CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DEBATEU ESTRATÉGIAS
PARA IMPULSIONAR A TRANSPLANTAÇÃO
O XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação foi o momento alto da atividade da SPT em 2022 (P.14-19). Entre os dias 1 e 3 de dezembro, especialistas dos dois lados do Atlântico partilharam conhecimentos e debateram estratégias para impulsionar a doação e a transplantação de órgãos. Nesse sentido, como realçam os membros da direção da SPT em entrevista (P.4-5), são necessárias alterações legislativas que contemplem a doação em paragem cardiocirculatória controlada e um recurso mais amplo às tecnologias inovadoras, como a perfusão hipotérmica oxigenada. Das atividades recentes da SPT, destaque ainda para o regresso, quatro anos depois, do Curso de Transplantação Renal em formato presencial (P.9) e para o Curso de Histocompatibilidade e Imunogenética, que já vai na terceira edição (P.20-21)
Alguns dos intervenientes no XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação: Fila da frente : Prof. Aníbal
Prof. Fernando Nolasco, Dr.ª Cristina Jorge e Prof.
Desafios da transplantação em Portugal
Dr.
Referência no transplante hepático
Inovação é uma palavra de ordem na Unidade de Transplantação Hepática de Adultos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que começou a utilizar a perfusão hipotérmica oxigenada em 2020. Por seu turno, a Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica continua num trajeto único em Portugal, mantendo a forte colaboração com o polo de adultos, do qual se autonomizou em 2020 P.6-8
Foi este o mote do fórum promovido pela SPT no passado mês de março, que contou com a participação de responsáveis das várias áreas da transplantação. Ao longo do debate, foram identificadas as necessidades não preenchidas da atividade de doação e transplantação de órgãos, evidenciando-se o subfinanciamento, a elevada carga burocrática, a revisão da lei de alocação de órgãos e a importância de manter o Gabinete de Registo da SPT P.12-13
Quase 5 décadas de carreira em resumo
Contamos-lhe o percurso do Prof. Fernando Nolasco no Serviço Nacional de Saúde, do qual se aposentou em julho de 2022, depois de 45 anos no Hospital Curry Cabral, onde assumiu funções de responsabilidade crescente, desde interno a diretor do Serviço de Nefrologia e de toda a valência de transplantação. Pelo caminho, foi também presidente do Conselho de Administração e diretor clínico interino. Paralelamente, percorreu uma carreira académica notável, sendo hoje professor jubilado P.22-23
N.º 16 | Junho de 2023
Revista oficial da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) | Ano 11 | Semestral | € 0,01
Ferreira,
Manuel Pizarro,
José Fragata. Fila do meio: Enf.º Fernando Vilares, Dr.ª Maria Antónia Escoval, Enf.º Marco Job Batista, Dr.ª Rosa Valente de Matos, Dr.ª Carla Semedo e Prof.ª Luciana Haddad. Fila de trás : Prof. José Huygens Garcia, Prof. José Medina Pestana, Dr. Domingos Machado e Prof. Roberto Manfro.
UM ANO DE MANDATO E MUITOS DESAFIOS
e no Hospital Curry Cabral. Além disso, a SPT manteve, neste período, a sua colaboração com entidades oficiais, nomeadamente com a Comissão Nacional de Acompanhamento da Diálise, e emitiu vários pareceres, destacando-se os relativos à profilaxia e à terapêutica da Covid-19.
PREMÊNCIAS E PRÓXIMAS AÇÕES
Em março de 2023, previamente à nossa Assembleia-Geral, promovemos uma reunião para debater as dificuldades que enfrentamos na manutenção do nosso Registo da Transplantação e para discutir os problemas que as atividades de doação/colheita e de transplantação atravessam em Portugal, com o intuito de transmitir essas preocupações à tutela. Foram abordadas as adversidades em termos de sobrecarga assistencial e burocrática pelas quais todos passamos (páginas 12 e 13)
Caros companheiros da SPT,
Um ano volvido sobre o início do atual mandato diretivo da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), vimos dar-vos conta do trabalho concretizado e das nossas atividades e planos para o futuro.
Neste primeiro ano de funções, o ponto alto da nossa atividade foi, sem dúvida, o XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação (páginas 14 a 19). Por ser o nosso primeiro congresso presencial após o início da pandemia de Covid-19 era ansiado por muitos. Graças ao trabalho de equipa e à colaboração de diferentes peritos portugueses, brasileiros e de outras nacionalidades, bem como da indústria farmacêutica, os objetivos que traçámos para este evento foram cumpridos. Estamos convictos de que o congresso correspondeu às expectativas, quer em termos de programa científico e qualidade das sessões, quer em termos de oportunidades de convívio e troca de ideias informais entre os congressistas. Em relação a outras atividades em que estivemos envolvidos no último ano, destacamos os dois cursos do Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética (GHI), que foram muito concorridos e apreciados (páginas 20 e 21), bem como as comemorações do dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação (DNDOT), em parceria com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). A cargo da SPT, foram distribuídos pins alusivos a este dia em consultas de transplantação de diferentes locais do país. Lembramos que, nesse dia (20 de julho de 2022), divulgou-se publicamente a primeira doação altruísta de rim em Portugal, pelo Dr. Domingos Machado, a qual mereceu várias honras e uma muito especial nota de louvor da SPT. Acreditamos que essa atitude servirá de estímulo e exemplo para a doação de órgãos no nosso país, especialmente em vida. Destacamos também a presença da SPT em diversas comemorações de atividade de unidades de transplantação, como os 25 anos de transplantação renal no Hospital Garcia de Orta, ou os 30 anos de transplantação hepática em Coimbra
DIREÇÃO
Parece-nos premente a revisão da lei de alocação de rins de dador falecido e a criação de um programa específico para os doentes hipersensibilizados, bem como a facilitação do seguimento dos transplantados, através da descentralização e da realização de exames e análises nas suas áreas de residência. Estes temas são há muito defendidos pela SPT e pelos profissionais de saúde ligados à transplantação. Visto que o número de transplantados tem vindo a crescer e as equipas de profissionais que os seguem não têm incrementado (antes pelo contrário), assegurar a qualidade do seguimento destes doentes tem sido cada vez mais difícil.
No entanto, mais do que recordar o passado, é importante projetar o futuro. Nesse sentido, demos o nosso patrocínio científico e participámos na I Jornada Nacional HOPE (hypothermic oxygenated perfusion), organizada no passado mês de abril, por uma empresa que está a implementar, em Portugal, o sistema de perfusão hipotérmica oxigenada de órgãos para transplante (página 11)
Quanto a outras atividades que decorrerão ainda este ano, contam-se o VIII Curso de Transplantação Renal, que terá lugar em Aveiro, nos dias 1 e 2 de junho (página 9); a comemoração do DNDOT 2023, no dia 20 de julho, em conjunto com o IPST; e o XXI Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, que ocorrerá no Brasil, com a participação de uma comitiva de peritos portugueses. Organizaremos ainda a Reunião Nacional da SPT, no próximo mês de outubro. Além disso, o nosso GHI realizará a terceira edição do seu curso, bem como vários webinars em conjunto com a sua congénere brasileira (página 9)
Em termos de incentivo à atividade científica, mantemos as bolsas da SPT de apoio à investigação e à publicação de artigos. Por outro lado, continuamos a promover e a divulgar a doação e a transplantação de órgãos através de vários meios, como esta revista, os media convencionais ou as redes sociais. Como sempre tem sucedido, contamos com a colaboração e a participação de todos vós na prossecução dos objetivos da SPT.
Cristina Jorge
Presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação
ÓRGÃOS SOCIAIS DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE TRANSPLANTAÇÃO (2022-2025)
Presidente: Cristina Jorge (Lisboa)
Vice-presidente: Jorge Daniel (Porto)
Tesoureira: Lídia Santos (Coimbra)
Vogais: Inês Ferreira (Porto), Tiago
Nolasco (Lisboa), Marta Neves (Lisboa) e João Santos Coelho (Lisboa)
FICHA TÉCNICA
PROPRIEDADE:
ASSEMBLEIA-GERAL
Presidente: Susana Sampaio (Porto)
Secretário: David Prieto (Coimbra)
Vice-presidente: Alice Santana (Lisboa)
Sociedade Portuguesa de Transplantação
Av. de Berna, n.º 30, 3.ºF 1050-042 Lisboa
Tel.: (+351) 933 205 201
E-mail: secretariado@spt.pt
Website: www.spt.pt
PATROCÍNIO EXCLUSIVO DA EDIÇÃO:
CONSELHO FISCAL
Presidente: Aníbal Ferreira (Lisboa)
Vogais: Carla Damas (Porto) e João Maciel Barbosa (Lisboa)
Publicação isenta de registo na ERC, ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 9 de junho, artigo 12.º, alínea a)
EDIÇÃO:
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Direção de projetos: Madalena Barbosa (mbarbosa@esferadasideias.pt) e Ricardo Pereira (rpereira@esferadasideias.pt)
Textos: Diana Vicente, Madalena Barbosa, Marta Carreiro e Pedro Bastos Reis
Fotografias: Pedro Gomes Almeida, Ricardo Almeida e Rui Santos Jorge
Design/Web: Herberto Santos e Ricardo Pedro
Depósito Legal: 365266/13
2 | JUNHO 2023 EDITORIAL
MEDALHAS DE SERVIÇOS DISTINTOS
ODr. Domingos Machado e o Dr. João Paulo Almeida e Sousa médicos com percursos de várias décadas de dedicação à transplantação, foram dois dos 16 agraciados, em abril passado, com a Medalha de Serviços Distintos do Ministério da Saúde – grau ouro.
Distinguindo pessoas, organismos ou instituições pelos serviços prestados na área da Saúde Pública, as medalhas foram entregues em Lisboa, numa cerimónia inserida nas comemorações do Dia Mundial da Saúde, que contou com a presença do Dr. Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
Presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação entre 2001 e 2004 (sendo hoje seu sócio honorário, bem como da Sociedade Portuguesa de Nefrologia), período no qual se verificou um importante estreitar de relações com o Brasil, Domingos Machado é um dos pioneiros da transplantação renal em Portugal. Este nefrologista dedicou a sua carreira ao Centro Hospitalar Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, no qual foi diretor do Serviço de Nefrologia entre 2016 e 2020. Ao longo dos 41 anos nesta instituição,
voluntariou-se anualmente para trabalhar no Serviço de Urgência no dia de Natal. Em 2022, tornou-se na primeira pessoa em Portugal a proceder à doação não dirigida.
Por seu turno, João Paulo Almeida e Sousa desempenhou, entre 2016 e 2019, o cargo de presidente do Conselho Diretivo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, onde é consultor na área da transplantação, contribuindo para a implementação das Normas Hospitalares de Doação, a institucionalização do Dia Nacional da Doação e Transplantação de Órgãos e a maximização do aproveitamento de plasma. O pneumologista e intensivista tem-se focado na doação de órgãos, integrou vários grupos de trabalho, dos quais resultaram publicações importantes como “Guia de Transporte de Doentes Críticos”, “Normas de Boas Práticas em Trauma” e “Operacionalização do Programa de Colheita de Órgãos em Paragem Cardiocirculatória”. Pedro Bastos Reis
RECORDE DE PULMÕES TRANSPLANTADOS EM 2022
Em 2022, registou-se por um recorde de transplantes pulmonares em Portugal: 76. “Tal deve-se, em primeiro lugar, ao trabalho multidisciplinar em rede e à proximidade com os hospitais de doação”, justifica o Dr. Paulo Calvinho, cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta (CHULC/ /HSM), centro de referência de transplante pulmonar no país.
“Nos hospitais de doação e nos cuidados intensivos, tem-se vindo a verificar uma maior atenção no manuseio dos doentes candidatos a dador de pulmão”, acrescenta.
Apesar do recorde alcançado, Paulo Calvinho nota que o número de doentes submetidos a este procedimento foi exatamente igual ao de 2019, o que se explica devido ao “aumento da realização de transplantes bipulmonares no CHULC/ /HSM, acompanhando a tendência internacional”. Ainda assim, os 76 pulmões transplantados refletem “um crescimento sustentado”.
Este recorde, continua o especialista, deve-se sobretudo à “parceria entre o CHULC/HSM e os gabinetes de coordenação e doação de órgãos” do país. Para este resultado contribuiu também o alargamento dos critérios de
referenciação, nomeadamente em termos de “idade, tempo de ventilação, trauma torácico e infeção”.
Devido ao impacto da Covid-19, Paulo Calvinho nota que apenas em 2022 foi possível “retomar a atividade junto dos hospitais de doação”. Contudo, mesmo durante a pandemia, a transplantação pulmonar não abrandou: “Em 2019, transplantámos 39 doentes, número que diminuiu para 34 e 33 em 2020 e 2021, respetivamente”. Olhando para o futuro, o cirurgião cardiotorácico salienta que o transplante pulmonar “está numa senda de crescimento”, embora ainda existam “cerca de 80 doentes em lista de espera”. Para continuar a aumentar o número de transplantes por ano, “é necessário alargar os critérios de doação, de forma a incluir pulmões ainda mais marginais, que tenham mais ventilação, excesso de edema pulmonar e maior grau de contusão pulmonar e trauma”. Nesse sentido, Paulo Calvinho conclui que “será necessário abraçar os projetos da doação em paragem cardiocirculatória de classe II de Maastricht não controlada”, bem como “dar início ao recurso a recondicionamento em ex-vivo”. Diana Vicente
REFORMA DO SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS EM LIVRO
egundo o Prof. José Fragata, o seu mais recente livro, intitulado A Reforma Necessária do Sistema de Saúde Português e publicado em 2022, “consiste num exercício de cidadania”. “As motivações para escrever este livro devem-se à preocupação com a evolução a que tenho assistido do Serviço Nacional de Saúde [SNS], procurando explicar aos cidadãos que existe outra forma de operar a transformação do sistema de saúde português”, contextualiza o diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital
Entre as debilidades do SNS, José Fragata destaca “o nível de acesso e organização aos cuidados”. “O SNS deveria funcionar como um mecanismo de equidade social, permitindo igual acesso a ricos e pobres. Tal não acontece”, alerta. O cirurgião cardiotorácico chama ainda a atenção para os problemas de financiamento “Dos 10% do PIB [produto interno bruto] gastos em Saúde, cerca de 59% vêm do Estado e os restantes 41% dos cidadãos. Quando se fala num serviço tendencialmente gratuito, há aqui uma falácia.”
Defendendo que haja “menos Estado, mas melhor Estado”, o autor afirma que deveria existir uma mudança de paradigma do SNS para um “sistema nacional de saúde que incorpore em rede os setores privado, social e público”. “Assim, os doentes seriam livres de ir onde quisessem, cabendo ao Estado regular a qualidade e o acesso. O Estado atuaria não como prestador obrigatório, mas sim como regulador”, explica. José Fragata lamenta ainda que a Saúde seja usada como “arma de arremesso político, uma vez que o essencial é que todos os cidadãos tenham acesso aos melhores cuidados de saúde”.
Entre as áreas que, inevitavelmente, deverão continuar no SNS, o diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do CHULC/HSM dá o exemplo da transplantação. “Mesmo que fosse uma área atrativa para o setor privado, a transplantação deve pertencer ao setor público, por uma questão de sensibilidade.” A Reforma Necessária do Sistema de Saúde Português, livro publicado pela editora By the Book, tem 160 páginas.
Pedro Bastos Reis
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PONTAMENTOS
Volvido o primeiro ano de mandato da atual direção da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), a presidente, o vice-presidente e a tesoureira comentam os principais objetivos para o triénio 2022-2025, desde o equilíbrio financeiro à aposta na formação. As alterações necessárias à legislação nacional para aumentar o número de dadores, o futuro da transplantação e a necessidade de motivar os profissionais de saúde das gerações mais novas para esta área são também temas analisados nesta entrevista.
Pedro Bastos Reis
Neste momento, quais são os maiores desafios que se colocam à transplantação em Portugal?
Dr. Jorge Daniel (JD): Um desafio transversal é a escassez de dadores de órgãos, tendo em conta as listas de espera existentes para transplante de rim, pulmão, fígado e coração. A nossa procura pelo maior número possível de dadores tem levado à expansão de critérios, também continuamos com os programas de dador vivo e de colheita em paragem cardiocirculatória, mas não chega… Outros desafios são a motivação das equipas, em particular das gerações mais novas, e a sensibilização da sociedade civil para a importância da transplantação.
São necessárias alterações legislativas para aumentar a pool de dadores?
Dr.ª Cristina Jorge (CJ): A legislação atual contempla os dadores em morte cerebral e os que sofrem paragem cardíaca em condições não controladas. Também prevê o transplante de dador vivo, mas este tipo de doação só é possível no rim e parcialmente no fígado. Portanto, para aumentar o pool de dadores, apenas nos resta recorrer às pessoas em paragem cardiocirculatória controlada, que são doentes em estado crítico, habitualmente internados em unidades de cuidados intensivos ou admitidas em urgência, cujo falecimento se segue à retirada planeada de suporte vital que foi considerado sem benefício para esse doente. É importante abrirmos este caminho na lei, porque levará ao aumento das doações de órgãos.
Em que ponto está a criação de um programa especial de alocação de órgãos para doentes hipersensibilizados?
CJ: Esse programa é uma necessidade indubitável, porque, atualmente, cerca de 30% dos doentes em lista de espera para transplante renal são hipersensibilizados, ou seja, são candidatos muito difíceis de transplantar devido à elevada carga de anticorpos contra possíveis dadores. Existem programas para alocação especial de órgãos a estes doentes em diversos países. Em Portugal, apesar das várias tentativas para mudar a lei, isso ainda não foi conseguido.
Hoje em dia, a transplantação é uma área atrativa para os profissionais de saúde das gerações mais jovens?
JD: Vou responder com o exemplo da área a que me dedico. A transplantação hepática obriga a grande abnegação, a termos uma família que entenda que, a qualquer momento, temos de adiar programas familiares e passar muito tempo no hospital, a horas “incómodas”. Não temos horário certo e as gerações mais jovens não estão tão disponíveis para este estilo de vida. Portanto, temos de os incentivar: a vertente monetária ajuda, mas não é só isso que está em causa; é necessário cativar as pessoas também pelo desafio profissional e pela importância social de estar ligado a uma equipa de transplantação.
CJ: Essa realidade é transversal às diferentes áreas da transplantação. Os doentes transplantados podem ficar instáveis rapidamente, podem
OZ ATIVA 4 | JUNHO 2023
DIREÇÃO DA SPT | À frente: Dr.ª Cristina Jorge (presidente) e Dr. Jorge Daniel (vice-presidente). Atrás: Dr.ª Lídia Santos (tesoureira), Dr.ª Inês Ferreira, Dr. João Santos Coelho e Dr.ª Marta Neves (vogais). Ausente na fotografia: Dr. Tiago Nolasco (vogal).
“ESPERAMOS QUE AS NECESSÁRIAS ALTERAÇÕES À LEI SE TORNEM REALIDADE”
sofrer muitas complicações e exigem atenção e cuidados permanentes. Acresce que já houve mais investimento e apoios para a transplantação em geral do que aquele que existe atualmente, mesmo por parte da indústria farmacêutica. Tem de se conseguir oferecer mais aos profissionais desta área.
Nos últimos anos, têm surgido inovações no âmbito da transplantação?
JD: Na vertente cirúrgica, há sempre inovação, nomeadamente tecnológica. Uma grande novidade dos últimos anos é a máquina de perfusão, que permite aproveitar cada vez mais órgãos, inclusive de menor qualidade, ou seja, de critérios expandidos. Esta máquina já está disponível no Centro Hospitalar Universitário de Santo António (Porto) e no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, estando também prevista a sua utilização, a curto prazo, no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central.
CJ: Na vertente médica da transplantação, temos esperança de que surjam brevemente novos métodos de diagnóstico e monitorização dos doentes, que nos permitam avaliar o estado da imunossupressão e a rejeição subclínica que pode contribuir para a deterioração do órgão transplantado. Também aguardamos o aparecimento de novos fármacos para facilitar o transplante em doentes hipersensibilizados. Outra inovação que nos coloca expectantes é a xenotransplantação, que poderá ser uma realidade a médio prazo. Num horizonte mais distante, ou talvez não, poderemos dispor da medicina regenerativa, nomeadamente da criação de órgãos artificiais a partir de células humanas.
Fechando agora o ângulo de análise na SPT, o equilíbrio financeiro é uma preocupação atual?
Dr.ª Lídia Santos (LS): Sem dúvida que sim. Apesar da redução de receitas, a SPT manteve as suas principais atividades nestes últimos anos de pandemia Covid-19. Agora, o equilíbrio das contas é um desafio, tal como a agregação dos profissionais e a evolução rigorosa e eficiente da área da transplantação. Provavelmente, terá de haver uma pequena subida da quota anual dos sócios, que, neste momento, é quase simbólica (25 euros por ano), mas isso ainda não está decidido. Por outro lado, sabemos que o equilíbrio financeiro não acontecerá à custa de diminuirmos a atividade, pelo que vamos reinventar-nos para conseguir manter, ou até incrementar, as iniciativas da SPT com equilíbrio financeiro, que é fundamental.
A SPT continuará a atribuir bolsas e prémios?
LS: Sim. Apesar de o apoio da indústria farmacêutica ter diminuído nos últimos anos, a SPT optou por manter as bolsas e os prémios, para promover a investigação e a publicação científica da atividade dos diversos
centros de transplantação. É também uma via de incentivo à formação, porque estes apoios dirigem-se, sobretudo, a médicos internos e jovens investigadores, pelo que a SPT tem todo o interesse em mantê-los.
A colaboração com outras entidades nacionais e internacionais da transplantação é importante para a SPT?
JD: O Instituto Português do Sangue e da Transplantação e a Direção-Geral da Saúde, por exemplo, são organismos com os quais mantemos um relacionamento institucional. Por outro lado, a SPT tem acordos e parcerias com várias sociedades científicas, porque todo o trabalho conjunto na área da transplantação é bem-vindo.
CJ: Ao nível internacional, temos laços profundos com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos e pretendemos aprofundar relações com outras sociedades, como a The Transplantation Society. O nosso Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética também criou ligações com entidades congéneres de outros países, nomeadamente a Associação Brasileira de Histocompatibilidade e Imunogenética e a American Society for Histocompatibility and Immunogenetics, o que é ótimo para nós (SPT e sociedade em geral), porque promove a troca de conhecimentos e pode facilitar o acesso à inovação nesta área.
LS: Temos também percorrido um caminho de aproximação à European Society for Organ Transplantation. Ao nível nacional, temos vindo a promover o Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação junto de outras sociedades médicas afins, nomeadamente de Imunologia, Neurologia, Cardiologia e Hematologia. Continuaremos nesse caminho, incluindo no nosso congresso a análise de temas do interesse dos profissionais de outras áreas que, de algum modo, se relacionam com a transplantação.
Quais são as prioridades para os dois anos que restam do mandato da atual direção da SPT?
CJ: Levar o nosso plano de atividades a bom porto e continuar a trabalhar com as entidades oficiais, esperando que as relações deem mais frutos e que as necessárias alterações à lei se tornem uma realidade.
JD: Nesse sentido, já solicitámos uma reunião com o ministro da Saúde. O nosso objetivo é sensibilizar para as necessidades não preenchidas da transplantação, que precisam de ajuda e colaboração do Ministério da Saúde.
Declarações em vídeo da Dr.ª Cristina Jorge, do Dr. Jorge Daniel e da Dr.ª Lídia Santos
DINAMISMO DA SPT EM CURSOS E REUNIÕES CIENTÍFICAS
Como afirma a Dr.ª Lídia Santos, “apostar na formação dos médicos internos e aumentar a motivação para exercer na área da transplantação” são duas prioridades da atual direção da SPT. Nesse sentido, estão a ser planeadas discussões monotemáticas para analisar questões específicas da transplantação, mas transversais aos vários órgãos, que podem ser incluídas na Reunião Nacional da SPT ou em eventos independentes. “Serão sessões com discussões de cariz prático sobre desafios do dia-a-dia, sendo abordados temas atuais e as mais recentes inovações”, concretiza Lídia Santos. Quanto aos eventos que ainda decorrerão este ano, nos dias 1 e 2 de junho, em Aveiro, realiza-se o VIII Curso de Transplantação Renal. Entre 27 e 30 de setembro, terá lugar em Florianópolis, no Brasil, o XXI Congresso Luso-Brasileiro de Transplantes. Já em outubro, nos dias 20 e 21, em local a definir, decorrerá a Reunião Nacional da SPT 2023.
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MULTIDISCIPLINARIDADE E INOVAÇÃO AO SERVIÇO DA TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA
Centro de referência desde 2015 e com acreditação do Departamento de Qualidade da Direção-Geral da Saúde desde 2020, a Unidade de Transplantação Hepática de Adultos (UTHA) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) está na linha da frente do transplante de fígado. Para tal, uma vasta equipa multidisciplinar tem dado seguimento ao trabalho pioneiro do Prof. Alexandre Linhares Furtado, responsável pela realização do primeiro transplante renal em Portugal (1969) e do primeiro transplante hepático em Coimbra (1992). Atualmente, ultrapassada a marca dos 1500 transplantes, o objetivo é continuar a subir a fasquia, nomeadamente através da aposta na perfusão hipotérmica oxigenada.
Pedro Bastos Reis
Numa atividade muito imprevisível, em que um fígado para transplante pode surgir a qualquer momento, a rápida articulação entre especialidades médicas, enfermeiros, assistentes técnicos e operacionais é essencial para que nenhum órgão seja desperdiçado. Aliás, essa é uma das principais responsabilidades da Dr.ª Dulce Diogo (3.ª a contar da direita, à frente, na fotografia), que dirige uma equipa incansável. “Temos pessoas muito diferenciadas e motivadas, que gostam desta atividade. Isso faz toda a diferença”, enaltece a coordenadora, que assumiu essa função em 2020.
No espaço próprio da UTHA, localizado no 2.º piso do CHUC, encontra-se o internamento, com 12 camas alocadas aos doentes transplantados. Quando não há vagas, a Unidade de Cirurgia Hepato-Bilio-Pancreática e o Serviço
de Medicina Intensiva disponibilizam mais camas. Já no 5.º piso, funcionam as consultas e o hospital de dia. Pré e pós-transplante, cirurgia, anestesia, enfermagem e dador vivo são algumas das consultas prestadas pela UTHA, que segue cerca de 700 doentes. Em 2021, realizaram-se 3700 consultas, das quais 439 foram primeiras consultas.
A Cirurgia Geral, a Medicina Interna e a Anestesiologia são as especialidades médicas que mais contribuem para a atividade da UTHA. No entanto, é também fulcral a colaboração de especialidades como a Radiologia de Intervenção, a Imuno-hemoterapia, a Gastrenterologia ou a Psiquiatria. “Praticamente todo o hospital está envolvido na atividade da transplantação hepática”, sublinha Dulce Diogo.
CONTORNAR AS COMPLICAÇÕES
A UTHA está integrada no Serviço de Cirurgia Geral do CHUC, que é dirigido pelo Prof. José Guilherme Tralhão (3.º a contar da esquerda, à frente, na fotografia). “No transplante hepático, o ato cirúrgico é muito desafiante do ponto de vista técnico. Sendo uma intervenção de elevado risco, implica um vasto conhecimento técnico e teórico”, afirma o responsável, acrescentando que evitar potenciais complicações é uma das prioridades ao longo de todo o processo. “No peri-operatório, a principal complicação é a hemorragia; no pós-operatório, a mais temida é a disfunção do órgão depois do transplante, existindo ainda outras preocupações, como a trombose arterial, a trombose venosa ou, mais tarde, as estenoses biliares.”
Para contornar as complicações ao nível das vias biliares, em 2018, a UTHA começou a utilizar um tratamento inovador com recurso a próteses biodegradáveis. “As estenoses das vias biliares eram uma das principais causas
DR
VIVO 6 | JUNHO 2023
Equipa da Unidade de Transplantação Hepática de Adultos do CHUC
Número de transplantes hepáticos realizados no CHUC (entre 1992 e 2022) 100 1992 5 Adulto Pediátrico 1995 2001 80 60 40 20 0 32 10 56 1998 6 51 17 2004 29 11 2010 38 15 2016 68 11 2020 39 10 2007 38 13 2013 59 12 2019 32 13 2021 59 10 2022 53 7
Os transplantes de fígado são realizados numa sala própria do bloco operatório (1). Depois, os doentes recebem os necessários cuidados no internamento da Unidade de Transplantação Hepática de Adultos (2), cuja fasquia dos 1500 transplantes foi atingida a 8 de julho de 2021, quando o procedimento foi realizado num doente de 64 anos (3)
de retransplante, mas o cenário mudou porque, atualmente, dispomos de ferramentas para prevenir e tratar esta ocorrência, cujos casos diminuíram substancialmente”, realça José Guilherme Tralhão. Os bons resultados devem-se, em grande parte, ao diálogo entre os vários profissionais que colaboram na UTHA. “O êxito da transplantação hepática baseia-se na multidisciplinaridade e nas decisões conjuntas, mesmo durante a intervenção cirúrgica. A boa interação do cirurgião com o anestesiologista, por exemplo, é muito importante”, exemplifica o diretor do Serviço de Cirurgia Geral.
CONTRIBUTOS DA ANESTESIOLOGIA E DA MEDICINA INTERNA
A intervenção dos anestesiologistas na transplantação hepática ocorre em todas as fases do processo, “numa perspetiva de medicina centrada e ajustada ao doente, sempre em articulação com as outras especialidades”, como indica o Dr. Carlos Seco (1.º a contar da direita, na última fila da fotografia), coordenador da equipa de Anestesiologia da UTHA.
A avaliação pré-operatória é realizada em consulta de Anestesiologia pré-transplante face à doença hepática, com “observação do doente e realização de exames complementares de diagnóstico – de rotina (análises, eletrocardiograma, raio-X do toráx) e mais dirigidos (ecocardiograma, cintigrama de perfusão miocárdica, ou outros, quando indicados, como tomografia axial computorizada cerebral, eletroencefalograma, etc.). Visa também a otimização do estado do doente”, explica Carlos Seco. No intraoperatório, a cirurgia decorre sob anestesia geral, com monitorização multimodal (ventilatória, cardiovascular, cerebral, metabólica, relaxamento muscular, etc.).
Já no pós-transplante imediato, a intervenção dos anestesiologistas “visa a monitorização e o suporte das funções vitais do recetor, a monitorização da funcionalidade do enxerto, bem como o diagnóstico e o tratamento precoce de eventuais intercorrências”. Segundo Carlos Seco, também se realiza “um contínuo acompanhamento pela equipa multidisciplinar (com maior envolvimento da Cirurgia e da Medicina Interna), visando a evolução clínica do doente, os ajustes terapêuticos e as decisões até à alta hospitalar”.
Segundo o Dr. Nuno Silva (3.º a contar da direita, na segunda fila da fotografia), “a Medicina Interna assume um papel preponderante na proposta de doentes para transplante hepático, na avaliação pré-transplante e também no pós-operatório imediato e no seguimento a longo prazo dos doentes. O responsável pela área de Medicina Interna na UTHA afirma ainda que, “na maioria dos casos, os candidatos a transplante têm doença hepática avançada, com elevada probabilidade de complicações e sobrevivência limitada”. Nestes doentes, “o transplante permite alterar a história natural da doença hepática e proporcionar mais qualidade de vida, aumentando a perspetiva de sobrevivência a longo prazo”.
Na UTHA do CHUC, a Medicina Interna funciona como ponto de ligação, não só ao nível da equipa multidisciplinar, mas também com outros hospitais do
RECURSOS
3 assistentes técnicos
13 assistentes operacionais
país, em particular da região Centro. “Esta atividade de consultadoria é muito importante, porque permite que os doentes possam ser referenciados para transplante hepático no momento mais oportuno e nas melhores condições possíveis”, destaca Nuno Silva. Segundo este internista, “o grande desafio para o futuro é aproximar a UTHA dos hospitais que referenciam doentes para transplante hepático, de modo a melhorar ainda mais os outcomes do tratamento”.
REFERÊNCIA IBÉRICA NA PERFUSÃO OXIGENADA
A aproximação à rede de referenciação, promovendo a troca de experiências e o alargamento do âmbito de atuação da UTHA, é uma das prioridades elencadas por Dulce Diogo para 2023. Outro objetivo é reforçar a aposta na máquina de perfusão hipotérmica oxigenada (HOPE, na sigla em inglês), que está a mudar o paradigma da transplantação hepática. “Começámos a utilizar esta técnica em agosto de 2020, para prevenir complicações como as estenoses biliares não anastomóticas e para aumentar a viabilidade dos enxertos, principalmente de critérios expandidos”, contextualiza a coordenadora.
Até 31 de março de 2023, na UTHA do CHUC, passaram 82 fígados por esta tecnologia de preservação dos enxertos aditivada por oxigénio. “17% destes órgãos eram de dadores com mais de 80 anos e 30% de dadores com mais de 75 anos. No passado, só se recorria a dadores destas idades em situações-limite e urgentes. Com o recurso à HOPE, conseguimos usar estes fígados e verificamos uma redução significativa das complicações biliares”, sublinha Dulce Diogo. Ao que acrescenta: “O tratamento dos órgãos para transplante é incontornável, não só com a HOPE, mas também com outros dispositivos de perfusão mais complexos, que permitem adicionar fármacos.”
A UTHA do CHUC é pioneira na utilização da HOPE não só em Portugal, como também na Península Ibérica, estando inclusive a participar num estudo de âmbito europeu sobre esta tecnologia, para o qual foram convidados os centros com maior volume de perfusão. Esta Unidade também assume uma vincada participação noutros estudos nacionais e internacionais, bem como no European Liver Transplant Registry, além das constantes intervenções dos membros da equipa em reuniões científicas.
Apesar de, na região Centro, a taxa de transplantes hepáticos ser superior a 35 por milhão de habitantes, ao passo que, no restante país, está perto dos 20 por milhão de habitantes, Dulce Diogo acredita que “ainda há espaço para crescer”. Nesse sentido, os principais objetivos são aumentar o número de camas no internamento, se possível com quartos individuais, e continuar o processo de diferenciação nas consultas.
Entrevistas em vídeo e mais fotografias da Unidade de Transplantação Hepática de Adultos e da Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica do CHUC
A HOPE está localizada numa sala própria do bloco operatório do CHUC. Esta tecnologia permite aumentar o tempo de isquemia fria e recondicionar os enxertos para transplante hepático. Assim, é possível melhorar a função e a viabilidade dos órgãos, principalmente os que provêm de dadores de critérios expandidos, com diminuição das complicações biliares.
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HUMANOS 8 anestesiologistas 12 cirurgiões gerais 5 internistas 1 gastrenterologista 32 enfermeiros
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(a 31/12/2022)
NA VANGUARDA DO TRANSPLANTE HEPÁTICO PEDIÁTRICO
a Dr.ª Teresa Botelho. No entanto, para o funcionamento da unidade, contribuem cerca de duas dezenas de profissionais, entre enfermeiros, assistentes sociais, anestesiologistas, cirurgiões, imagiologistas e outros especialistas do hospital.
Único centro em Portugal a realizar transplante hepático em crianças, a Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica (UHTHP) do Departamento Pediátrico do CHUC autonomizou-se em 2020 do polo de adultos, com o qual mantém uma colaboração estreita.
Pedro Bastos Reis
Foi no ano de 1994, em Coimbra, que se realizou o primeiro transplante hepático pediátrico em Portugal. Desde então, a Dr.ª Isabel Gonçalves integra esta equipa única ao nível nacional, acompanhando o crescimento de um centro de referência que passou por inúmeras transformações ao longo dos seus 29 anos de existência. “Quando comecei a trabalhar em hepatologia, cerca de 90% das crianças com doenças do fígado morriam. Neste momento, mais de 90% sobrevivem”, reflete a coordenadora da UHTHP.
Por ano, realizam-se, em média, 11 transplantes hepáticos na UHTHP, que está instalada no Departamento de Cirurgia do Hospital Pediátrico do CHUC. Atualmente, todos os doentes pediátricos do país são transplantados nesta unidade, mas nem sempre assim foi. Nos primeiros 18 anos, entre 1994 e 2012, as crianças eram transplantadas no polo do CHUC, sendo depois transferidas para o Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos (CIPE) do Hospital Pediátrico, após estabilização.
Em março de 2012, foi inaugurada a Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos, na altura sob a coordenação do Dr. Emanuel Furtado. Dois meses depois, realizou-se o primeiro transplante hepático pediátrico no bloco operatório do Hospital Pediátrico de Coimbra, um marco histórico. “Era algo que almejávamos há vários anos, porque é muito importante para as crianças que todas as técnicas sejam executadas em ambiente pediátrico”, sublinha Isabel Gonçalves.
O processo de autonomização continuou nos oito anos seguintes, culminando, em 2020, com a criação da atual UHTHP, que dispõe de uma enfermaria com quatro quartos individuais. “No CIPE, realizam-se todos os cuidados pós-operatórios e, em muitos casos, também pré-operatórios. A sobrevida dos doentes deve-se muito à qualidade assistencial”, afirma a coordenadora.
Atualmente, a equipa da UHTHP é composta por quatro elementos a tempo integral – uma assistente técnica (Suzete Luís) e três pediatras (Dr.as Isabel Gonçalves, Sandra Ferreira e Susana Nobre) –, mais uma interna de Pediatria,
*À frente – Dr.ª Dora Oliveira, Dr.ª Sílvia Neves, Enf.ª Sónia Nunes, Enf.ª Marta Nobre, Dr.ª Sandra Ferreira, Dr.ª Isabel Gonçalves, Dr.ª Susana Nobre, Enf.ª Margarida Santos e Dr.ª Catarina Cunha. Atrás – Enf.º Pedro Silva, Enf.ª Rosário Martins, Dr.ª Teresa Botelho, Dr.ª Carla Pinto, Dr.ª Leonor Carvalho, Anabela Cunha (assistente social), Maria Helena Leitão (educadora de infância), Piedade Peixoto (assistente operacional), Suzete Luís (assistente técnica) e Ana Paula Cordeiro (educadora de infância).
Além disso, a transplantação hepática pediátrica mantém uma colaboração constante com a transplantação hepática de adultos, em particular com a equipa de Cirurgia da UTHA. Na vertente pediátrica, a unidade conta com uma cirurgiã principal, a Dr.ª Catarina Cunha, cargo que, durante muitos anos, apenas foi assegurado pelo Dr. Emanuel Furtado. “Há uma carência nacional de cirurgiões pediátricos. É um trabalho duro, que exige disponibilidade quase permanente e que não é bem remunerado”, lamenta a Dr.ª Isabel Gonçalves, considerando que esta é uma área a melhorar no nosso país. Dado o baixo volume de transplantação, que se relaciona com a raridade das doenças hepáticas na infância, a coordenadora da UHTHP admite que é difícil aumentar a equipa. No entanto, adverte que “a formação em transplantação hepática pediátrica exige uma curva de aprendizagem que é demorada e complexa”, além de que os doentes são seguidos na unidade até aos 18 anos, quando transitam para o polo dos adultos. “Não se pode analisar o nosso trabalho apenas do ponto de vista cirúrgico. Em média, as crianças ficam três semanas hospitalizadas após o transplante, mas algumas ficam vários meses”, alerta a coordenadora.
Um aspeto positivo é que a lista de espera para transplante hepático pediátrico é de apenas uma ou duas crianças por ano, fruto da legislação nacional, que privilegia a doação aos doentes pediátricos. Contudo, a exigência quanto ao estado e à idade dos dadores é maior, levando a que muitos sejam rejeitados, por não cumprirem os critérios. Por vezes, a solução passa pela doação em vida. Em Portugal, o primeiro transplante hepático pediátrico com dador vivo realizou-se em 2001.
Para o futuro, Isabel Gonçalves aponta como prioridades manter a qualidade da transplantação hepática pediátrica, aumentar a parceria com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e dar continuidade à aposta na melhoria dos cuidados. “Somos uma equipa pequena, mas muito coesa, com experiência acumulada em doenças hepáticas raras em crianças e adolescentes”, realça a coordenadora, concluindo que, “enquanto houver vontade, também há caminho para percorrer”.
novembro de 2021. A recuperação está a correr bem, mas exige um acompanhamento periódico na UHTHP.
VIVO 8 | JUNHO 2023
A Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica dispõe de uma sala para as crianças brincarem durante o período de internamento, onde são acompanhadas por educadoras de infância. Na fotografia da direita, a enfermeira Margarida Santos presta cuidados a um menino de 3 anos, que recebeu transplante de fígado em
FORMAÇÃO EM TRANSPLANTAÇÃO RENAL
Nos dias 1 e 2 de junho ocorre o VIII Curso de Transplantação Renal, no Meliá Ria Hotel, em Aveiro. De acordo com a Dr.ª Marta Neves, membro da comissão organizadora e vogal da direção da Sociedade Portuguesa de Transplantação, “este curso tem sido muito importante, não só para os internos, pela forte vertente formativa, mas também para os especialistas, que gostam de se manter atualizados”.
Para esta edição, foi desenhado um “programa muito abrangente, que tenta abordar desde a imunogenética e a histocompatibilidade até à componente cirúrgica, passando pelas várias complicações e pela importância de individualizar a imunossupressão”, adianta a nefrologista no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte/ /Hospital de Santa Maria. “Cada vez mais se tenta individualizar a abordagem ao doente, o que implica considerar os riscos imunológicos, infeciosos e outros que possam ocorrer”, acrescenta.
Outros temas incluídos no programa são as perspetivas ético-legais e as barreiras a ultrapassar no transplante renal, bem como a discussão em torno da Covid-19 e da infeção por citomegalovírus. “São áreas onde têm surgido algumas novidades”, destaca Marta Neves. No caso da Covid-19, a nefrologista defende que “deve-se tentar sempre que os doentes sejam vacinados antes do transplante”. No que diz respeito à profilaxia da infeção após transplante, “a eficácia
da associação de tixagevimab com cilgavimab depende das variantes em circulação, mas o tratamento baseia-se na terapêutica antiviral, disponível desde há vários meses”. No entanto, “deve haver cuidados especiais na população transplantada, dado o risco de interações medicamentosas com alguns imunossupressores”, assevera.
Marta Neves salienta ainda o debate em torno dos doentes hipersensibilizados, “no sentido de procurar estratégias para que possam vir a ser transplantados”. Neste contexto, chama a atenção para o imlifidase, “que ainda não está disponível em Portugal, mas que seguramente será muito importante no futuro”.
Outro momento alto do programa são os casos clínicos, que, segundo a nefrologista, “foram introduzidos devido ao feedback positivo dos anos anteriores”.
“Pretendemos trazer situações desafiantes das várias unidades de transplante para podermos discutir problemas que nos suscitam mais dúvidas na prática clínica diária”, explica.
Quanto aos palestrantes, Marta Neves garante que “são especialistas com muita experiência na área e uma mais-valia para o curso”. No final do evento, há uma avaliação facultativa. Diana Vicente
PORTUGAL E BRASIL JUNTAM-SE PARA WEBINARS EDUCATIVOS
Em janeiro deste ano, o Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética (GHI) da Sociedade Portuguesa de Transplantação e a Associação Brasileira de Histocompatibilidade e Imunogenética deram início a uma parceria que visa uma “colaboração científica e educacional”. “Após o enorme êxito da palestra do Dr. Alberto Cardoso Lima sobre transplante de progenitores hematopoiéticos [TPH] no XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, decidimos organizar uma série de dez webinars, abordando temas desde a introdução ao TPH até aspetos avançados de compatibilidade HLA e seleção de dadores”, explica a Prof.ª Sandra Tafulo, coordenadora do GHI.
De acordo com a também supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do Centro do Sangue e da Transplantação do Porto, estas sessões, lecionadas por Alberto Cardoso Lima, têm obtido “uma enorme adesão e uma crítica muito positiva entre a comunidade médica e laboratorial”. “Apesar de limitado a 100 participantes, o primeiro webinar teve 300 pedidos de inscrição, entre portugueses e brasileiros. De resto, todas as sessões já decorridas tiveram sempre o total de vagas preenchido.”
O primeiro webinar aconteceu no dia 6 de fevereiro e apresentou uma introdução ao TPH. Por sua vez, a segunda sessão, ocorrida a 6 de março, centrou-se nos aspetos práticos da seleção de dadores alternativos pela existência de anticorpos anti-HLA específicos contra dador. Abril, maio e junho ficam marcados pelos três webinars respeitantes ao curso 1, sobre imunogenética do HLA-DPB1 no TPH com dadores não aparentados. Consequentemente, em setembro, outubro e novembro, decorrerá o curso 2, dividindo-se também por três webinars, sobre imunologia do TPH haploidêntico com ciclofosfamida pós-transplante. Esta iniciativa formativa terminará com dois webinars em dezembro, que constituirão, então, o curso 3, focado nos novos avanços da imunogenética do TPH.
Alguns dos participantes no webinar do dia 6 de março (de cima para baixo): Prof.ª Sandra Tafulo, Dr.ª Mónica Goldenstein, Dr. Alberto Cardoso Lima, Dr. Luís Ramalhete, Prof. Manuel Abecasis, Dr. António Martinho, Dr. Filipe Gonçalves, Dr. Renato De Marco, Dr.ª Ana Macedo, Dr.ª Maria Gutierrez e Dr.ª Maria da Ressurreição Maurício.
Sandra Tafulo salienta ainda o facto de esta série de dez webinars ter recebido a aprovação do comité educacional da European Federation for Immunogenetics, com créditos de educação contínua. Noutro âmbito, a coordenadora do GHI informa que, no dia 17 de abril, teve início uma nova série de cinco webinars, desta feita sobre tipificação HLA. “As próximas sessões desta série estão marcadas para os dias 5 e 19 de junho”, antecipa. Marta Carreiro
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CONTRARIAR A ESCASSEZ DE ÓRGÃOS
Foi este o mote das primeiras Jornadas Nacionais de Doação de Órgãos, organizadas pela Associação de Medicina Intensiva de Coimbra, cujo programa científico centrou-se especialmente na discussão em torno da doação em paragem circulatória (PC). O evento, que decorreu a 20 de janeiro passado, ficou ainda marcado por um curso pré-jornadas, dedicado à identificação e à manutenção de dadores em morte por critérios neurológicos.
Marta Carreiro
“Sem doação não há transplantação.” Foi este o título da conferência inaugural das jornadas, proferida pelo Dr. Reginaldo Boni, senior expert em organização de transplantes nos Emirados Árabes Unidos. Sobre esta palestra, o Prof. Paulo Martins, presidente das Jornadas Nacionais de Doação de Órgãos, enfatiza a importância do envolvimento das famílias no processo de doação de órgãos. “É crucial envolver a família, principalmente nos casos de PC controlada [PCC]. Assim, quando chega a altura em que nada mais há a fazer, torna-se natural a doação dos órgãos, que podem salvar a vida de outras pessoas”, resume o diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).
Depois da mesa-redonda que deu título às jornadas, na qual foram discutidos temas como a identificação de dadores, a infeção nos dadores expandidos de risco e os cuidados intensivos enquanto facilitadores da doação, decorreu a sessão de abertura, que contou com a presença do ministro da Saúde (ver caixa).
O foco das jornadas centrou-se, posteriormente, na doação em PC. “Estamos a tentar acrescentar à lei a possibilidade de colhermos órgãos de dadores em PCC, pois isso permitir-nos-á incrementar a lista de doação, que, neste momento, inclui dadores em morte cerebral e em PC não controlada”, justifica Paulo Martins. Para que tal aconteça, o diretor do Serviço de Medicina Intensiva do CHUC elenca duas questões essenciais: “A literacia por parte dos clínicos e o envolvimento da comunidade no processo de doação, com divulgação de propostas que criem a noção de que a doação é um dever cívico de todos nós.”
SUCESSO NA TRANSPLANTAÇÃO
Na segunda conferência das jornadas, o Prof. Roberto Roncon de Albuquerque, coordenador do Programa de ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea) do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, traçou o panorama geral da doação em PC. Seguiu-se uma mesa-redonda para aprofundar o tema, na qual foram abordados os problemas e as dificuldades da doação em PC, os caminhos das classes de Maastricht e o aumento do número de órgãos disponíveis. Este último tópico foi abordado pelo Dr. Eduardo Sousa. “Em Portugal, há já vários anos que estamos no top cinco da doação de órgãos ao nível mundial. No entanto, há muito que ainda pode ser feito, principalmente no que diz respeito à doação em PC”, contextualiza o intensivista no CHUC.
Conforme realça Eduardo Sousa, a legislação em Portugal prevê “o aproveitamento de apenas uma das classes de dadores em PC disponíveis”, o que limita o leque de potenciais dadores. “Impõe-se, por isso, a necessidade de alterar a nossa legislação, no sentido de expandir esse número”, insiste o especialista, acrescentando que Portugal tem “números semelhantes a Espanha e Estados Unidos, caso seja contabilizada apenas a doação em morte cerebral”. “A diferença está no aproveitamento de todo o potencial da doação em PC, o que demonstra o quanto o panorama português poderia melhorar caso incluísse os dadores em PCC”, afirma. A encerrar as jornadas, a Dr.ª Margarida Ivo, coordenadora nacional de transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), foi preletora numa conferência centrada nos desafios atuais da PCC. Sobre esta questão, o Dr. João Paulo Almeida e Sousa, moderador da conferência, chama a atenção para as implicações éticas. “Estamos a falar de doentes que estão internados e que possuem quadros clínicos irreversíveis, incompatíveis com a vida. Como tal, há um conjunto de procedimentos que, retirados os meios de suporte, conduzem à morte”, introduz o intensivista do CHUC e ex-presidente do IPST. E concretiza: “É aqui que reside uma das principais questões ético-legais, porque estamos a pensar em alguém que vai ser dador, mas que não preenche ainda os critérios de morte.”
João Paulo Almeida e Sousa alerta ainda para a escassez de órgãos, referindo que “a Organização Mundial da Saúde tem manifestado preocupação devido ao facto de o número de órgãos para transplantação ser insuficiente face às necessidades”. Nesse sentido, o especialista defende a legalização da doação em PCC como um dos meios possíveis para contornar esta escassez em Portugal.
Entrevistados comentam a controvérsia em torno da doação em PCC. Veja ainda mais fotografias do evento
Na sessão de abertura, o Dr. Manuel Pizarro, ministro da Saúde, enalteceu a recuperação dos níveis de doação de órgãos em 2022 e congratulou todos os profissionais de saúde ligados à transplantação, em particular pelo “recorde de transplantes pulmonares realizados em Portugal” no ano passado. “Temos excelentes resultados na transplantação e devemos orgulhar-nos disso. Mas podemos fazer melhor, e estas jornadas serviram precisamente para discutir os caminhos que nos levarão até esse objetivo”, concluiu.
RANSFORMAR 10 | JUNHO 2023
NOVOS HORIZONTES COM A TÉCNICA DE PERFUSÃO
O presente e o futuro da perfusão hipotérmica oxigenada (HOPE, na sigla em inglês) estiveram em debate na I Jornada Nacional HOPE, que decorreu no passado dia 11 de abril, em Coimbra. O evento foi organizado pela Bridge to Life Europe, com o patrocínio científico da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) e a colaboração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), tendo contado com cerca de 40 participantes.
Marta Carreiro e Pedro Bastos Reis
Para a Dr.ª Dulce Diogo, a realização deste evento constitui um “marco importante”. “Neste momento, o CHUC é o centro com mais experiência com a HOPE na Península Ibérica. Em dois anos e meio, esta técnica já foi utilizada em cerca de 80 enxertos de fígado”, sublinha a coordenadora da Unidade de Transplantação Hepática de Adultos do CHUC. Em Portugal, também o Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, começou a utilizar recentemente a máquina de perfusão, tendo-a já utilizado em 15 enxertos de fígado. Está ainda previsto para breve o início desta atividade no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC).
Atendendo às vantagens da HOPE, Dulce Diogo destaca o facto de permitir “utilizar mais órgãos de dadores com critérios marginais”. “No CHUC, já estamos a transplantar órgãos de dadores com 90 anos, o que tem contribuído para diminuir as listas de espera e a mortalidade, possibilitando a utilização destes órgãos com mais segurança.” Para a cirurgiã, as técnicas de perfusão de órgãos “são o futuro da transplantação”. “Nos casos de órgãos provenientes de dadores em paragem cardiocirculatória, a perfusão tem uma vantagem particular nos dadores de classe II de Maastricht”, acrescenta.
Por sua vez, a Dr.ª Cristina Jorge, presidente da SPT, refere que seria importante alargar a utilização da HOPE, em Portugal, para além do transplante hepático. “Esta técnica recondiciona órgãos com pouca qualidade, o que aumenta da pool de órgãos disponíveis para transplante”, nota a também diretora do Serviço de Nefrologia do CHULC/Hospital Curry Cabral. “Os resultados apresentados até agora são animadores, por isso, penso que seria benéfico que esta técnica estivesse disponível em todas as unidades que fazem transplantação de órgãos como o fígado e o rim.”
CUSTOS E BENEFÍCIOS
Apesar das vantagens apresentadas, durante o evento foram também debatidos alguns constrangimentos associados à HOPE, nomeadamente os custos da sua utilização. “A máquina é colocada nas unidades à consignação, mas depois é preciso comprar os consumíveis, nomeadamente os kits e os líquidos de perfusão, que são caros”, salienta Cristina Jorge. E acrescenta:
EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL COM A HOPE
“Se em relação ao fígado esse custo poderá ficar diluído, a despesa associada ao rim é mais significativa, porque o que é pago aos hospitais pela transplantação renal é um valor relativamente modesto.” Por esse motivo, a presidente da SPT defende a necessidade de “avaliar os benefícios e os custos para repensar a maneira de apoiar a utilização desta técnica, bem como os hospitais que a utilizam”.
Também a Dr.ª Margarida Ivo considera que é importante discutir o futuro da HOPE, “uma técnica muito promissora”. “A preservação de órgãos é uma etapa da transplantação de que não falamos muitas vezes, mas é essencial, porque permite a manutenção da função do enxerto do dador para o recetor”, diz a coordenadora nacional de transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação.
Relativamente aos custos associados, Margarida Ivo admite que os kits “são caros”, no entanto, acredita que a médio/longo prazo a perfusão poderá compensar monetariamente. “Se conseguirmos resgatar um órgão com critérios de marginalidade e obter uma sobrevida do enxerto muito superior ao que seria expectável, temos um grande ganho financeiro. Nesse caso, os kits da HOPE até podem ser baratos, comparativamente ao custo financeiro de manter um doente em diálise até ao final da vida”, concretiza. E conclui: “Metade do nosso pool de dadores tem critérios marginais. Portanto, com esta técnica, poderemos melhorar a resposta e conseguir um manancial de órgãos de qualidade superior.”
Quais as principais vantagens e limitações da HOPE? Especialistas respondem a questões sobre o futuro desta nova técnica na transplantação
A evidência e a experiência com esta técnica ao nível internacional também esteve em destaque na I Jornada Nacional HOPE, com a apresentação de casos clínicos de Espanha e Itália. Com mais de dez anos de experiência, o Prof. Matteo Ravaioli falou sobre a utilização da HOPE na transplantação hepática e renal. “Comecei a utilizar esta técnica em cenários pré-clínicos. Atualmente, é uma prática comum no meu centro. No transplante hepático, existem mais dados clínicos, mas creio que chegaremos aos mesmos resultados no transplante renal”, afirmou o diretor médico de Cirurgia Geral e Transplantação e chefe do Programa de Transplantação Renal do Hospital Sant’Orsola Malpighi, em Itália. Relativamente à sua experiência com a HOPE, além de a descrever como uma “técnica simples de aplicar”, Matteo Ravaioli realça que o principal benefício é “a melhor condição do órgão, que se traduz em ganhos no pós-operatório”. “Como o órgão funciona melhor, podemos evitar alguns efeitos adversos e a necessidade de retransplantação. Isso é bastante importante do ponto de vista clínico, porque permite melhores resultados”, defende o especialista italiano.
Alguns dos intervenientes na I Jornada Nacional HOPE (da esq. para a dta.): À frente – Dr. Júlio Constantino e Dr. Maurício Carvalho. Ao meio – Dr.ª Dulce Diogo, Dr.ª Margarida Ivo e Prof. Matteo Ravaioli. Atrás – Dr. Jorge Daniel, Dr.ª Cristina Jorge, Prof. Hugo Pinto Marques e Prof. Javier Aguirrezabalaga.
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DESAFIOS DA TRANSPLANTAÇÃO EM PORTUGAL
Responsáveis das diversas áreas da transplantação reuniram-se em Lisboa, no dia 24 de março passado, para debater abertamente os principais desafios e as maiores dificuldades nesta área.
O futuro do Gabinete de Registo da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) também esteve em discussão.
Pedro Bastos Reis
Mais fotografias do Fórum “Desafios da transplantação em Portugal”
Areunião arrancou com uma breve retrospetiva histórica do Gabinete de Registo da SPT, apresentada pelo Dr. Rui Filipe, que destacou o avanço verificado com a criação de uma base de dados. “Este feito permitiu um salto qualitativo muito grande. Contudo, com a saída de alguns responsáveis das unidades ao longo do tempo, começámos a ter problemas em manter esta base atualizada”, alerta o coordenador do Gabinete de Registo da SPT.
Segundo o também nefrologista na Unidade Local de Saúde de Castelo Branco/Hospital Amato Lusitano, este é “um problema premente e que tem levado a uma dificuldade crescente em concluir a análise dos dados em tempo útil”. Por isso, “é essencial haver o compromisso de todas as unidades de transplatação em terem os dados atualizados a tempo de serem apresentados no Congresso Luso-Brasileiro, o que constituirá uma grande evolução”.
Por fim, Lídia Santos realçou a necessidade de mudança no seguimento dos doentes pós-transplante renal, defendendo uma descentralização. “Há doentes a percorrer 600 quilómetros para irem à consulta de transplantação renal, quando poderiam ser seguidos nos centros de Nefrologia perto de sua casa”, afirma a nefrologista, referindo ainda que “o envio da imunossupressão para farmácias mais próximas da área de residência dos doentes e a teleconsulta são algumas das soluções”.
FÍGADO
A transplantação hepática foi abordada pelo Dr. Jorge Daniel. O coordenador do Centro de Trans plante Hepática do Adulto do Centro Hospitalar Universitário de Santo António (CHUdSA), no Porto, começou por evidenciar que “alguns dos principais desafios no transplante de fígado são transversais a outras áreas da transplantação”. “O primeiro desafio é a falta de dadores, o que nos leva a utilizar critérios de doação cada vez mais expandidos”, justifica o também vice-presidente da SPT.
Na intervenção inicial sobre transplantação renal, a Dr.ª Lídia Santos, nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, começou por notar “a ausência de uma atualização da norma de alocação de órgãos, que há vários anos se mantém inalterada, com prejuízo para os doentes”. Nesse sentido, a também tesoureira da SPT chamou a atenção para o “entrave na legislação que está a impedir a criação de um programa para doentes hiperimunizados, cujo acesso ao transplante renal é, por isso, muito baixo”. “Este programa poderia aumentar a probabilidade de transplante em doentes que maioritariamente são jovens”, assegura.
Nesse âmbito, Jorge Daniel destacou o advento das máquinas de perfusão ex vivo, que começaram a ser utilizadas há cerca de três anos, em Coimbra, e, mais recentemente, também no CHUdSA. “Estamos a começar o nosso programa, e os resultados parecem promissores. Faltam é marcadores, como o mononucleótido de flavina mitocondrial, que já é utilizado na Alemanha e na Suíça”, explica o especialista, identificando ainda como prioritário o aumento do aproveitamento de fígados. O cirurgião referiu ainda que “aliciar as novas gerações de médicos para os programas de transplante de fígado é uma das maiores dificuldades” na atualidade. “Para as novas gerações, o incentivo monetário não é suficiente, uma vez que a transplantação rouba muito do nosso tempo familiar.”
CORAÇÃO
No que diz respeito ao transplante cardíaco, Dr. Tiago Nolasco, cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, salientou a “urgência associada a este procedimento”. “A janela terapêutica é muito curta”, uma vez que, “após as três horas de isquemia, aumenta exponencialmente o risco de problemas no pós-operatório”. No entanto, graças ao programa de assistência ventricular no pré-transplante, o paradigma mudou
RIM
RANSFORMAR 12 | JUNHO 2023
para muitos doentes, com consequente impacto nas listas de espera. “Estes doentes têm uma premência enorme para o transplante e muitos não chegariam a ser transplantados, mas, à assistência, estão bem. Contudo, vão progredindo e aumentando a lista de espera, acabando, por vezes, por passar à frente de outros doentes”, exemplifica o também vogal da SPT, vincando a “importância de redefinir os graus de prioridade, de aproveitar todos os órgãos e de os critérios de decisão serem muito claros e transparentes”.
Ainda sobre o aproveitamento de órgãos, Tiago Nolasco considera que é possível ir mais longe, defendendo uma maior discussão em torno da colheita de órgãos em dadores de classe III de Maastricht. “Precisamos de criar maior sensibilização, porque temos muitos doentes em lista de espera”, assevera o especialista, sublinhando ainda a necessidade de existirem “incentivos uniformes na colheita de órgãos”.
PULMÃO
Aumentar o número de dadores foi a prioridade elencada pelo Dr. Paulo Calvinho, que apresentou os desafios na área do transplante pulmonar. “O verdadeiro investimento a fazer é na doação. Portugal está bem colocado ao nível internacional, mas ainda há muito trabalho pela frente. No pulmão, acredito que estamos a metade do que é possível ao nível nacional”, refere cirurgião cardio torácico no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta. E concretiza: “Neste momento, temos perto de 70 doentes em lista de espera e estamos a transplantar cerca de 40 por ano. Há um aumento da sensibilização e do trabalho de coordenação, mas ainda não chega para as nossas necessidades.”
Nesse sentido, Paulo Calvinho defende o “aumento de parcerias com os hospitais em rede e com os gabinetes de coordenação, uma vez que o trabalho na doação deve ser recompensado e incentivado”. “Cada vez que nos aproximamos da rede hospitalar da doação, que realizamos uma ação formativa ou sensibilizamos os nossos colegas, o número de dadores aumenta, de forma geral. Tal significa que há um trabalho de proximidade e de comunicação que tem de ser feito”, conclui.
PÂNCREAS
Por seu turno, o Prof. Aníbal Ferreira centrou-se nos desafios inerentes ao transplante pancreático, começando por focar o “exemplo de cooperação” entre o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/HCC) – no qual é coordenador da vertente médica da Unidade de Transplantação Renal e Renopancreática – e o CHUdSA. “Penso que os dois centros cobrem perfeitamente o país. Os números demonstram uma lista de espera entre os 20 e os 30 doentes, com 17 transplantes realizados por ano. Nesse aspeto, estamos bem”, congratula.
De acordo com o nefrologista, um aspeto a melhorar passa pela abordagem aos doentes hiperimunizados. “Temos muitos candidatos a transplante simultâneo de rim e pâncreas que já estão há vários anos em diálise,
CONCLUSÕES
e nós sabemos que, numa situação normal, nunca serão transplantados. Portanto, ou assumimos uma atitude diferente ou temos de pôr estes doentes em lista para transplante renal isolado após dessensibilização”, adverte. Outros desafios elencados foram “a não ocupação de camas no internamento devido à falta de enfermeiros, a morbilidade e as complicações no primeiro internamento e as dificuldades no diagnóstico histológico ou através de biópsias pancreáticas”.
HISTOCOMPATIBILIDADE E IMUNOGENÉTICA
Referindo-se aos desafios na área da histocompati bilidade, a Prof.ª Sandra Tafulo destacou a im portância da formação e da aproximação entre clínica e laboratório. “Nesse âmbito, iniciámos os cursos de histocompatibilidade e imunogenética, que têm sido fantásticos, e os webinars em parceria com a Associação Brasileira de Histocompatibilidade e Imunogenética”, realça a coordenadora do Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética da SPT.
Para o futuro, a também supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do Centro de Sangue e da Transplantação do Porto antecipa um maior foco no transplante hematopoiético, bem como a promoção da investigação no âmbito da ciência básica e nos domínios da transplantação de órgãos, tecidos, células e da medicina regenerativa.
GABINETES DE COORDENAÇÃO
Por fim, a Enf.ª Rosário Caetano Pereira apresentou a visão dos gabinetes de coordenação de colheita e transplantação, reforçando a sua importância e “o grande contributo que prestam ao sucesso dos programas de transplantação em Portugal”. “O trabalho em equipa é a chave do sucesso na área da doação. Nesse sentido, os profissionais dos gabinetes de coordenação são elementos cruciais na articulação entre as unidades de doação e as de transplantação”, afirma.
A diretora do Gabinete de Coordenação de Colheita e Transplantação do CHUdSA sublinhou ainda que foram atribuídos aos gabinetes de coordenação, aos níveis regional e nacional, um papel de “facilitador na articulação necessária entre as diferentes equipas envolvidas no processo de doação/colheita/transplantação”. “No âmbito das funções definidas por lei, os gabinetes de coordenação são ainda responsáveis pela constituição de equipas de colheita e pela organização de toda a logística inerente, assegurando a rastreabilidade, a segurança e a transparência de todo o processo de alocação de órgãos”, acrescenta. Tendo isso em consideração, a enfermeira defende que “a disponibilidade total que é solicitada às equipas e o nível de responsabilidade exigido leva a que seja importante a revisão de remunerações e incentivos e a estruturação de um plano de formação contínua”. No final da reunião, foi evidenciada a vontade de os coordenadores hospitalares criaram um grupo associado à SPT.
De acordo com o Dr. João Santos Coelho, cirurgião no Centro Hepatobiliopancreático e de Transplantação do CHULC/HCC e vogal da SPT, algumas das principais conclusões do fórum, foram:
• Gabinete de Registo da SPT: “Foi unânime a ideia de que a manutenção do registo é obrigatória. Foram também apresentadas propostas para o seu funcionamento: tornar a base de dados mais user-friendly e célere, garantir o preenchimento de forma quinzenal e expandir o registo a outros órgãos além de rim e pâncreas. Ficou também patente a necessidade de importar dados do Registo Português de Transplantação.”
• Alocação de órgãos: “No caso da transplantação renal, o sistema de alocação não está adaptado ao conhecimento científico. A lei atual data de 2007 e é importante mudá-la, tendo a Dr.ª Margarida Ivo comunicado que já foi enviado um despacho para o Ministério da Saúde, que aguarda assinatura do ministro. A nova lei terá de ser redigida por peritos, que deverão ter autonomia para a alterar em função da leges artis.”
• Financiamento: “É unânime a ideia de que há cada vez menos profissionais a quererem trabalhar na área da transplantação. Torna-se, por isso, imperioso rever os métodos de pagamento, aumentar o valor unitário de cada transplante e possibilitar às unidades a gestão desses valores. Sem doação não existe transplantação, portanto, o financiamento para a doação de órgãos é fundamental.”
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PARTILHA DE EXPERIÊNCIAS DOS DOIS LADOS DO ATLÂNTICO
Entre 1 e 3 do passado mês de dezembro, em Cascais, realizou-se o XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, no qual se partilharam saberes e experiências de Portugal e do Brasil. Num evento em que foram reforçados os laços entre a Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) e a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), debateram-se os grandes temas da transplantação.
Diana Vicente
REGISTOS EM PORTUGAL E NO BRASIL
De acordo com o Prof. Fernando Nolasco, presidente da comissão organizadora, o congresso teve “um programa intensivo”, marcado pelo “aprofundamento dos conhecimentos já adquiridos”. “Foram apresentados alguns aspetos totalmente novos, mas o que mais sobressai é a melhoria dos caminhos e práticas que percorremos, permitindo que a transplantação de órgãos se torne cada vez mais sólida, com conhecimentos e práticas mais sedimentadas”. Ainda assim, para o ex-diretor do Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/HCC), “o destaque temático fundamental foi o trabalho colaborativo” entre a SPT e a ABTO. Esta colaboração ficou patente na afluência ao congresso, que foi “bastante frequentado, com uma assistência muito participativa”. “Destaco a participação das camadas mais jovens, que têm sido muito importantes para o desenvolvimento desta área, bem como a participação dos colegas brasileiros”, sublinha Fernando Nolasco. Sobre a colaboração entre Portugal e Brasil, o presidente da comissão organizadora refere que “o evento é mais do que a soma das duas partes”: “Portugueses e brasileiros têm um bom percurso em termos de transplantação e este debate conjunto enaltece e melhora os programas de ambos os países.”
TRANSPLANTAÇÃO EM PORTUGAL
Na sessão de abertura do congresso, o Prof. José Fragata, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, proferiu uma conferência sobre o percurso da transplantação em Portugal. Segundo o também professor catedrático na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, “Portugal tem hoje uma menção muito honrosa nos transplantes à escala mundial”. Contudo, isso “não garante a sustentabilidade desta área”, adverte.
Por isso, o especialista apresenta “duas direções a seguir: investir mais e ser mais resiliente”. A primeira “diz respeito sobretudo às autoridades, sendo urgente dotar os centros com os meios necessários”. A segunda relaciona-se com as equipas de transplantação, sendo “essencial que os profisionais mais jovens sejam motivados e acarinhados” para se interessarem mais por esta área. Por fim, José Fragata destaca a importância de “honrar os pioneiros do passado” na transplantação: “Quem não conhece a história está condenado a repetir os mesmos erros. Daí a importância de apontar caminhos para que a transplantação tenha um futuro tão brilhante quanto o passado e o presente.”
Segundo o Prof. Gustavo Ferreira, presidente da ABTO, este congresso foi um marco para a transplantação brasileira, uma vez que “representou o retomar das atividades científicas presenciais, com muita inovação para discutir”. Nesse sentido, o diretor do Programa de Transplantação de Rim e Pâncreas da Santa Casa de Misericórdia Juiz de Fora, no Brasil, realça as sessões sobre “dadores vivos e avaliação genética dos dadores e recetores”.
Por seu turno, a Dr.ª Cristina Jorge, presidente da SPT, enaltece as sessões sobre temáticas inovadoras. “Tentámos abranger questões atuais, tanto na área da transplantação propriamente dita como da coordenação, mas também inovações que se avizinham, como a xenotransplantação, as novidades no tratamento de infeções virais nos doentes transplantados ou a gestão dos doentes hiperimunizados”, afirma a também vice-presidente do congresso. Sobre a relação entre a SPT e ABTO, Cristina Jorge destaca as “sinergias e vias de comunicação que se têm mantido ao longo dos anos”, defendendo o estreitar de relações. “Acho que todos enriquecemos com este intercâmbio de ideias e experiências”, assevera.
Durante o congresso, foram apresentados os dados referentes aos transplantes realizados nos dois países, em 2021. O registo português, que contemplou apenas o transplante renal, com dados ainda preliminares, foi apresentado pela presidente da SPT e diretora do Serviço de Nefrologia do CHULC/HCC. “O que nos surpreendeu foi a redução da sobrevida, tanto do enxerto como dos doentes no primeiro ano após o transplante, o que pode estar relacionado com a pandemia de Covid-19”, resume Cristina Jorge. A presidente da SPT alerta também que nem todas as unidades conseguiram colaborar com o registo de transplantação. “É necessário algum apoio para que se consiga manter o registo, porque estamos a verificar que há dificuldades das unidades em colaborar atempadamente.”
Os dados do Brasil, por sua vez, foram apresentados pela Prof.ª Luciana Haddad, vice-presidente da ABTO. “É preciso trabalhar ao nível da doação, pois ainda existe uma taxa muito alta de recusa de órgãos”, afirma a também cirurgiã no Departamento de Transplante Hepático do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Em simultâneo, os dados revelam “um nível elevado da não utilização de órgãos”. “Esse é um problema muito particular da nossa
XVI CONGRESSO PORTUGUÊS DE TRANSPL ANTAÇÃO
realidade brasileira e acho que podemos aprender muito com Portugal, que não tem o mesmo problema”, refere a especialista.
Intervenientes na sessão de abertura: Prof.ª Luciana Haddad, Dr.ª Cristina Jorge, Enf.º Marco Job Batista, Dr. Manuel Pizarro, Dr.ª Carla Semedo, Enf.º Fernando Vilares, Dr.ª Maria Antónia Escoval, Dr.ª Rosa Valente de Matos, Dr. Miguel Guimarães (no ecrã) e Prof. Fernando Nolasco (no púlpito).
RANSFORMAR 14 | JUNHO 2023
Olhando para os registos dos dois países, Luciana Haddad afirma que “o Brasil é um país muito grande, com uma série de dificuldades devido ao seu tamanho, ao passo que Portugal consegue ter um excelente número de transplantes, tendo em conta a sua população bem mais reduzida”. “Acredito que essas diferenças fazem com que nós possamos aprender muito, crescer juntos e trocar informações”, conclui.
REPERCUSSÕES DA PANDEMIA
O impacto da Covid-19 nas unidades de transplantação em Portugal foi abordado pela Dr.ª Susana Sampaio, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, que apresentou os resultados do estudo multicêntrico promovido pela SPT. “Observou-se que a Covid-19 teve impacto na mortalidade e na morbilidade dos doentes transplantados “Verificou-se também que a vacina nestes doentes é menos eficaz, embora tenha conseguido reduzir a sua mortalidade”, destaca a preletora, remetendo para a análise dos dados recolhidos.
Além disso, Susana Sampaio nota que a Covid-19 obrigou a mudanças nos procedimentos, que atualmente já fazem parte da rotina. “Quando surge possibilidade de transplante, temos de testar o doente antes e colocar-lhe todas as perguntas, práticas que já entraram no quotidiano”, garante. A nefrologista também enaltece a tendência para a retoma à realidade pré-pandemia. “Se o período pandémico foi marcado por uma menor atividade, atualmente, o número de transplantes tem vindo a recuperar, tendência que se verificou em 2021 e que continuou em 2022”, remata.
Já no Brasil, lamenta Gustavo Ferreira, ”o impacto da pandemia de Covid-19 foi muito grande, tendo-se verificado uma queda de 20% na atividade de transplantação”. Por isso, o principal objetivo nesta área “é trabalhar para conseguir retomar os números de 2019, uma vez que os valores pré-pandemia ainda não foram alcançados”. Ainda assim, o presidente da ABTO refere que, “juntamente com o Ministério da Saúde brasileiro, a ABTO conseguiu reestruturar as unidades de transplantação para reduzir o impacto da pandemia”.
XX
LUSO BRASILEIRO DE TRANSPLANTAÇÃO
MAIOR PROGRAMA DE TRANSPLANTE RENAL
No seguimento da partilha de experiências entre Portugal e Brasil, o Prof. José Medina Pestana proferiu uma conferência sobre o “maior programa de transplantação renal mundial”, existente no Hospital do Rim e da Hipertensão da Universidade Federal de São Paulo, no Brasil, no qual é diretor. “Este programa conta já com 25 anos, num hospital especializado em transplantação e para onde é direcionada a maioria dos transplantes de rim do estado de São Paulo, que contempla 44 milhões de habitantes”, contextualiza o especialista.
Este programa, explica Medina Pestana, assenta num “modelo de produção ´industrial` de divisão em estações de trabalho articuladas”. “Fazemos mais de mil transplantes por ano. A elevada produção é o primeiro benefício deste modelo. Quando se repete sistematicamente o mesmo processo, a qualidade e os resultados vão melhorando. Esse é o segundo benefício”, concretiza Medina Pestana, acrescentando que este programa “facilita bastante o ensino e a investigação”.
Quanto a perspetivas para o futuro, Medina Pestana admite que a evolução natural seria “aplicar este modelo noutras situações clínicas”, vincando que o mesmo pode ser “implementado em regiões com um número reduzido de hospitais de elevada complexidade, nomeadamente países em desenvolvimento”. “Nesses casos, é possível centralizar todos os transplantes num hospital”, conclui.
e Brasil e da conferência sobre xenotransplantação
PRESENTE E FUTURO DA XENOTRANSPLANTAÇÃO
De acordo com o Prof. Manuel Pascual, reitor da Faculdade de Biologia e de Medicina da Universidade de Lausanne, na Suíça, o debate em torno da xenotransplantação tem vindo a ganhar espaço, verificando-se uma tendência para o progresso nesta área. “Haverá um grande avanço quando se provar que porcos geneticamente modificados podem ser bons dadores para humanos”, contextualiza. E adverte: “Ainda faltam cinco a dez anos para se demonstrar que será possível sustentar a sua função num espaço de tempo maior e em condições seguras”.
Nesse sentido, Manuel Pascual pede precaução, porque “há questões por solucionar”, nomeadamente a definição sobre “os melhores tratamentos em termos de imunossupressão, de prevenção de infeções e de outras complicações”. “Informar corretamente o doente e a família sobre o procedimento e as possíveis alternativas, bem como considerar o bem-estar do animal” são outros aspetos a ter em consideração. “Ainda assim,
mesmo que a xenotransplantação venha a ser viável, pode não conseguir competir com o transplante de órgãos humanos”, reflete Manuel Pascual.
CONGRESSO
Vídeos e fotografias das sessões que juntaram Portugal
Sessão “COVID em transplantação”: Prof. Manuel Pestana, Prof. José António Lopes, Prof. Aníbal Ferreira (moderadores) e Dr.ª Susana Sampaio.
“Xenotransplantation and the future of transplantation in the context of organ shortage” foi o título da conferência do Prof. Manuel Pascual.
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Sessão “Registo Transplante 2021” (da esq. para a dta.): Dr.ª Cristina Jorge, Prof. Aníbal Ferreira (moderador), Prof. Roberto Manfro (moderador) e Prof.ª Luciana Haddad.
OPORTUNIDADES E DESAFIOS NOS ÓRGÃOS SÓLIDOS
A alocação de órgãos e as questões ligadas aos doentes hiperimunizados foram dois dos assuntos em destaque nas sessões paralelas de transplantação de órgãos sólidos, especificamente rim, fígado, coração, pulmão e rim-pâncreas.
Diana Vicente
RIM
Nas sessões paralelas de rim foram abordados temas como a avaliação genética, os desafios na transplantação de dador vivo e a onconefrologia. Enquanto moderadora, a Dr.ª Lídia Santos chama a atenção para os doentes hiperimunizados, considerados “um dos principais desafios na transplantação renal” pela inexistência de um programa específico em Portugal. “Procurámos trazer a experiência de Espanha, através do programa PATHI, que tem como objetivo aumentar o acesso ao transplante do doente com PRA [painel reativo de anticorpos] calculado superior a 98% e se baseia numa prova virtual entre estes doentes e o dador. De outra forma, estas pessoas dificilmente conseguiriam ser transplantadas”, resume a tesoureira da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) e nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
FÍGADO
A 2.ª sessão paralela de fígado contou com a moderação do Dr. Jorge Daniel, do Prof. José Guilherme Tralhão e do Dr. Hugo Pinto Marques (no púlpito), que também participou como orador.
Sobre as sessões dedicadas ao transplante hepático, o Dr. Jorge Daniel, diretor do Programa de Transplantação Hepática no Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, considera “muito importante a discussão com os colegas brasileiros sobre a experiência com casos de trombose complexa da veia porta, uma das ameaças técnicas à efetivação do sucesso no transplante”. Além disso, o transplante hepático foi explorado no contexto da doença oncológica, da colangite esclerosante primária, da amiloidose hereditária por transtirretina e da patologia cardiovascular. “Foi também abordada a imunossupressão, a seleção dos doentes e os limites na gravidade dos recetores para transplantar”, conclui o vice-presidente da SPT.
CORAÇÃO
O acesso ao transplante em Portugal e no Brasil e a necessidade de redefinir a alocação dos órgãos foram, de acordo com o Dr. Tiago Nolasco, os tópicos-chave que guiaram as apresentações respeitantes ao transplante de coração. “Debateu-se ainda o progressivo recurso a assistências ventriculares, que oferecem uma mudança de paradigma, quer pela possibilidade de suportar o doente até ser transplantado, quer por representar o destino final para alguns doentes”, acrescenta. Numa das sessões, o cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/ /Hospital de Santa Cruz defendeu a necessidade de “clarificar os critérios dos diferentes graus da lista de espera para que quando há um coração disponível, seja adstrito a quem mais precisa”.
Alguns dos participantes nas 1.ª e 2.ª sessões paralelas de coração: Dr.ª Gabriela Ruiz, Prof. José Fragata, Dr.ª Maria José Rebocho, Dr. Tiago Nolasco, Dr.ª Sandra Amorim, Dr.ª Maria Loureiro e Prof. Fernando Atik.
PULMÃO
As temáticas debatidas nas sessões paralelas de pulmão englobaram a disfunção precoce do excerto, as indicações do transplante, a imunossupressão no tratamento pós-transplante e a doação. Quanto ao último tópico, o Dr. Paulo Calvinho recorda que “Portugal aproveita cerca de metade do potencial da doação em morte cerebral”. “Os critérios expandidos na doação de pulmão implicam uma maior manutenção e dedicação por parte das equipas dos cuidados intensivos e das salas de emergência”, alerta o cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/ /Hospital de Santa Marta. Posto isto, acredita que a solução “passa pela sensibilização e formação das diferentes equipas para referenciarem e manterem os dadores, juntamente com a colaboração do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, dos gabinetes de coordenação e hospitais de doação”.
RIM-PÂNCREAS
Alguns dos oradores e moderadores das sessões paralelas de rim-pâncreas: Prof. Emanuel Vigia, Dr.ª Juliana Damas, Prof.ª Irene Noronha, Prof. Aníbal Ferreira, Prof.ª La Salete Martins, Dr. Roberto Meireles, Dr.ª Catarina Almeida e Dr.ª Inês Sala.
A primeira sessão paralela de rim-pâncreas centrou-se em apresentações sobre pesquisa de marcadores precoces de rejeição do transplante de pâncreas. No dia seguinte, as particularidades dos doentes hipersensibilizados foram o tema protagonista. Tendo-o em consideração, o Prof. Aníbal Ferreira, moderador de ambas as sessões, relembra que, “além de serem doentes que dificilmente são transplantados, os programas de dessensibilização reno-pancreática ainda não estão padronizados”. Nesse sentido, foram discutidas “as possibilidades de tratar estes doentes, seja apenas com recurso ao transplante renal, seja através de um melhor tratamento para a diabetes mellitus, usando bombas de insulina”, conforme afirma o coordenador da vertente médica da Unidade de Transplantação Renal e Renopancreática no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral.
XVI CONGRESSO PORTUGUÊS DE TRANSPL ANTAÇÃO
Intervenientes na 1.ª sessão paralela de rim: Dr. Leonídio Dias, Dr.ª Susana Sampaio, Dr.ª Maria Valentín, Dr.ª Inês Ferreira e Dr.ª Lídia Santos.
RANSFORMAR
A Dr.ª Luísa Semedo e o Dr. Paulo Calvinho moderaram a 1.ª sessão paralela de pulmão.
TRANSPLANTE DE TECIDOS OCULARES E ÓSSEOS
No congresso, houve também espaços dedicados ao transplante de tecidos oculares e ósseos. No que diz respeito aos tecidos oculares, a Prof.ª Maria João Quadrado, moderadora da sessão, destaca o debate em torno da prevenção da cegueira corneana, dado que “é uma das principais causas de cegueira a nível mundial, e que tem vindo a aumentar”. Segundo a chefe do Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), algumas estratégias preventivas passam pela “melhoria das técnicas cirúrgicas, dos tempos e das terapêuticas dos doentes”.
Neste âmbito, foi abordado o transplante endotelial, técnica na qual se têm verificado “melhorias substanciais”. “Deixámos de fazer transplantes totais da córnea, optando pelo transplante lamelar, em que operamos apenas a camada afetada”, esclarece. Este procedimento tem a vantagem de “diminuir substancialmente o índice de rejeição e, no caso específico do transplante posterior, diminuir o tempo de recuperação, tornando-a mais rápida”.
O impacto da pandemia de Covid-19 na transplantação corneana também esteve em discussão, assim como as experiências portuguesa e brasileira relativamente às indicações para este tipo de transplante.
Já a sessão paralela dedicada aos tecidos ósseos arrancou com uma preleção focada na sustentabilidade. Enquanto moderador, o Dr. Rui Dias garante que, “tendo em consideração a realidade dos bancos de tecidos no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, no Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), em Lisboa, e no CHUC e as corretas aplicações e metodologia de cada um deles, pode-se estar confiante na sua sustentabilidade”.
Ainda assim, o anterior responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC nota que “há desafios relacionados com as novas perspetivas sanitárias e doenças que podem estar a ser descobertas”. “Além disso, cada vez mais pode haver escassez de certos tipos de tecidos, devido à idade mais avançada de alguns dadores”, acrescenta.
Foram também mote de discussão o transplante de tecidos na cirurgia da mão, as novas perspetivas dos aloenxertos do tecido musculoesquelético e os desafios para a segurança dos tecidos ósseos. Diana Vicente
Highlights das mesas-redondas de transplante de tecidos e de medula óssea, bem como da conferência sobre citomegalovírus
CITOMEGALOVÍRUS E PROGENITORES HEMATOPOIÉTICOS
Um dos momentos major deste congresso ficou à responsabilidade do Prof. Paul Griffiths, investigador no Centre for Virology da University College London Medical School, no Reino Unido, que falou sobre o progresso das vacinas contra o citomegalovírus. Nesse sentido, o preletor afirma que “algumas vacinas que já foram testadas em humanos mostraram ter algum efeito, pelo que se tem vindo a trabalhar mais especificamente no mecanismo que motiva essa resposta”.
Não havendo ainda uma vacina contra a patologia, atualmente, o tratamento nos doentes transplantados é feito por via de duas estratégias diferentes.
“A primeira passa por medicar profilaticamente após o transplante. A segunda implica avaliar o sangue das pessoas e apenas administrar o medicamento antiviral se for detetado o vírus”, refere Paul Griffiths. No entanto, tendo em consideração os avanços mais recentes no estudo de determinados componentes, o investigador acredita que “existe a possibilidade de ainda durante o ano de 2023 surgir uma vacina, sendo para isso necessário que exista uma colaboração internacional”.
Também importante foi a sessão paralela de medula óssea, na qual foram apresentados os registos dos dadores de progenitores hematopoiéticos de Portugal e do Brasil. De acordo com o Prof. João Forjaz Lacerda, moderador da sessão e hematologista no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte/ /Hospital de Santa Maria, com a explanação destes dados, foi realizada uma
“análise partilhada das principais características genéticas, dos subtipos mais comuns e dos antigénios HLA presentes na população portuguesa e brasileira”.
“O Dr. Eduardo Espada apresentou os haplótipos mais comuns no registo português e o Prof. Jorge Neumann os resultados do registo brasileiro. Da análise conjunta, verificou-se que estes conjuntos de antigénios, que são transmitidos de pais para filhos ao longo das gerações, acabam por recapitular as migrações das populações ao longo dos séculos”, resume João Forjaz Lacerda. “Seguiu-se um painel de discussão no qual foi identificado o interesse de prosseguir a colaboração na análise dos dois registos e na expansão das tipagens de alta resolução, de modo a aumentar o número de dadores recrutados”, conclui o hematologista.
Diana Vicente
CONGRESSO
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LUSO BRASILEIRO DE TRANSPLANTAÇÃO
Intervenientes na sessão paralela de medula óssea (da esq. para a dta.): Prof. Jorge Neumann, Prof. João Forjaz Lacerda, Dr. Eduardo Espada e Prof. Manuel Abecasis.
Intervenientes na sessão paralela de tecidos ósseos: Dr. Rafael Prinz, Dr. Rui Dias, Dr.ª Josefina Oliveira, Dr. Frederico Raposo, Enf.ª Celeste Francisco, Dr.ª Margarida Ivo e Dr. Alexandre Marques.
O Dr. Vítor Maduro, a Prof.ª Márcia Salomão Libânio e o Dr. Renato Oliveira (no púlpito) durante a apresentação sobre as diferentes indicações para a transplantação corneana no Brasil e em Portugal.
HOT TOPICS EM HISTOCOMPATIBILIDADE E IMUNOGENÉTICA
ao procedimento”, conclui. Os aspetos práticos na seleção de dadores alternativos no transplante de células-tronco hematopoiéticas foram também alvo de análise nestas sessões.
Aprimeira sessão paralela de histocompatibilidade e imunogenética começou com uma intervenção sobre a utilização de ADN (ácido desoxirribonucleico) livre de células derivadas do dador para vigilância da lesão aloimune no transplante renal. “Foi apresentada uma ferramenta que o Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, está a analisar, podendo vir a substituir a avaliação da disfunção que atualmente é feita com a creatinina”, resume a Prof.ª Sandra Tafulo, supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do Centro de Sangue e da Transplantação do Porto.
Em seguida, falou-se do programa de doentes hiperimunizados que, segundo a coordenadora do Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética da Sociedade Portuguesa da Transplantação, “a possibilidade de vir a ser implementado está a ser discutida em Portugal”. “Embora o primeiro passo para criar este projeto caiba à Coordenação Nacional de Transplantação, é essencial a troca de dadores em todo o país porque, aumentando este pool, é possível transplantar alguns dos doentes com menos acesso
Ainda no âmbito da histocompatibilidade, Sandra Tafulo destacou a colaboração com a European Federation for Immunogenetics e com a American Society for Histocompatibility and Immunogenetics (ASHI). Em representação desta última esteve o Prof. Robert Liwski, que discorreu, numa das conferências do evento, sobre a experiência canadiana no desenvolvimento de protocolos para a testagem de anticorpos HLA. “Para criar um programa que permitisse partilhar órgãos a nível nacional de modo a melhorar a transplantação de doentes hipersensibilizados, foi necessário garantir a consistência, a otimização e a estandardização da testagem dos anticorpos HLA usada para compatibilizar os dadores e recetores”, começou por explicar o presidente da ASHI. Após a criação dos protocolos, e de acordo com o diretor médico do Laboratório HLA no Queen Elizabeth II Health Sciences Centre, em Halifax, “a testagem é rápida, consistente e fiável, com resultados muito bons, cumprindo o objetivo de não aumentar o tempo de isquemia”.
Questionado sobre como pode ser implementado este protocolo e como pode ser estabelecido o registo de doentes hipersensibilizados em Portugal, Robert Liwski refere que seria necessário “envolver todos os laboratórios na estandardização dos métodos HLA e colaborar com os clínicos para que, em conjunto, garantam que os testes HLA e o programa de doentes hipersensibilizados atendem às necessidades das equipas de transplante e dos candidatos a transplante renal”. “Outro aspeto fundamental é a avaliação dos progressos”, conclui. Diana Vicente
IDADE PEDIÁTRICA E CUIDADOS DA ENFERMAGEM EM ANÁLISE
Entrevistas e fotografias das sessões de histocompatibilidade e imunogenética, Pediatria e Enfermagem
taxa de perda de enxertos que é transversal a todos os órgãos”, reforça a nefrologista pediátrica no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Nesse sentido, lançou a ideia de se criar um núcleo “cuja missão passe por estabelecer modelos e ferramentas que possam ser aplicados nos diferentes Serviços para fazer a ponte entre as duas áreas, de modo a otimizar o prognóstico dos doentes”.
As sessões paralelas de Pediatria arrancaram com uma apresentação sobre doença cardiovascular na criança com transplante de órgão sólido. A este respeito, a Dr.ª Isabel Gonçalves chama a atenção para o facto de se tratarem de “crianças que vão crescer com medicações mais tóxicas, sendo necessário saber exatamente como deve ser feita a avaliação do risco cardiovascular”. “Embora cada órgão acarrete desafios específicos, todos têm um eixo comum: o risco inerente ao transplante numa criança em crescimento”, afirma a coordenadora da Unidade de Hepatologia e Transplantação Hepática Pediátrica no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e uma das organizadoras destas sessões. A discussão sobre modelos e ferramentas de avaliação para aplicar na transição de cuidados em transplante foi outro assunto abordado no âmbito da Pediatria. De acordo com a preletora, a Dr.ª Ana Rita Sandes, “o desafio foi reconhecer o problema ligado à mudança do acompanhamento pediátrico para a Medicina de adultos”. “Esta transição leva a uma enorme
Já nas sessões paralelas de Enfermagem, a incompatibilidade ABO foi um dos temas protagonistas. Segundo a Enf.ª Fernanda Moreno, membro da comissão organizadora destas sessões, “apesar dos problemas que pode causar, é uma opção para os doentes que deixam de ser elegíveis para transplante, e que por isso deve ser conhecida”. “Os resultados finais não são muito diferentes comparando com os dadores compatíveis e a qualidade de vida que se poderá ganhar pode ser uma mais-valia para um insuficiente renal”, afirma a enfermeira-chefe no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral.
Os cuidados paliativos, o follow-up do doente transplantado no futuro e as infeções multirresistentes também foram alvo de análise nestas sessões. Sobre a última temática, Fernanda Moreno recorda que são “situações que podem ser catastróficas, inclusive custando a vida dos doentes”.
Diana Vicente
XVI CONGRESSO PORTUGUÊS DE TRANSPL ANTAÇÃO
Alguns dos participantes nas sessões ligadas à histocompatibilidade e imunogenética: Dr. António Martinho, Prof. Jorge Malheiro, Dr.ª Rita Leal, Prof. Roberto Manfro, Dr. Luís Ramalhete, Prof.ª Sandra Tafulo e Prof. Jorge Neumann.
RANSFORMAR 18 | JUNHO 2023
Mesa-redonda de Pediatria: Dr.ª Ana Rita Sandes, Dr. Luís Bagulho, Dr.ª Joana Monteiro Dias, Dr.ª Isabel Gonçalves, Dr. João Gonçalves e Dr.ª Carla Marques (no púlpito).
TRANSPLANTE NA MULHER, INCLUINDO DURANTE A GRAVIDEZ
ADr.ª Roslyn Mannon foi a palestrante convidada para a sessão da Women in Transplantation (WIT), uma iniciativa da The Transplation Society. A docente de Medicina, Patologia e Microbiologia na University of Nebraska Medical Center, nos Estados Unidos, discorreu sobre a rejeição humoral crónica no transplante renal, “uma complicação comum relacionada com os anticorpos HLA específicos dos dadores e com uma ativação crónica e persistente das células endoteliais”.
Segundo a presidente da WIT, esta condição é observável nas biópsias, “através das glomerulopatias do transplante ou na inflamação capilar peritubular e, às vezes, na ativação do complemento”. Quanto ao tratamento, Roslyn Mannon lamenta o facto de ainda não existir uma opção eficaz. Relativamente às especificidades da mulher no âmbito da transplantação, a especialista salientou que tem surgido muita literatura ao longo dos anos sobre o impacto do sexo e do género, dando como exemplo “o papel do estrogénio na ativação da resposta imunológica nas mulheres”. “Por outro lado, as mulheres tendem a ser mais sensibilizadas e a ter mais HLA.”
Ainda a propósito das particularidades do sexo feminino, realizou-se uma sessão paralela sobre transplante e gravidez, que começou com a intervenção do Prof. Alexandre Hertig sobre a necessidade de modernizar a área da transplantação de órgãos sólidos durante a gravidez. De acordo com o nefrologista no Hôpital Tenon, em França, o principal desafio recai em “compreender porque existe um alto risco de pré-eclâmpsia neste grupo de doentes, sendo que mais de 30% desenvolve a complicação”.
Uma estratégia para responder a este desafio passa por “fazer uma melhor descrição dos fatores de risco, nomeadamente a exposição a tacrolimus, que é muito alta e detetável através do rácio sFlt-1/PlGF [sigla em inglês para tirosina quinase-1 solúvel do tipo fms/fator de crescimento da placenta]”. “Depois, é preciso olhar para a histologia da placenta”, acrescenta Alexandre Hertig. O preletor destacou ainda a importância da recolha de dados europeus que incluam marcadores que surgiram nos últimos 20 anos, como os citados anteriormente, o rácio de proteínas antigénicas e a fluxometria doppler. “A criação de um registo europeu permitiria partilhar os dados com várias instituições e países da Europa, analisá-los e estabelecer guidelines.” A sessão prosseguiu com a apresentação sobre os desafios no seguimento da grávida transplantada.
Diana Vicente
paralela “Transplante e gravidez”: Prof. Rui Alves (moderador), Prof. Alexandre Hertig, Dr.ª Maria Augusta Gaspar (moderadora) e Dr. António Braga.
COORDENAÇÃO E DOAÇÃO EM PARAGEM CARDIOCIRCULATÓRIA
Os registos português, brasileiro e europeu estiveram em análise numa das duas sessões paralelas de coordenação, promovidas pela Dr.ª Margarida Ivo. “Os dados portugueses são muito completos, particularmente a nível de órgãos sólidos, com um registo muitíssimo avançado que contempla todas as fases, desde a doação à biovigilância”, assegura a coordenadora nacional de Transplantação no Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). Contudo, Margarida Ivo admite que há espaço para melhorar, revelando que estão a ser “desenvolvidas áreas dedicadas aos tecidos e células”. Em curso está também uma melhoria da plataforma do registo português, que será mais “virado para o dador e para recetor”, abrangendo o dador vivo e as múltiplas modalidades de transplantes.
Na outra sessão paralela de coordenação do congresso, debateram-se os desafios do programa de doação em paragem cardiocirculatória (PCC), tendo sido vincada a necessidade de “aproveitar dadores com menor tempo de isquemia”. “O potencial da doação de órgãos pode aumentar num programa complementar de PCC controlada, mas é preciso fazer modificações na lei”, adverte Margarida Ivo. Nesta sessão, foi também apresentada a visão do coordenador hospitalar, com destaque para a “perspetiva das unidades de cuidados intensivos e dos intensivistas, que devem estar particularmente atentos em relação a potenciais dadores”.
A doação em PCC também foi discutida em duas sessões paralelas próprias. Na primeira, debateu-se a experiência nacional e o futuro
do transplante renal com este tipo de dador, que representa “cerca de 30% do total de transplantes em algumas unidades”, conforme adianta a Dr.ª Susana Sampaio, uma das promotoras destas sessões. “Os dados revelam que, quer ao nível de função renal, quer em termos de sobrevida de enxerto, a utilização de classe III de Maastricht pode ser melhor opção do que os dadores com critérios expandidos”, afirma a nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto.
Na segunda e última sessão paralela de dador em PCC foi discutida a implementação de um programa de colheita regional em doentes de classe III de Maastricht, tendo por base a realidade espanhola. “Trata-se de um programa menos exigente em termos de logística e que poderá ter melhores resultados, porque é mais programável”, defende Susana Sampaio. Por fim, refletiu-se sobre a utilização da máquina de perfusão para recondicionamento ex-vivo. “Esta tecnologia poderá ajudar na otimização do transplante, principalmente nos casos em que o tempo de isquemia poderá ser mais prolongado”, sublinha Susana Sampaio, concluindo que o “recondicionamento ex-vivo poderá trazer melhorias ao nível da qualidade dos órgãos”. Diana
Vicente
Comentários em vídeo e fotografias das sessões sobre transplantação no feminino e futuro do transplante com dador em paragem cardiocirculatória
CONGRESSO
XX
LUSO BRASILEIRO DE TRANSPLANTAÇÃO
Oradores e moderadores da sessão
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FORMAÇÃO EM HISTOCOMPATIBILIDADE E IMUNOGENÉTICA
Os métodos laboratoriais, a alocação dador-recetor, a interpretação de dados relacionados com anticorpos e a análise de casos clínicos foram alguns dos destaques da 2.ª edição do curso organizado pelo Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética (GHI) da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). O evento decorreu em outubro passado, em Lisboa.
Marta Carreiro
Apresidente da SPT, Dr.ª Cristina Jorge, que esteve presente na sessão de boas-vindas, reforça a importância desta reunião formativa. “A comunicação entre laboratório e clínica é muito importante para o bem de todos, nomeadamente dos doentes”, refere a também diretora do Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/HCC). “Ao fomentar o diálogo entre médicos e técnicos de laboratório altamente especializados na área da imunogenética, estes cursos permitem agilizar o contacto para eventuais esclarecimentos de dúvidas, que muitas vezes se impõem nos casos de doentes desafiantes”, acrescenta a presidente da SPT.
Cristina Jorge recorda ainda o sucesso da 1.ª edição deste curso, que decorreu em março de 2022. “Depois do evento realizado em Coimbra, recebemos muitos pedidos para efetuar uma reunião em Lisboa, de modo a chegar a outras pessoas, nomeadamente a mais internos, recém-especialistas e médicos com interesse na área da transplantação, bem como a especialistas laboratoriais de histocompatibilidade recém-formados.”
Após as boas-vindas, a reunião arrancou com uma apresentação do Prof. Sean Carey, da ThermoFisher Transplant Diagnostics, sobre a evolução da deteção de anticorpos HLA, desde o antigénio ao epítopo. Segundo a Prof.ª Sandra Tafulo, esta preleção foi de “extrema relevância”. “O Prof. Sean Carey trabalhou muitos anos no sistema de saúde britânico como clinical scientist, com uma vasta experiência em histocompatibilidade e imunogenética. Atualmente, é scientific affairs manager numa empresa que desenvolve reagentes que utilizamos como base do estudo da alossensibilização nos doentes em lista de espera para transplante e no pós-transplante”, salienta a coordenadora do GHI.
A presença de representantes da empresa fornecedora destes reagentes foi uma novidade que, na óptica de Sandra Tafulo, acrescentou valor ao evento. “Foi-nos explicada a origem destes reagentes, todo o processo de fabrico e as suas principais limitações. Nesse sentido, mostraram-nos como ultrapassá-las e como interpretar os resultados da melhor forma”, resume a também supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do Centro de Sangue e Transplantação (CST) do Porto. Em seguida, o Dr. António Martinho, responsável científico-técnico de transplantação no CST de Coimbra e vogal do GHI, discorreu sobre métodos laboratoriais de histocompatibilidade e imunogenética.
A 2.ª edição do Curso de Histocompatibilidade e Imunogenética contou com duas dezenas de participantes.
RANSFORMAR 20 | JUNHO 2023
Alguns dos intervenientes na 2.ª edição do Curso de Histocompatibilidade e Imunogenética: Dr. Fernando Caeiro, Dr.ª Suzana Calretas, Dr.ª Manuela Almeida, Prof.ª Sandra Tafulo, Prof. Sean Carey (primeiras cinco pessoas na 1.ª fila), Dr.ª Rita Leal, Dr. Luís Ramalhete (ao centro na 2.ª fila) e Dr. António Martinho (primeiro a contar da dta. na 1.ª fila).
ESTUDO LABORATORIAL E ALOCAÇÃO DADOR-RECETOR
Por sua vez, o Dr. Luís Ramalhete, diretor do Centro de Histocompatibilidade do Sul, do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, abordou o estudo laboratorial de dador falecido. Esta intervenção, conforme explica o orador, teve como principal objetivo “mostrar todos os passos da realização deste estudo, que inclui a realização de testes, como genotipagem HLA, cross-match e pesquisa de vírus no dador para evitar transmissão de doenças”.
Para Luís Ramalhete, esta apresentação foi importante na medida em que, “muitas vezes, os clínicos e os doentes não compreendem o porquê da demora por parte do laboratório”. “Ao mostrarmos como é feito o nosso trabalho, justificamos a necessidade do tempo que levamos, com o intuito de providenciar o transplante com a maior segurança possível”, reitera o vogal do GHI, que voltou a intervir para a apresentação de dois casos clínicos.
A alocação dador-recetor em transplante renal com dador falecido foi o foco da apresentação do Dr. Fernando Caeiro, que partilhou a perspetiva clínica. “A principal mensagem que tentei passar foi que, quanto melhor o emparelhamento, maior a probabilidade de sucesso do transplante”, afirma o nefrologista no CHULC/HCC.
Como tal, Fernando Caeiro clarificou todo o processo “desde a identificação de um potencial dador até à escolha do recetor”, enfatizando os itens que devem ser analisados e avaliados em cada um. Entre eles, o também vogal do GHI salienta o “binómio idade dador-recetor, o grau de compatibilidade e a oportunidade”. “É fundamental basear o pensamento tanto nas questões éticas quanto nas científicas, que têm de suportar as escolhas”, sustenta.
SÍNTESE DA PROF.ª SANDRA TAFULO
• “O laboratório de histocompatibilidade e imunogenética tem diferentes ensaios à sua disposição, todos com sensibilidades e especificidades diferentes, com vantagens e limitações. Nesse sentido, é necessário conhecer bem cada teste de forma a conseguir fazer uma análise integrada dos resultados.”
• “Todos os ensaios devem ser interpretados em conjunto com a história da alossensibilização do doente, procurando saber se existiram eventos sensibilizantes prévios ou não.”
• “Deve existir sempre um diálogo direto entre o laboratório e a clínica para que a análise de risco imunológico seja o mais correta possível.”
que podemos lidar com ela quando ocorre num doente transplantado ao fígado”, introduz a internista no CHUC.
Suzana Calretas explanou o caso de uma “transplantada aos 6 anos de idade devido a colestase familiar intra-hepática tipo 2 [PFIC2], que, aos 20 anos, apresentou disfunção do enxerto”. De notar que era uma doente com “problemas de compliance no passado, o que pode ter contribuído para a disfunção”. “A doente teve uma recidiva da PFIC2 e, portanto, procurámos perceber o que estava relacionado com a imunidade e o que estava relacionado com a doença de base”, acrescenta. “Após plasmaferese e administração de rituximab sem sucesso, a doente acabou por ser retransplantada”, conclui.
HISTÓRIA CLÍNICA E ANTICORPOS HLA
O
EVIDÊNCIA SUSTENTADA POR CASOS CLÍNICOS
O curso prosseguiu com diversas apresentações de casos clínicos, cada um ilustrativo de diferentes situações em que a comunicação entre técnicos de laboratório e médicos foi decisiva. Um dos casos foi apresentado pela Dr.ª Marisa Roldão, enquanto interna de Nefrologia estagiária de transplantação no CHULC, conjuntamente com Luís Ramalhete. “Este foi um caso desafiante em várias vertentes: o dador tinha diabetes mellitus tipo 1, o recetor era positivo para o vírus da imunodeficiência humana [VIH] e, do ponto de vista de histocompatibilidade HLA, surgiram dúvidas na interpretação dos testes realizados”, recorda a Dr.ª Rita Leal, vogal do GHI. Apesar das adversidades, segundo a também nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), “a estreita colaboração entre o laboratório de histocompatibilidade e os médicos assistentes culminou num transplante bem-sucedido”. “Ao fim de dois anos pós-transplante, o doente mantém-se com uma creatinina estável. Este caso alertou-nos para os vários aspetos a que devemos estar atentos num transplante complexo, não só ao nível da histocompatibilidade HLA, mas também no que diz respeito às comorbilidades do recetor, nomeadamente as implicações clínicas e interações medicamentosas em recetores VIH positivos.”
Por seu turno, o Dr. António Martinho e a Dr.ª Suzana Calretas apresentaram um caso clínico que serviu de mote para falar da rejeição humoral no transplante hepático. “Esta é uma situação que ocorre com mais frequência no caso dos transplantados renais, pelo que é importante mostrar como é
Reportagem multimédia da 2.ª edição do Curso de Histocompatibilidade e Imunogenética
Ficou à responsabilidade da Dr.ª Manuela Almeida, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, em conjunto com a Prof.ª Sandra Tafulo, falar sobre a importância de integrar a história clínica com a análise de anticorpos HLA na avaliação do risco imunológico pré-transplante. Desta forma, as preletoras trouxeram um caso de uma mãe que iria o doar o rim ao filho”. “O resultado da histocompatibilidade mostrava um teste com cross-match positivo e com anticorpo positivo do filho contra a mãe, num doente que não tinha tido eventos sensibilizantes”, contextualiza Manuela Almeida.
Perante a estranheza do resultado, a nefrologista foi contactada pelo laboratório, que informou que iriam investigar a situação, porque o resultado não era plausível. “Na origem da insuficiência renal, estava a existência de doença de Crohn, uma condição por vezes associada à presença de anticorpos que podem levar a falsos positivos neste teste”, explica Manuela Almeida, acrescentado que, “por outro lado, o doente estava a administrar infliximab, um fármaco que poderá, eventualmente, alterar o teste em si.” Em suma, a nefrologista conclui que “a comunicação com o laboratório foi essencial para se poder avançar com o transplante”. “Se não tivéssemos optado por este caminho, teríamos de ter procurado um transplante cruzado ou não chegaríamos sequer a avançar para a transplantação.”
ACONTECEU...
curso terminou com a apresentação do Prof. Sean Carey sobre interpretação de dados dos anticorpos, balanço de risco e oportunidade.
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ROTA NOTÁVEL NA NEFROLOGIA E NA TRANSPLANTAÇÃO
Nas linhas que se seguem, contamos-lhe o percurso do Prof. Fernando Nolasco no Serviço Nacional de Saúde, do qual se aposentou em julho de 2022, ao fim de 45 anos no Hospital Curry Cabral, onde assumiu funções de responsabilidade crescente, desde interno a diretor do Serviço de Nefrologia e da valência de transplantação. Pelo caminho, foi também presidente do respetivo Conselho de Administração e diretor clínico interino. Paralelamente, percorreu uma carreira académica notável, sendo hoje professor catedrático jubilado. Foi ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia. O escasso tempo livre sempre o dedicou à família e a alimentar outra paixão que herdou do pai, também médico: a prática da vela.
Marta Carreiro
que diminuía com o avançar dos estudos”, recorda. Tendo realizado a maior parte do ensino no Hospital de Santa Maria, em 1974, já no 5.º ano do curso, mudou para os Hospitais Civis de Lisboa. “Foi o primeiro ano em que a FMUL, cujo ensino pré-graduado estava atribuído ao Hospital de Santa Maria, optou por distribuir alguns dos seus alunos por outros hospitais”, esclarece.
Fernando Nolasco nasceu em julho de 1952, em Lisboa, cidade da qual nunca se desvinculou. “Sou um alfacinha de gema”, reforça o nefrologista, que desde cedo percebeu a sua inclinação para a área da Medicina. “O meu pai era oftalmologista, o que pode ter influenciado, de alguma forma, a minha escolha inicial: ser médico! Contudo, recordo-me de ter, desde muito novo, uma grande preferência pelas ciências. No final do quinto ano do liceu, realizei testes psicotécnicos que confirmaram maiores aptidões para as áreas da Medicina e da Matemática”, conta.
Entre as diversas vertentes que o fascinam na profissão médica, Fernando Nolasco salienta o contacto humano. “Criar empatia com os doentes e procurar formas de estabelecer proximidade para melhor os ajudar são aspetos determinantes para o desfecho de cada caso. A Medicina implica uma capacidade de contacto humano, sem a qual é muito difícil ser-se bom médico”, defende.
Fernando Nolasco ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) em 1969. Nessa altura, entravam cerca de 2000 alunos por ano, mas “apenas 500 transitavam para o segundo ano, um número
Em 1975, Fernando Nolasco iniciou o internato geral no Hospital de São José e no Hospital de Santo António dos Capuchos, seguindo-se o internato da especialidade no Hospital Curry Cabral (HCC), onde permaneceu até à sua aposentação do Serviço Nacional de Saúde, em julho de 2022. “Assisti a todos os processos de separação e agregação dos Hospitais Civis de Lisboa, nomeadamente do HCC, até à sua integração no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central”, afirma.
PRIMEIROS PASSOS NA NEFROLOGIA E NA INVESTIGAÇÃO
Não foi por mero acaso que a Nefrologia se apresentou a Fernando Nolasco como o caminho a seguir, uma vez que é uma especialidade com alguma ligação à Imunologia, área pela qual sempre nutriu um gosto especial. “Por outro lado, tive a sorte de trabalhar com várias pessoas que me influenciaram na escolha da Nefrologia, como o Prof. Adolfo Coelho e o Dr. Alberto Marques da Costa ainda durante o curso de Medicina”, acrescenta.
Em 1977, Fernando Nolasco cumpriu o Serviço Médico à Periferia, na Ilha do Pico, nos Açores, onde encontrou uma realidade muito diferente da que lhe era familiar. Por exemplo, os exames laboratoriais realizavam-se somente uma vez por semana. “Apesar de nos termos acabado de formar, na maioria das regiões da ilha, éramos a entidade médica mais diferenciada. Foi uma experiência muito enriquecedora, que nos ensinou a valorizar os aspetos clínicos perante as limitações técnicas existentes”, resume.
Os dois últimos anos do internato de especialidade (1983 e 1984) de Fernando Nolasco foram passados no Guy’s Hospital, em Londres, ao abrigo de um estágio para obter experiência em procedimentos na altura inexistentes em Portugal, tanto em Nefrologia como no âmbito da transplantação renal, graças às bolsas de estudo que recebeu do British Council e da Fundação Calouste Gulbenkian. “Tive oportunidade de trabalhar com o Prof. Stewart Cameron, uma pessoa extremamente inteligente e um dos fundadores da Nefrologia atual. Muito do que mais tarde fiz na vida dependeu dessa experiência.”
Foi durante esse estágio que Fernando Nolasco iniciou a sua tese de doutoramento e realizou os primeiros trabalhos de investigação. No ano de 1986, em resultado de “um trabalho árduo de análise, recolha de dados, leitura e escrita”, o nefrologista publicou o artigo “Adult-onset
ETRATO 22 | JUNHO 2023
Fernando Nolasco foi o presidente do XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, que decorreu no passado mês de dezembro. Na sessão de abertura, que contou com a presença do ministro da Saúde, foi um dos sócios homenageados pela Sociedade Portuguesa de Transplantação.
PERCURSO FIEL A UMA INSTITUIÇÃO
• 1977-1984: internato de Nefrologia no Hospital Curry Cabral (HCC);
• 1984-1994: assistente hospitalar eventual e assistente hospitalar de Nefrologia;
• 1994-2022: chefe do Serviço de Nefrologia e assistente graduado sénior;
• 1997-2001: presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC);
• 2011-2012: diretor clínico interino;
• 2010-2022: diretor do Serviço de Nefrologia;
• 2010-2022: diretor da Unidade de Transplantação Renal;
• 2016-2022: membro da Comissão de Ética do CHULC;
• 2018-2022: diretor de toda a área de Medicina do CHULC;
• 2019-2022: diretor de toda a valência de transplantação do HCC.
minimal change nephrotic syndrome: a long-term follow-up” , na revista Kidney International, que ainda hoje é citado em artigos de outros autores, continuando a fazer parte da bibliografia fundamental da Nefrologia.
A investigação acabou por ser uma área sempre presente na sua vida, sendo que o caminho inicial que seguiu nesse âmbito foi-lhe sugerido por Stewart Cameron: estudar a relação das lesões renais com a Imunologia, com recorrendo a anticorpos monoclonais para identificação dos tipos de células presentes nos tecidos renais em diversas patologias do rim e da transplantação.
45 ANOS NO HCC E PAIXÃO PELA TRANSPLANTAÇÃO
De regresso ao HCC, Fernando Nolasco acabou por percorrer todos as valências da Nefrologia, tendo também colaborado na implementação da atividade de transplantação, que se iniciou em 1989, cinco anos após a chegada do cirurgião Dr. João Rodrigues Pena àquele hospital. A par disso, investiu na carreira de docente universitário, a começar pelo doutoramento, que concluiu em 1987, passando depois pelas categorias de professor auxiliar, agregado, associado e catedrático. Atualmente, é professor catedrático jubilado da NOVA Medical School/Faculdade de Ciências Médicas, em Lisboa.
Refletindo sobre o seu percurso profissional, Fernando Nolasco manifesta o orgulho de “ter contribuído para a formação e a diferenciação de muitos nefrologistas”. Além disso, dos 45 anos de dedicação ao HCC, durante os quais assumiu diferentes funções de responsabilidade crescente, destaca a “contribuição para a melhoria das infraestruturas do hospital, nomeadamente a criação de novas áreas de internamento, um excelente bloco operatório e uma unidade de cuidados intensivos, que permitiram melhorar significativamente o nível de cuidados prestados”. Fernando Nolasco admite uma paixão particular pela área da transplantação renal, que o levou a assumir, nos últimos três anos da sua carreira hospitalar, a direção da Transplantação no HCC. “Nos últimos 30 anos, esta atividade representou uma mudança de paradigma em toda a Medicina, com uma enorme melhoria na qualidade e na esperança de vida dos doentes transplantados. A taxa de sucesso da generalidade dos transplantes ronda os 80%, ultrapassando os 90% no transplante
renal, que se pode cifrar acima dos 95% quando o rim é proveniente de um dador vivo. Muitos dos avanços nesta área resultam da melhoria do conhecimento sobre os fenómenos imunitários e biológicos subjacentes à transplantação”, esclarece.
Por outro lado, o nefrologista salienta o contributo da indústria farmacêutica para o desenvolvimento da transplantação de órgãos, sobretudo pela disponibilização de novos fármacos, que permitem melhorar significativamente a resposta dos doentes aos enxertos”.
APOSENTAÇÃO ATIVA E AGRADECIMENTOS
Ao longo da sua carreira, Fernando Nolasco dedicou também tempo ao associativismo, tendo presidido à Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN) durante seis anos, entre 2010 e 2015. Atualmente, continua a ser sócio da SPN, da Sociedade Portuguesa de Transplantação, da European Renal Association, da International Society of Nephrology, da American Society of Nephrology, da American Society of Transplantation e da Transplantation Society.
Hoje em dia, apesar da aposentação do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Nolasco continua a exercer Nefrologia. Também permanece envolvido, como coordenador, em vários ensaios clínicos que estão a ser desenvolvidos em Portugal, até porque a sua curiosidade pelos fenómenos biológicos não esmoreceu.
Fernando Nolasco destaca ainda o apoio com que sempre contou para atingir os objetivos que foi definindo para a sua carreira. “Tudo o que eu consegui fazer foi devido ao esforço pessoal e ao apoio familiar que tive, em particular da minha mulher e dos meus filhos.” Em jeito de conclusão, deixa um agradecimento especial a todos os colegas com quem trabalhou ao longo dos anos, nomeadamente no Serviço de Nefrologia e na Unidade de Transplantação Renal do CHULC, bem como na Unidade de Transplantação do Hospital da Cruz Vermelha.
Momentos em vídeo da entrevista de retrospetiva de vida e carreira com o Prof. Fernando Nolasco
A FACETA DE VELEJADOR
Estimulado pelo pai, Fernando Nolasco começou a praticar vela ainda na infância. “O meu pai tinha um barco à vela, pelo que, com 11 anos de idade, aprendi a andar de barco no rio Tejo”, recorda. Aos 20 anos, foi convidado pela Associação Naval de Lisboa para dar aulas de vela. O nefrologista reconhece que a prática de vela também lhe proporcionou ensinamentos importantes para a vida. “Temos de conseguir perceber os desafios que a rota nos impõe, criando a capacidade de os ultrapassar. Deste modo, aprendi a respeitar situações de perigo e a antecipar problemas”, remata.
Fernando Nolasco acompanhado pela equipa que constituía o Serviço de Nefrologia do CHULC/HCC em fevereiro de 2017.
É no verão que Fernando Nolasco dedica mais tempo à prática de vela. Nesta fotografia, está ao leme do barco de um amigo, no Algarve.
DR
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