N.º 13 | Ano 8 | Fevereiro de 2020 | Semestral | € 0,01
Revista oficial da Sociedade Portuguesa de Transplantação
o ã ç a t n la p s n a r t e r b o Reflexão nacional s e d a id n u im e s o ã g r multió
O estado da arte da transplantação multiórgãos em Portugal e no mundo, os desafios colocados pela complexidade imunológica e o futuro do transplante de dadores em paragem cardiocirculatória foram os temas aglutinadores da Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) 2019, que decorreu em Braga, nos dias 29 e 30 de novembro. O encontro incluiu ainda a apresentação de casos clínicos e a divulgação dos dados mais recentes dos registos da SPT relativamente à transplantação renal, cardíaca, pulmonar e renopancreática Pág.10-13
A Dr.ª Ana Pires Silva, assessora jurídica do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, explica os passos dados desde março de 2015, quando Portugal assinou a Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos, até setembro de 2019, quando foi publicado, em Diário da República, o Decreto-lei que criminaliza todas as atividades de transplantação ilegal Pág.6
O Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra é uma referência a nível nacional, quer na colheita quer na transplantação de córneas. O caminho de sucesso começou a ser trilhado há 43 anos e, desde então, esta unidade tem acompanhado a evolução científica, aumentando a sua produção de ano para ano, ao mesmo tempo que assegura a qualidade dos tecidos Pág.8
SUMÁRIO APONTAMENTOS 5. Antevisão do XV Congresso Português/XIX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação (5 a 7 de novembro de 2020, em Cascais) VOZ ATIVA 6. A Dr.ª Ana Pires Silva, assessora jurídica do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, descreve os passos dados em Portugal para criminalizar o tráfico de órgãos humanos IN VIVO 8. Reportagem no Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que já existe desde 1977 TransFORMAR 10. Balanço da Reunião Nacional da SPT 2019, que se centrou na temática da transplantação multiórgãos e imunidade 14. Destaques da participação portuguesa no XVIII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, que decorreu no Brasil, no passado mês de outubro 16. Dois portugueses entre os 14 peritos que integraram o comité de validação dos primeiros consensos de transplante pancreático 17. O que esperar da sessão dedicada ao transplante de rim, que se realizará no dia 27 de março, no âmbito do Encontro Renal 2020 EM ANÁLISE 18. Evolução da transplantação renal e renopancreática até 2018 e pulmonar até 2019
Alcançar as melhorias há muito desejadas em 2020?
A
Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) sempre teve como grande objetivo a congregação de todas as especialidades relacionadas com a atividade de transplantação, dado que só com o contributo de todos se conseguem mais e melhores resultados. Em Portugal, os bons resultados são inequívocos, tanto em número como na qualidade dos serviços prestados, mas, no dia-a-dia, todos nos deparamos com obstáculos. Efetivamente, estamos bem cientes de que os problemas existem e têm sido motivo de alerta por parte da SPT, levando à realização de fóruns e reuniões nacionais. Falamos, claro, da Lei da Alocação Renal, da falta de um programa para doentes hipersensibilizados, dos escassos recursos humanos nas equipas de transplantação, da desigual distribuição de incentivos, das dificuldades dos registos e dos problemas específicos do transplante de cada órgão. Tendo em atenção algumas destas matérias, a SPT organizou a sua Reunião Nacional de 2019 nos dias 29 e 30 de novembro, em Braga, com o mote «Transplante multiórgão e imunidade complexa». Este encontro permitiu a ampla discussão e consideramos que foi um sucesso, essencialmente em duas vertentes. Uma delas foi a participação de quase todas as unidades de transplantação nacionais, estando representadas as equipas de todas as áreas de transplantação de órgãos sólidos e mesmo, pela primeira vez neste tipo de reuniões, o transplante de tecidos marcou presença, através da apresentação dedicada aos aloenxertos ósseos. A segunda vertente a assinalar foi a participação universal das unidades no envio de casos clínicos, permitindo que colegas mais jovens apresentassem os casos e participassem ativamente na reunião. A discussão e a troca de ideias entre as unidades foi, para a Direção da SPT, muito gratificante e deu-nos força para continuarmos a promover este modelo de reuniões. Mais uma vez, ficou patente nesta reunião a opinião unânime de que são necessárias mudanças e que a colaboração do recente Grupo de Estudos de Histocompatibilidade e Imunogenética será um passo em frente para estabelecer as bases dessas alterações.
O XVIII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, realizado entre 16 e 19 de outubro, em Campinas, no Brasil, manteve a participação ativa dos especialistas portugueses. Foi também motivo de orgulho para a SPT o convite para participar ativamente na reunião do College of European National Transplant Societies (CENTS), no âmbito do último Congresso da European Society for Organ Transplantation (ESOT), em Copenhaga, no passado mês de setembro. Esperamos que esta possa ser mais uma ponte de colaboração e de promoção da SPT a nível internacional. O ano de 2020 não se afigura fácil para a transplantação e para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas esperamos poder contribuir de forma positiva para ambos, continuando a assinalar os problemas e a necessidade de mudanças, transmitindo-os formalmente à Tutela. Nesse sentido, esperamos que o Fórum Aberto de Transplantação deste ano contribua para as melhorias há muito ambicionadas. Desejamos um ótimo 2020 para todos e que seja um ano de viragem na transplantação em Portugal!
Susana Sampaio Presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação
ÓRGÃOS SOCIAIS DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE TRANSPLANTAÇÃO (2019-2022) DIREÇÃO Presidente: Susana Sampaio (Porto) Vice-presidente: Jorge Daniel (Porto) Tesoureira: Cristina Jorge (Lisboa) Vogais: Alice Santana (Lisboa), David Prieto, Lídia Santos (Coimbra) e João Santos Coelho (Lisboa)
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ASSEMBLEIA-GERAL Presidente: La Salete Martins (Porto) Vogais: Rui Filipe (Castelo Branco) e Manuela Almeida (Porto) CONSELHO FISCAL Presidente: Aníbal Ferreira (Lisboa) Vogais: Inês Ferreira e Carla Damas (Porto)
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APONTAMENTOS
CONGRESSO PORTUGUÊS E LUSO-BRASILEIRO DE TRANSPLANTAÇÃO 2020
O
XV Congresso Português de Transplantação /XIX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação vai realizar-se entre os dias 5 e 7 do próximo mês de novembro, no Centro de Congressos do Hotel Cascais Miragem. Uma das novidades no programa do evento, que está em fase de preparação, é o maior destaque às comunicações orais. «Vamos privilegiar muito a participação, quer portuguesa quer brasileira, na apresentação de trabalhos. Pretendemos ter cerca de 200 comunicações orais, o que é um número significativo comparativamente a anos anteriores», afirma o Prof. Fernando Nolasco, presidente do Congresso e diretor do Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/ HCC). O principal objetivo desta aposta é «dinamizar e valorizar o trabalho das várias unidades de transplantação, fomentando a troca de ideias e a partilha de experiências». Além disso, a comissão organizadora pretende introduzir comunicações orais no final de conferências com as mesmas temáticas. O prazo-limite para a submissão de resumos é o dia 15 de junho. Quanto aos temas em análise, o presidente do XV Congresso Português/XIX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação adianta que o programa científico vai abordar o transplante dos vários órgãos, a imunologia, o transplante em idade pediátrica, a histocompatibiliXV CONGRES SO PORTUGUÊS DE TRANSPLANTA ÇÃO XIX CONGRES LUSO BRAS SO ILE TRANSPLANTAIRO DE ÇÃO
15/JUNHO/20
5 A 7 DE NOV
EMBRO DE 2020
Centro de Cong ressos do Hotel Casc ais Miragem
20
DATA LIMITE DE SUBMISSÃO DE RESUMOS www.spt.pt
COMISSÃO ORGANIZAD ORA
Presidente do Congresso Fernando Nolasco Vice-Presiden tes Aníbal Ferreira Cristina Jorge
SECRETARIADO Norahsevents Trav. Álvaro Castelões , nº 79, 2º andar - sala 4450-044 Matosinho 9 s Tm: +351 933 205 eventos@norahseven201 www.norahsevents.p ts.pt t
SOCIEDADE PORTUG DE TRANSPLANTAÇÃUESA O Avª de Berna, nº 30-3º F 1050-052 Lisboa
Tm: +351 933 205 e-mail: secretaria 201 do@spt.pt www.spt.pt
dade, o transplante de dadores em paragem cardiocirculatória, entre outros assuntos. Para cada uma destas áreas foram constituídas subcomissões, «que estão em fase preparatória das propostas das respetivas temáticas». O programa científico incluirá também um espaço dedicado à Enfermagem, bem como várias sessões plenárias e simpósios da indústria farmacêutica. Sublinhando a importância da harmonização temática no programa científico, Fernando Nolasco refere que «o grande foco desta edição será a apresentação das experiências portuguesa e brasileira, numa partilha de conhecimentos que visa a melhoria dos resultados e o crescimento da atividade de transplantação em ambos os países». Relativamente aos palestrantes, o presidente do Congresso deixa a garantia da «participação de especialistas internacionais, mas grande parte do programa científico será assegurada pela “prata da casa”».
ATUALIZAÇÃO EM TRANSPLANTE PULMONAR Inserido no XXVII Congresso de Pneumologia do Norte, que vai decorrer entre 5 e 7 do próximo mês de março, no Sheraton Porto Hotel, o Curso de Transplante Pulmonar, que se realizará no último dia do evento, pretende proporcionar uma atualização de conhecimentos para pneumologistas e cirurgiões, mas também para médicos de outras especialidades, nomeadamente Medicina Interna e Medicina Geral e Familiar. «Os principais destinatários deste curso são os médicos que trabalham ou pretendem trabalhar no âmbito do transplante pulmonar e queiram estar a par das atualizações nesta área e dos principais desafios futuros», refere a Dr.ª Carla Damas, coorganizadora do curso e coordenadora da Consulta de Transplante Pulmonar do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto. Do programa do curso, que tem como formadores alguns dos responsáveis pela elaboração das guidelines europeias para o transplante pulmonar e referências nacionais na área da transplantação, Carla Damas destaca as temáticas das complicações infeciosas e da disfunção do enxerto. «O que mais nos preocupa na transplantação pulmonar é a infeção e a rejeição do enxerto, portanto, estes são os temas mais chamativos do curso», reitera a pneumologista.
A disfunção crónica do enxerto será abordada pelo Prof. Andrew Fisher, diretor de Medicina Clínica e docente de Transplantação Pulmonar na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, ao passo que a disfunção aguda será apresentada pela Dr.ª Luísa Semedo, pneumologista no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta. Quanto às complicações infeciosas, os tópicos profilaxia, tratamento e colonização antes e após o transplante de pulmão serão apresentados, respetivamente, pela Prof.ª Piedad Usseti (pneumologista no Hospital Universitário Puerta de Hierro – Majadahonda, em Madrid), pelo Prof. Robin Vos (pneumologista no Hospital Universitário de Leuven) e pelo Prof. Jens Gottlieb (do Departamento de Medicina Respiratória da Hannover Medical School, na Alemanha). Outros temas em análise nesta formação serão as novidades no processo que vai da doação à cirurgia; o pós-transplante precoce, com a abordagem de tópicos como a terapia de indução e disfunção primária do enxerto, a oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) e as complicações vasculares e da via área; e os fatores de sobrevida, nomeadamente a imunossupressão, a doença oncológica e as complicações metabólicas.
OZ ATIVA
«SE OS MÉDICOS NÃO REPORTAREM CASOS SUSPEITOS, O TRÁFICO DE ÓRGÃOS CONTINUARÁ IMPUNE»
Em entrevista à TransMissão, a Dr.ª Ana Pires Silva, assessora jurídica do Conselho Diretivo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), apresenta uma retrospetiva do processo que levou Portugal a assinar a Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos, em 2015, até ao momento em que as disposições dessa convenção foram publicadas em Diário da República, em setembro de 2019. Hoje, garante a jurista, «Portugal é considerado um país inspirador, servindo de modelo em termos de boas práticas». Nesta entrevista, Ana Pires Silva traça algumas das prioridades no combate ao tráfico de órgãos, reservando aos médicos um papel essencial na denúncia de casos suspeitos. Luís Garcia e Pedro Bastos Reis
O que esteve na origem do plano de ação de Portugal para prevenção e combate ao tráfico de órgãos? A Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos, que Portugal assinou e ratificou em 2015. Consequentemente, a criminalização de todas as atividades que constituam tráfico de órgãos humanos está em vigor no ordenamento jurídico português desde 1 de março de 2019 e o respetivo Decreto-lei foi publicado em Diário da República no dia 6 de setembro de 2019. Para a sua implementação foi criado, sob proposta do IPST, um grupo de trabalho interministerial entre os Ministérios da Saúde e da Justiça. O objetivo foi congregar esforços com vista a dar uma resposta integrada às obrigações impostas pela Convenção. Quem integrou esse grupo de trabalho? De cariz multidisciplinar, o grupo de trabalho foi composto por vários profissionais das áreas da Justiça e da Saúde, inclusive da Ordem dos Médicos, do Instituto Português do Sangue e da Transplantação e da Sociedade Portuguesa de Transplantação. A sua missão consistiu na elaboração de todas as propostas legislativas necessárias à incorporação da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos na lei portuguesa. Elaborar esta legislação requer conhecimentos especializados, por isso, foi muito importante contar com a colaboração de especialistas na área da transplantação, até para dar a conhecer ao grupo de trabalho as dificuldades que os médicos sentem quando se confrontam com suspeitas de tráfico de órgãos. Foi muito importante ter esse feedback. 6 | FEVEREIRO 2020
Quais são os principais objetivos da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos? Pôr termo à impunidade do turismo da transplantação e a uma certa tendência que existe para fazer «vista grossa» ou tolerar a compra e venda de rins. A Convenção oferece uma resposta universal, harmonizada e punitiva contra o comércio de órgãos. O seu principal objetivo é que todos os países falem a uma só voz e tenham a mesma legislação contra este crime, o que é essencial para que a investigação criminal e a condenação dos seus perpetradores possam ser feitas. Seria desejável que todos os países do mundo assinassem e ratificassem esta Convenção. Um dos grandes problemas no combate a este crime é que, em quase todos os países do mundo, é proibido o comércio de órgãos, mas não existem sanções penais. Nos países aderentes à Convenção, o tráfico de órgãos passa a ser um crime punível com pena de prisão, pelo que é obrigatório comunicar os casos suspeitos ou confirmados às autoridades judiciárias. Os profissionais de saúde têm um papel fundamental para que, com base nas informações fornecidas pelos doentes que se submeteram a um transplante ilícito no estrangeiro, por exemplo, seja possível desencadear a investigação criminal das redes de tráfico de órgãos humanos. A competência extraterritorial é um dos mais importantes aspetos da Convenção contra o Tráfico de Órgãos Humanos, pois os países aderentes passam a ter jurisdição sobre atos praticados fora do seu território. Esta é uma solução para o problema da impunidade do turismo de transplantação, dado que, para a perseguição criminal do autor, será suficiente que o ato seja ilícito no seu Estado de nacionalidade ou residência. O que destaca das medidas apresentadas pelo grupo de trabalho criado em Portugal para cumprimento da Convenção? Além da proposta de lei para a criminalização de todas as práticas ilícitas de transplante, sublinho a definição de um protocolo de conduta para os profissionais de saúde da área da transplantação, que descreve as ações que devem ser adotadas perante casos suspeitos ou confirmados de turismo de transplantação. O protocolo inclui um mecanismo de comunicação destes casos às autoridades competentes para efeitos de investigação criminal, segundo o qual os médicos devem reportar os casos suspeitos ao diretor clínico do seu hospital, que, por sua vez, os deve comunicar ao Ministério Público. Este protocolo de conduta fornece ainda uma lista de indicadores de casos suspeitos de doentes que possam ter recebido um transplante ilícito fora do país, como a inexistência de relatório médico ou o relatório ser incompleto. O grupo de trabalho também elaborou uma proposta de alteração ao Código Deontológico dos Médicos, para que passe a incluir a escusa do sigilo profissional em relação à denúncia de casos suspeitos ou confirmados de tráfico de órgãos, cuja publicação se aguarda por parte da Ordem dos Médicos. Esta proposta tem como objetivo assegurar que todos os médicos, incluindo os que exercem a sua atividade no setor privado, tenham o mesmo dever de denunciar estes casos, bem como assegurar que não se verifiquem situações de dúvida relativamente ao dever de denúncia aquando de uma suspeita de transplante ilícito. Porque é importante que se concretize essa alteração no Código Deontológico dos Médicos? O que se pretende é que os médicos tenham os seus deveres éticos e legais bem definidos, e que fique claro que a denúncia das suspeitas de tráfico de órgãos não envolverá quebra dos seus deveres profissionais e, por conseguinte, responsabilidade disciplinar ou criminal. Se os médicos não reportarem os casos suspeitos, estes não serão investigados do ponto de vista criminal e o tráfico de órgãos continuará a ser um crime impune, pois é
difícil identificar as redes de tráfico. O foco é punir os perpetradores do negócio de órgãos, que muitas vezes está associado ao tráfico de seres humanos. O levantamento do sigilo médico permitirá que as autoridades judiciárias (Polícia Judiciária e Ministério Público) possam desencadear uma investigação criminal com base nos relatórios ou informações relativos a doentes que se submeteram a um transplante ilícito no estrangeiro. Ninguém melhor do que o próprio doente para fornecer estas informações, pois esteve em contacto com a equipa cirúrgica ligada à rede de tráfico de órgãos. Tratando-se de um crime transnacional, a investigação criminal requer também cooperação com as autoridades congéneres do país onde foi realizado o transplante. Como tem sido avaliado, a nível internacional, o trabalho de Portugal no combate ao tráfico de órgãos humanos? O trabalho desenvolvido nos últimos dois anos pelo IPST nesta área granjeou a Portugal um profundo reconhecimento a nível internacional, sobretudo por parte do Conselho da Europa. Atualmente, o nosso país assume um papel inspirador, servindo de modelo em termos de boas práticas para a implementação bem-sucedida das diretivas da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos. Enquanto ponto focal para o tráfico de órgãos em Portugal, o IPST participou, com papel formativo, no terceiro workshop da rede internacional de pontos focais para os crimes relacionados com a transplantação, que se realizou nos dias 27 e 28 de junho de 2019, em Estrasburgo. Também a convite do Conselho da Europa, representámos o Comité Europeu para a Transplantação de Órgãos (CD-P-TO) numa conferência sobre bioética realizada em 2018, na Bielorrússia, na qual apresentámos a estratégia e o trabalho desenvolvido no âmbito do combate ao tráfico de órgãos. Outras instituições europeias têm vindo a reconhecer o nosso trabalho, como é o caso das Sociedades Suíça e Eslovena de Transplantação, bem como da Sociedade Europeia de Transplantação, em cujos congressos participámos, no ano passado.
LEI PORTUGUESA JÁ CRIMINALIZA TRÁFICO DE ÓRGÃOS No dia 6 de setembro de 2019, o Código Penal português acolheu as disposições da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos. A nova legislação criminaliza distintas ações que constituem tráfico de órgãos, nomeadamente «quem extrair órgão humano de dador vivo sem o seu consentimento livre, informado e específico; de dador falecido que tenha validamente manifestado indisponibilidade para a dádiva; ou quando, em troca da extração, se prometer ou der ao dador vivo, ou a terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial». Consoante a sua gravidade, este crime é punível com pena de prisão de três a dez anos. Além disso, nota Ana Pires Silva, «consagra-se a aplicabilidade da lei penal portuguesa a atos cometidos fora do território nacional», ou seja, «pode-se julgar e condenar em Portugal alguém que tenha praticado colheita de órgão ou transplante ilícito no estrangeiro». Neste momento, o IPST aguarda a publicação em Diário da República das alterações ao Código Deontológico da Ordem dos Médicos, para proceder à divulgação do protocolo de atuação para os profissionais de saúde.
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VIVO
COLHEITA E TRANSPLANTAÇÃO DE CÓRNEA COM QUALIDADE E EXCELÊNCIA O Banco de Olhos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) é uma referência a nível nacional, quer na colheita quer na distribuição de córneas. O caminho de sucesso começou a ser trilhado há 43 anos e, desde então, a equipa atualmente coordenada pela Prof.ª Maria João Quadrado tem acompanhado a evolução científica, aumentando o número de colheitas e de transplantes de ano para ano, ao mesmo tempo que assegura a qualidade dos tecidos. A TransMissão foi conhecer as instalações e o modo de funcionamento desta unidade, ouvindo as reflexões dos seus profissionais sobre os desafios atuais e futuros. Pedro Bastos Reis
A
PARTE DOS RECURSOS HUMANOS QUE COLABORAM COM O BANCO DE OLHOS DO CHUC: Na fila da frente – Enf.ª Natalina Condinho (responsável de enfermagem pelo internamento do Serviço de Oftalmologia), Enf.ª Huguete Garcia (responsável pela equipa de enfermagem do Banco de Olhos ), Prof.ª Maria João Quadrado (oftalmologista e coordenadora do Banco de Olhos), Prof.ª Andreia Rosa (oftalmologista), Dr. João Gil (oftalmologista e responsável pela supervisão do Banco de Olhos), Enf.ª Lurdes Isidoro e Enf.ª Aida Vitorino. Na fila do meio – Enf.ª Maria João Nicolau, Enf.ª Dina Costa, Enf.º Luís Ferreira, Dr.ª Esmeralda Costa (oftalmologista), Enf.ª Graça Silva (responsável de enfermagem do Bloco Operatório) e Dr.ª Rosa Pinheiro (interna de Oftalmologia). Na fila de trás – Rosa Gonçalves (assistente operacional), Helena Pratas (secretária clínica), Celeste Martins (assistente operacional), Dr.ª Grimalde Trindade (interna de Oftalmologia), Mário Soares (técnico de ortótica) e Dr. João Chaves (interno de Oftalmologia)
sala onde são guardados os tecidos para o transplante de córnea é exígua, pelo que cabem pouco mais de três pessoas no seu interior. No entanto, o Banco de Olhos, que se insere no Centro de Responsabilidade Integrado de Oftalmologia (CRIO) do CHUC, é caso para aplicar o ditado «não julgue o livro pela capa». No total, são 75 os profissionais de saúde que colaboram na colheita e na transplantação de córneas neste hospital, desde oftalmologistas a enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes operacionais e técnicos administrativos. «Os recursos humanos que colaboram nesta área não são apenas do Serviço de Oftalmologia, mas também de vários outros serviços do hospital, até porque todos os profissionais de saúde têm de estar alerta para a colheita de córneas», explica a Prof.ª Maria João Quadrado, coordenadora do Banco de Olhos e da equipa de transplantação de córnea do CHUC. Questionada sobre o crescimento significativo deste Banco de Olhos fundado em 1977, que «é o maior do país», a atual responsável, que também é chefe do Bloco Operatório e da Secção de Córnea e Cirurgia Refrativa do Serviço de Oftalmologia do CHUC, não esconde o orgulho. Uma das conquistas deste percurso de sucesso foi a certificação, em 2012, pela norma ISO 9001:2008, que «garante a qualidade dos tecidos». A articulação entre os diversos serviços do CHUC e a Oftalmologia é fundamental para a eficácia na colheita de córneas e, nessa comunicação estreita e constante, a Enf.ª Huguete Garcia, responsável pela equipa de enfermagem, assume um papel-chave. «Sempre que se regista um óbito, o serviço que acolhe esse potencial dador contacta-me, para que possamos recolher a informação necessária e perceber se existem critérios de doação de córneas. Em caso afirmativo, a equipa médica é chamada para conferir os restantes critérios de exclusão 8 | FEVEREIRO 2020
e decide-se então se a colheita deve ou não ser efetuada», descreve Huguete Garcia, que é também responsável por organizar toda a documentação necessária. Relativamente à perda de potenciais dadores, segundo Maria João Quadrado, a média é de 10%, «uma percentagem excelente no âmbito nacional, mas que ainda pode ser melhorada». Em 2019, foram colhidas 220 córneas, mais 33 do que em 2018, e realizaram-se 129 transplantes. De realçar ainda que as córneas sem critérios de implantação foram utilizadas para investigação científica. Além das colheitas no CHUC, a equipa do Banco de Olhos recolhe córneas na área de abrangência do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação da Região Centro, nomeadamente em Castelo Branco, Leiria, Aveiro, Figueira da Foz, Águeda, Guarda e Covilhã, existindo ainda uma parceria para a colheita de córneas nos Açores. Em sentido inverso, quando tem excedente, o Banco de Olhos do CHUC fornece tecidos a outros hospitais – no ano passado, 32 córneas foram enviadas para transplante noutros centros. «Quando há uma emergência a nível nacional, é a nós que recorrem, o que muito nos orgulha», sublinha Maria João Quadrado.
CULTURA DE CÓRNEAS EM ANDAMENTO Os tecidos oculares para transplantação podem ser processados de duas formas: guardar as córneas colhidas em meio de refrigeração ou fazer cultura de tecidos. «Hoje em dia, para o transplante lamelar posterior, temos de cortar a lamela antes da cirurgia, com todas as contingências associadas, como o aumento do tempo operatório e o risco de termos de abortar o transplante, se perdermos o tecido e não existir outro de reserva», reflete a coordenada do Banco de Olhos do CHUC.
Com a criação de uma sala para cultura de córneas no nosso país, o cenário mudaria totalmente, pois «a disponibilização de tecidos pré-cortados diminuiria o tempo operatório e contribuiria para a autossuficiência a nível nacional». O primeiro passo nesse sentido foi dado em dezembro de 2019, concretizando uma vontade antiga da equipa do Banco de Olhos do CHUC, que liderou o projeto da primeira sala de cultura de córneas em Portugal, no âmbito do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). «Pela primeira vez, obtivemos córneas de cultura, o que irá mudar o panorama da transplantação corneana no nosso país», frisa Maria João Quadrado.
DESAFIOS E MUDANÇA DE PARADIGMA Há alguns anos, o queratocone era uma das principais patologias associadas ao transplante de córnea, com principal incidência na população mais jovem, mas, com o aparecimento de novos tratamentos, a transplantação é cada vez menos utilizada nestes casos. Hoje em dia, o transplante de córnea tem maior prevalência numa população mais envelhecida, sendo a distrofia de Fuchs uma das principais causas. A evolução nas técnicas de transplante é também um motor de mudança. «O que se fazia até há uns 10 ou 15 anos era a queratoplastia penetrante, em que substituíamos toda a estrutura da córnea. Agora, esse procedimento é cada vez menos utilizado», explica Maria João Quadrado, acrescentando que, atualmente, as queratoplastias lamelares posterior ou anterior são as técnicas mais utilizadas. «Os resultados melhoraram em consequência da evolução das técnicas e, hoje em dia, o transplante lamelar posterior já se faz de forma rotineira e mais precocemente. Estamos a realizar cada vez mais transplantes de córnea, o que também faz aumentar o défice de tecidos.» Nesse sentido, a coordenadora do Banco de Olhos do CHUC é perentória ao afirmar que «o maior desafio para o futuro é aproveitar todos os potenciais dadores». Análise semelhante faz o Dr. João Gil, oftalmologista e responsável pela supervisão do Banco de Olhos: «O principal desafio é tentar equilibrar a procura com a oferta. Os bancos de olhos funcionam cada vez melhor e estamos agora mais focados em perceber como podemos aumentar as doações sem perder qualidade no produto final.» Depois de terminar o internato no CHUC em 2017, João Gil rumou aos Estados Unidos e a Singapura, onde fez formação em córnea, em Harvard, e em tecidos, no Singapore Eye Re-
NÚMEROS DE 2019 2 20 córneas colhidas 1 29 transplantes de córnea 3 2 córneas fornecidas para transplante noutros
hospitais 6 9 córneas inutilizadas devido a marcadores positivos 2 córneas enviadas para investigação RECURSOS HUMANOS: 1 0 oftalmologistas 3 9 enfermeiras 1 2 assistentes operacionais 1 0 técnicos de diagnóstico e terapêutica 3 administrativas
search Institute. Nestas duas experiências, contactou de perto com as principais inovações decorrentes da investigação científica no âmbito da colheita e da transplantação de córnea, o que o deixa com «bastante expectativa relativamente ao futuro, que se antevê assombroso perante as várias inovações». Do ponto de vista técnico, João Gil realça que o maior desafio prende-se com a multiplicação do mesmo tecido, que «passa por fazer transplantes seletivos de determinadas células e pelo seu tratamento de forma a preservá-las e multiplicá-las para que possam ser utilizadas em mais do que um transplante». Já no que respeita às inovações na transplantação de córnea, este oftalmologista destaca a «passagem de um paradigma centrado no transplante de tecido para o transplante de células». O objetivo da equipa do Banco de Olhos do CHUC é continuar a acompanhar os avanços científicos nesta área, tendo sempre presente os desafios decorrentes do défice de tecidos.
Depois de colhidas, as córneas são colocadas neste frigorífico (fotografia da esquerda), cuja temperatura tem de estar permanentemente à volta dos 4ºC. Na mesma sala, além do arquivo e da documentação necessária para o normal funcionamento do Banco de Olhos do CHUC, existe ainda um computador com um programa específico, no qual são inseridos os dados de todos os dadores, as características das células e dos tecidos, bem como a informação relativa à evolução das córneas ao longo do tempo, até serem alocadas aos recetores. Na fotografia da direita, a Enf.ª Huguete Garcia manuseia a lâmpada de fenda portátil, que serve para avaliar as córneas do dador antes da sua excisão. |9
RANSFORMAR
TRANSPLANTAÇÃO MULTIÓRGÃOS E IMUNIDADE NA REUNIÃO NACIONAL DA SPT A Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) 2019 decorreu nos dias 29 e 30 de novembro, em Braga. Além da apresentação dos dados mais recentes do registo português, o encontro dividiu-se em três grandes temas: transplantação multiórgãos, complexidade imunológica e transplantação em dadores em paragem cardiocirculatória. A apresentação de casos clínicos em cada uma destas três áreas esteve também em evidência, com uma forte adesão dos participantes. Pedro Bastos Reis
De seguida, o Dr. Rui Dias, ortopedista e responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC, fez uma retrospetiva histórica sobre a aplicação de aloenxertos ósseos, com especial ênfase na realidade nacional e do CHUC em particular. «Até 2018, o Banco de Tecidos Ósseos disponibilizou mais de oito mil aloenxertos para cirurgia ortopédica, cirurgia maxilofacial, cirurgia oftalmológica, neurocirurgia e cirurgia dentária», revelou o especialista. Nesse sentido, Rui Dias identificou a transparência e a segurança como fatores fundamentais na aplicação de aloenxertos: «É remoto o risco potencial de transmissão de doenças aos recetores dos aloenxertos se forem cumpridos os rigorosos protocolos de seleção de dadores, de colheita e de controlo microbiológico, assim como de processamento e aplicação.»
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uma reunião realizada em moldes diferentes dos habituais, que deu maior destaque aos diversos órgãos transplantados, a comissão organizadora escolheu como tema «Transplantação multiórgãos e imunidade». «Foram abordados assuntos muito atuais da transplantação, o que permitiu uma troca de ideias vantajosa e proveitosa para todos os participantes», afirma a Dr.ª Susana Sampaio, presidente da SPT, que faz um balanço muito positivo do encontro, destacando «a polivalência dos órgãos focados e a forte adesão, sobretudo dos colegas mais jovens, que participaram ativamente com o envio de casos clínicos». A primeira mesa-redonda foi dedicada ao Registo Português de Transplantação, com a apresentação dos resultados mais recentes. O Dr. Rui Filipe, nefrologista na Unidade Local de Saúde de Castelo Branco/ /Hospital Amato Lusitano; a Prof.ª La Salete Martins, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António (CHUP/HSA); o Prof. David Prieto, cirurgião na Unidade de Transplantação Cardíaca do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC); e o Dr. Paulo Calvinho, cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta (CHULC/HSM), apresentaram, respetivamente, os dados relativos aos transplantes de rim, rim-pâncreas, coração e pulmão (ver páginas 18 e 19). 10 | FEVEREIRO 2020
Dr. Rui Dias, Dr.ª Susana Sampaio, Dr. Paulo Calvinho, Dr. Rui Filipe, Prof.ª La Salete Martins e Prof. David Prieto (da esq. para a dta.)
DESAFIOS DA TRANSPLANTAÇÃO MULTIÓRGÃOS Na mesa-redonda dedicada ao debate sobre os desafios da transplantação multiórgãos, coube à Dr.ª Cristina Jorge, nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz (CHLO/ /HSC) a introdução ao tema, numa preleção na qual abordou algumas questões éticas, com especial enfoque na realidade norte-americana.
«Há um número escasso de órgãos disponíveis para transplante, e os recetores para transplante simultâneo, muitas vezes, recebem os melhores órgãos, mesmo quando não são os melhores candidatos. Isto coloca questões éticas de fundo, que foram discutidas, durante o ano de 2019, pela Organ Procurement and Transplantation Network, nos EUA», contextualizou a também tesoureira da SPT, remetendo de seguida para as conclusões: «Foi aconselhada a criação de um registo para cada combinação de transplante multiórgãos, no intuito de assegurar uma melhor distribuição dos órgãos e uma maior transparência, além de permitir a análise científica dos resultados». Em Portugal, nota Cristina Jorge, ainda não há registo deste tipo de transplante, no entanto, «este deverá ter um maior impacto no futuro, pelo que é necessário criar critérios específicos sobre quem deve ser transplantado nestas condições». A preleção seguinte ficou a cargo da Dr.ª Luísa Semedo, pneumologista no CHULC/HSM, que incidiu nos transplantes multiorgânicos com pulmão. «Estes casos são complexos e é raro acontecerem. São situações que têm de ser analisadas doente a doente», adverte a pneumologista que, contudo, admite que este tipo de transplante duplo possa aumentar no futuro: «Prevejo que o transplante multiórgãos possa ser feito em doentes devidamente selecionados, nomeadamente mais jovens, que reúnam todas as condições para que o transplante seja feito no mesmo ato ou de forma diferida.» Por seu turno, o Prof. David Prieto abordou o transplante rim-coração, sublinhando a importância da seleção de doentes. «Na maior parte dos grandes estudos a nível mundial, está demonstrado que a sobrevida dos doentes transplantados de rim e coração é semelhante ao transplante exclusivo de coração. As maiores diferenças estão no pós-operatório imediato, que é muito mais complexo no caso da transplantação multiórgãos. Passada essa fase, a sobrevida dos doentes é equiparável», afirmou o cirurgião. «São doentes que têm de ser muito bem selecionados, porque, se fracassarmos, estamos a desperdiçar dois órgãos. Não podemos fazer este transplante de uma forma ligeira; tem de ser muito bem ponderado e discutido antes de se avançar», acrescentou. De seguida, a Dr.ª Dulce Diogo, cirurgiã-geral na Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos do CHUC, incidiu no transplante rim-fígado. «Diversas publicações demonstram bons resultados a longo prazo do transplante simultâneo rim-fígado, quando comparado com o de fígado isoladamente, e demonstram taxas de rejeição renal ainda menores neste tipo de transplante duplo, em comparação com o transplante de rim isolado, evidenciando o papel do fígado como indutor de tolerância imunológica», afirmou a cirurgiã. A preletora considerou a previsibilidade da recuperação da função renal pós-transplante hepático «o fator determinante para a tomada de decisão na realização do transplante simultâneo de rim-fígado, evitando, por um lado, a utilização desnecessária de rins e, por ou-
Dr.ª Cristina Jorge, Dr.ª Dulce Diogo, Dr. Jorge Daniel, Dr. António Castro Henriques, Dr. Paulo Calvinho, Prof. David Prieto, Dr.ª Luísa Semedo e Prof. Aníbal Ferreira
tro, a elevada morbimortalidade (em lista) de doentes candidatos a transplante renal após transplante de outro órgão sólido». Concluiu a especialista: «A seleção adequada de recetores para este transplante simultâneo é fundamental para maximizar os resultados e evitar a futilidade terapêutica em transplantação.» Por fim, o Prof. Aníbal Ferreira, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/ /HCC), abordou o aumento da prevalência, em Portugal, dos doentes transplantados simultaneamente de rim e de pâncreas. «Esta é a melhor terapêutica para os doentes com diabetes tipo 1, que já têm insuficiência renal, sobretudo quando já estão no estádio IV ou V, ainda que as novas tecnologias, nomeadamente a monitorização dos níveis de glucose intersticial e as novas bombas de insulina, permitam a monitorização e o tratamento da diabetes em vários destes doentes», afirmou o nefrologista. Na sua preleção, o também presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia falou dos mais importantes riscos de morbilidade e mortalidade nestes doentes, particularmente mortalidade cardiovascular, assim como das principais complicações do transplante rim-pâncreas, nomeadamente «a trombose da veia do pâncreas ou o aparecimento de abcessos». «Uma vez passado o primeiro mês, este transplante duplo apresenta uma excelente sobrevida a médio e longo prazo», concluiu.
COMPLEXIDADE IMUNOLÓGICA Ao Dr. António Martinho, responsável pela Área de Transplantação do Centro de Sangue e Transplantação de Coimbra, coube a tarefa de caracterizar a população em lista de espera ativa para transplante renal e de falar da importância da alocação. «Se, por um lado, os avanços tecnológicos na identificação dos anticorpos anti-HLA [antigénio leucocitário humano, na sigla em inglês] se traduziu numa diminuição da incidência dos episódios de rejeição aguda e numa
FACTOS E NÚMEROS (I) Segundo os dados facultados pela Dr.ª Dulce Diogo, entre 2000 a 2016, nos EUA, houve um aumento de 300% no transplante simultâneo de rim-fígado. Este incremento deveu-se à introdução, em 2002, do Model for End-Stage Liver Disease (MELD) score, «uma ferramenta para seriação em lista dos doentes candidatos a transplante hepático, que discrimina positivamente os doentes com lesão renal aguda e crónica»; O primeiro transplante simultâneo de pulmão e rim em Portugal realizou-se em 2018, no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, numa doente com fibrose quística e falência de ambos os órgãos. Segunda a Dr.ª Luísa Semedo, a doente «está a recuperar bem», sendo acompanhada na consulta de transplante pulmonar e pós-transplante do mesmo hospital; De acordo com o Dr. António Martinho, 56% dos doentes que aguardam transplante, em Portugal, têm idade superior a 50 anos e 57% são do sexo masculino. No que diz respeito à distribuição dos grupos sanguíneos, 54% são do grupo 0, no qual existe «uma escassez de dadores falecidos».
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RANSFORMAR tituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, é necessário «distinguir grupos de risco imunológico e, naqueles de médio e baixo risco, desenvolver protocolos de imunossupressão/ /dessensibilização que permitam avançar para um transplante em segurança» nos doentes hipersensibilizados. De seguida, a Dr.ª Sandra Tafulo, responsável pelo Laboratório de Alosensibilização e Serologia HLA do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, no Porto, falou sobre uma inovação em curso: a compatibilidade HLA a nível epitópico. «Ao compatibilizar o par dador-recetor a nível molecular, será possível minimizar o desenvolvimento de anticorpos anti-HLA de novo no pós-transplante associados a disfunção do aloenxerto, facilitando o retransplante futuro, se necessário», descreveu a especialista. Esta tecnologia inovadora começou a ser utilizada no transplante de dador vivo, sendo que o passo seguinte será utilizá-la no transplante de dador falecido, situação «em que há menos tempo para atribuir os órgãos e a avaliação da compatibilidade não está sistematizada, tornando clara a importância da criação de um programa nacional de doentes hiperimunizados». Prof. Jorge Malheiro, Dr.ª Manuela Bustorff, Prof. Fernando Nolasco, Dr.ª Sandra Tafulo e Dr. António Martinho
melhor personalização do regime terapêutico imunossupressor a instituir ao doente, por outro, veio aumentar enormemente o número de doentes com uma janela imunológica de acesso ao transplante muito estreita», refletiu António Martinho. Segundo o especialista, os doentes alossensibilizados representam cerca de 25% da lista ativa para transplante e são constituídos, «maioritariamente, por doentes candidatos a segundo, terceiro e quarto transplantes». Nesse sentido, rematou, «será prudente estabelecer um programa nacional para a transplantação de doentes hipersensibilizados, avaliar com simulações reais o impacto deste programa na seleção do melhor par dador-doente e, se necessário, ajustar o algoritmo que rege a alocação de rins para transplantação». O Prof. Jorge Malheiro, nefrologista no CHUP/HSA, focou a importância do tipo e da intensidade dos anticorpos antidador, numa apresentação que versou sobre avanços tecnológicos no estudo da aloimunidade, particularmente nos casos de transplante HLA incompatível. «A inexistência de anticorpos antidador é, habitualmente, um dos critérios de admissibilidade para a transplantação. No entanto, em doentes hipersensibilizados temos de ponderar quais destes anticorpos são inaceitáveis para o transplante e quais podem, eventualmente, ser admissíveis, melhorando a possibilidade de acesso a um transplante com um risco imunológico aceitável nestes doentes», declarou. Para o também docente no Ins-
DADORES EM PARAGEM CARDIOCIRCULATÓRIA Por motivos imprevistos, o Prof. Roberto Roncon de Albuquerque, coordenador do Programa de ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea) do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, não esteve presente na reunião, tendo a apresentação que preparou sobre doação na categoria III de Maastricht (dador em paragem cardiocirculatória controlada) sido feita pela Dr.ª Susana Sampaio. Em entrevista à TransMissão, o intensivista insiste na importância de um debate sobre o enquadramento legal deste tipo de dadores em Portugal, inexistente atualmente. «No Reino Unido, mais de metade dos transplantes renais realizados são de dadores em paragem cardiocirculatória controlada e não de dadores em morte cerebral. Este tipo de dadores poderia contribuir de forma muito significativa para resolver o grave problema da lista de espera para transplante renal que existe no nosso país», afirma Roberto Roncon de Albuquerque, que alerta ainda para a diminuição, a nível mundial, da doação em morte cerebral e para os critérios cada vez mais expandidos destes dadores. A abordagem ao transplante hepático foi feita pelo Dr. João Santos Coelho que sublinhou a necessidade de aumentar o número de dadores em paragem cardiocirculatória, «tendo em conta que os recetores aumentam de forma exponencial e não existem dadores suficientes». Na sua preleção, o cirurgião-geral no CHULC/HCC chamou a atenção para a insuficiência hepática no pós-operatório e para o risco de colangiopatia isquémica: «Normalmente, os fígados dos dadores em paragem cardiocirculatória têm um maior risco
FACTOS E NÚMEROS (II) Segundo o Prof. Roberto Roncon de Albuquerque, se fosse possível a colheita de órgãos em dadores em paragem cardiocirculatória controlada (Maastricht III), «em Portugal, seria possível ter o dobro dos transplantes comparativamente àqueles que são feitos apenas com dadores em morte cerebral»; Em julho de 2019, realizou-se o primeiro transplante hepático com dador em paragem cardiocirculatória em Portugal. A cirurgia decorreu, com sucesso, no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral e o doente, de 67 anos, está a ser acompanhado na Unidade de Transplantes do mesmo hospital. Para o Dr. João Santos Coelho, este transplante «pode ser uma alavanca» para a atividade de outros centros; De acordo com o Prof. João Silva, nos EUA, «são utilizadas máquinas de perfusão hipotérmicas em 50% dos rins colhidos de dadores em paragem cardiocirculatória». No Reino Unido, já são utilizadas máquinas de perfusão normotérmicas, ao contrário de Portugal.
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A fechar a mesa-redonda, o Prof. João Silva, urologista no CHUSJ e docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, incidiu na transplantação renal, particularmente na preservação de rins com recurso a máquinas de perfusão, uma tecnologia que ainda não é utilizada em Portugal. «As máquinas de perfusão hipotérmicas são utilizadas há mais de uma década, com bons resultados. As últimas meta-análises demonstram uma diminuição da taxa de função tardia, uma melhor taxa de funcionamento de aloenxertos e uma série de potencialidades, como a administração de fármacos. É um mundo novo por descobrir», afiançou o urologista. Na sua apresentação, João Silva falou ainda das máquinas de perfusão normotérmicas, que começam a ser utilizadas no Reino Unido e que trazem mais vantagens em termos de preservação do órgão e da administração de fármacos. «Estas máquinas permitem recuperar rins rejeitados, tornando-os viáveis. Numa época de escassez, resgatar órgãos que estariam condenados é uma vantagem fantástica», rematou. Dr.ª Susana Sampaio, Prof. Paulo Dinis, Dr. Domingos Machado, Dr.ª Margarida Ivo, Dr. Paulo Calvinho, Prof. Arnaldo Figueiredo, Dr. José Pedro Neves, Prof. João Silva e Dr. João Santos Coelho
de insuficiência hepática no pós-operatório, daí a importância de o recetor estar clinicamente apto para tolerar este problema. Já a colangiopatia isquémica coloca desafios na sobrevida dos recetores, sendo a principal causa de retransplante e de mortalidade.» Apesar dos riscos, o cirurgião é perentório relativamente à importância do transplante hepático com dadores em paragem cardiocirculatória: «há sempre risco ao transplantarmos com este tipo de dadores marginais, mas também há o perigo de os doentes morrerem em lista ativa no caso de não transplantarmos. Tomamos as decisões em função da avaliação do dador e do recetor disponíveis, para bem dos doentes.» Por seu lado, o Dr. Paulo Calvinho debruçou-se sobre o transplante pulmonar com dadores em paragem cardiocirculatória, uma opção que está a começar a dar os primeiros passos em Portugal. «Num estudo internacional que apresentei, num hospital onde se registaram cerca de 800 óbitos, entre 30 a 70 poderiam ser aproveitados como dadores multiórgãos, entre os quais 30 pulmões. Não teremos logística para obter estes números nos hospitais nacionais, mas esperamos incrementar cerca de 5% ou 10% a nossa pool de dadores», adiantou o cirurgião cardiotorácico. Para tal, acrescentou, é fundamental a tecnologia ex vivo, utilizada para avaliar e recondicionar pulmões. «Esta tecnologia permite recuperar pulmões com edema e reaproveitar mais pulmões que, em outras circunstâncias, seriam recusados, pois estamos salvaguardados com a tecnologia descrita, bem como criar protolocos de investigação básica e translacional. Estamos a começar a utilizar tecnologia e esperamos demonstrar em breve o trabalho desenvolvido», adiantou. O transplante cardíaco esteve em análise pelo Dr. José Pedro Neves, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do CHLO/HSC. Começando por ressalvar que «o coração tem características muito diferentes dos outros órgãos, nomeadamente o tempo de tolerância à isquemia», o especialista sublinha que o transplante de dador em paragem cardiocirculatória e, inclusive, a possível introdução de dadores de categoria III de Maastricht (não permitida pela legislação atual), não são tão vantajosos na transplantação cardíaca como na de outros órgãos, por exemplo, o rim. A necessidade de aumentar o número de dadores, contudo, mantém-se, estando a taxa de aproveitamento nacional abaixo da média europeia. «Normalmente, temos cerca de 200 dadores por ano, com uma taxa aproveitamento de cerca de 12%, enquanto outros países têm entre 25% a 30%. Como podemos melhorar? É a pergunta de um milhão de dólares», lamentou José Pedro Neves.
BOLSAS ATRIBUÍDAS NA REUNIÃO (REFERENTES A 2018)
Bolsas de Apoio à Publicação de Artigos Científicos SPT/ /Novartis (500 euros cada) «Seleção do par dador-recetor em transplante renal: resultados comparativos de uma simulação» – Dr. Bruno Alves Lima (Oficina de Bioestatística, Ermesinde) e Dr.ª Helena Alves (Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Porto); «Evaluation of the Portuguese kidney transplant allocation system: comparative results from a simulation» – Dr. Bruno Alves Lima e Dr.ª Helena Alves (na foto, à direita, acompanhada pelas Dr.as Susana Sampaio e Cristina Jorge); «Pancreas outcomes between living and deceased kidney donor in pancreas after kidney transplantation patients» – Dr. Pedro Ventura Aguiar (Hospital Clínic, Barcelona), et al. Bolsa de Investigação Dr. António Morais Sarmento (10 000 euros, em várias tranches) «Estratégias combinadas de preservação hepática dinâmica: estudos da atividade bioenergética e da função mitocondrial» – Prof. Rui Miguel Martins (Instituto Português de Oncologia de Coimbra), et al.
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CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DO PONTO DE VISTA PORTUGUÊS
ALGUNS INTERVENIENTES PORTUGUESES NO CONGRESSO (da esq. para a dta.): Dr. Carlos Oliveira, Dr.ª Dulce Diogo, Prof. Aníbal Ferreira, Prof. André Weigert, Dr.ª Alice Santana, Dr. Jorge Daniel, Dr.ª Cristina Jorge, Dr.ª Susana Sampaio, Dr. Rui Dias, Prof. Fernando Nolasco, Prof. David Prieto, Dr. Leonídio Dias, Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva, Dr. António Martinho e Dr. Domingos Machado
Inserido no XVI Congresso Brasileiro de Transplantes, que decorreu entre 16 e 19 de outubro de 2019, em Campinas, no Brasil, o XVIII Congresso Luso-Brasileiro de Transplantes ficou marcado pela partilha de experiências e pelo debate de ideias entre especialistas dos dois países, constituindo um palco privilegiado para identificar problemas e desafios, mas também para refletir sobre linhas de atuação futuras. A participação portuguesa voltou a ser significativa, quer em termos de moderação de sessões e preleções, quer da apresentação de pósteres e comunicações orais. Pedro Bastos Reis
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situação atual do transplante renopancreático no Brasil esteve em discussão numa mesa-redonda na qual teve particular destaque a redução do número de transplantes de pâncreas. A moderar a mesa esteve o Prof. Aníbal Ferreira, nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral e presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, que partilhou um pouco do contexto português no transplante renopancreático e constatou os desafios subjacentes à realidade brasileira. «Neste momento, os nossos colegas brasileiros estão com muitas dificuldades na manutenção de um programa de transplante renopancreático na maioria dos hospitais, sobretudo devido a um deficiente apoio financeiro», assinala. Estas dificuldades têm levado a uma redução significativa do número de transplantes. «Há muitas unidades que fazem dois transplantes por ano e cerca de 80% dos transplantes renopancreáticos realizados no Brasil são assegurados por apenas duas ou três unidades. É uma situação complicada, não só para as unidades, mas principalmente para os doentes, uma vez que tem de existir uma casuística mínima para garantir o sucesso deste procedimento», completa Aníbal Ferreira. O nefrologista moderou ainda uma sessão sobre a transplantação de ilhéus pancreáticos, constatando que, «no Brasil, esta realidade ainda está numa fase pré-clínica». «Também aqui foi referida a necessidade de mais apoio, nomeadamente das autoridades de saúde, para se fazer este tipo de transplante, que será muito marginal e para um pequeno conjunto de doentes que não tenha condições operatórias», conclui. 14 | FEVEREIRO 2020
RESULTADOS DOS TRANSPLANTES HEPÁTICO E PULMONAR Com uma participação ativa no congresso, incluindo a presença numa sessão da Transplantation Society sobre igualdade de género entre profissionais de transplantação (ver caixa na página ao lado), a Dr.ª Dulce Diogo, cirurgiã-geral na Unidade de Transplantação Hepática Pediátrica e de Adultos do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), apresentou um vídeo com um caso clínico de uma doente operada nesta unidade. «Tratou-se de uma ressecção ex-vivo (em hipotermia) por colangiocarcinoma intra-hepático, com autotransplante do fígado nativo restante. Neste caso, a opção foi a substituição da veia cava por prótese sintética, sem recurso a bypass venovenoso», explica a cirurgiã, descrevendo o caso como «um procedimento cirúrgico complexo que só deve ser realizado em centros com experiência em transplantação hepática».
NÚMEROS DA PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA 2 7 moderações 5 preleções 1 8 pósteres 1 0 comunicações orais
Além desta apresentação, Dulce Diogo moderou uma sessão sobre transplantação hepática e polineuropatia amiloidótica familiar (PAF), que contou com uma apresentação do Dr. Jorge Daniel, diretor do Programa de Transplantação Hepática do Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António, e outra sobre os resultados do transplante de fígado. Neste caso, a especialista destaca a preleção do Prof. Philipp Dutkowski, coordenador do Programa de Transplante de Órgãos Abdominais do Hospital Universitário de Zurique, na Suíça, que «apresentou a experiência e a evidência científica relativas à perfusão de órgãos ex-situ, através do recurso a dispositivos de perfusão hipotérmica contínua dos enxertos». «Os resultados apresentados são promissores para a otimização da utilização de enxertos marginais através desta técnica», realça. Por seu turno, o Dr. Paulo Calvinho (na fotografia, ao centro), cirurgião cardiotorácico no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, moderou uma sessão com três preleções dedicadas ao futuro do transplante cardiopulmonar, à utilização da oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês) e à rejeição mediada por anticorpos. «O número de transplantes cardiopulmonares tem vindo a diminuir lentamente e é hoje uma atividade residual e reservada a casos de hipertensão pulmonar, doença do vaso pulmonar e insuficiência cardíaca considerada irrecuperável», nota o cirurgião, referindo que, em Portugal, apenas foram realizados dois destes transplantes, o último na década de 1990. «É um procedimento que estamos habilitados a fazer, caso surjam doentes que reúnam as condições necessárias, embora tenhamos de ser muito cautelosos nessa indicação», acrescenta.
DOAÇÃO DE TECIDOS E TRANSPLANTE CARDÍACO Numa mesa-redonda sobre os desafios no processo de doação de tecidos, o Dr. Rui Dias, responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC, fez uma preleção sobre tecido ósseo, na qual alertou para as dificuldades nesta área. «A escassez de órgãos e tecidos é preocupante e os dadores são cada vez mais idosos, devido ao aumento da esperança média de vida nas sociedades ocidentais, resultando em problemas de qualidade dos tecidos para transplantação», refere. O ortopedista moderou outras duas sessões dedicadas à abordagem de aloenxertos. Numa delas, estiveram em debate as diferenças entre Portugal e Brasil no transplante de tecidos. «O facto de, em Portugal, a doação ter um consentimento presumido, ao contrário do Brasil, é um elemento facilitador para a nobre e altruísta causa da doação de órgãos e tecidos», destaca Rui Dias, salientando que, no Brasil, «há uma grande aplicação de alógenos pelas diversas especialidades, como Oftalmologia, Dermatologia, Cirurgia Maxilofacial, Estomatologia e Ortopedia». Na outra mesa-redonda que moderou, sobre os cuidados no processo de captação e transporte do tecido captado, Rui Dias reitera como mensagem-chave a necessidade de protocolos bem definidos. «Todos os intervenientes manifestaram a ideia de que o sucesso de captação do aloenxerto está intimamente ligado à capacidade de organização e ao respeito absoluto pelos protocolos e pelas normas de seguranças existentes», completa. Nesta mesa-redonda, o Prof. David Prieto, cirurgião na Unidade de Transplantação Cardíaca do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC, falou sobre a utilização de válvulas cardíacas. «Mesmo quando não utilizamos um coração para transplante, podemos utilizar as válvulas. Para tal, é necessário um método adequado de preservação e manipulação», refere o cirurgião, explicando o método de atuação do CHUC: «No nosso Serviço, vamos implementar uma nova forma de abordar a colheita, com a preservação e o armazenamento de homoenxertos frescos e criopreservados, que têm maior durabilidade e efetividade.»
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Noutra sessão, dedicada à rejeição e à imunossupressão, David Prieto abordou as problemáticas associadas ao dador infetado. «O principal desafio é identificar a infeção, definir o tratamento adequado e decidir se podemos ou não avançar para o transplante», afirma o cirurgião, alertando para os riscos associados a essa decisão. «Os casos de dador infetado são complexos e exigem compromisso e ponderação, inclusive do ponto de vista legal», acrescenta. David Prieto moderou ainda uma sessão sobre retransplante cardíaco, em que a Prof.ª Nadine Oliveira Clausell, presidente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, no Brasil, e o Prof. Reginaldo Cipullo, cardiologista responsável pelo Setor de Transplante Cardíaco no Hospital Escola de Itajubá, no Brasil, apresentaram, respetivamente, os argumentos a favor e contra o retransplante.
PROMOVER A IGUALDADE DE GÉNERO NA TRANSPLANTAÇÃO No último dia do Congresso, 19 de outubro, realizou-se a sessão científica da Women in Transplantation (WIT), uma iniciativa da Transplantation Society que visa promover a igualdade de género entre os profissionais da transplantação. A sessão contou com a participação da Dr.ª Dulce Diogo (à esquerda na foto). «Houve oportunidade para a troca de experiências pessoais e para apresentar dados nacionais referentes à evolução da admissão de mulheres nas faculdades de Medicina, nas diversas especialidades médicas e ainda nos órgãos de soberania», descreve. Na sessão participaram ainda a Prof.ª Janine Schirmer (ao centro), docente de Enfermagem e vice-presidente do Conselho Gestor do Hospital da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), no Brasil, e da Prof.ª Bartira de Aguiar Roza (à direita), docente na Escola Paulista de Enfermagem da UNIFESP.
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RANSFORMAR
O Dr. José Davide (quarto a contar da esquerda) e a Dr.ª Donzília Sousa Silva (décima a contar da esquerda) integraram o comité de validação dos consensos de transplante pancreático
CONSENSOS DE TRANSPLANTE PANCREÁTICO COM VALIDAÇÃO PORTUGUESA
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erca de 50 anos depois do primeiro transplante pancreático, realizou-se a First World Consensus Conference on Pancreas Transplantation, a primeira reunião científica mundial com o intuito de criar consensos nesta área. O encontro realizou-se entre os dias 17 e 19 de outubro de 2019, na Università di Pisa, em Itália, e contou com a participação do Dr. José Davide e da Dr.ª Donzília Sousa Silva, respetivamente, diretor do Serviço de Cirurgia Geral e do Programa de Transplantação Pancreática e coordenadora da Unidade Hepatobiliar e Pancreática do Centro Hospitalar Universitário do Porto/ /Hospital de Santo António (CHUP/HSA), que integraram o comité de validação dos consensos, que foi composto por 14 peritos internacionais. O evento foi organizado pelas European Society for Organ Transplantation (ESOT), American Society of Transplantation (AST), European Association for the Study of Diabetes (EASD), Società Italiana dei Tranpianti d’Organo (SITO), Società Italiana di Diabetologia (SID) e Associazione Medici Diabetologi (AMD), com o apoio da International Pancreas and Islet Transplant Association (IPITA). «Todos os aspetos inerentes à transplantação pancreática foram discutidos por um grande grupo de
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experts a nível mundial, que foram divididos por vários grupos de trabalho. Depois de uma revisão da literatura, foram propostas e votadas orientações, cuja qualidade foi atestada pelo comité de validação, do qual fiz parte», explica Donzília Sousa Silva, que ficou encarregada das áreas de atividade, volume e inovação, seleção de recetores, técnicas cirúrgicas, profilaxia pós-operatória e imunologia. Por seu turno, José Davide fez parte do grupo que validou as temáticas nas áreas de doação de pâncreas, alocação de enxerto, imunossupressão e follow-up. Realçando o marco histórico que esta reunião científica representa, José Davide considera que os consensos produzidos, que deverão ser publicados no primeiro semestre deste ano, «vão validar as práticas da transplantação pancreática nas suas diversas vertentes». Para o especialista, a participação de dois portugueses entre os 14 experts do comité de validação é, «provavelmente, um reconhecimento da comunidade internacional» pelo Programa de Transplantação Pancreática do CHUP/HSA, que assinala 20 anos de existência em 2020, com mais de 240 transplantes realizados, «sempre com o cuidado de fazer um registo internacional dos procedimentos e com resultados de referência».
DESTAQUES DO HEBIPA MEETING 2019
rganizada pela Unidade Hepatobiliar e Pancreática (HEBIPA) do Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António (CHUP/HSA), a 5.ª edição do HEBIPA Meeting decorreu nos dias 5 e 6 de julho de 2019, no Porto. Neste evento com patrocínio científico da SPT, foram abordados diversos temas cirúrgicos nas áreas do fígado, das vias biliares e do pâncreas. A transplantação esteve em evidência numa sessão sobre os desafios na cirurgia hepática, com uma preleção do Prof. Gian Luca Grazi, ciDR
ALGUNS INTERVENIENTES NO HEBIPA MEETING 2019 (da esq. para a dta.): Dr. José Davide, Dr.ª Donzília Sousa Silva, Prof. Mohammed Abu-Hilal, Prof. Gian Luca Grazi e Prof. Ugo Boggi
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rurgião no Istituto Regina Elena – Istituti Fisioterapici Ospitalieri, em Roma, Itália, sobre os limites da transplantação hepática no carcinoma hepatocelular. «Existem critérios estabelecidos sobre os quais nos guiamos para decidir se um doente com carcinoma hepatocelular é ou não candidato a transplante de fígado. Contudo, têm surgido correntes defendendo que, de acordo com a biologia e o comportamento desse tipo de tumores, podem expandir-se os critérios. Esse foi o foco da palestra», recorda a Dr.ª Donzília Sousa Silva, coordenadora da HEBIPA e membro da comissão organizadora do evento. Do programa científico, o Dr. José Davide, presidente do congresso e diretor do Serviço de Cirurgia Geral e do Programa de Transplantação Pancreática do CHUP/HSA, destaca «o painel composto por especialistas de referência a nível mundial» nas áreas da cirurgia hepatobiliar e pancreática. Alguns dos destaques foram para as preleções do Prof. Ugo Boggi, cirurgião no Hospital Universitário de Pisa, em Itália, sobre cirurgia robótica na doença hepatobiliar e pancreática, e do Prof. Mohammed Abu-Hilal, cirurgião na Fondazione Poliambulanza Istituto Ospedaliero Multispecialistico, em Brescia, Itália (no momento da reunião, a exercer no University Hospital Southampton NHS Foundation Trust, no Reino Unido), sobre hepatectomia laparoscópica e cirurgia pancreática minimamente invasiva.
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INOVAÇÕES DA TRANSPLANTAÇÃO NO ENCONTRO RENAL 2020
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O Encontro Renal 2020, organizado pelo Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz (CHLO/HSC), decorrerá entre 26 e 28 de março, no Centro de Congressos do Algarve, em Vilamoura. A mesa-redonda dedicada à temática da transplantação é coordenada pela Unidade de Transplantação Renal do mesmo hospital e está marcada para o dia 27 de março. A monitorização imunológica, os preditores de imunossupressão e as inovações no transplante serão os tópicos em análise. Pedro Bastos Reis
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s métodos futuros de monitorização imunológica dos doentes submetidos a transplante de rim serão apresentados pela Dr.ª Cristina Jorge, nefrologista no CHLO/HSC e tesoureira da SPT. «A monitorização imunológica é um desafio nos nossos doentes transplantados, porque os métodos que temos para avaliar a função do enxerto são muito grosseiros. Contudo, estão a ser desenvolvidos novos procedimentos que permitem inferir o estado imunológico do doente, predizendo o risco de rejeição e o estado de imunossupressão», adianta. Um desses métodos, explica a nefrologista, é a análise do ácido desoxirribonucleico (ADN) livre circulante, um biomarcador utilizado, principalmente, na avaliação do risco pré-natal nas mulheres grávidas, mas que poderá ser utilizado na transplantação: «Ao determinar a percentagem e a quantidade de ADN livre circulante de origem no dador, sabemos se estamos ou não na iminência de uma rejeição.» Na sua preleção, a nefrologista vai ainda falar de outros métodos em desenvolvimento, como a análise de exossomas derivados de células T ou o TruGraf, um método que mede o conjunto de genes ativados perante uma lesão no enxerto. «No futuro, vamos utilizar vários destes métodos não invasivos, que permitirão individualizar a terapêutica, proporcionando melhor qualidade de vida aos doentes e uma maior sobrevida do enxerto», remata.
Infeções por JCV e TTV Apesar de «a imunossupressão ter reduzido significativamente a incidência de rejeição», a Dr.ª Sara Querido, nefrologista no CHLO/HSC, alerta que «aumentaram os casos de infeções e de neoplasias mediadas por vírus». Este é o ponto de partida para a sua apresentação, dedicada ao tema das infeções pelo vírus John Cunningham (JCV, na sigla em inglês) e pelo vírus torque teno (TTV) enquanto preditoras do estado de imunossupressão. Neste âmbito, «a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da infeção tornaram-se aspetos essenciais no cuidado dos recetores de enxertos renais», sublinha a especialista.
XXXIV CONGRESSO PORTUGUÊS DE NEFROLOGIA
XXXIV CONGRESSO APEDT
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APEDT.PT
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«Alguns estudos recentes demonstraram que cargas virais mais baixas de TTV se associaram com maior risco de rejeição, enquanto cargas virais mais elevadas se correlacionaram com um risco infecioso acrescido», afirma Sara Querido, realçando que, contudo, «não estão bem estabelecidos que valores de viremia são preditores de rejeição ou de risco infecioso». Por outro lado, continua a nefrologista, «a reativação da virúria do JCV na ausência de viremia poderá estar associada a um estado de imunossupressão adequado e a uma menor taxa de rejeição aguda». Nesse sentido, conclui, «o estudo do viroma humano poderá constituir um instrumento útil para a monitorização do estado de imunossupressão».
Novidades e disparidades no transplante renal
A encerrar a mesa-redonda, o Prof. José Medina Pestana, diretor do Hospital do Rim e da Hipertensão, em São Paulo, no Brasil, vai abordar algumas inovações na área do transplante renal. «Atualmente, as maiores novidades ocorrem ao nível das inovações incrementais, nomeadamente com o aprimoramento da imunossupressão, com efeitos na preservação do rim, permitindo que as células fiquem viáveis por mais tempo, o que levará a melhores resultados», refere. Na sua preleção, o nefrologista pretende falar de algumas «inovações radicais» na transplantação, como a «utilização de órgãos mecânicos, o uso de células estaminais no tratamento da insuficiência renal ou o transplante a partir da matriz inorgânica, com as células a serem ocupadas pelo próprio recetor» – inovações que, admite, «não deverão ser incorporadas no quotidiano num futuro próximo». O diretor do Hospital do Rim e da Hipertensão chama ainda a atenção para a disparidade geográfica em termos de transplantação, um tema ao qual também tenciona dar destaque na sua preleção: «No Brasil, há estados que apresentam um desempenho na transplantação idêntico ao de Portugal, que é uma referência a nível mundial, enquanto outros têm um número de transplantes semelhante ao de países da África subsaariana, onde o transplante ainda é embrionário. Uma grande inovação seria corrigirmos esta disparidade no acesso ao transplante.»
SPT COORGANIZOU SESSÃO NO CONGRESSO DA ESOT
DR
O 19.º Congresso da European Society for Organ Transplantation (ESOT) decorreu entre 15 e 18 de setembro, em Copenhaga, na Dinamarca. Como tem sido habitual, a SPT marcou presença na «Aldeia das Sociedades» (na foto ao lado), um espaço que promove o debate e a interação entre as sociedades europeias. Além disso, foi convidada a coorganizar, no dia 16 de setembro, com o College of the European National Transplant Societies (CENTS), uma sessão temática sobre a colaboração do laboratório com a clínica na área da transplantação, intitulada «Clinicians and H&I scientists: how to work together for the benefit of transplant patients», que foi moderada pela Dr.ª Susana Sampaio, presidente da SPT. | 17
M ANÁLISE
EVOLUÇÃO DA TRANSPLANTAÇÃO RENAL, PANCREÁTICA E PULMONAR EM PORTUGAL Uma crescente dificuldade em obter órgãos, face ao envelhecimento dos dadores, tem marcado a atividade de transplantação no nosso país, de modo praticamente transversal. Ainda assim, através da expansão dos critérios de doação, tem sido possível evitar a queda do número de transplantes renais e pancreáticos, como mostram os dados relativos a 2018 dos registos da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). Já o único centro nacional de transplantação pulmonar, Centro Hospitalar de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, atingiu números recordes em 2019. Luís Garcia Figura 1
TRANSPLANTE RENAL DE DADOR FALECIDO IDADE MÉDIA DOS DADORES AO LONGO DOS ANOS
TRANSPLANTE RENAL No âmbito da transplantação renal, o Dr. Rui Filipe, coordenador do Registo de Transplante Renal da SPT e nefrologista da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco/Hospital Amato Lusitano, começa por destacar a recuperação, iniciada em 2013, do número total de transplantes para níveis próximos do recorde atingido em 2009 (505 em 2018 e 595 em 2009). «Constatámos também a manutenção do número de transplantes de dador vivo (59 em 2018), o que é muito importante, e um padrão idêntico de evolução dos dadores falecidos, que são cada vez mais velhos e com maior número de causas médicas [figura 1]», sublinha o especialista. Em relação aos recetores de transplante renal, Rui Filipe evidencia a diminuição progressiva do tempo prévio em diálise (média de 80,3 meses em 2008 e 53,2 meses em 2018) e a redução do número de retransplantes ao longo dos anos. Por outro lado, «década após década, os resultados da sobrevivência do enxerto têm vindo a melhorar, com valores semelhantes ou melhores do que os apresentados noutras séries internacionais». De facto, a sobrevivência média do enxerto a cinco anos passou de 66% na década de 1980 para 85% entre 2010 e 2018. No mesmo sentido, a sobrevivência média do doente a cinco anos evoluiu de 86,3% nos anos de 1980 para 93,7% no período 2010-2018. Embora considere que «os profissionais e as unidades estão cada vez mais dedicados a fazer do programa de transplantação português um sucesso», Rui Filipe assinala a existência de grandes assimetrias entre centros. «Dentro das mesmas regiões, há hospitais com números de referência para colheita muito bons e outros com números quase nulos», acrescenta.
FICHA TÉCNICA
60, 0
Idade média do dador
50, 0
20,0
0,0 19801982198419861988199019921994199619982000200220042006200820102012201420162018
TRANSPLANTE RENOPANCREÁTICO
Em 2018, na área da transplantação renopancreática, o maior destaque foi o recorde de 26 transplantes realizados no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral (CHULC/HCC), claramente acima daquele que fora, até então, o melhor ano neste centro (2015, com 15 transplantes realizados). Este número constitui um recorde nacional, superando os 19 transplantes realizados em 2009 no outro hospital português que dá resposta a este tipo de transplante, o Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António (CHUP/HSA), que, ainda assim, continua a deter o maior número cumulativo – figura 2.
Publicação isenta de registo na ERC, ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 6 de junho, artigo 12.º, 1.ª alínea EDIÇÃO:
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18 | FEVEREIRO 2020
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Figura 3
EVOLUÇÃO DO TRANSPLANTE PULMONAR
TRANSPLANTE PULMONAR
UNILATERAL
NÚMERO DE TRANSPLANTES
No que diz respeito ao transplante pulmonar, que é realizado exclusivamente no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta (CHULC/HSM), os números mantêm a trajetória ascendente verificada desde 2008. Em 2019, foram realizados 39 transplantes – um número recorde, que suplanta os 28 efetuados em 2018 e mesmo os 34 de 2017 – figura 3. «O Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação [GCCT] do CHULC teve um papel central junto dos restantes gabinetes na sensibilização para a referenciação de dadores de pulmão. Como resultado, o pulmão passou a ser referenciado com maior frequência. Em 2016, fizemos 26 transplantes; no ano seguinte, 34; em 2019, fizemos 39», frisa o Dr. Paulo Calvinho, cirurgião cardiotorácico no CHULC/HSM. Além do «trabalho do GCCT do CHULC e de toda uma equipa multidisciplinar», o aumento do número de transplantes pulmonares a partir de 2016 está associado, em parte, ao alargamento dos critérios de doação e corresponde ao segundo grande impulso na transplantação pulmonar em Portugal. O primeiro ocorreu entre 2008 e 2009, com a restruturação do programa de transplantação pulmonar do CHULC/HSM, dirigido pelo Prof. José Fragata, que levou a um incremento significativo do número de transplantes realizados por ano. Para o aumento recente desta atividade contribuiu também a ampliação e o rejuvenescimento da equipa, que conta agora com mais duas equipas autónomas. «O programa de transplante pulmonar é centrado na multidisciplinaridade, sendo a cirurgia um dos braços. A Dr.ª Luísa Semedo coordena uma vasta equipa de Pneumologia que é pedra basilar, desde a referenciação até à alta dos doentes», refere o especialista.
BILATERAL
RETRANSPANTE
40
2
35 30 1
25
22
30
20 15
8
10 5 0
1
1 2
1
5
1
1
2 2
3 1
5
4
6
7
7
10
8
4
12
19
6
23
6 12
9
7
12 4
7
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Paulo Calvinho sublinha ainda a tendência crescente para a realização de transplantes bilaterais – «com melhor prognóstico a longo prazo» – e o início da atividade de retransplantação em 2018, bem como os primeiros transplantes bem sucedidos em doentes que estavam em oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês) como ponte para transplante. «A mortalidade perioperatória tem-se mantido na ordem dos 7% a 8%, a sobrevivência no primeiro ano em 88%, com melhoria nos últimos anos, e a sobrevivência aos cinco anos é superior a 60%, estando ligeiramente acima dos registos internacionais», refere. O cirurgião cardiotorácico destaca ainda dois desafios. Por um lado, é necessário que a Tutela tenha em conta o facto de que, ao aumento da atividade não tem correspondido uma evolução das instalações físicas alocadas ao programa de transplante pulmonar. Por outro lado, Paulo Calvinho acredita que muitos centros hospitalares, sobretudo os maiores, poderiam contribuir com a referenciação de mais pulmões para transplante. «É muito importante estarmos todos em sintonia com este projeto, que deve ser encarado como um programa coletivo, para bem dos doentes.»
Figura 2
EVOLUÇÃO DO TRANSPLANTE RENOPANCREÁTICO CHUC: primeiro TRP em 1993/94; total: 3 CHUP/HSA: primeiro TRP em 2000; total: 232 (220 TRP + 12 PAK) CHULC/HCC: primeiro TRP em 2007; total: 104 (97 TRP + 7 PAK) 30 25 20 15 10 5
18 20
17 20
15 20
13 20
11 20
09 20
07 20
05 20
03 20
01 20
93
/9
5
0
11
A Prof.ª La Salete Martins, coordenadora do Registo de Transplante Pancreático da SPT, salienta que o recurso a dadores com critérios expandidos tem representado a resposta possível ao envelhecimento dos dadores. No entanto, segundo a nefrologista no CHUP/HSA, esta solução é menos útil no transplante pancreático do que no renal, uma vez que, no primeiro caso, os dadores têm, necessariamente, de cumprir critérios mais estritos, o que limita mais a disponibilidade de órgãos. «O transplante pancreático é mais complexo do que o renal, tem um tempo de internamento mais dilatado e maior probabilidade de complicações no pós-operatório. Apesar destas dificuldades, temos conseguido manter os dois programas de transplante renopancreático a funcionar, com resultados a médio e longo prazos muito bons, comparativamente ao que se verifica a nível internacional», refere. De facto, no CHUP/HSA, todas as taxas a 10 anos são superiores às do International Pancreas Transplant Registry: sobrevivência do doente (91% versus 75%), sobrevivência do rim (84% versus 59%) e sobrevivência do pâncreas (76% versus 66%).
CHUP/HSA
CHULC/HCC
CHUC
CHUC: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; CHULC/HCC: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral; CHUP/HSA: Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António; PAK: transplante de pâncreas após rim, na sigla em inglês; TRP: transplante de rim-pâncreas
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