 11 de maio de 2019 EM ANÁLISE 20. Número de transplantes renais realizados em Portugal aumentou em 2017, de acordo com o Registo do Tratamento da Doença Renal Crónica Terminal da Sociedade Portuguesa de Nefrologia RETRATO 20. Chegado o momento da aposentação, o Prof. Manuel Antunes revive os 43 anos que dedicou à cirurgia cardiotorácica, nomeadamente ao transplante cardíaco, no CHUC

2018 tem Coimbra como grande palco do transplante

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o passado mês de novembro, a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) comemorou 30 anos de existência e promoveu uma Reunião Nacional intitulada «Desafios na Transplantação», tendo plena consciência de que um dos maiores desafios dos próximos tempos em Portugal será a alteração da Lei da Alocação de Órgãos, nomeadamente no que concerne ao rim. A sessão dedicada a este tema foi muito concorrida, o que demonstra a pertinência e a urgência do assunto. No primeiro semestre de 2018, a Direção da SPT manteve o objetivo de trabalhar num documento final baseado nas sugestões que nos foram apresentadas ao longo destes meses, para que seja apresentado como proposta de alteração à Lei da Alocação de Órgãos. No entanto, é firme convicção desta Direção que qualquer alteração deve ser precedida de uma simulação realizada pelos Centros de Histocompatibilidade, de modo a prever o impacto futuro dessa medida. No passado dia 20 de julho, em Coimbra, organizámos o 10.º Dia do Transplante, uma iniciativa essencialmente dedicada aos nossos doentes transplantados, que comemora o primeiro transplante realizado em Portugal e o início desta aventura de sucesso. Este ano, a arte como expressão de algo mais na vida de um transplantado do que o próprio transplante foi o tema em destaque. Assim, convidámos os nossos doentes a apresentarem as suas obras de arte e expusemos algumas delas no Pavilhão Centro de Portugal, onde decorreu a sessão solene do Dia do Transplante 2018. Integrado no V Congreso de la Sociedad Española de Trasplantes (SET), e imediatamente antes do International Congress of The Transplantation Society (TTS), no passado dia 1 de julho, em Madrid, realizou-se o III Encontro Ibérico de Transplantação, no qual dois colegas portugueses (Drs. Jorge Daniel e Jorge Malheiro) foram palestrantes. Esta foi mais uma oportunidade para divulgar os nossos resultados científicos e de cooperação entre a SPT e a SET. Esperamos que estes laços continuem no futuro e que

possam um dia alargar-se à cooperação em projetos de índole investigacional. Coimbra será também palco da maior iniciativa promovida pela SPT este ano – o XIV Congresso Português/XVII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, que vai decorrer entre 11 e 13 de outubro. O Dr. Fernando Macário é o presidente deste encontro, que promete um programa dedicado à medicina inovadora e translacional, não esquecendo a ética, tão importante nos dias que correm. Mais uma vez, iremos celebrar um protocolo científico e os laços de amizade que nos ligam à Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e aos nossos colegas e amigos brasileiros há mais de 17 anos. Recordo que, neste Congresso, serão anunciados os vencedores da Bolsa SPT e do Prémio de Investigação SPT/Novartis, bem como o prémio para a melhor comunicação oral. Contamos com a vossa participação científica, colaborando com esta iniciativa e enviando os vossos trabalhos e abstracts. Aguardamos por todos em Coimbra!

Susana Sampaio Presidente da SPT

ÓRGÃOS SOCIAIS DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE TRANSPLANTAÇÃO (2016-2019) DIREÇÃO Presidente: Susana Sampaio (Porto) Vice-presidente: Jorge Daniel (Porto) Tesoureira: Cristina Jorge (Lisboa) Vogais: André Weigert (Lisboa), David Prieto de la Plaza, Fernando Macário e Pedro Nunes (Coimbra)

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ASSEMBLEIA-GERAL Presidente: La Salete Martins (Porto) Vogais: Rui Filipe (Castelo Branco) e Manuela Almeida (Porto) CONSELHO FISCAL Presidente: Alice Santana (Lisboa) Vogais: Inês Castro Ferreira e Carla Damas (Porto)


APONTAMENTOS

DEPOIS DA APOSENTAÇÃO, MANUEL ANTUNES VAI CONTINUAR Elogios, agradecimentos e muita emoção pautaram a Lição de Jubilação do Prof. Manuel Antunes, que decorreu a 20 de julho passado, dia do seu 70.º aniversário, no auditório do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). Na presença do Presidente da República, do ministro da Saúde e outras autoridades civis, académicas, militares e religiosas, bem como familiares, amigos e colegas, o homenageado despediu-se do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da docência catedrática por imperativo legal e não por sua vontade, pelo que garantiu que não vai abandonar já a sua missão de vida – a cirurgia cardiotorácica. Rui Alexandre Coelho

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ob o mote «Uma vida com o coração nas mãos», a Lição de Jubilação do Prof. Manuel Antunes contou com a presença do Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, que, assumindo-se «amigo e admirador» do cirurgião cardiotorácico, começou por afirmar que este «nasceu para ser mestre». O chefe de Estado também agradeceu o «excecional percurso de vida» do jubilado e elogiou «a juventude, o vigor e a vontade de quem quer continuar a ser mais futuro do que passado». As palavras do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa encontraram eco no discurso do ministro da Saúde, Dr. Adalberto Campos Fernandes, que reiterou a sua vontade, já divulgada publicamente, de «“manuelantunizar” o SNS», contratando pessoas com as «qualidades exemplares de liderança, coragem e seriedade dos propósitos» inerentes ao homenageado. Como que a confirmar esta ideia, o Dr. Ferrão de Oliveira, ex-chefe de serviço no Centro de Cirurgia Cardiotorácica (CCT) do CHUC, afirmou que, enquanto diretor, Manuel Antunes «foi um disciplinador que não considerava quem revelasse incompetência persistente». A cultura de exigência era tal que «todos quantos trabalhavam no CCT tinham a noção de que, estando aptos para trabalhar ali, estariam aptos para trabalhar em qualquer outro local». Quem também tomou a palavra foi o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Prof. Duarte Nuno Vieira, para

ORADORES NA SESSÃO SOLENE (da esq. para a dta.): Dr. Adalberto Campos Fernandes (ministro da Saúde); Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República); Prof. João Gabriel Silva (reitor da Universidade de Coimbra); Prof. Fernando Regateiro (presidente do Conselho de Administração do CHUC) e Dr. Ferrão de Oliveira (ex-chefe de serviço do Centro de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC). Neste momento, falava no púlpito o Prof. Duarte Nuno Vieira, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

lembrar que homenagens a legados como o de Manuel Antunes «sublinham que uma universidade, ou uma instituição de saúde, não existe sem as pessoas que lhe dão conteúdo, significado e memória». Por sua vez, o reitor da Universidade de Coimbra, Prof. João Gabriel Silva, elogiou a «inteligência viva» do cirurgião cardiotorácico, que «abarcou com grande qualidade todas as facetas da sua atividade num professor universitário». Também orador na sessão solene, o Prof. Fernando Regateiro, presidente do Conselho de Administração do CHUC, realçou uma das múltiplas capacidades reconhecidas ao homenageado: a de «conceber e gerir projetos de engenharia e arquitetura hospitalar, o que se traduziu na forma como imaginou e acompanhou a construção do CCT». Também por isso, as instalações do Centro de Cirurgia Cardiotorácica passaram a chamar-se, desde o dia 20 de julho de 2018, «Edifício Prof. Doutor Manuel Antunes», como se pode ler na placa descerrada no final da Lição de Jubilação. No momento de abandonar o serviço público por força da idade, Manuel Antunes sente-se «como aquele que chega à meta de uma corrida com vontade de continuar a correr», confessou na sua Lição de Jubilação. Daí que a despedida seja apenas do SNS e não da sua «missão de vida», a atividade cirúrgica, que continuará a exercer em «clínicas privadas ou no âmbito de missões humanitárias». Para esta sua derradeira lição no CHUC, o cirurgião cardiotorácico optou por apresentar uma «selfie curricular», como o próprio lhe

chamou, colocando a sua vida pessoal em primeiro plano. Nesse revisitar de percurso, referiu-se, por diversas vezes, aos «mestres» que influenciaram a sua carreira, identificando alguns deles, nomeadamente o Prof. Linhares Furtado, que liderou a equipa responsável pelo primeiro transplante realizado em Portugal, de rim, no mesmo dia 20 de julho, mas há 49 anos, também em Coimbra. «Devo-lhe muito», admitiu. Para explicar o volume substancial da sua atividade cirúrgica (45 000 cirurgias cardíacas e pulmonares) e científica (420 artigos publicados no plano nacional e internacional), Manuel Antunes socorreu-se de uma máxima atribuída a Thomas Jefferson, um dos fundadores dos Estados Unidos: «Quanto mais trabalhava, mais sorte tinha.» Entre os agradecimentos, o homenageado destacou a sua equipa no CCT e, especialmente, a sua família, «pelo tempo que lhes era devido» e não lhes deu, em prol de uma missão de vida. A cerimónia encerrou com um emocionado abraço aos seus quatro netos e a seguinte frase projetada: «A todos quantos me ajudaram nesta caminhada, MUITO OBRIGADO.» NOTA: para saber mais sobre o percurso de Manuel Antunes, consulte o artigo das páginas 20 a 22.

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PONTAMENTOS

UM LÍDER QUE FEZ CRESCER A TRANSPLANTAÇÃO RENAL

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Prof. Alfredo Mota, que dirigiu o Serviço de Urologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) entre 2003 e 2016, sucedendo ao Prof. Linhares Furtado, foi homenageado nas 18.as Jornadas Nacionais de Urologia em Medicina Familiar, que decorreram nos dias 22 e 23 de março passado, em Lisboa, sob a presidência do Dr. Manuel Mendes Silva. Responsável pela oração de homenagem, o Prof. Arnaldo Figueiredo, seu sucessor na direção do Serviço, sublinhou as diversas facetas deste seu «mestre, professor e amigo», considerando que, enquanto médico, o grande desafio de Alfredo Mota foi o Programa de Transplantação Renal do CHUC, no qual se «envolveu de forma muito empenhada desde o início da sua atividade». Nomeado responsável da Unidade de Transplantação Renal do CHUC por Linhares Furtado, em 1987, Alfredo Mota liderou o aumento do número de transplantes renais até níveis recorde. «Inicialmente, fazia-se três transplantes por mês. Sob a sua liderança, chegou-se a realizar 178 transplantes renais num ano, um número inédito a nível nacional e que ombreia com os centros internacionais de maior dimensão», afirmou Arnaldo Figueiredo. Nas palavras do orador da homenagem, Alfredo Mota sempre entendeu que a transplantação é

SESSÃO DE HOMENAGEM: Prof. Arnaldo Figueiredo, Dr.ª Vanessa Vilas-Boas, Prof. Alfredo Mota, Dr. Manuel Mendes Silva e Dr. Nuno Venade

«uma aventura» médica e cirúrgica, à qual entregou «um envolvimento emocional que poucas atividades médicas conseguem ter, pois há sempre dois indivíduos envolvidos – o recetor e o dador –, no que é um ato de amor e dádiva sem paralelo na Medicina».

EXCERTOS DO DISCURSO DE AGRADECIMENTO DE ALFREDO MOTA Sobre o período em que dirigiu o Serviço de Urologia e Transplantação Renal do CHUC: «Sinto orgulho, pois correspondi ao que me era exigido – o Serviço de Urologia e Transplantação Renal do CHUC continuou a ser de topo em Portugal.» Sobre as três figuras-chave da sua carreira: «Há três pessoas que são responsáveis, de algum modo, pelo meu trajeto: o meu pai, que me induziu a apetência pela Medicina e, em concreto, pela Urologia; o Prof. Linhares Furtado, meu mestre e figura incontornável da Urologia, da Transplantação e da Ciência em Portugal; e um amigo muito particular, o escritor e poeta Miguel Torga.» Sobre o orador da homenagem: «Sinto orgulho na pessoa que me sucedeu, o Prof. Arnaldo Figueiredo. Foi ele o precursor da cirurgia laparoscópica para colheita de rins de dador vivo no nosso país e tem continuado a desenvolver a transplantação renal, uma das bandeiras do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do CHUC.»

«TRANSFORMA-TE NUM SUPER-HERÓI, DIZ SIM À DOAÇÃO»

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om o lema «Be ready to save lives, become a superhero! Say yes to organ, tissue and cell donation!», o 19.º Dia Europeu para a Doação de Órgãos e Transplantação (EODD, na sigla em inglês), que se assinala no próximo dia 13 de outubro, tem como cidade anfitriã a capital da Moldávia, Chisinau. Recorde-se que, em 2015, Lisboa foi a capital desta iniciativa lançada em 1996, pela Direção Europeia da Qualidade dos Medicamentos e Cuidados de Saúde (EDQM, na sigla em inglês), que pertence ao Conselho da Europa e conta com o apoio dos seus 47 Estados-membros. Com atividades que se estendem muito para além de um único dia, o EODD visa sensibilizar a população europeia para a transplantação e para a crescente necessidade de doação de órgãos. Como destaca a EDQM no seu website (www.edqm.eu), «um único dador de órgãos pode salvar oito vidas e a doação de células ou tecidos pode restaurar funções essenciais ou salvar cerca de 100 vidas». Outro número referido pela entidade organizadora dá conta de que, na Europa, cerca de seis novos doentes são adicionados às listas de espera para transplante a cada hora que passa. Ainda segundo números de 2016, são 6 949 os doentes que morrem anualmente na Europa enquanto aguardam por um transplante – um crescimento de 4% face a 2015. Este número corresponde a uma média de 19 mortes por dia. Por isso, o foco da EDQM e das várias ações do EODD 2018 está totalmente concentrado na doação, a ponto de se desmistificar que «não existe idade ideal para efetuar a dádiva, podendo acontecer em qualquer faixa etária». Mais informações também podem ser consultadas em www.coe.int/en/web/human-rights-channel/organ-donation.

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VIVO

TRANSPLANTE DE CÉLULAS HEMATOPOIÉTICAS AO MAIS ALTO NÍVEL Após cerca de 20 anos a realizar com sucesso transplantes autólogos de medula, em 2016, o Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de São João (CHSJ), no Porto, deu início ao transplante alogénico de células progenitoras hematopoiéticas. Com uma equipa treinada nos melhores centros internacionais e novas instalações prestes a estrear, o Prof. José Eduardo Guimarães, diretor deste Serviço, afirma que «nenhum outro hospital português tem tão boas condições para transplantar e tratar os doentes com leucemias agudas». Sandra Diogo

ALGUNS DOS PROFISSIONAIS ENVOLVIDOS NO PROGRAMA DE TRANSPLANTE: Enf.ª Rita Oliveira, Dr. Ricardo Pinto, Enf.ª Ana Emília Mouta, Prof. José Eduardo Guimarães e Dr. Rui Bergantim

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uma quarta-feira, após a reunião geral do Serviço de Hematologia Clínica, o Prof. José Eduardo Guimarães recebe-nos para dar a conhecer a atividade do Programa de Transplantação que dirige desde 2001. Destacando o facto de aqui se realizarem transplantes alogénicos de células progenitoras hematopoiéticos (TACPH) desde há dois anos, o responsável afirma que este é «um avanço particularmente significativo, que resulta do empenho de todos os profissionais envolvidos no processo e que traz um contributo muito relevante para esta área a nível nacional». A concretização deste objetivo era já um desejo de longa data de José Eduardo Guimarães, que tomou contacto com o TACPH quando exerceu no Reino Unido, entre 1981 e 1985, e fez parte da equipa que realizou o primeiro alotransplante no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, em 1989. «Há dois anos, reunidas as condições necessárias para avançar com este procedimento no CHSJ, demos início ao programa que conta, até agora, com 11 transplantes em 10 doentes e cujos resultados consideramos bastante bons», informa. Embora o processo esteja ainda envolto em questões burocráticas, esse passo permitiu ao Serviço de Hematologia Clínica ascender ao nível 4 na carta de referenciação de Serviços de Hematologia nacionais. Salientando que este Serviço aposta muito na formação dos seus especialistas, que têm passado pelos melhores centros internacionais de transplante, desde Seattle a Londres, Paris, Karolinska, Salamanca, Valência e Barcelona, sem esquecer o IPO do Porto, onde exercem por períodos de 6 a 12 meses, José Eduardo Guimarães garante que isso o deixa à vontade para encarar com otimismo o Programa de Transplantação. «Temo-nos preocupado em estimular a equipa 6 | AGOSTO 2018

médica a sair da zona de conforto e a alargar horizontes, o que, a par da ligação a grandes organizações internacionais, é muito relevante. As pessoas são sempre o investimento mais importante.» Membro de organizações internacionais como a European Organisation for Research and Treatment of Cancer (EORTC) e o European Group for Blood and Marrow Transplantation (EBMT), o Serviço de Hematologia Clínica do CHSJ tem em curso projetos de investigação clínica e de translação, alguns deles em parceria com outras instituições, como o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, a Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto e centros e organizações estrangeiros, como a Fundação PETHEMA, em Espanha. «As classificações da Escola Nacional de Saúde Pública têm considerado o nosso Serviço de Hematologia como o melhor do país. Ainda que nem todos concordem com os parâmetros avaliados e haja sempre algum grau de subjetividade nesse processo, é certo que temos procurado estar sempre na “crista da onda” do desenvolvimento da Hematologia em Portugal», assegura José Eduardo Guimarães.

AVANÇAR COM SENTIDO DE RESPONSABILIDADE A trabalhar no Serviço de Hematologia Clínica do CHSJ desde 2008, o Dr. Ricardo Pinto é um bom exemplo de como a formação em centros estrangeiros pode contribuir para o avanço ao nível do transplante de células hematopoiéticas. Após o estágio que realizou em 2011 no King´s College Hospital, em Londres, quando regressou, este hematologista teve «a honra» de realizar o primeiro TACPH do CHSJ,


em setembro de 2016. «Pesava sobre mim um enorme sentido de responsabilidade por saber que existem no nosso país outras instituições que estão ao nível do que de melhor se faz na Europa. Logo, se íamos iniciar um programa de transplantação aqui, no mínimo, tínhamos de tentar igualar a qualidade do que se pratica em Portugal», recorda o jovem especialista. Satisfeito com os resultados dos TACPH realizados até agora, Ricardo Pinto realça que as complicações têm sido mínimas e até abaixo do esperado, pois não houve uma seleção muito apertada dos doentes. «Escolhemos para realizar este procedimento os doentes que mais urgentemente necessitam de transplante, sendo que alguns até têm uma idade mais avançada face à que é preconizada para transplante, ou seja, acima dos 60 anos, o que prova que temos estado à altura do desafio.» Os doentes selecionados para TACPH sofrem, na sua maioria, de leucemias mieloides agudas, síndromes mielodisplásicas e aplasia medular, que são as principais indicações para transplante alogénico. O processo de seleção dos doentes inclui um estudo prévio para saber se há um irmão HLA-compatível. Depois, os candidatos são referenciados a uma consulta específica, na qual é feita a avaliação pré-transplante, com o objetivo de assegurar que reúnem as condições para realizar o procedimento. Ao mesmo tempo, e porque este é um processo multidisciplinar, realiza-se também uma consulta no Serviço de Imunoterapia para o dador, que passa por um caminho semelhante ao do recetor, fazendo uma primeira avaliação e um check-up para saber se está apto a fazer a doação. Normalmente, este processo dura um a três meses até à realização do transplante. Como explica Ricardo Pinto, imediatamente antes do transplante, «o doente faz uma sessão de quimioterapia (denominada de condicionamento), à qual se segue a infusão das células». Depois, «decorrido um período de recuperação hematopoiética que dura entre 15 a 21 dias, o doente tem alta». Uma vez que este procedimento implica a restituição do sistema imunitário proveniente de outra pessoa, os primeiros tempos exigem uma vigilância mais apertada, até porque existe sempre o risco de rejeição ou de reação do enxerto contra hospedeiro. Por isso, quando os doentes saem do internamento, são acompanhados

NÚMEROS 2017* 1 6 hematologistas 1 2 internos de Hematologia 4 2 enfermeiros 3 assistentes técnicos 3 técnicas superiores 4 técnicas de diagnóstico e terapêutica 1 9 assistentes operacionais 6 56 doentes saídos 3 54 consultas internas 2 416 primeiras consultas 2 4 748 consultas totais 1 5 637 sessões no Hospital de Dia 3 637 meios complementares de diagnóstico no

laboratório (citogenética convencional, FISH, biologia molecular, etc.)

1 8 dias de demora média no internamento 3 8 dias de espera para consulta 8 2 transplantes autólogos 9 transplantes alogénicos 1 8 doentes em lista de espera para transplante 2 0 doentes em lista de espera para mobilizações *Do Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de São João

EVOLUÇÃO NO PROCESSO DE COLHEITA Segundo a Dr.ª Luciana Ricca Gonçalves, coordenadora do Centro de Aférese e Criobiologia do CHSJ, tem-se assistido a uma grande evolução no processo de colheita das células progenitoras hematopoiéticas em resultado das máquinas que executam a seleção dos componentes sanguíneos. «Fazemos as colheitas em separadores automáticos que, de acordo com os dados que introduzimos no aparelho, vão selecionar as células pretendidas – progenitores hematopoiéticos do sangue periférico. Os separadores existentes no nosso serviço são o gold standard a nível mundial e apresentam altos índices de eficiência», clarifica a especialista, que trabalha nesta área desde 1996. «Estes separadores são muito fáceis de manusear. Depois de efetuada a colheita, as amostras retiradas são enviadas para o Laboratório de Patologia Clínica, onde se faz a contagem dos glóbulos brancos e dos progenitores hematopoiéticos (com antigénio CD34 positivo), de modo a verificar se existem células suficientes para o que se pretende, ou seja, para efetuar um transplante, dois ou até mesmo três, como acontece no caso dos mielomas múltiplos. Estes aparelhos são também utilizados nos doentes com leucemias agudas quando apresentam hiperleucocitose na fase inicial de diagnóstico, aos quais é preciso retirar um grande número de leucócitos no início do tratamento», explica a imuno-hemoterapeuta. Durante este processo, os doentes aproveitam para esclarecer muitas dúvidas, nomeadamente se o procedimento é indolor e se a colheita é suficiente, e procuram certezas para as quais, muitas vezes, os profissionais de saúde não têm resposta. Depois, as colheitas são processadas e criopreservadas no Laboratório de Criobiologia, quando se trata de colheitas autólogas ou infundidas a fresco, como acontece na maioria dos transplantes alogénicos. «O nosso trabalho é fundamental para que as pessoas possam realizar o tratamento mais adequado. Se não pudéssemos fazer os alotransplantes, em muitos doentes, o prognóstico seria bastante pior», conclui Luciana Ricca Gonçalves. |7


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em ambulatório duas vezes por semana nos primeiros dois meses. Se estiver a correr tudo como esperado, esse controlo é espaçado para uma vez por semana até aos três meses pós-transplante. Caso continue tudo bem, o doente passa a ir à consulta apenas de duas em duas semanas ou uma vez por mês. Referindo-se a uma análise levada a cabo pelo EBMT há dois anos sobre a evolução do transplante de medula óssea na Europa entre 2004 e 2014, Ricardo Pinto realça que, quanto ao número de transplantes autólogos anuais e ao crescimento, Portugal estava dentro da média europeia. Já no âmbito dos transplantes alogénicos, o crescimento nessa década foi muito baixo, ou seja, o nosso país estava na cauda da Europa. «Isto acontece porque, apesar de serem muito boas, as nossas unidades de transplantação estão quase no limite da sua capacidade, o que significa que não puderam, nestes dez anos, dedicar-se aos transplantes que fogem ao standard, porque são de risco mais elevado ou têm fontes de doação alternativas», analisa o hematologista. Foi para colocar Portugal ao nível dos outros países europeus neste contexto, e tendo em conta que somos detentores de um dos maiores registos de dadores de medula óssea, que o programa de TACPH do CHSJ se desenvolveu. «O nosso objetivo é realizar mais transplantes para aumentarmos os números de transplantes alogénicos em Portugal, privilegiando os casos de menor risco e mais urgentes, de modo a libertar para outras unidades, como o IPO do Porto, os casos mais complicados», esclarece Ricardo Pinto. Além disso, «considerando que, hoje em dia, com a utilização de fontes alternativas de dador, como os dadores haploidênticos, virtualmente, toda a gente que precise tem um dador, isto aumenta em cerca de 40 a 45% o número de transplantes que cada unidade pode fazer anualmente, mas o problema é que nem todas têm capacidade para lhes dar resposta».

FUTURO PROMISSOR Albergando a Unidade de Doentes Neutropénicos e a Unidade Hemato-Oncológica, o Serviço de Hematologia Clínica do CHSJ dá resposta a uma população calculada entre 2 e 2,5 milhões de pessoas, tendo efetuado, em 2017, quase uma centena de transplantes ao abrigo do Programa de Transplantação de Progenitores Hematopoiéticos. «Quando fiquei responsável por esta área, em 2001, os números eram praticamente residuais. Depois, conseguimos realizar cerca de 25 transplantes de células de progenitores hematopoiéticos por ano, seguiu-se o patamar dos 40, posteriormente dos 60 e, no ano passado, fizemos 82 transplantes, ou seja, o CHSJ foi o terceiro centro nacional a realizar mais procedimentos, só suplantado por duas

A sala onde se realizam as colheitas de células progenitoras hematopoiéticas está equipada com máquinas que selecionam automaticamente os componentes do sangue necessários e que podem ser deslocadas para outros locais

unidades dedicadas exclusivamente a esta atividade: o IPO do Porto e o IPO de Lisboa», refere José Eduardo Guimarães. Para isso, contribuiu também a melhoria das instalações e a criação do Laboratório de Hematologia Clínica, Citogenética e Genética Molecular, em 2008, onde é realizada a maior parte dos exames necessários ao diagnóstico e ao seguimento dos doentes candidatos a transplante. «Dispomos de um espaço pequeno, mas conseguimos fazer “milagres”. Hoje em dia, não recorremos a nenhum serviço exterior e estamos prestes a dar o salto para a NGS [next generation sequencing]», afirma o diretor. Assim que terminarem as obras que vão permitir alargar as instalações, o Serviço de Hematologia Clínica passará a ter 35 camas, 20 das quais em isolamento com ar filtrado sob pressão positiva, sendo que oito serão reservadas para os doentes transplantados. Realizar transplantes haploidênticos é outro objetivo para um futuro próximo. «Temos duas internas no Hôpital Saint-Antoine, em Paris, onde este tipo de transplante está muito desenvolvido, pelo que esperamos iniciá-lo também na nossa unidade dentro de algum tempo», avança José Eduardo Guimarães. Além disso, face ao aumento do número de transplantes em doentes com mais de 60 anos, nomeadamente os que sofrem de leucemia mieloide aguda, estabilizar pelos 15 a 20 transplantes alogénicos e manter os cerca de 80 autólogos por ano são também objetivos do Serviço de Hematologia Clínica do CHSJ.

O DESAFIO DE AUMENTAR A PRODUÇÃO CIENTÍFICA Apesar de todas as adversidades e obstáculos que superou à frente do Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de São João, o Prof. José Eduardo Guimarães desabafa que há um desígnio que não conseguiu cumprir: transformar este Serviço num grande centro de investigação hematológica. «Temos ligações ao i3S e ao IPATIMUP, principalmente ao grupo da Prof.ª Helena Vasconcelos, que está à frente do Cancer Drug Resistance e investiga programas de resistência farmacológica em leucemias e mielomas, e ao grupo do Prof. José Carlos Machado, com o qual o Dr. Ricardo Pinto está a desenvolver o seu projeto de doutoramento. Além disso, temos diversos ensaios clínicos a decorrer em áreas como mieloma, leucemias agudas ou linfomas, mas, infelizmente, ainda não atingimos o patamar que eu desejava em termos de investigação», lamenta o diretor, acrescentando que este será um objetivo a atingir por quem lhe suceder.

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TRANSFORMAR

FUTURO DA TRANSPLANTAÇÃO PROJETADO NO CONGRESSO Além de traçar o estado da arte atual, o XIV Congresso Português/XVII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, a realizar-se entre 11 e 13 de outubro, no Hotel Vila Galé Coimbra, vai dar especial enfoque a questões de futuro, como o desenvolvimento de órgãos geneticamente modificados, os limites éticos e deontológicos da transplantação e a resposta às infeções numa era de resistências. Rui Alexandre Coelho

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ste Congresso, que é organizado conjuntamente pela Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), pela Associação Brasileira de Transplantação de Órgãos (ABTO) e pela Associação Portuguesa de Enfermeiros de Diálise e Transplantação (APEDT), arranca com uma sessão de apresentação dos dados mais recentes dos registos de transplante em Portugal e no Brasil. «A colaboração entre a SPT e a ABTO é fulcral. As nossas relações são muito boas e apenas a distância dificulta a realização de outras atividades presenciais de colaboração», sublinha o Dr. Fernando Macário, presidente do Congresso, nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e ex-presidente da SPT. Segue-se a sessão solene de abertura, que servirá de antecâmara para a primeira sessão plenária, na qual será abordado o tema da tolerância no âmbito dos mecanismos imunes no transplante. A preletora será a Prof. ª Irene de Lourdes Noronha, responsável pelo Laboratório de Nefrologia Celular e Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A tarde deste primeiro dia será preenchida por sessões paralelas sobre diferentes áreas da transplantação – rim, fígado, coração-pulmão, pulmão e tecidos –, bem como uma sessão dedicada a temas relacionados com a coordenação da transplantação. Já definidos estão os temas principais de duas dessas sessões: a renal («Transplantação centrada no doente») e a de fígado («Indicações emergentes em transplantação hepática»). Comunicações breves e orais sobre cada uma das áreas exploradas nestas sessões encerram o primeiro dia.

ENQUADRAMENTO LEGAL E ÉTICO As questões mais relacionadas com as vertentes legal, ética e deontológica da transplantação inauguram o programa do dia 12, no âmbito de uma sessão plenária. Três tópicos principais serão abordados: os limites deontológicos da transplantação, que serão traçados pelo Prof. José Medina Pestana, diretor do Hospital do Rim, em São Paulo; o enquadramento legal, que será apresentado pela Dr.ª Ana Pires Silva, jurista no Instituto Português do Sangue e da Transplantação; e o enquadra-

mento ético, a comentar pelo Dr. Manuel Mendes Silva, urologista e presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos. Ainda na manhã de dia 12 terá lugar o segundo conjunto de sessões paralelas do programa, no caso dedicadas ao transplante de rim («Novas problemáticas em transplantação renal»), fígado (Tratamento do vírus da hepatite C e hepatocarcinoma»), coração («Técnicas e complicações em transplantação cardíaca») e à histocompatibilidade. Haverá ainda lugar a uma sessão plenária sobre doença linfoproliferativa pós-transplante. Os trabalhos prosseguem à tarde, com um novo conjunto de comunicações breves e orais, às quais se seguem sessões paralelas sobre o transplante duplo de rim/pâncreas, fígado, coração, osso e medula. A sessão sobre osso centrar-se-á na aplicação de aloenxertos osteotendinosos, ao passo que a dedicada ao coração incidirá sobre o progresso e as inovações em transplantação cardíaca. A mesa dedicada à medula será composta por três preleções: «Transplante autólogo de progenitores hematopoiéticos em doentes com mieloma múltiplo e disfunção renal»; «Impacto das comorbilidades na alotransplantação hematopoiética»; e «Autotransplantação em linfoma do manto». Já a sessão sobre fígado centrar-se-á no tratamento da hepatite C, ao passo que, na sessão de rim-pâncreas, serão abordados temas como o tratamento da diabetes no pós-transplante de pâncreas ou os fatores do dador com impacto no prognóstico do transplante reno-pancreático.

CERTIFICAÇÃO EM TRANSPLANTAÇÃO O último dia do Congresso arranca com duas sessões plenárias. A primeira será sobre infeções e incidirá sobre temas como a imunoprofilaxia e os novos fármacos antivirais para o vírus da hepatite C. Na segunda, intitulada «Controvérsias do século XXI – rim, fígado, coração e pulmão», um especialista em cada um destas áreas abordará uma questão que não reúna o consenso da comunidade científica. Depois do almoço segue-se um novo conjunto de sessões paralelas, que, além das áreas renal e hepática, engloba a córnea e a enfermagem. No caso dos tecidos da córnea, a terapia regenerativa ocular e as queratoplastias lamelares são alguns dos campos científicos a explorar. Uma sessão de comunicações breves e orais sobre estas áreas antecede a última sessão plenária, na qual será abordada a acreditação e certificação em transplantação por parte dos profissionais de saúde e dos centros que se dedicam a esta atividade. Nesta sessão estarão presentes os Profs. Josep Campistol, diretor-geral do Hospital Clínic de Barcelona, e Medina Pestana.

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A ARTE DE CELEBRAR A VIDA PÓS-TRANSPLANTE O momento em que os intervenientes na sessão solene e a assistência aplaudiram de pé o Prof. Linhares Furtado, num gesto de agradecimento ao seu pioneirismo na transplantação nacional. Foram oradores nesta sessão (da esq. para a dta.): Dr.ª Susana Sampaio (presidente da SPT), Dr. Fernando Macário (ex-presidente da SPT), Enf.º Fernando Vilares (presidente da Associação Portuguesa de Enfermeiros de Diálise e Transplantação), Dr. Alexandre Diniz (diretor do Departamento de Qualidade na Saúde da Direção-Geral da Saúde), Dr.ª Ana França (coordenadora nacional de transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação – IPST), Dr.ª Regina Bento (vereadora da Câmara Municipal de Coimbra), Dr.ª Ana Amélia Galvão (vogal da Direção da Sociedade Portuguesa de Nefrologia) e Dr. Carlos Paula (representante da Novartis)

Pela décima vez, a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) juntou, fora do ambiente hospitalar, doentes transplantados, candidatos a transplante, familiares, amigos, dadores de órgãos, médicos e outros profissionais que integram a rede de cuidados nesta área para assinalar o Dia do Transplante, a 20 de julho. Volvidos exatamente 49 anos desde que a equipa liderada pelo Prof. Linhares Furtado realizou o primeiro transplante de órgãos em Portugal, e tendo como palco a mesma cidade de Coimbra, este ano, as comemorações cruzaram a transplantação com a arte e tiveram uma carga simbólica muito forte, devido à presença do Prof. Linhares Furtado na sessão solene e à homenagem ao Prof. Manuel Antunes, que, tendo completado 70 anos neste mesmo dia, atingiu a jubilação. Rui Alexandre Coelho

uestra Clássica vid Wyn Lloyd, da Orq rtins e o maestro Da solene do 10.º Dia do Transplante Ma via Síl ista lon vio A no arranque da sessão do Centro, atuaram

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da Direção da SPT, Alonso Apresentado pelo Prof. André Weigert, vogal deu provas da sua ampla atividade al, invisu e aco cardí ado plant trans Fernandes, , de Schubert, que dedicou ao Maria Ave o como s tema r canta de Além artística. o novo coração no CHUC, expôs ou coloc lhe a equip cuja es, Antun el Prof. Manu s de perder a visão no auditório onde alguns dos quadros que pintou antes e depoi plante Trans do Dia 10.º do e solen o sessã a decorreu


N

os últimos anos, as comemorações do Dia do Transplante têm sido temáticas. Depois de edições dedicadas à fotografia, ao desporto e à gravidez, o tema escolhido para este ano foi a arte. «Além de ser uma forma de transmissão de sentimentos e emoções, a arte também pode ser terapêutica. Apesar de todos os reveses que podem surgir na vida, há formas de colmatar ou, pelo menos, diminuir a dor e a tristeza através da expressão artística», justificou a presidente da SPT, Dr.ª Susana Sampaio, que, na sua primeira intervenção na sessão solene do Dia do Transplante 2018, também apresentou a Orquestra Clássica do Centro, seguindo-se a atuação de dois violinistas deste grupo. Terminado o momento musical, ouviram-se as breves comunicações dos convidados da sessão solene, que decorreu no Pavilhão Centro de Portugal, situado na margem direita do Parque Verde do Mondego. Em representação da Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN), a Dr.ª Ana Amélia Galvão, nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), realçou que «a Medicina portuguesa merece festejar a transplantação» e deu como exemplo os números do registo da SPN, segundo os quais, no final do ano passado, «mais de 7 500 doentes transplantados renais tinham o rim funcionante, o que é um motivo de orgulho». O referido registo é coordenado pelo Dr. Fernando Macário, nefrologista no CHUC e anterior presidente da SPT. Tomando a palavra de seguida, este responsável afirmou que o Dia do Transplante, em cujas comemorações participa desde o início, há dez anos, «foi criado para assinalar o primeiro transplante realizado em Portugal, pela equipa do Prof. Linhares Furtado». A 20 de julho de 1969, esta equipa dos Hospitais da Universidade de Coimbra fez história ao realizar um transplante de rim de dador vivo com sucesso. Fernando Macário comentou também o tema deste ano, defendendo que «a arte pode ter um efeito muito positivo na saúde». E acrescentou: «Está provado que uma forma mais positiva de viver traz benefícios diretos à saúde, pois promove a correta modulação do sistema imunitário. Além disso, uma pessoa feliz é mais produtiva, daí que este tema se enquadre perfeitamente com a transplantação.»

Mestre do transplante com paixão pela pintura Em representação da Câmara Municipal de Coimbra falou a Dr.ª Regina Bento, vereadora que tem a seu cargo, entre outros, o pelouro da Saúde. «É com muito gosto que participamos neste tipo de iniciativas e aproveito para manifestar a disponibilidade da cidade

A importância do exercício físico, mesmo após o transplante, foi destacada por Sofia Santos, presidente do Grupo Desportivo de Transplantados de Portugal, que referiu também a melhor participação portuguesa de sempre nos Jogos Europeus para Transplantados e Dialisados 2018, com 19 medalhas conquistadas

de Coimbra para, em colaboração com a SPT, desenvolver outras ações que possam ser consideradas relevantes nesta atividade que dá novas vidas a tanta gente que tem a vida por um fio.» Por sua vez, a Dr.ª Ana França, coordenadora nacional de transplantação no IPST, frisou «a honra» de estar sentada ao lado de uma «figura ímpar» como Linhares Furtado, que «tantos contributos tem dado à sociedade, em todos os âmbitos». Esta oradora considerou que associar a arte à transplantação foi «uma ideia extremamente feliz», já que a saúde «alberga todas as artes e todos os ofícios». No caso da transplantação, «a arte reside em juntar as aptidões e fazer com que as pessoas consigam melhorar a sua qualidade de vida». Açoriano há muitos anos radicado em Coimbra, o cirurgião e urologista Linhares Furtado interveio a seguir, mostrando apreço pelos vários gestos de carinho de que foi alvo durante a cerimónia. «Incorria numa indelicadeza muito grande se não deixasse uma palavra de agradecimento à SPT e a todos os colegas que a minha longa vida já permitiu conhecer, estimar e mesmo amar.» Depois, em declarações à TransMissão, este «mestre do transplante» acrescentou: «Destaco a minha perpétua homenagem a todos os dadores, mas sobretudo aos que o são em vida, com um relevo especial para os (continua)

(ver página 3), neste mesmo dia em Depois da sua Lição de Jubilação no CHUC es ainda chegou ao Pavilhão Centro Antun el Manu Prof. o anos, 70 que completou em que lhe foram cantados os parabéns de Portugal no final da sessão solene, altura rou prepa lhe SPT a que o icónic à volta do bolo

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hepáticos, que sabem que o seu magnânimo gesto comporta sempre riscos, incluindo o da perda da própria vida.» Também amante da arte, em particular da pintura, o líder da equipa que realizou o primeiro transplante em Portugal afastou, com gentileza, qualquer estatuto de «especialista» que lhe possa ser atribuído no plano das artes plásticas. No entanto, falou com gosto do livro que publicou em 2010, sobre a transplantação em Coimbra, que contém imagens de dois quadros seus.

Voz aos transplantados Ainda na parte da manhã deste 10.º Dia do Transplante, diversas associações de doentes foram convidadas a apresentar o seu trabalho. O Grupo Desportivo de Transplantados de Portugal (GDTP), que é presidido por Sofia Santos, destacou a importância do exercício físico, mesmo após o transplante, e a participação portuguesa nos Jogos Europeus para Transplantados e Dialisados 2018, que decorreram em Cagliari, Itália, de 17 a 24 de junho. Representado por uma equipa de nove atletas, dos quais sete transplantados e dois dialisados, Portugal teve a melhor participação de sempre, com a conquista de 19 medalhas (5 de ouro, 10 de prata e 4 de bronze). Sofia Santos, que esteve entre os atletas medalhados (prata no ténis de mesa), frisou a participação «muito boa» do GDTP e a componente de «partilha de experiências, reintegração na sociedade e incentivo à doação» que é promovida nos Jogos Europeus para Transplantados e Dialisados. E exemplificou com casos de superação: «Conheci um menino de 9 anos para quem a vida é linda, apesar de ter sido submetido a um transplante hepático, e uma senhora invisual que competiu na modalidade de marcha/atletismo. Estes exemplos dão-nos ainda mais motivação.» Sob o lema «Põe-te a mexer pela transplantação», a organização de caminhadas e corridas de agradecimento aos dadores é uma das várias atividades do GDTP. Ainda este ano, vão decorrer mais duas edições: a 30 de setembro, em Lisboa, e a 28 de outubro, em Coimbra. A manhã culminou com testemunhos de alguns doentes, que falaram sobre o que os levou até ao transplante e como tem sido a sua vida desde então. Cláudia Almeida sofreu graves consequências da evolução da diabetes tipo 1 identificada na adolescência, como a perda de visão no

do para plantar

o escolhi o Prof. Manuel Antunes foi Como homenageado do dia, » do Dia do Transplante Vida da vore «Ár l a já habitua

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olho esquerdo e a insuficiência renal. Seguida no Centro Hospitalar do Porto/Hospital de Santo António, foi submetida a um transplante duplo de rim e pâncreas no final de 2013. Quatro anos e meio depois, Cláudia regozija-se com a recuperação: «O rim começou a funcionar logo após o transplante e nunca mais tomei insulina, passados quase 23 anos de diabetes insulinodependente. Desde então, não tive qualquer problema ou infeção de maior, pelo que o pós-transplante tem sido uma vida nova.» Também presente nas comemorações do Dia do Transplante, o Dr. João Paulo Almeida e Sousa, presidente do ISPT, destacou a importância desta data e o crescimento da atividade da transplantação desde a realização do primeiro transplante de órgão em Portugal, em 1969. Segundo o responsável, um dos fatores decisivos para este crescimento é «a preocupação cada vez maior com a identificação de potenciais dadores». «Neste âmbito, há uma verdade de La Palice, como costumo dizer: sem órgãos não há transplantação. Assim, é importante investir na atividade de doação, exatamente para que possamos encontrar órgãos para quem precisa de um transplante para viver, ou viver com qualidade», afirmou o presidente do IPST. Considerando a transplantação «uma atividade extremamente relevante na prática médica», o responsável referiu que «o transplante de órgãos permitiu modificar e desenvolver muitas das vertentes da Medicina nos últimos anos, mas, sobretudo, salvou muitas vidas ou devolveu qualidade de vida a quem precisa de um órgão, com enormes vantagens de ordem médica e social». João Paulo Almeida e Sousa assinalou ainda o facto de o 10.º Dia do Transplante coincidir com a Lição de Jubilação de Manuel Antunes, «que tem dado um contributo muito relevante para o incremento da transplantação cardíaca em Portugal».

componente indispensável a um Para reforçar que o exercício físico é uma plante culminou com uma caminhada Trans do Dia 10.º o vel, saudá vida de estilo tada pelo Grupo Desportivo de pelo Parque Verde do Mondego, que foi orien gal Portu de ados plant Trans


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Prof. Valentín Cuervas-Mons (presidente da SET e do seu V Congresso) com os intervenientes no III Encontro Ibérico de Transplantação: Dr. José María Miró, Dr.ª Susana Sampaio, Dr. Jorge Malheiro, Dr. Jorge Daniel e Prof.ª Maria Valentín Muñoz

DR

CIÊNCIA DE PONTA CONCENTROU ATENÇÕES EM MADRID Cerca de 4 000 profissionais da área do transplante e doação de órgãos afluíram ao Centro de Convenções IFEMA, em Madrid, entre 30 de junho e 5 de julho de 2018, para participarem num contínuo de reuniões que abarcou o V Congreso de la Sociedad Española de Trasplante (SET), no qual se inseriu o III Encontro Ibérico de Transplantação, e o 27th International Congress of The Transplantation Society (TTS). Entre os temas de um vasto programa científico, foram apresentadas investigações que podem definir o futuro da transplantação, como a aplicação de células estaminais à regeneração de órgãos e tecidos, o estudo da senescência celular ou a utilização de células T reguladoras em imunoterapia no transplante de órgãos sólidos. Rui Alexandre Coelho

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ara tornar viável a realização conjunta com o 27.º Congresso da TTS, a organização do 5.º Congresso da SET redimensionou a sua carga científica, distribuindo os conteúdos por dois dias (30 de junho e 1 de julho), ao invés dos três da edição anterior, em 2016, realizada em Santander. Como tem sido hábito, o Congresso de 2018 incluiu diversas sessões plenárias dedicadas aos diferentes órgãos, mas que «tiveram um interesse transversal para todos os transplantadores, pois cada uma abordou temas comuns às várias áreas da transplantação», como frisa o Prof. Valentín Cuervas-Mons, presidente da SET. Um dos problemas mais frequentes no período pós-transplante é a diabetes – pandemia da civilização moderna e tema que centrou as atenções na primeira sessão plenária do V Congreso de la SET,

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no dia 30 de junho. «Muitos doentes já têm intolerância à glicose e, depois do transplante, devido à medicação imunossupressora e corticoide, podem desenvolver ou intensificar a diabetes. Esta é uma complicação frequente no pós-transplante e que contribui para o aumento da taxa de morbilidade», comenta o presidente da SET. No mesmo dia, decorreu outra sessão plenária, desta feita subordinada à otimização da doação em estado de assistolia controlada. «O número de dadores em morte cerebral estabilizou e até está a diminuir, devido às melhorias introduzidas nos programas de tratamento do acidente vascular cerebral. Contudo, há outra fonte de dadores, que são os de morte por assistolia ou paragem cardiocirculatória, que está a intensificar-se em Espanha, Portugal e outros países», indica Cuervas-Mons. Eis a razão suficiente para que se tenha apostado


nesta sessão, que visou promover «uma melhor manutenção do dador e um melhor manejo dos enxertos no período pós-transplante». Ainda no primeiro dia do congresso espanhol de transplantação, o atual secretário-geral da Union Européenne des Médecins Spécialistes (UEMS), Prof. Vassilios Papalois, foi agraciado com a nomeação de membro de honra da SET. Este especialista britânico, que é o diretor do Transplant Centre of Excellence do Hammersmith Hospital, «sempre colaborou de forma intensa com a SET, participando no treino de internos e na formação de formadores, bem como em congressos, como conferencista ativo», explica Valentín Cuervas-Mons. E acrescenta: «Pareceu-nos oportuno reconhecer o seu labor em prol da educação e da formação no âmbito do transplante, em colaboração com a SET e os médicos transplantadores espanhóis, e também com a UEMS, a nível europeu.» Os três palestrantes envolvidos na terceira e última sessão plenária do dia 30 de junho debruçaram-se sobre as soluções que permitem preservar os órgãos para transplante. «Versámos sobre máquinas que perfundem os rins, o coração, o fígado ou os pulmões, de modo a monitorizar a viabilidade dos enxertos e aumentar a possibilidade de serem transplantados muitas horas após a morte do dador», afirma Cuervas-Mons.

MANIPULAÇÃO CELULAR INAUGURA FUTURO Do programa científico do dia seguinte, 1 de julho, o presidente da SET destaca a conferência do Prof. Jesús Vaquero, diretor do Serviço de Neurocirurgia do Hospital Puerta de Hierro e professor catedrático de Neurocirurgia na Universidade Autónoma de Madrid. Este orador falou sobre a regeneração do sistema nervoso com células estaminais, «cujas plasticidade e capacidade de se diferenciarem noutro tipo de tecidos, para suprir funções deficitárias, têm sido alvo de vários trabalhos experimentais». Nesta conferência, Jesús Vaquero referiu alguns ensaios clínicos que utilizam as células estaminais no tratamento de doentes tetraplégicos e paraplégicos. Os resultados experimentais e clínicos mostram «melhorias em termos de funcionalidade, controlo do esfíncter, recuperação parcial da sensibilidade e recuperação motora», resume Valentín Cuervas-Mons. Outro destaque do dia 1 de julho foi a conferência sobre as implicações patológicas de um processo fisiológico natural: a senescência celular. «Há muitos estudos em curso para perceber se o envelhecimento das células pode ser retardável e até reversível, mediante alterações epigenéticas ou de outro tipo», sublinha o presidente da SET e deste congresso. Ainda no âmbito da manipulação celular, a Prof.ª Megan Levings, diretora do Levings Lab do British Columbia Children’s Hospital Research Institute, em Vancouver, Canadá, encerrou o programa do Congreso da SET com uma conferência sobre o uso de células T reguladoras (Tregs) em imunoterapia no transplante de órgãos sólidos, área na qual é «líder mundial», segundo afirma Cuervas-Mons.

III ENCONTRO IBÉRICO DE TRANSPLANTAÇÃO O Encontro Ibérico de Transplantação realizou-se pela terceira vez, mas esta foi a primeira em que se inseriu no Congresso da SET, tendo decorrido na manhã do dia 1 de julho. A moderação ficou a cargo da Dr.ª Susana Sampaio, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), e da Prof.ª Maria Valentín Muñoz, responsável pelo Programa de Transplantação Renal de Dador Vivo da Organización Nacional de Trasplantes (ONT), em Espanha. Destacando o facto de

se ter cumprido o objetivo de «alternar a realização do Encontro Ibérico de Transplantação entre os congressos dos dois países», Susana Sampaio enquadra esta iniciativa numa lógica de «reforço dos laços científicos da SPT com a sua congénere espanhola» e de «estreitamento das relações profissionais e de amizade entre colegas dos dois países». Maria Valentín Muñoz também releva as «excelentes relações bilaterais» entre a SPT e a SET, bem como entre o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) e a ONT. «Sempre que temos oportunidade, trabalhamos em conjunto e com o objetivo comum de partilhar experiências e aprender, para melhorar a nossa atividade de transplantação», afirma esta moderadora. O III Encontro Ibérico de Transplantação contou com as preleções de dois oradores portugueses e dois espanhóis, que versaram sobre temas nos quais têm larga experiência. O Dr. Jorge Malheiro, nefrologista no Centro Hospitalar do Porto/ /Hospital de Santo António (CHP/HSA), teve a seu cargo a temática da alo-sensibilização pós-transplante, debruçando-se sobre a importância da procura do detalhe na caracterização dos anticorpos anti-HLA específicos contra o dador. «Em doentes que não eram previamente sensibilizados, o aparecimento de anticorpos anti-HLA pós-transplante implica a necessidade de perceber o seu impacto em termos da função e da sobrevivência do enxerto. Há doentes cujo enxerto mantém uma função estável na presença destes anticorpos e outros que, pelo contrário, sofrem falência do enxerto a curto ou médio prazo.» Por isso, Jorge Malheiro aconselhou que, além da caracterização imunológica dos anticorpos anti-HLA, se realize biópsia do enxerto proximamente ao seu aparecimento. «É a leitura simultânea das características dos anticorpos e da histologia do enxerto que nos permite representar por inteiro o perfil de risco de cada doente.»

ESPANHA MANTÉM LIDERANÇA MUNDIAL NA TRANSPLANTAÇÃO om 46,9 dadores por milhão de habitantes em 2017, C Espanha superou o seu próprio recorde absoluto de 43,9 dadores por milhão de habitantes verificado em 2016; 183 é o total atual de dadores (aumento de 30% 2 desde 2014); 259 transplantes de órgãos (supera o seu próprio 5 recorde absoluto de 4 818 transplantes realizados em 2016); 0x22 é o nome do novo plano da Organización 5 Nacional de Trasplantes, que visa conseguir 50 dadores por milhão de habitantes e 5 500 transplantes no ano de 2022, fruto de uma estratégia expansiva dos critérios exigidos para a doação (em 2017, 55% dos dadores tinham mais de 60 anos, 30% mais de 70 e 9% situavam-se na faixa dos 80 anos).

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HOT TOPICS EM TRANSPLANTE HEPÁTICO Responsável por abordar a atualidade do tratamento dos doentes com polineuropatia amiloidótica familiar (PAF) neste III Encontro Ibérico de Transplantação, o Dr. Jorge Daniel, diretor do Programa de Transplante Hepático do CHP/ /HSA, começou por lembrar que, até ao ano de 2011, o transplante de fígado era a única resposta disponível para estes doentes. Depois do aparecimento das terapêuticas alternativas, nomeadamente as farmacológicas, que tiveram início com o tafamidis, deu-se uma «baixa muito grande» no número de transplantes hepáticos em doentes com PAF, o que «foi normal perante a promessa de que uma terapêutica em comprimido teria resultados semelhantes». «Antes de existirem as terapêuticas alternativas DR para a PAF, um terço dos transplantes de fígado que realizávamos no CHP/HSA destinava-se ao tratamento dos doentes com esta polineuropatia. Hoje em dia, esse número não chega aos 10%.» Contudo, volvidos alguns anos, «os resultados das terapêuticas alternativas não têm sido os esperados, o que resultou no aparecimento de mais doentes com necessidade de transplante hepático», revela Jorge Daniel.

Por sua vez, o Dr. Carlos Jiménez, diretor da Unidade de Cirurgia Hepatobiliopancreática e de Transplante de Órgãos Abdominais do Hospital 12 de Octubre, em Madrid, reviu toda a casuística que existe em Espanha em termos de transplantes combinados de fígado e rim, tendo por referência a sua Unidade, que é aquela que mais transplantes hepatorrenais realiza no país vizinho. «Desde o início do nosso programa de transplantação, em 1986, já realizámos 49 transplantes combinados de fígado e rim no Hospital 12 de Octubre.» Também orador no III Encontro Ibérico de Transplantação, o Dr. José María Miró, consultor sénior de doenças infeciosas no Hospital Clínic de Barcelona, falou sobre as particularidades do transplante hepático em doentes com vírus da imunodeficiência humana (VIH). A partir da experiência do HIV Organ Policy Equity (HOPE) Act, nos Estados Unidos, este especialista reiterou que «é possível transplantar o fígado em doentes com VIH positivo, uma vez que se trata de uma técnica que, em casos selecionados, é eficaz e segura a médio e a longo prazos». Além disso, a investigação atual está a avaliar a hipótese de estes doentes «poderem receber órgãos de dadores falecidos também portadores de VIH positivo».

ANFITRIÕES EM FORÇA NO CONGRESSO DA TTS «Sentimo-nos muito orgulhosos por termos sido anfitriões de um congresso mundial que teve uma assistência com cerca de 4 000 pessoas», nota o Prof. Valentín Cuervas-Mons, presidente da Sociedad Española de Trasplantes (SET), referindo-se ao 27th International Congress of The Transplantation Society (TTS). Sob a chancela organizativa da TTS, da SET e da Sociedad Madrileña de Trasplantes, este congresso decorreu entre 30 de junho e 5 de julho, sendo simultâneo e consecutivo ao V Congreso de la SET para «facilitar a participação espanhola», que se verificou massiva. «Agrada-nos que Espanha tenha sido um dos países com maior representação neste congresso da TTS. Foram admitidas 240 comunicações espanholas e houve uma grande participação de preletores do nosso país em três sessões plenárias e oito simpósios», frisa Valentín Cuervas-Mons. Quanto ao programa científico deste 27.º Congresso da TTS, que foi «muito amplo», o responsável destaca as várias sessões dedicadas à doação, mas também os tópicos relacionados com áreas afins à transplantação, como a Enfermagem ou a Imunoterapia.

FICHA TÉCNICA

Publicação isenta de registo na ERC, ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 6 de junho, artigo 12.º, 1.ª alínea EDIÇÃO:

PROPRIEDADE: Sociedade Portuguesa de Transplantação Av. de Berna, n.º 30, 3.ºF 1050-042 Lisboa Tel.: (+351) 220 164 206 / 933 205 201 E-mail: secretariado@spt.pt Website: www.spt.pt

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Esfera das Ideias, Lda. Campo Grande, n.º 56, 8.º B 1700-093 Lisboa Tel.: (+351) 219 172 815 / (+351) 218 155 107 EsferaDasIdeiasLda geral@esferadasideias.pt www.esferadasideias.pt Direção: Madalena Barbosa (mbarbosa@esferadasideias.pt) Marketing e Publicidade: Ricardo Pereira (rpereira@esferadasideias.pt) Coordenação editorial: Luís Garcia (lgarcia@esferadasideias.pt) Redação: Luís Garcia, Rui Alexandre Coelho e Sandra Diogo Fotografia: João Ferrão Design e paginação: Susana Vale Colaboração: Rui Santos Jorge

Depósito Legal: 365266/13


LISBOA VAI RECEBER CONGRESSO EUROPEU DE IMUNOGENÉTICA E HISTOCOMPATIBILIDADE

Entre 8 e 11 de maio de 2019, o Centro Cultural de Belém será o palco da 33rd European Immunogenetics and Histocompatibility Conference. Este congresso da European Federation for Immunogenetics (EFI) tem como organizadores locais o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) e a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), que contam com o apoio do Turismo de Portugal. Luís Garcia

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ob o chapéu do tema geral «Imunogenética funcional: o desafio histórico», a 33rd European Immunogenetics and Histocompatibility Conference vai abordar questões como o transplante de órgãos sólidos, as novas perspetivas sobre o transplante de células estaminais hematopoiéticas, a imunogenética do cancro, as infeções e a variação imunogenética, a terapia celular e a medicina regenerativa, entre outras. A submissão de abstracts abre no próximo mês de novembro, bem como as inscrições para o congresso, que terão um preço reduzido (early fee) até março de 2019. A comissão organizadora é presidida pelo Dr. António Martinho, diretor do Centro de Sangue e da Transplantação de Coimbra, e integra outros cinco elementos ligados ao IPST: Dr.ª Maria do Rosário Sancho, Prof. Dário Ligeiro, Dr.ª Paula Xavier, Prof.ª Sandra Tafulo e Dr.ª Susana Ramalhete. O Dr. Domingos Machado, diretor do Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, completa a equipa organizadora deste congresso, cujo programa científico está já muito avançado e pode ser consultado em www.efi2019.org, bem como outras informações de relevo. Em finais de 2017, a EFI firmou um protocolo de colaboração com a SPT, que tem, entre os seus associados, profissionais dedicados à imunogenética e à histocompatibilidade – até porque não existe uma sociedade científica nacional especificamente dedicada a estas áreas. De acordo com a presidente da SPT, Dr.ª Susana Sampaio, a escolha de Portugal para organizar o próximo congresso da EFI surgiu na sequência deste protocolo. «Receber no nosso país uma reunião de grande dimensão e qualidade como esta é uma honra e a oportunidade de termos, entre nós, colegas de renome internacional, grande projeção científica e trabalho divulgado em publicações de grande impacto», afirma Susana Sampaio, acrescentando que, além de participar nas comissões organizadora e científica, a SPT foi convidada a organizar integralmente algumas sessões da 33rd European Immunogenetics and Histocompatibility Conference.

SPT REPRESENTADA NO CONGRESSO DE 2018 Também na sequência do protocolo estabelecido entre a SPT e a EFI – que visa a colaboração em reuniões formativas, grupos de trabalho e iniciativas de divulgação e educação no âmbito da imunogenética e da histocompatibilidade –, Susana Sampaio participou numa reunião de presidentes de sociedades científicas destas áreas de vários países europeus. Neste encontro, que decorreu integrado

no congresso da EFI de 2018 (ver caixa), foram discutidos vários assuntos de interesse para cada sociedade e para a sua relação com a EFI, tendo como tema central a divulgação científica. «Debatemos em que medida esta colaboração pode ajudar a desenvolver e, sobretudo, a divulgar o conhecimento, promovendo a educação nas áreas da imunogenética e da histocompatibilidade, bem como o apoio que a EFI pode prestar às sociedades científicas nacionais nestes âmbitos», refere a presidente da SPT. Outro aspeto discutido na reunião foram as certificações atribuídas pela EFI, uma das incumbências desta organização. «Os laboratórios de histocompatibilidade portugueses, por exemplo, estão certificados pela EFI. A colaboração com esta entidade pode facilitar o nosso acesso a este tipo de certificações, da mesma forma que a atribuição de créditos a cursos organizados em Portugal poderá dar-lhes outra projeção a nível europeu», sublinha Susana Sampaio.

ARTE E CIÊNCIA NO CONGRESSO DE 2018 A 32nd European Immunogenetics and Histocompatibility Conference decorreu em Veneza, entre 9 e 12 de maio passado, tendo como tema «Arte e Ciência: a imagem em desenvolvimento na imunogenética». A gestão da imunomodulação na transplantação, as perspetivas clínicas atuais no transplante de células estaminais hematopoiéticas e as novas fronteiras da imunogenética foram alguns dos temas fortes deste congresso, no qual, segundo a Dr.ª Susana Sampaio, foram abordados «vários tópicos interessantes para quem se dedica à transplantação». «O Congresso de 2018 foi muito participado, com cerca de 900 inscritos, e analisou temas muito atuais e de grande interesse, pela voz de especialistas de alto nível científico. Outro aspeto que verifiquei é que foi dada bastante ênfase às sessões de comunicações orais», resume a presidente da SPT. Os próximos três congressos da European Federation for Immunogenetics já têm locais definidos: ao de Lisboa (2019), seguir-se-ão o de Glasgow (2020) e o de Amesterdão (2021). | 17


M ANÁLISE

REGISTO DO TRATAMENTO DA DRC: 527 TRANSPLANTES RENAIS EM 2017 ATIVIDADE DOS CENTROS DE TRANSPLANTAÇÃO PORTUGUESES 121

120

N.º de doentes

100 80

68

60 40 20 0

Dador falecido Dador vivo Rim e pâncreas Rim e fígado Rim e coração Pâncreas após rim

92

56

55

N = 450 transplantes de dadores falecidos e 77 (14,6%) de dadores vivos; 34 transplantes multiórgãos (total= 527)

37

30

18

16

13

13

5

1

HSA

HSM

3

HGO

HSC

CHSJ

HCC

1

HSM Ped.

CHUC

2

HCVP

CHSJ: Centro Hospitalar de São João, no Porto; HSA: Hospital de Santo António, no Porto; CHUC: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; HSC: Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide; HCC: Hospital de Curry Cabral, em Lisboa; HSM: Hospital de Santa Maria, em Lisboa; HGO: Hospital Garcia de Orta, em Almada; HCVP: Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa; HSM Ped.: transplante pediátrico no Hospital de Santa Maria

As unidades que transplantaram mais doentes com rins de dadores falecidos foram o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – 121 – e o Centro Hospitalar do Porto/Hospital de Santo António (CHP/HSA) – 92. Já com rins de dadores vivos, a liderança pertence ao CHP/HSA, com 30 transplantes, seguido do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, com 18 transplantes. Já no que toca ao transplante multiórgãos, o CHP/HSA realizou 13 de rim-pâncreas e 1 de rim-fígado; o Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral realizou 13 de rim-pâncreas; e o CHUC realizou 1 de rim-coração. No geral, a atividade dos centros de transplantação renal nacionais aumentou 3,8% em 2017 face ao ano anterior.

TRATAMENTO SUBSTITUTIVO DA FUNÇÃO RENAL PRÉVIO 450 400

2015 2016 2017

414 375 377

350 300

N = 527 (2017)

250 200 150 101

100

65

50 0

82 31 17 25

Hemodiálise

18 | AGOSTO 2018

Diálise peritoneal

Preemptivos

À semelhança dos anos anteriores, em 2017, a maioria dos doentes submetidos a transplante renal foram previamente tratados por hemodiálise (HD) – 414 versus 82 doentes tratados por diálise peritoneal (DP) e 31 preemptivos. No ano passado, face a 2016, verificou-se até um aumento mais significativo (37) no número de doentes provenientes da HD, ao contrário do que aconteceu com o número de doentes vindos da DP, que reduziu em 19.


Segundo os dados mais recentes do Registo do Tratamento da Doença Renal Crónica da Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN), que foram apresentados pelo seu coordenador, o Dr. Fernando Macário, no Encontro Renal 2018, a 22 de março, o número de transplantes renais realizados em 2017 atingiu um pico desde o ano de 2012. O recorde absoluto foi verificado em 2009, com 595 procedimentos, depois a atividade decresceu até aos 429 transplantes em 2012, ano após o qual os números têm vindo a crescer paulatinamente, tendo ascendido aos 527 em 2017, um aumento de 2,7% face a 2016 (mais 12 transplantes). A proveniência dos órgãos, a atividade de cada centro de transplantação e a percentagem de enxertos perdidos são outros dados que este registo da SPN dá a conhecer.

CARACTERIZAÇÃO DOS DADORES E RECETORES

N.º de doentes

500

450

400 300 200 100

61

77

Dador falecido/ /recetor >65 anos

Dador vivo

10

0

Dador falecido

Dador falecido/ /recetor <18 anos

3

6

Dador vivo/ /recetor <18 anos

Dador vivo/ /recetor >65 anos

31 pré-emptivos (3 recetores <18 anos)

Em 2017, a maioria dos rins doados para transplante continuou a ser proveniente de dadores falecidos (450 versus 77 de dadores vivos). Outro dado a registar é que 31 procedimentos foram preemptivos, ou seja, realizados em doentes que não passaram previamente pela diálise, sendo o transplante o primeiro tratamento substitutivo da função renal. Entre os recetores com menos de 18 anos, 10 receberam rins de dador falecido e 3 de dador vivo. Já na faixa etária acima dos 65 anos, 61 doentes obtiveram rins de dador falecido e 6 de dador vivo. Apesar de ser ainda baixo (77), o número de transplantes renais de dadores vivos foi o mais alto desde que há registo da atividade (1980).

Anos

BALANÇO ENTRE TRANSPLANTE E PERDA DO ENXERTO (1980-2017) 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 99 98 97 96 95 94 93 92 91 90 89 88 87 86 85 84 83 82 81 80

-400

Número de enxertos perdidos Número de transplantes -300

-200

-100

0

100

200

300

400

500

600

2017: 104 doentes morreram com o enxerto funcional; 120 foram transferidos para hemodiálise e 8 para diálise peritoneal

O balanço entre o número de transplantes de rim e a taxa de perda do enxerto continua a ser francamente positivo. No ano passado, 120 doentes transplantados foram transferidos para hemodiálise e 8 para diálise peritoneal devido a rejeição do enxerto. | 19


ETRATO

Q

uando veio ao nosso encontro, na sala de espera do Centro de Cirurgia Cardiotorácica (CCT) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), num início de tarde em finais do passado mês de maio, Manuel Antunes tinha acabado de realizar duas cirurgias consecutivas. Antes disso, já chegara «a correr» ao bloco operatório, depois de ter participado numa reunião do Conselho Científico da Universidade de Coimbra, ao qual pertencia. Era nosso propósito perguntar-lhe se já tinha desacelerado o seu ritmo de trabalho, tendo em conta a proximidade da aposentação, mas essa dúvida ficou esclarecida logo à partida. A entrevista decorreu no seu gabinete, junto à Unidade de Cuidados Intensivos do CCT, em cujas paredes estão pendurados vários quadros e até uma estátua de Manuel Antunes, feita em chapa metálica, que foi oferecida pelos familiares de um doente que operou, em jeito de agradecimento. Já na sala de espera nos tinha saltado à vista uma vitrina repleta de pequenas ofertas. «Temos ainda mais quatro vitrinas e duas caixas cheias deste tipo de objetos oferecidos pelos doentes e seus familiares», confidencia o cirurgião cardiotorácico. Conhecido por dar colo e o primeiro biberão aos bebés que opera, Manuel Antunes explica que esse tipo de envolvimento emocional é a sua maneira de «humanizar» o trabalho no bloco operatório, para que este «não se transforme numa mera linha de montagem». Mas também é capaz de «dar dois berros» aos doentes, quando não tomam a medicação. «Podia ignorar, como outros fazem, mas a Medicina não deve ser exercida assim», defende. O cirurgião confessa que já teve problemas por se deixar fotografar ao lado de uma vitrina com lembranças oferecidas por agradecimento, como se de troféus se tratasse. Mas não tem reservas em afirmar que é exatamente assim que as vê: «As pessoas não têm a noção de que a Medicina tem de ser humanizada. Sim, são mesmo troféus, mas não ganho mais por operar um maior número de doentes, pelo contrário. Teoricamente, se operasse menos doentes, teria uma vida mais descansada e, no que toca a dinheiro, ganho exatamente o mesmo, porque aufiro por salário.»

«PRESO» NA ÁFRICA DO SUL

COM O C RAÇÃO LITERALMENTE NAS MÃOS Desde o tratamento das patologias mais rotineiras até aos transplantes cardíacos, o Prof. Manuel Antunes trabalhou com o coração dos seus doentes nas mãos durante os últimos 43 anos. Com a chegada dos seus 70 anos de idade, que completou a 20 de julho passado (data em que se assinala o Dia do Transplante no nosso país), chegou também o momento da aposentação. Este foi o mote para uma longa e agradável conversa com o cirurgião cardiotorácico, que ficou internacionalmente conhecido pela técnica de reparação da válvula mitral. Em entrevista à TransMissão, Manuel Antunes falou sobre os tempos de formação e especialização em África, a criação do Centro de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e o futuro da transplantação cardíaca, ao mesmo tempo que partilhou curiosidades de «uma vida plena», como o próprio a considera. Rui Alexandre Coelho

20 | AGOSTO 2018

Manuel Antunes nasceu a 20 de julho de 1948, na aldeia de Memória, concelho de Leiria, mas cedo emigrou para Moçambique com os pais, que procuravam melhores condições de vida, fixando-se na capital (na altura Lourenço Marques, atual Maputo). O seu pai era funcionário público num tempo em que ainda não existia o Serviço Nacional de Saúde (SNS). À falta de influência familiar – ninguém da família é médico –, o seu gosto pela Medicina «terá começado a desenvolver-se devido ao contacto com os médicos que atendiam no centro de saúde dos funcionários da Câmara Municipal de Lourenço Marques», num período fértil em paludismos e outro tipo de febres. «Aos 14 anos, já falava no desejo de ser médico», recorda. A entrada de Manuel Antunes no curso de Medicina e Cirurgia da Universidade de Lourenço Marques deu-se em 1965, com conclusão em 1971. Sendo o melhor aluno do curso, foi rapidamente contratado para integrar o corpo docente da Faculdade de Medicina, como assistente, e começou também a especialidade de Cirurgia Geral. Dois anos depois, rumou a Joanesburgo, África do Sul, com uma bolsa de estudo, para fazer o doutoramento. Corria o mês de janeiro de 1975, mas, na sequência da Revolução dos Cravos, a 25 de abril do ano anterior, o governo português e o governo sul-africano, já em colaboração com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), fecharam as fronteiras com a África do Sul. Em consequência, Manuel Antunes devolveu a bolsa, na qual não chegou a tocar, e ficou «um pouco preso» no país mais a sul do continente africano. Gorado o objetivo inicial de fazer o doutoramento na Universidade de Witwatersrand e depois regressar a Moçambique, o jovem Manuel Antunes terminou o seu tempo de Cirurgia Geral na África do Sul, sem


fazer o exame final, e ficou por Joanesburgo, mudando-se entretanto para a área da Cirurgia Cardíaca. Quando o questionamos sobre os motivos dessa mudança de especialidade, Manuel Antunes, que chegou a diretor da Unidade de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital Baragwanath, em Joanesburgo, no ano de 1984, recorda a notícia do primeiro transplante cardíaco, que foi realizado precisamente na África do Sul, em 1967, por aquele que se tornaria um dos seus mestres, o Prof. Christiaan Barnard. «Naquele tempo nem imaginava que se pudesse mexer no coração; que se pudesse tirar uma válvula e colocar outra… Fiquei muito interessado por esta área», justifica.

DE JOANESBURGO PARA COIMBRA Em 1985, Manuel Antunes recebeu o convite do Prof. Norberto Canha, à data diretor dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e seu antigo professor na Universidade de Lourenço Marques, para liderar a área de Cirurgia Cardiotorácica. Nessa altura, o novo Hospital Central estava em fase final de construção e montagem de equipamentos, pelo que o cirurgião ainda teve hipótese de propor algumas adaptações. «Fiz um relatório no qual dizia que algumas portas deveriam mudar de lugar e uma ou duas paredes deveriam ser derrubadas», exemplifica. Manuel Antunes permaneceu na África do Sul até terminar o doutoramento, mas as suas atenções já estavam concentradas em Coimbra. «Houve colegas que me disseram para não mudar, porque era difícil trabalhar em Portugal. Mas isso ainda me estimulou mais, em vez de me desencorajar.» Entretanto, chamou dois jovens cirurgiões cardíacos de Coimbra para trabalhar consigo, preparou-os durante 13 meses em Joanesburgo e, em 1988, mudou-se para a «cidade dos estudantes», onde fundou o Centro de Cirurgia Cardiotorácia e Transplantação de Órgãos Torácicos dos HUC. Inicialmente, a equipa médica era formada por três cirurgiões e dois internos, sendo que, no total, o Centro de Cirurgia Cardiotorácia (CCT) empregava 40 profissionais (atualmente são 120). A previsão inicial era operar 250 doentes da zona centro do país anualmente, mas, passado apenas um ano, já se realizava uma média de 450 cirurgias cardiotorácicas. Para tal, foram derrubadas paredes, de modo a transformar corredores em espaços utilizáveis. A primeira lista cirúrgica surgiu logo ao sexto dia de funcionamento do CCT, com Na parede do seu gabinete do Centro de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC, Manuel Antunes pendurou com carinho uma estátua feita em chapa metálica com a sua imagem, que lhe foi oferecida pelos familiares de um doente como gesto de agradecimento ao cirurgião e sua equipa

CURRÍCULO RESUMIDO 1971: Manuel Antunes licenciou-se em Medicina e Cirurgia

pela Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique; 1974-1975: professor assistente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lourenço Marques; 1981: especialista em Cirurgia Carditorácica pelo South African Medical and Dental Council; 1984-1985: diretor da Unidade de Cirurgia Cardíaca do Hospital Baragwanath, em Joanesburgo, África do Sul; 1986: doutor em Cirurgia Cardíaca pela Universidade de Witwatersrand; 1987: doutor em Cirurgia Cardiotorácica pela Universidade de Coimbra (UC); 1988-atualidade: diretor do Centro de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC; 1990: professor catedrático de Cirurgia Cardiotorácica na UC; 2010-2017: presidente da Academia Nacional de Medicina.

No âmbito cirúrgico:

Manuel Antunes realizou cerca de 30 000 cirurgias de coração

aberto, incluindo cerca de 10 000 cirurgias valvulares, entre as quais cerca de 3 000 valvuloplastias mitrais e aórticas; Experiência em transplantação cardíaca experimental em Joanesburgo (1988) e mais de 250 transplantes de coração realizados no CHUC desde 2003.

a marcação de seis doentes, dois dos quais para esse mesmo dia. A partir daí, a resposta cirúrgica foi aumentando, até ao momento em que Manuel Antunes deu ordens para partir mais paredes e receber mais doentes. Ao sexto mês de trabalho em Coimbra, o cirurgião já tinha recuperado a lista de espera na totalidade e, ao fim de um ano, a capacidade das instalações já estava ultrapassada. A solução passou pela construção do edifício que atualmente alberga o CCT, que foi inaugurado em 2002.

SOBRE O FUTURO DA TRANSPLANTAÇÃO CARDÍACA Em Portugal, qual é o principal desafio na área do transplante cardíaco? Desde que o Governo apostou no programa de redução da sinistralidade rodoviária, que visou a diminuição em 50% das mortes nas estradas entre 2001 e 2010, o perfil dos dadores de coração mudou completamente, porque esse objetivo foi atingido e até superado. Nos últimos anos, 80% dos nossos dadores morrem de causas neurológicas primárias, como acidentes vasculares cerebrais, mas estas doenças dos vasos são também causa de doenças coronárias. Portanto, na maior parte das vezes, esses dadores são inapropriados, até porque também têm uma idade avançada. Se um homem de 70 anos pode ser um bom dador de rim, o mesmo não acontece com o coração. Tanto assim é que não acei-

tamos transplantar doentes com mais de 70 anos, salvo raras exceções. Temos uma dificuldade cada vez maior em obter corações apropriados para transplante. Que soluções se perspetivam? Numa era dominada pelas máquinas, já existem bombas mais pequenas do que um telemóvel e que podem substituir o coração. É por aí que os avanços vão acontecer. Por exemplo, há menos de dois anos, foi lançado o Carmat, um coração artificial muito parecido ao coração humano e biologicamente compatível, porque é revestido por uma membrana animal, de pericárdio bovino, o que impede a coagulação do sangue. Estes corações artificiais já foram utilizados em alguns doentes, com resultados muito menos trombogénicos. | 21


ETRATO Os bons resultados ao longo de 30 anos, sempre com taxas de mortalidade e morbilidade muito baixas, devem-se a duas ordens de razão: primeiro, os doentes não tiveram de esperar largos meses e, por isso, o seu quadro clínico não se deteriorou; depois, existe «um rigor muito grande», a começar por quem lidera. «Estou no CCT das 8h00 às 20h00, de segunda a sexta-feira. Trabalho 60 horas normais por semana e ainda passo cá algumas horas ao sábado e ao domingo, para além de dar resposta às emergências. Este é o meu princípio e todos os elementos da equipa médica o seguem. Trabalhamos uma média de 75 horas semanais.» Claro que tal só é possível com o aval do Conselho de Administração do CHUC, que paga as horas extraordinárias. «Trabalhar com uma equipa que está em regime de exclusividade traz muitas vantagens não quantificáveis em termos de dinheiro, mas evidentes a nível profissional e moral», frisa Manuel Antunes, que opera, em média, 12 doentes por semana. Muitos consideram que Manuel Antunes é «um durão», mas o próprio separa a fama do proveito. Desde logo, porque se emociona «com facilidade», sobretudo quando o assunto está ligado à transplantação. Depois de mais de quatro décadas a transformar sentenças de morte em vida, pedimos-lhe que nos contasse uma história exemplificativa do turbilhão de emoções associado à sua atividade. Com a voz embargada, o cirurgião partilha: «Uma das situações que mais me tocou foi a carta que a mãe de um dador de coração me enviou. Morreu-lhe o filho, com 34 anos, e escreveu-me porque ouviu falar de mim como promotor de uma Medicina humanizada. Então, pediu-me que fizesse saber ao recetor que tinha a responsabilidade de tratar bem do coração do filho dela, que era uma parte dela também.» Manuel Antunes introduziu modificações em várias técnicas cirúrgicas, mas foi pela reparação da válvula mitral que se tornou «internacionalmente conhecido». No seu entender, esta é a técnica mais exigente que já realizou, sobretudo pela responsabilidade associada. «Se o cirurgião colocar uma válvula artificial e falhar, o problema é da válvula; mas, se o cirurgião fizer o remendo da válvula e falhar, foi o cirurgião que falhou», explica. Nesta entrevista concedida a poucos dias de se aposentar, Manuel Antunes garante que «valeu a pena» todo o esforço posto numa carreira médica inteiramente dedicada ao Serviço Público. No CHUC, particularmente, deixa um rasto de milhares de vidas salvas e como

herança instalações criadas de raiz para atender às necessidades da Cirurgia Cardiotorácica. Deixa também uma equipa forte, que «certamente encontrará o seu caminho». Sobre o próprio futuro, para já, só tem uma certeza: «Tenho vivido uma vida plena e não vou parar. Se não puder continuar no CHUC, vou atender doentes e operar noutro lado.»

DO ÁLBU M FOTOGRÁFICO PESSOAL

Aos 17 anos, rodeado pelos colegas do primeiro ano do curso de Medicina e Cirurgia da Universidade de Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique

Ainda um novato profissão, com 27 anona após realizar a sua pris, meira cirurgia cardía ca

MANUEL ANTUNES NOS TEMPOS LIVRES Jardineiro e microagricultor «Tenho as minhas alfaces, os meus tomateiros, o meu feijão-verde… Sou eu que podo e enxerto as minhas árvores de fruto. Além disso, quando estou no jardim, a podar ou transplantar roseiras, por exemplo, sinto uma certa libertação do espírito. O simples ato de estar no exterior a regar a relva (tenho resistido à rega automática) permite-me dizer “bom dia” e “boa tarde” aos vizinhos. É a única maneira de os ver [risos].»

Jeito para a bricolage «No meu cacifo, na sala de operações, além de canetas, lápis, um pente e calçadeiras, tenho chaves de fendas. Se reparar que há um parafuso desapertado, sou eu que o aperto. Tenho uma caixa de ferramentas no meu gabinete e todos os quadros que estão nas paredes fui eu que os pendurei. Em casa, não há avarias em torneiras ou problemas com esgotos que me obriguem a chamar alguém para os resolver. Quem trabalha com as mãos tem de as treinar e não tem de ser necessariamente a suturar doentes.» 22 | AGOSTO 2018

Como membro e atual presidente da Cadeia da Esperança Portugal, uma ONG de apoio aos países africanos de língua portuguesa na área da Saúde, Manuel Antunes organizou e participou em 17 missões cirúrgicas no Instituto do Coração de Maputo, tendo operado cerca de 350 doentes. A próxima missão será em novembro deste ano

Em 2017, com Europeia, Manuel An fundos da União tun participou numa mi es organizou e em Amã, na Jordânia,ssão humanitária par cirúrgico de crianç a tratamento Síria. A experiência foias refugiadas da que já tem outra missã tão gratificante o preparada o próximo mês de set para embro


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