N.º 15 | Agosto de 2022
Revista oficial da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) | Ano 10 | Semestral | € 0,01
Percursos notáveis na transplantação No ano passado, sete personalidades que tanto contribuíram para o desenvolvimento da transplantação em Portugal aposentaram-se do Serviço Nacional de Saúde. Ao longo de 14 páginas, partilhamos os destaques desses notáveis percursos, dando também a conhecer como estes profissionais de saúde ocupam os seus dias após décadas de grande entrega à transplantação P.4-17
Dr. Américo Martins
Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva
Dr. António Castro Henriques
Dr. Domingos Machado
Novos e velhos desafios para a direção da SPT A nova direção da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), que iniciou o mandato 2022-2025 no passado mês de março, tem as suas prioridades bem definidas, destacando-se o crescimento da SPT, a organização de reuniões científicas, a divulgação de informação credível para a sociedade civil, a formação médica, o apoio à investigação científica e a colaboração com sociedades congéneres. No entanto, a SPT também pretende contribuir para a superação de desafios que persistem na área da transplantação em Portugal, como a descentralização do seguimento dos doentes transplantados, a revisão dos critérios de alocação de rins de dador falecido ou a criação de um programa de alocação específico para doentes hipersensibilizados. Como este número da TransMissão assinala a “passagem de testemunho”, nas próximas páginas, encontra as mensagens de balanço da Dr.ª Susana Sampaio (anterior presidente) e de antevisão da Dr.ª Cristina Jorge (nova presidente da SPT) P.2-3
Dr. José Guerra
Dr. Leonídio Dias
ÓRGÃOS SOCIAIS DA SPT 2022-2025: Dr.ª Susana Sampaio (presidente da Assembleia-Geral – AG), Dr.ª Marta Neves (vogal da Direção), Dr. Jorge Daniel (vice-presidente da Direção), Dr.ª Cristina Jorge (presidente da Direção), Dr.ª Lídia Santos (tesoureira da Direção), Dr.ª Inês Ferreira (vogal da Direção) e Dr.ª Alice Santana (vice-presidente da AG). Ausentes na fotografia: Dr. Tiago Nolasco e Dr. João Santos Coelho (vogais da Direção), Dr. David Prieto (secretário da AG), Prof. Aníbal Ferreira, Dr.ª Carla Damas e Dr. João Maciel Barbosa (presidente e vogais do Conselho Fiscal). Dr. Rui Dias
EDITORIAL
Tempo de balanço e um até sempre!
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o passado mês de março, terminou o mandato da direção a que presidi, que atravessou alguns obstáculos relacionados com a pandemia de COVID-19. Não foi possível concretizar muitos dos nossos objetivos e planos, sobretudo os que implicavam realização presencial. Após um período de incertezas, medos e grandes modificações de procedimentos e adaptações, fomos aprendendo a conviver com o vírus no nosso dia-a-dia. O ano de 2021 foi marcado por avanços e recuos, mas, timidamente, voltámos a encontrar-nos. No primeiro semestre, conseguimos organizar o XV Congresso Português de Transplantação. Foi o nosso primeiro grande evento em formato virtual, que contou com ampla participação de colegas brasileiros. Consideramos que este congresso foi um sucesso, com 247 participantes e 165 trabalhos aceites para apresentação. Depois de ganharmos experiência com as novas tecnologias, que passaram a fazer parte do nosso quotidiano e que, em algumas circunstâncias, vieram facilitar as nossas atividades diárias, organizámos o VII Curso de Transplantação Renal também em formato virtual. Dessa forma, conseguimos dividir as sessões por cinco dias, apenas durante a tarde, em duas semanas, o que consideramos uma aposta ganha. O feedback dos 46 formandos foi muito positivo, incentivando-nos a prosseguir com a aposta na formação dos nossos jovens.
Não tendo ainda sido possível organizar presencialmente a comemoração do Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação de 2021, não deixámos de assinalar a data, mais uma vez em formato virtual, numa sessão conjunta com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação. Também contámos com a colaboração dos hospitais, que, nesse dia (20 de julho), iluminaram as suas fachadas. Além disso, na nossa rede social, divulgámos vídeos com testemunhos de doentes transplantados. Finalmente, e com grande entusiasmo, voltámos a rever-nos presencialmente, em novembro, na nossa reunião nacional com o mote “Como motivar a equipa de transplantação”. Foi com grande satisfação que assistimos à participação e discussão ativa dos casos clínicos apresentados por jovens internos ou especialistas. Velhos e novos desafios foram apresentados e discutidos, esperando-se que possam contribuir para o aparecimento de algumas soluções. Já em março deste ano, o Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética organizou o primeiro curso nesta área. Foi de caráter mais prático, com apresentação e discussão de casos clínicos, o que despertou muito interesse e participação. A direção cessante da SPT orgulha-se de ter apoiado a criação deste grupo desde o primeiro momento e deseja a continuidade da sua participação ativa em todas as atividades da SPT. Antes da nossa despedida, foi também com muita satisfação que vimos aprovadas as propostas de atribuição do título de Sócios Honorários a três colegas que muito contribuíram para o desenvolvimento da transplantação em Portugal e que apoiaram, desde sempre, a SPT (ver texto abaixo). Neste meu último editorial, formulo o agradecimento da nossa direção aos colegas que sempre nos apoiaram e se disponibilizaram para participar ativamente em todos os eventos da SPT, engrandecendo-a. Um agradecimento pessoal desta “presidente” a todos os elementos dos órgãos sociais que me acompanharam nestes últimos anos. Para além da admiração profissional, fica uma grande amizade! Um agradecimento também aos nossos sócios! Com o contributo de todos, podemos trabalhar mais e melhor no sentido da nossa sublime missão que é prestar cuidados de excelência aos doentes transplantados! Por último, mas não menos importante, desejo muito sucesso à nova direção da SPT, que tem, com certeza, muitos desafios pela frente. Um até sempre!
Susana Sampaio Ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação
NOVOS SÓCIOS HONORÁRIOS DA SPT
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a assembleia-geral realizada no passado mês de março, em Coimbra, foi aprovada, por unanimidade, a proposta de atribuição do título de sócio honorário da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) à Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva, ao Dr. Fernando Macário e ao Dr. Domingos Machado. Conforme explica a Dr.ª Susana Sampaio, na altura presidente da SPT, “esta distinção é atribuída a colegas que se tenham destacado na área da transplantação, com um papel relevante e meritório”. A ideia de distinguir Ana Maria Calvão da Silva e Fernando Macário partiu de Domingos Machado. “Ao longo de vários anos, a vida de centenas de doentes foi poupada e a sua qualidade de vida melhorada graças à intervenção indispensável, embora muitas vezes nos bastidores, da Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva, enquanto responsável pelo Gabinete de Coordenação de Colheita e Transplantação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra”, realça o nefrologista e ex-presidente da SPT. Sobre a distinção de Fernando Macário, Domingos Machado destaca o papel do também ex-presidente da SPT no “desenvolvimento prestigiante” do Registo Português da Transplantação (RPT). “A sua intervenção levou a um grande desenvolvimento do RPT, que passou a ser mais completo, rigoroso e desenvolvido. Hoje, é dos melhores registos a nível mundial e isso deve-se, sobretudo, ao Dr. Fernando Macário”, justifica. A Dr.ª Susana Sampaio e o Dr. Domingos Machado comentam os recentes títulos de sócios honorários atribuídos pela SPT 2 | AGOSTO 2022
Dr. Fernando Macário, Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva e Dr. Domingos Machado
Susana Sampaio e a restante direção subscreveram por completo as sugestões, acrescentando o nome do próprio Domingos Machado para sócio honorário. “O Dr. Domingos Machado dedicou toda a sua vida profissional à transplantação, com uma grande entrega aos doentes, com quem sempre teve uma relação especial. Além disso, dinamizou a área da transplantação em Portugal, estabelecendo pontes com outros países, nomeadamente Espanha e Brasil. Durante dois mandatos, foi também presidente da SPT e tem apoiado todas as direções”, explica Susana Sampaio. Uma distinção que Domingos Machado aceitou com orgulho: “Além da surpresa, senti uma grande satisfação, porque é uma distinção raramente atribuída.” Neste momento, a SPT tem 11 sócios honorários: além dos três novos, integram o grupo os Profs. Federico Oppenheimer, José Medina Pestana, Bo-Goran Ericzon, Alexandre Linhares Furtado e Manuel Eugénio Machado Macedo, bem como os Drs. Mário Caetano Pereira, João Rodrigues Pena e Augusto Reimão Pinto.
Novo mandato: velhos e novos desafios
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aros Colegas e Companheiros da Sociedade Portuguesa de Transplantação, Aqui estamos cheios de entusiasmo, num novo mandato diretivo da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). Temos consciência de que há muito a fazer e que os tempos atuais nos impõem novos desafios. Efetivamente, quando as nuvens da pandemia pareciam estar a desvanecer, eis que surge a tempestade de uma guerra na Europa, que, além do enorme sofrimento humano, impôs limitações socioeconómicas com impacto em vários países. Até considerando este contexto, parece-nos primordial otimizar os recursos existentes para tornar mais eficiente e produtiva a forma como trabalhamos na área da transplantação. Assim, a descentralização do seguimento dos transplantados, desígnio por que muitos de nós lutamos há mais de uma década, deve ser uma prioridade. Relembro que a primeira reunião organizada pela SPT sobre este tema foi em novembro de 2011, mas a desejada descentralização continua a ser uma miragem para a maior parte dos hospitais que transplantam e seguem os doentes, sem adequação das condições logísticas e técnicas, nomeadamente sem recursos humanos em número suficiente. Outra prioridade é a revisão dos critérios de alocação dos rins de dador falecido, cuja regulamentação data de 2007 e que beneficia o tempo de diálise, sem balizar a compatibilidade HLA nem priorizar os melhores rins para os melhores recetores. Além da questão de justiça e equidade, a distribuição de um bem tão raro deve também considerar a maximização do tempo de vida útil do enxerto renal nos melhores recetores. A ausência de um programa de alocação específico para os doentes hipersensibilizados resulta na sua acumulação na lista de espera para transplante renal – atualmente, em Portugal, cerca de 30% dos candidatos em lista ativa estão nesta condição. Por outro lado, a implementação de inovações técnicas como máquinas de perfusão para manutenção dos órgãos após colheita, com benefícios comprovados nos resultados da transplantação de órgãos sólidos, deve ser uma possibilidade em todas as unidades de colheita e transplantação. Objetivos do mandato 2022-2025 Pretendemos manter as reuniões científicas da SPT (congressos, simpósios ou fóruns), para debater os problemas transversais à transplantação dos diferentes órgãos, e expandir a divulgação de informações nas plataformas digitais, mantendo a revista TransMissão como meio de comunicação com os sócios e a comunidade transplantadora. O Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética organizou com sucesso o seu primeiro curso no passado
mês de março, pelo que pretendemos incentivar e organizar mais iniciativas nesta área. A formação e o apoio à investigação científica também continuarão a ser apostas da atual direção da SPT, mesmo sem perspetivas de aumento dos apoios para esses fins. Assim, pretendemos manter a realização do Curso de Transplante Renal, com periodicidade bienal, a atribuição da Bolsa de Investigação Dr. António Morais Sarmento e estimular a publicação de artigos com o Prémio de Publicação. Consideramos ainda primordial manter o Gabinete de Registo da SPT na compilação de dados da transplantação renal, pancreática e cardíaca, equacionando o seu alargamento à transplantação hepática e pulmonar. A colaboração com sociedades científicas internacionais, como a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), a European Society for Organ Transplantation (ESOT), a European Federation of Immunogenetics (EFI) ou a European Kidney Health Alliance (EKHA), entre outras, é também um objetivo da nossa direção. Outra prioridade é continuarmos a angariar novos sócios, para promover o crescimento e a dinâmica da SPT. No passado dia 20 de julho, organizámos a sessão comemorativa do Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação na sede do Infarmed, em Lisboa, em parceria com o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), como já é tradição. Claro que se trata de um evento anual importante e que a SPT continuará a dinamizar. Este ano, espera-nos outro momento alto da nossa atividade: o Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, que ocorrerá em Cascais, entre 1 e 3 de dezembro. Contamos com a colaboração e a participação de todos nas atividades da SPT!
Cristina Jorge Presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação
ÓRGÃOS SOCIAIS DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE TRANSPLANTAÇÃO (2022-2025) DIREÇÃO Presidente: Cristina Jorge (Lisboa) Vice-presidente: Jorge Daniel (Porto) Tesoureira: Lídia Santos (Coimbra) Vogais: Inês Ferreira (Porto), Tiago Nolasco (Lisboa), Marta Neves (Lisboa) e João Santos Coelho (Lisboa)
ASSEMBLEIA-GERAL Presidente: Susana Sampaio (Porto) Secretário: David Prieto (Coimbra) Vice-presidente: Alice Santana (Lisboa)
FICHA TÉCNICA
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ETRATO
Américo Martins com quatro esculturas criadas por si. Na primeira, que apelidou de “Doação”, uma mulher segura uma bandeja com órgãos (em pormenor à direita). A seguir, na obra “Amor Paternal”, um homem com o seu filho ao colo. Depois, “O Pensador”, a primeira escultura feita pelo cirurgião. Ao centro, duas mãos que simbolizam amizade, fraternidade, amor…
DESTREZA MANUAL E INOVAÇÃO NA CIRURGIA E NA ARTE O Dr. Américo Martins, ex-diretor do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral, é o cirurgião português que, até agora, realizou mais transplantes de órgãos abdominais, destacando-se ainda pela introdução de técnicas pioneiras. Em entrevista, o também ex-coordenador do Centro de Referência de Transplantação daquele centro hospitalar resume o seu percurso profissional, revelando de que forma ocupa os dias desde que se aposentou do serviço público, nomeadamente com a família, o golfe e a escultura. Marta Carreiro
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1 de setembro de 1953, em Dornelas do Zêzere, no concelho de Pampilhosa da Serra, nasceu aquele que viria a ser o cirurgião com maior número de transplantes de órgãos abdominais realizados, até à data de hoje, em Portugal. Américo Martins, “um verdadeiro homem da província”, como o próprio se designa, explica que a sua opção por Medicina surgiu de forma natural, sem influência de terceiros. “No ensino secundário, segui a alínea F, que atualmente corresponde às Ciências e Tecnologias. Quando chegou a altura de ingressar no ensino superior, pareceu-me clara a decisão de me candidatar à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra [FMUC]”, conta. Dos dois anos vividos em Coimbra, recorda a “entusiasmante vida académica” e não o sucesso nos estudos. “É uma cidade sui generis, que nos estimula a desfrutar de tudo o que a vida académica tem para nos oferecer. Assim, nos dois anos em que lá estive, só consegui concluir duas cadeiras do curso”, comenta o cirurgião, com o sorriso de quem soube viver sem se perder no objetivo mais importante. Aos 20 anos, Américo Martins viu-se obrigado a interromper os estudos durante seis meses para cumprir o serviço militar obrigatório em Lisboa. Nessa altura, tomou a decisão de transferir a sua matrícula para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), onde acabou por terminar a licenciatura, em 1980. Foi aí que surgiu o seu fascínio pela área cirúrgica. “No Hospital de Santa Maria [HSM], achava muito interessan4 | AGOSTO 2022
tes as aulas de Cirurgia, que comecei a ter a partir do quarto ano. Aliás, era ainda aluno quando comecei a frequentar a Urgência, por iniciativa própria, e a participar em pequenas cirurgias. Esse foi o ‘gatilho’ que me levou a escolher, depois, a Cirurgia Geral como especialidade”, revela.
INÍCIO DE UMA CARREIRA DE REFERÊNCIA No exame de entrada para o Internato Complementar de Especialidade, Américo Martins obteve nota suficiente para permanecer no HSM, mas considerou que “os Hospitais Civis de Lisboa eram a melhor escola cirúrgica”, onde trabalhavam o Dr. Bentes de Jesus, o Dr. José Manuel Mendes de Almeida, o Dr. Jorge Girão e o Prof. Jorge Santos Bessa, só para citar alguns. “Nomes de relevo no panorama cirúrgico português”, afirma. Por esse motivo, Américo Martins candidatou-se às vagas disponíveis, ficando colocado no Hospital Curry Cabral (HCC). “Fui recebido por um cirurgião muito simpático e dedicado, que me deu toda a formação básica de Cirurgia Geral, o Dr. Vítor Passos de Almeida.”
Momentos da entrevista em vídeo ao Dr. Américo Martins
Foi quase no final do Internato Complementar de Cirurgia Geral que Américo Martins se apaixonou pelo universo da transplantação. “A Urgência Cirúrgica dos Hospitais Civis de Lisboa funcionava no Hospital de São José, onde me cruzei com o Dr. João Rodrigues Pena, o principal responsável pela minha ligação à transplantação, numa altura em que esta atividade estava a ser implementada em Portugal”, recorda. Ao que acrescenta: “Enquanto interno, acompanhei o Dr. Pena em colheitas de órgãos, observei-o a realizar transplantes renais no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa e, no final do internato, pedi-lhe para integrar a sua equipa. A transplantação tornou-se fascinante para mim!”
INOVAÇÃO E PIONEIRISMO NA TRANSPLANTAÇÃO Com a mudança, em 1988, de João Rodrigues Pena para o HCC, para inaugurar a atividade de transplantação neste hospital, começando pelo transplante renal, mas já com a garantia da Tutela de também iniciar o transplante hepático, Américo Martins passou a conciliar a atividade cirúrgica regular com a transplantação, que era ainda em baixo volume. Em 1992, o jovem cirurgião participou no primeiro transplante hepático realizado no HCC e em Portugal. “Entre 1989 e 1992, treinámos, num biotério, as técnicas de transplantação em leitões com 20 a 25 quilos. Este treino permitiu-nos executar anastomoses aos doentes sem qualquer dificuldade, evitando complicações.” De 1992 a 1994, a equipa da Unidade de Transplantação do HCC realizou um total de 13 transplantes hepáticos. Ansiando por adquirir mais conhecimento nesta área, Américo Martins participou num congresso de transplantação e cirurgia oncológica, realizado em Palma de Maiorca, onde se cruzou com o Dr. Paul McMaster, coordenador de transplantação no Queen Elizabeth Hospital, em Birmingham. “Ao deparar-me com este grande cirurgião de um dos maiores centros de transplantação hepática, muni-me de toda a coragem e pedi-lhe para fazer um estágio no seu serviço. Sensibilizado com o pedido, ele respondeu que, logo que chegasse a Inglaterra, iria escrever-me para darmos início ao processo. Nos quatro meses em que lá estive, participei num total de 150 transplantes hepáticos, o que me permitiu adquirir muito conhecimento e expertise.” De regresso a Portugal, Américo Martins nunca parou de procurar a inovação, o que lhe permitiu desenvolver e aplicar técnicas pioneiras, não só em Portugal, mas no mundo. Em 2001, realizou o primeiro transplante sequencial, ou em dominó, com a técnica de duplo piggy-back, que dispensa a utilização de bypass venovenoso, algo nunca antes feito em todo o mundo. Em 2007, desenvolveu a técnica em que o pâncreas transplantado é colocado sobre o mesocólon sigmoide (pâncreas ao colo), permitindo evitar complicações recorrentes neste tipo de procedimento, como a trombose. Em 2008, realizou o primeiro transplante renal com dador vivo do HCC. Ao longo da sua carreira no HCC, Américo Martins realizou cerca de 1500 transplantes hepáticos, 100 pancreáticos e 300 renais. “O número de transplantes realizados no nosso hospital foi crescendo ao longo dos anos. A transplantação hepática, por exemplo, teve um grande aumento, em parte devido à medida que implementámos de utilizar fígados de dadores com mais de 80 anos, uma vez que este é um órgão que se regenera e, por isso, não tem idade. Essa aposta contribuiu para que o HCC se tornasse na maior unidade de transplantação hepática a nível nacional”, esclarece o cirurgião. A par da evolução na sua execução cirúrgica, Américo Martins também se dedicou sempre a proporcionar uma formação de qualidade a todos os profissionais que foram passando pelo Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do HCC.
“MANTER AS MÃOS OCUPADAS”
CRONOLOGIA PROFISSIONAL 1973: Américo Martins entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra;
1974: interrupção dos estudos para cumprir o serviço militar obrigatório, em Lisboa;
1975-1980: licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; 1981-1985: Internato Geral no Hospital de Santa Maria e Serviço Médico à Periferia; 1985-1991: Internato Complementar de Cirurgia Geral no Hospital Curry Cabral (HCC); 1990-1998: colaboração com a equipa cirúrgica da Unidade de Transplantação Renal do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa; 1991: torna-se assistente hospitalar de Cirurgia Geral; 1994: estágio de quatro meses no Queen Elizabeth Hospital da Universidade de Birmingham, em transplantação hepática e cirurgia hepatobiliopancreática; 1996-1998: cirurgião, coordenador do Serviço de Urgência e chefe de equipa no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, na Amadora; 1998-2005: chefe da Equipa de Urgência de Cirurgia Geral no HCC, ao qual regressou; 2000-2005: coordenador da Cirurgia Laparoscópica Avançada no HCC; 2005: chefe de serviço de Cirurgia Geral no HCC; 2007-2021: subdiretor do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do HCC; 2008-2018: assistente convidado de Cirurgia na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; 2013-2021: coordenador dos Centros de Referência de Transplantação do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central.
Américo Martins costuma jogar golfe três vezes por semana, nos Campos da Aroeira e do Estoril.
seu objetivo é “manter as mãos ocupadas”. “Atualmente, os meus dias são divididos entre os jogos de golfe, as aulas de escultura e a família, principalmente os meus netos, com quem passo bastante tempo. Em breve, tenciono começar a ter também aulas de pintura. Acho que não há melhor forma de ocupar o tempo”, remata, com um sorriso. O cirurgião a trabalhar na sua mais recente escultura, que simboliza a atividade de transplantação, principal fonte de inspiração das suas obras.
Aposentado do Serviço Nacional de Saúde desde agosto de 2021, Américo Martins tem preenchido boa parte do seu tempo com a escultura e o golfe, modalidade desportiva que pratica há cerca de 15 anos. “Já participei em várias competições e, em algumas, fui vencedor. O golfe faz-me lembrar a cirurgia na medida em que é preciso delinear uma estratégia para, quando algo falha, sabermos exatamente o que fazer no sentido de corrigir a situação e conseguirmos atingir o objetivo”, explica. A escultura, por sua vez, é uma atividade mais recente na vida de Américo Martins, que começou a ter aulas há cerca de quatro meses, com o seu amigo escultor Francisco Vilaça. Quando questionado sobre o porquê de ter escolhido esta forma de arte aos 68 anos, o cirurgião responde que o |5
ETRATO
SALVAR VIDAS PELO TRANSPLANTE: UMA MISSÃO COM 40 ANOS
Desde o desafio de construir praticamente do zero um centro de histocompatibilidade até dirigir a colheita de órgãos para transplantação em Coimbra, sem esquecer as duras lutas em defesa dos doentes, o trajeto profissional da Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva foi de muita dedicação. A aposentação em março de 2021 – momento emotivo e com enorme reconhecimento e agradecimento por parte de doentes e colegas – foi o mote para a ex-diretora do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação (GCCT) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) receber a TransMissão em sua casa, revisitando memórias e momentos marcantes que também fazem parte da história da transplantação em Portugal. Pedro Bastos Reis
“S
into-me perfeitamente realizada.” É desta forma que a Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva faz o balanço de uma carreira profissional de 44 anos, 27 dos quais a dirigir o GCCT do CHUC. Não que tenha sido um percurso fácil, porque não foi. Por várias vezes, aliás, pensou em desistir, mas não o fez, encontrando forças para ajudar quem mais precisa. “Sempre fui solidária e isso fez-me continuar a ajudar os doentes que anseiam por um transplante para lhes salvar a vida”, afirma. A solidariedade, que encara como “uma missão de vida”, começou a ganhar forma logo na infância de Ana Calvão da Silva, sobretudo quando, durante cinco anos, saiu de Vilamar, no concelho de Cantanhede, para estudar, em regime de internato, no Colégio de Nossa Senhora da Assunção, em Anadia. A experiência “não foi fácil”, mas moldou-lhe a personalidade. A família acabaria por se mudar para Coimbra, onde Ana Calvão da Silva prosseguiu os estudos, primeiro no Liceu D. Maria e, depois, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, onde concluiu a licenciatura em 1977. Seguiram-se dois estágios, nos antigos Hospitais da Universidade de Coimbra e Hospital dos Covões, respetivamente em farmácia hospitalar e laboratório de análises clínicas. Em 1981, aceitou o desafio lançado pela Dr.ª Henriqueta Breda – que estava na Comissão Instaladora do Centro de Histocompatibilidade, na altura uma novidade em Portugal – para criar o Centro de Histocompatibilidade do Centro, recusando a possibilidade de ganhar “praticamente o dobro”, se tivesse continuado no Hospital dos Covões, ou até de seguir a carreira docente. “Foi quase como criar um filho ou construir uma casa”, diz Ana Maria Calvão da Silva. 6 | AGOSTO 2022
A vontade de inovar e ir mais além levou a jovem farmacêutica até Lisboa, onde, entre 1983 e 1984, trabalhou no Laboratório do Centro de Histocompatibilidade do Sul, com o Prof. Joaquim Machado Caetano, que a influenciou “profundamente”. Nessa altura, também trabalhou na área de Virologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, onde contactou com a Prof.ª Laura Aires. Outras fontes de enriquecimento profissional foram as oportunidades de, como bolseira do Conselho da Europa, ingressar no programa “Bourses Médicales Individuals”, em Paris, no ano de 1983, onde trabalhou com o Prof. Jean Dausset, e, mais tarde, em 1992, frequentar o 8th Histocompatiblity European Course, em Atenas. No entanto, o momento de viragem deu-se em 1993, com a criação dos Gabinetes Coordenadores de Colheita e Transplantação e a aprovação da legislação que regulamentou a colheita de órgãos e levou à criação do Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA). “A partir daí, a nossa atividade registou um salto qualitativo enorme. Antes, havia recusas de familiares de potenciais dadores que eram revoltantes e nos deixavam chocados”, recorda Ana Calvão da Silva, que, no ano seguinte, assumiu a direção do GCCT do CHUC. Além dos conhecimentos adquiridos, a farmacêutica estava também munida de muita força de vontade e da profunda convicção de que “nenhum órgão se pode perder”. Nem que seja à custa de “muitas horas sem dormir” para entregar um fígado em mãos, o primeiro enviado por Portugal para apelo, no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, a médicos que viajaram da Corunha (como aconteceu dias depois de assumir funções no
GCCT do Centro); ou para conseguir acionar a Força Área e, assim, colher um fígado no Funchal para salvar a vida de uma criança. São apenas dois exemplos de tantos desafios superados ao longo de 40 anos.
DESAFIOS E CONQUISTAS Numa viagem pelas suas memórias, Ana Maria Calvão da Silva, hoje com 67 anos, refere várias vezes o nome do Prof. Alexandre Linhares Furtado. Dos vários momentos marcantes com o pioneiro da transplantação em Portugal, destaca um episódio no início dos anos 2000. Em Bruxelas, o Prof. Linhares Furtado participava num congresso com o Prof. Philippe Morel, da Suíça, que recebeu uma chamada a dar conta de um dador de fígado falecido em Genebra, onde também estava um doente com polineuropatia amiloidótica familiar (PAF). Como, na Suíça, ainda não se fazia o transplante em dominó, Linhares Furtado, precursor deste procedimento, viajou até Genebra para realizar todo o processo. “Em minha casa, intermediei tudo à distância”, recorda Ana Calvão da Silva, que, na altura, deveria estar em repouso total para recuperar de uma lombalgia, mas que não deixou de dar o seu máximo para que aquele transplante fosse possível. “O Prof. Alexandre Linhares Furtado foi, talvez, a pessoa que mais marcou a minha vida profissional, não só pelo seu brilhantismo profissional e científico, mas também pela sua postura na vida”, realça. Se histórias como esta trazem ao de cima o melhor da transplantação, na memória de Ana Calvão da Silva estão também momentos difíceis, como a suspensão, durante nove meses, em 2011, do transplante hepático pediátrico em Portugal, na sequência da saída temporária do Dr. Emanuel Furtado, que, na altura, era o único cirurgião que realizava este procedimento no nosso país. Devido a esse interregno, duas crianças foram transplantadas em Espanha, o que implicou muito sofrimento nas famílias. “A Dr.ª Isabel Gonçalves, responsável pela Unidade de Hepatologia Pediátrica do CHUC, mandava-me os e-mails que recebia das mães. Foi um período muito doloroso. Outra grande preocupação nossa foi a obrigatoriedade de os GCCT nacionais oferecerem a Espanha todos os fígados de dadores com idade inferior a 45 anos (circular normativa da Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplantação)”, recorda. Na Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de Transplantação 2011, Ana Maria Calvão da Silva chamou a atenção para o problema. Pelo seu envolvimento ativo, e já depois de o transplante hepático pediátrico ter sido retomado, em 2012, “um momento de grande alegria”, a ex-diretora do GCCT do Centro foi homenageada pela Hepaturix quando se assinalaram os 20 anos de transplantação hepática pediátrica em Portugal, em 2014, ano em que também foi homenageada no Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação.
UMA NOVA FASE
DATAS MARCANTES 1977: Ana Maria Calvão da Silva conclui a licenciatura pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra;
981: instalação do Centro de Histocompatibilidade do Centro; 1 1992: integra o Conselho Consultivo da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA;
1994: assume a direção do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação do Centro;
2001: distinguida como Irmã Honorária pela Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Varzim, devido à sua contribuição para a transplantação hepática nos doentes com amiloidose hereditária; 2004: nomeada adjunta do coordenador nacional de transplantação do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST); 2012: integra a Comissão para Acompanhamento e Desenvolvimento da Doação e Transplantação do IPST; 2014: nomeada consultora da Direção-Geral da Saúde.
de mais tempo para mim e para a família, principalmente para os meus filhos e netos”, explica. Do momento de despedida do serviço público, Ana Calvão da Silva fala com emotividade das várias mensagens que recebeu de colegas de trabalho, presidentes de conselhos de administração, coordenadores hospitalares, entre muitos outros. Agora com mais tempo, a farmacêutica pretende começar a praticar ioga e pilates, “a bem da saúde física e mental”. Com um gosto especial por arte sacra (que tem ocupado um lugar importante na sua vida), antiguidades, pintura e porcelanas, Ana Maria Calvão da Silva manifesta ainda o desejo de aprofundar conhecimentos num curso sobre história da arte e das religiões. Além disso, e indo ao encontro de “um fascínio” que vem desde a infância e dos ensinamentos no Colégio de Nossa Senhora da Assunção, outro dos seus objetivos é fazer voluntariado. Também gostaria de concretizar um desafio que lhe foi lançado há alguns anos para reunir, em livro, as histórias dos doentes que tanto a marcaram e a quem tanto se dedicou, deixando “em cada doente um amigo”. “Tenho vários registos guardados na garagem para lhes pegar um dia, quando estiver mais consciente de que tudo isso aconteceu e de que deixei para trás uma vida muito ocupada para entrar numa fase diferente”, conclui Ana Maria Calvão da Silva.
A Dr.ª Ana Maria Calvão da Silva recorda os momentos que mais marcaram o seu percurso profissional
Além das homenagens, o reconhecimento da dedicação de Ana Maria Calvão da Silva à transplantação chega-lhe também sob a forma de telefonemas e mensagens que continua a receber dos doentes que ajudou, mesmo após a aposentação, a qual, “apesar de difícil, surgiu na altura certa”. “Precisava
Ana Maria Calvão da Silva tem um gosto especial por arte sacra, colecionando várias peças que adquiriu ao longo da vida, sobretudo em feiras tradicionais e viagens ao estrangeiro. Na imagem de Nossa Senhora da Piedade (na fotografia da direita) tem encontrado forças para enfrentar os momentos difíceis. Já a imagem do Menino Jesus (esquerda), que adquiriu numa venda de Natal da Basílica da Estrela, em Lisboa, quando tinha 24 anos, é uma das peças que guarda com maior carinho. |7
ETRATO
VIDA ATIVA APÓS PERCURSO DE REFERÊNCIA NA TRANSPLANTAÇÃO O Dr. António Castro Henriques aposentou-se em 2020 do Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António (CHUPorto/HSA), onde dirigiu, durante 22 anos, a Unidade de Transplantação Renal e foi pioneiro no Programa de Transplante Renopancreático. No court de ténis, primeiro, e na sua casa, depois, o nefrologista recebeu a TransMissão para uma conversa sobre o seu percurso de referência na área da transplantação, sem esquecer os planos desportivos e culturais, agora que tem mais tempo livre. Pedro Bastos Reis
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um início de tarde soalheiro, encontrámo-nos com António Castro Henriques no Clube de Ténis do Porto, após o seu treino de uma hora, que cumpre duas vezes por semana, com direito a treinador, não tanto pela vertente competitiva, mas, sobretudo, para manter uma atividade física regular. “Temos de lutar contra o envelhecimento precoce, mantendo uma vida ativa”, afirma o nefrologista, de 71 anos. A opção pelo ténis deve-se ao facto de ser um desporto que “dá para jogar a dois ou a quatro”, podendo ser praticado com os amigos e fomentando o convívio. Com a aposentação do serviço público, além da prática desportiva, outra prioridade do nefrologista passa por aprofundar os conhecimentos culturais, do cinema à literatura, da arte contemporânea ao património. Estes são já interesses antigos, mas, como agora tem mais disponibilidade, Castro Henriques quer dedicar-lhes mais tempo, pelo que se inscreveu em vários cursos do Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes, no Porto. “Numa das últimas aulas de literatura, falámos sobre Jorge de Sena, um escritor complexo, mas muito bom. Outra aula de património incidiu na cidade de Florença, ao passo que, numa aula de cinema, analisámos o filme Ana e As Suas Irmãs, de Woody Allen”, exemplifica o confesso “apaixonado pela arte em geral”. Horas depois do treino de ténis, já na casa onde vive e passou a infância, questionado sobre se o momento de deixar o hospital foi difícil, António Castro Henriques diz sentir saudades, principalmente do contacto com os doentes e os colegas. “Mas estou a conseguir adaptar-me à mudança”, afiança o nefrologista, que mantém atividade clínica na NephroCare Braga, onde vai duas a três vezes por semana desde 1984, quando aceitou o convite da Prof.ª Eva Xavier, na altura diretora do Serviço de Nefrologia do HSA e pioneira na área da transplantação. 8 | AGOSTO 2022
PIONEIRO DO TRANSPLANTE RENOPANCREÁTICO Apesar de, na juventude, ter equacionado seguir História ou Arqueologia, Castro Henriques acabou por, em parte, seguir as pisadas do pai, de quem também herdou o nome, “um clínico geral muito popular e estimado no Porto, que era conhecido como o médico dos artistas”. Depois do curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que concluiu em 1974, tinha intenções de enveredar pela Medicina Interna, mas a sua vontade de maior especialização numa determinada área acabou por prevalecer. Foi então que abraçou a Nefrologia, especialidade que, na altura, dava os primeiros passos em Portugal. O início do seu percurso como nefrologista coincidiu com um período de evolução substancial da transplantação, principalmente a partir de 1983, ano de viragem com a realização do primeiro transplante renal de dador falecido. Nesse contexto, em 1988, António Castro Henriques foi destacado para a Unidade de Transplante Renal do HSA. Dos seus primeiros passos na área da transplantação, o nefrologista recorda “a imunossupressão incipiente e leve com azatioprina e prednisolona”, bem como a realização de três biópsias por dia aos doentes transplantados. O aparecimento da ciclosporina, do tacrolimus e do sirolimus constituiu outro momento de viragem na transplantação. A par do Centro
Enxertos em vídeo da entrevista ao Dr. António Castro Henriques
DESTAQUES CURRICULARES 1973: monitor de Anatomia na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto;
1974: António Castro Henriques conclui o curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto;
1984: exame final do internato da especialidade de Nefrologia; 1988: integra a Unidade de Transplantação Renal do CHUPorto/HSA; 1994-2000: membro do Colégio da Especialidade de Nefrologia da Ordem dos Médicos; 1997: nomeado responsável pelo Programa de Transplante Renopancreático do CHUPorto/HSA; 1998: nomeado coordenador médico da Unidade de Transplantação Renal do CHUPorto/HSA; 2001: nomeado responsável pelo módulo de Nefrologia da cadeira de Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.
Hospitalar e Universitário de Coimbra e do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, no ano de 1987, o CHUPorto/HSA entrou no ensaio clínico do imunossupressor sirolimus, que se realizou em três continentes, prolongando-se nos anos seguintes. “Este estudo deu muito trabalho ao nosso hospital, mas foi entusiasmante contribuir para o surgimento de novas soluções de imunossupressão”, garante. Apostado em aprofundar conhecimentos na transplantação pancreática, em 1990, António Castro Henriques rumou a Mineápolis, nos Estados Unidos, para realizar um estágio na Unidade de Transplante Pancreático da Universidade do Minnesota, sob orientação do Prof. David Sutherland, referência mundial nesta área, em que os norte-americanos foram pioneiros. De regresso a Portugal, o nefrologista empenhou-se em iniciar o transplante renopancreático em Portugal. No estágio dos EUA, aprendeu a técnica de “ligação do pâncreas à bexiga”. Contudo, Castro Henriques sentia necessidade de aperfeiçoamento, pelo que, em 1999, os cirurgiões e restante equipa médica da sua unidade realizaram estágio na Unidade de Transplante Renal e Pancreático do Hospital Clínic de Barcelona, onde contactaram com a técnica de ligação do pâncreas ao intestino. “Foi um upgrade na qualidade”, assegura o nefrologista, que, com “grande entusiasmado”, no ano 2000, inaugurou o transplante renopancreático, no qual o CHUP/HSA foi pioneiro em Portugal. Castro Henriques recorda a ligação afetiva que estabeleceu com os primeiros recetores deste transplante, a quem dava o seu número de telefone para “ligarem a qualquer hora”. “Se houvesse complicações, queríamos atacá-las logo desde o início, pelo que tínhamos muita disponibilidade para os doentes”, explica.
FOTOGRAFIAS DO ARQUIVO PESSOAL
Pancreas Congresso da International Delegação portuguesa no 8.ºtion (IPITA), em Innsbruck, Áustria, and Islet Transplant Associa l Teixeira, Dr. Rui Almeida, Prof.ª La o Pimenta. 2001: Dr. Rui Seca, Dr. Manue Castro Henriques e Dr. Antóni Salete Martins, Dr. António
MOTIVOS DE ORGULHO A dinamização do Programa de Transplante Renopancreático coincidiu com a direção da Unidade de Transplantação Renal do CHUPorto/HSA, cargo para o qual Castro Henriques foi nomeado em 1998 e que ocupou nos 22 anos seguintes, até se aposentar. Um período marcado por inovações significativas ao nível do transplante de dador vivo, nomeadamente o ABO incompatível, de doentes hipersensibilizados e o transplante renal cruzado, quer a nível nacional quer internacional. António Castro Henriques é autor ou coautor de mais de 200 publicações indexadas. “É evidente que me orgulho muito pelo facto de os resultados do CHUPorto/HSA figurarem entre os melhores do mundo”, comenta. A juntar a uma atividade clínica e científica de excelência, o nefrologista manteve uma vida associativa ativa, integrando, a nível internacional, a European Society for Organ Transplantation e, a nível nacional, a Sociedade Portuguesa de Transplantação (da qual foi sócio fundador), a Sociedade Portuguesa de Nefrologia e a Associação dos Doentes Renais do Norte de Portugal. Também foi membro do Colégio da Especialidade de Nefrologia da Ordem dos Médicos entre 1994 e 2000, empenhando-se, particularmente, no âmbito formativo. “Uma das minhas vitórias foi a criação de um estágio opcional durante o internato de Nefrologia, que permite passar um período no estrangeiro ou em outros serviços”, salienta. Além de ter contribuído, de forma decisiva, para o desenvolvimento da transplantação renal e renopancreática em todo o país, António Castro Henriques realça a ligação de proximidade que sempre estabeleceu com os doentes, muitos dos quais começou a acompanhar há várias décadas, quando ainda faziam diálise, continuando a segui-los após o transplante. “Aposentei-me há ano e meio e ainda recebo mensagens de muitos doentes que acompanhei”, conta António Castro Henriques. Hoje em dia, além de maior disponibilidade para a prática de ténis e para aprofundar a paixão pelas artes e pela cultura, o nefrologista também tem mais tempo para a família, que, garante, “sempre compreendeu o trabalho fora de horas e o esforço em prol da transplantação”.
Dr. Grinyó (2.º a contar da esq.), Dr. António Castro Henriques (4.º da esq.), Dr. José Luís Reimão Pinto (4.º da dta.), Prof. Alfredo Mota (2.º da dta.) e Prof. Campistol (1.º da dta.), acompanhados por colegas espanhóis, que também participaram numa reunião de 2002, em Washington, a propósito do ensaio clínico tricontinental que levou ao lançamento do sirolimus.
orto/HSA A equipa do Serviço de Nefrologia do CHUP a António organizou uma festa surpresa na despedida Castro Henriques, em março de 2020.
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ETRATO
UM PIONEIRO NO TRANSPLANTE RENAL COM DADOR VIVO
Entrevistado com vista para um edifício que tantas vezes frequenta – o Centro Cultural de Belém –, o Dr. Domingos Machado conta-nos o seu percurso com mais de 40 anos na Medicina. O mote da conversa com a TransMissão é a sua aposentação, em dezembro de 2020, do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz, onde, nos últimos anos, dirigiu o Serviço de Nefrologia. Fazendo parte da equipa que inaugurou este hospital voltado para a transplantação desde a sua génese, o nefrologista ajudou a desenvolver essa vertente, sobretudo o transplante renal com dador vivo, no qual é considerado um pioneiro em Portugal. Domingos Machado sempre conciliou a agitada vida profissional com a paixão pelas atividades culturais, nomeadamente a música clássica. Marta Carreiro
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omingos Machado nasceu a 29 de janeiro de 1952, em Lisboa, cidade que o viu crescer enquanto pessoa e profissional, onde fez todo o seu percurso académico e a carreira de nefrologista. Seguir Medicina estava predestinado: “O meu pai e o meu avô eram médicos. Se, durante uma fase da minha vida, tentei fugir à ‘pressão’ que isso implicava, chegando a ponderar a Engenharia, quando chegou o momento de decidir o curso, não hesitei em optar pela Medicina”, conta. O nefrologista frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) de 1969 a 1975, sendo que os últimos dois anos foram passados nos Hospitais Civis de Lisboa. “Tive um ensino de excelência. Havia um grande entusiasmo por parte dos professores e dos médicos dos Hospitais Civis porque, até essa altura, não tinham assumido quaisquer atividades docentes pré-graduadas. É um período que recordo com muito afeto.” Em 1979, Domingos Machado foi convidado para integrar a equipa responsável pela organização e inauguração do Hospital de Santa Cruz (HSC), onde acabou por realizar o seu internato em Nefrologia e toda a carreira no Serviço Nacional de Saúde. “Foi um desafio ir para um hospital novo, extraordinariamente diferente do que havia em Portugal nos finais dos anos de 1970”, recorda. Antes disso, o jovem estudante de Medicina já tinha decidido que não optaria por uma especialidade cirúrgica. Durante o internato policlínico no Serviço de Medicina Interna do Hospital de Santo António dos Capuchos, foi convidado pelo Prof. Jacinto Simões para integrar a equipa que daria continuidade à carreira de nefrologista no HSC. Aceitou o desafio e assim começou o seu percurso de 40 anos na Nefrologia. Em 1987, Domingos Machado completou, com sucesso, os exames que lhe conferiram o grau de especialista em Nefrologia. Mais tarde, participou no concurso para obter o grau de chefe de serviço, cargo que assumiu desde 1999 até à aposentação, no final de 2020, conciliando com a direção do Serviço de Nefrologia desde 2016. 10 | AGOSTO 2022
UM DOS “PAIS” DO TRANSPLANTE RENAL EM PORTUGAL A atividade clínica de Domingos Machado no HSC centrou-se no tratamento e acompanhamento de doentes renais crónicos, quer nas fases pré-diálise quer em tratamento substitutivo da função renal (TSFR), no qual se insere a transplantação. O seu interesse por esta área também se justifica pela atração que sente pela Imunologia, cadeira que lecionou na FMUL desde meados dos anos de 1970 até 1990. O transplante renal, principalmente com dador vivo, foi uma das valências mais presentes na carreira de Domingos Machado, que é reconhecido como um dos “pais” deste procedimento em Portugal. Aliás, a transplantação renal foi um dos desígnios da criação do HSC, que iniciou esta atividade em 1983, aceitando, desde logo, “os casos mais difíceis, alguns rejeitados por outros hospitais”. “O nosso primeiro transplante renal foi num doente com hepatite B que outros hospitais não aceitaram realizar. Arriscámos, nós e o doente, e o procedimento teve sucesso, permanecendo muitos anos com o enxerto em bom funcionamento e sem problemas hepáticos”, recorda. No início dos anos de 1990, Portugal deu novo fôlego à transplantação renal com dador vivo, pela iniciativa do HSC. “O transplante com dador vivo, iniciado pelo Prof. Linhares Furtado em 1969, esteve parado no nosso país durante mais de dez anos. Com a sinergia entre nefrologistas e cirurgiões, retomámos essa atividade no HSC, que acabou por se tornar pioneiro na época moderna”, explica Domingos Machado. Atualmente, este hospital apresenta um número acumulado de transplantes renais com dador vivo que é dos mais elevados a nível nacional. “A transplantação é fascinante, motivo pelo qual dediquei grande parte do meu tempo a esta atividade. Sempre tive noção de que esta é, talvez, a vertente mais otimista da Nefrologia. Consola-nos proporcionar aos doentes uma opção de tratamento que aumenta a sua longevidade e, sobretudo, melhora a sua qualidade de vida, ao contrário dos outros TSFR”, comenta o nefrologista.
PAPEL ATIVO NA SPT Domingos Machado foi um dos membros fundadores da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), na qual integrou diversas direções como vogal, vice-presidente e, a partir de 2001, presidente, cumprindo dois mandatos seguidos. “Na presidência da SPT, pugnei pelo estreitamento de relações com o Brasil, que resultou numa grande colaboração entre os dois países, da qual é exemplo a organização anual dos Congressos Luso-Brasileiros de Transplantação”, afirma. Essa aproximação transatlântica deveu-se, também, aos esforços do Prof. José Medina Pestana, diretor do Hospital do Rim e da Hipertensão da Universidade de São Paulo, no Brasil, e do Dr. Norton de Matos, cirurgião vascular no Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António. Outro marco importante na história da SPT foi a organização do congresso da European Society for Organ Transplantation (ESOT), à qual Domingos Machado também pertence, em Lisboa, no ano de 2001. “Foi a principal reunião de transplantação realizada em Portugal e correu muito bem, dado o seu excelente nível científico e o empenho de toda a comissão organizadora, a qual tive o privilégio de integrar, mas sublinho o mérito do Dr. Norton de Matos e da Dr.ª Maria José Rebocho. O capital gerado com este congresso permitiu à SPT finalmente adquirir a sua sede”, destaca. Caracterizando-se como “um indivíduo curioso”, o nefrologista emprega parte do seu tempo ao estudo da Filosofia e da Ética, especialmente da Bioética e da Deontologia, que considera “imprescindíveis à prática médica”. “A meu ver, o principal título de ‘nobreza’ da Medicina obtém-se quando o médico age como ‘advogado do doente”, afirma o nefrologista, explicando que tal é possível através de “um diálogo aberto com cada doente e lutando, sempre que necessário, junto das hierarquias institucionais, para que lhe sejam disponibilizadas as melhores condições de assistência”. Para Domingos Machado, as preocupações éticas são ainda mais primordiais no âmbito da transplantação: “Por exemplo, a definição dos critérios de alocação de órgãos é um dilema ético de enorme importância, porque é necessário compatibilizar princípios de utilidade e justiça social. Por um lado, temos de procurar a melhor eficácia dos enxertos e, por outro, garantir que a distribuição dos órgãos é equitativa.”
a casa das minhas tias, deliciava-me com o som do piano que enchia todos os espaços. Além disso, em casa dos meus pais, ouvíamos regularmente discos de música clássica. Sempre conheci pessoas com um gosto especial pela Música e, logo que tive possibilidades, comecei a assistir a espetáculos ao vivo. Inclusive, há cerca de 50 anos, estive na inauguração do grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, que frequento com assiduidade desde então.” Aliando o fascínio pela Cultura ao gosto por viagens, Domingos Machado já percorreu diversos países, onde viu museus e exposições, assistiu a óperas e outros espetáculos. Um dia, estava em São Diego, nos EUA, quando soube que uma ópera La Bohème ia estrear em Los Angeles. Conseguiu bilhetes e fez uma viagem de várias horas só para assistir a esse espetáculo. O nefrologista também conta que o Festival de Ópera de Glyndebourne, a sul de Londres, é um dos que mais gostou de assistir. “O festival ocorre em ambiente campestre, durante a tarde, mas as pessoas vão vestidas muito formalmente, como se fossem para uma gala noturna. Ouve-se música da mais elevada qualidade e, nos intervalos, fazem-se piqueniques no relvado, junto de ovelhas. É uma experiência extraordinária!”
Destaques da conversa com Dr. Domingos Machado, que comenta momentos e aspetos particulares do seu percurso pessoal e profissional
O CHAMAMENTO DA MÚSICA CLÁSSICA Domingos Machado nutre várias paixões dentro do vasto mundo da Cultura, com destaque para a Música, a Literatura, o Cinema e as Artes Plásticas, sempre na perspetiva de apreciador. “Nunca deixei de fazer outras atividades de que gosto por causa do trabalho. Sempre procurei conjugar tudo”, sublinha. Na esfera da Literatura, o nefrologista destaca o seu gosto por ficção e ensaios de Medicina, História e Filosofia. Já a Música, sobretudo na vertente clássica, é a paixão que o faz ir mais longe. “Na minha infância, quando ia
CURIOSIDADES DO PERCURSO DE DOMINGOS MACHADO Esteve um ano em Moura, durante o internato policlínico, no âmbito do “Serviço Médico à Periferia”, uma experiência que possibilitou o contacto com uma população diferente da que conhecia. “Eram pessoas bastante carenciadas, algumas com mais de 60 anos que nunca tinham ido ao médico.” Realizou um estágio em Boston, em 1985, no departamento dirigido por B. Brenner, onde frequentou o primeiro curso de pós-graduação em Nefrologia promovido pelos hospitais de Harvard. Foi responsável, em conjunto com a Dr.ª Ana Maria Correia, pela realização do primeiro registo da Sociedade Portuguesa de Transplantação, em 1994. Participou em várias comissões responsáveis por conceber os algoritmos de distribuição de órgãos em Portugal e outras normas reguladoras da transplantação. Participou, como perito convidado, em várias auditorias da Direção-Geral da Saúde. Organizou a petição da SPT junto da Assembleia da República que levou à alteração da “Lei da Transplantação”, a partir da qual passou a ser possível a doação de órgãos por familiares para além do 1.º grau e por amigos. | 11
ETRATO
PRECURSOR DA TRANSPLANTAÇÃO RENAL NUM DOS MAIORES HOSPITAIS DO PAÍS Em 1979, o Dr. José Guerra iniciou a sua atividade clínica no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde percorreu todas as fases da carreira médica. Foi ali que realizou o internato geral, o internato da especialidade de Nefrologia e, posteriormente, desempenhou as funções de assistente, assistente graduado, assistente graduado sénior e, por fim, diretor de serviço. Aposentado do Serviço Nacional de Saúde desde agosto de 2021, o ex-diretor do Serviço de Nefrologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte/Hospital de Santa Maria encontrou-se com a TransMissão para recordar os destaques da sua carreira, sobretudo o trabalho desenvolvido no âmbito da transplantação renal. Marta Carreiro
A
história de José Guerra inicia-se em Benguela, no oeste de Angola, país que o viu nascer, crescer e tantas vezes partir. Na verdade, o nefrologista não teve uma infância típica; pode-se até dizer que cresceu com “uma cultura híbrida”, dada a frequência de deslocações entre Angola e Portugal derivadas do facto de o pai ser funcionário do Estado. “É muito provável que tenha conhecido todos os navios da Companhia Colonial e da Companhia Nacional de Navegação, tantas foram as viagens”, comenta, com humor. Também os seus estudos ficaram marcados por essa volatilidade – ora estudava um ano em Portugal, ora passava o seguinte em Angola. Após concluir o ensino secundário, em 1969, no Liceu de Oeiras, aguçado pelo seu “espírito aventureiro”, José Guerra optou por adiar o ingresso no ensino superior, dedicando dois anos à aquisição de novas experiências. Assim, em 1970, trabalhou num complexo fabril, onde contactou com o universo da Engenharia Química, que lhe despertou “um certo interesse”. Não se sentindo ainda preparado para tomar uma decisão quanto ao curso a seguir, em 1971, dedicou-se 12 | AGOSTO 2022
a dar aulas. Enquanto procurava descobrir a sua área de eleição, José Guerra foi-se interessando, cada vez mais, pelo caráter humanitário da vida e, consequentemente, pelas ciências humanas, com uma curiosidade especial pelo funcionamento do cérebro. “O meu interesse pelas Neurociências e a vertente humanitária da profissão foram os motivos fundamentais para seguir Medicina”, explica. Em 1972, José Guerra entrou no curso de Medicina, em Angola. O seu percurso académico foi também bipartido, com primeiro, segundo e quarto anos em Angola e terceiro, quinto e sexto anos do curso em Portugal. Para o médico, alternar entre países e instituições não dificultou a sua vida académica, tendo conseguido terminar o curso em 1979. “O meu ingresso no ensino superior deu-se numa fase muito particular em termos civilizacionais, com a emergência de amplas liberdades pela Europa. Além disso, Portugal e Angola passavam pelo fim da ditadura e pela Guerra Colonial. Motivado pela curiosidade que sempre tive, quis acompanhar de perto os acontecimentos em cada país, o que explica o meu percurso académico”, justifica.
PORQUÊ A NEFROLOGIA? Terminado o curso, José Guerra entrou para o Internato Geral no Hospital de Santa Maria (HSM), cumprindo, em seguida, um ano de Serviço Médico à Periferia, em Estremoz. Por fatores que ao próprio são alheios, acabou por não enveredar pelas Neurociências. “No ano em que realizei o exame de acesso ao Internato Complementar de Especialidade, não havia vagas para Neurologia. Ainda equacionei atrasar um ano a minha entrada na especialidade, contudo, tendo em conta que já tinha passado dois anos a aguardar pelo exame depois do Serviço Médico à Periferia, não quis adiar mais o Internato de Especialidade”, explica. Tendo a certeza de que queria enveredar numa área médica, e não cirúrgica, José Guerra verificou que, na altura, “a Nefrologia era uma das especialidades com maior tendência evolutiva”. Assim, em 1983, entrou no Internato Complementar de Nefrologia no HSM. Dessa época, o nefrologista recorda que a única terapêutica substitutiva da função renal existente no HSM era a diálise peritoneal. “Só por volta do meu terceiro ano de internato é que começámos a ter hemodiálise.” Na verdade, José Guerra vivenciou os maiores desenvolvimentos da Nefrologia, enquanto foi assumindo cada vez mais responsabilidades no HSM. Entre 2003 e 2005, foi adjunto da direção clínica. No Serviço de Nefrologia, coordenou vários setores, como Transplantação, Internamento, Unidade de Diálise, Consulta Externa e Consultadoria Interna, até chegar a chefe de serviço, em 2014, e diretor do serviço, em 2018, função que manteve até à aposentação, em agosto de 2021.
CRESCIMENTO DA TRANSPLANTAÇÃO RENAL NO HSM O interesse especial pela transplantação renal surgiu durante o período em que José Guerra esteve no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP), com funções acumuladas de aprendizagem. “Foi o que me abriu portas ao transplante, uma vez que, no HSM, só iniciámos esta atividade em 1989.” Nos anos de 1980 e 1990, o HCVP era a maior unidade de transplantação renal do nosso país e uma das dez maiores da Europa – em 1996, por exemplo, realizaram-se 96 transplantes neste hospital. Com a experiência adquirida, José Guerra foi um dos grandes impulsionadores do início da transplantação renal no HSM. Aliás, foi o responsável médico do primeiro transplante renal realizado neste hospital, ainda como interno. Quase dez anos depois, em 1998, foi nomeado responsável médico da Unidade de Transplantação Renal (UTR) do HSM. “Na altura, realizávamos uma média de oito transplantes por ano, era quase um acontecimento”, recorda. Foi também este nefrologista que elaborou o protocolo do Programa de Transplantação Renal com Dador Vivo do HSM, que se iniciou, com êxito, em 2002, permitindo aumentar esta atividade no hospital.
Com a sua perseverança, José Guerra realizou o processo de candidatura da UTR a Centro de Referência, em 2016, tornando-se então o coordenador de toda a equipa de transplantação renal, cargo que desempenhou até à sua aposentação do serviço público, em agosto de 2021. Com a passagem a Centro de Referência, foi possível manter a qualidade do trabalho e aumentar progressivamente o número de transplantes – em 2016, realizaram-se 40; em 2017, 60; em 2018, 70; em 2019, 79; em 2020, apesar da pandemia, ainda se realizaram 60 transplantes de rim no HSM. José Guerra também liderou a candidatura à Certificação da UTR pelo Departamento de Qualidade da Direção-Geral da Saúde (DGS), processo concluído, com êxito, em janeiro de 2020. O nefrologista garante que todas as conquistas só foram possíveis graças a “uma equipa motivada, que sempre se empenhou em alcançar os objetivos”.
VIDA PARA ALÉM DA PRÁTICA CLÍNICA Ao longo da carreira, José Guerra tomou a formação médica como uma das suas prioridades: manteve atividade docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa desde 1986, foi orientador de formação dos internos na Unidade de Transplantação Renal e, posteriormente, assumiu a responsabilidade da formação dos internos no Serviço de Nefrologia. A investigação também foi uma área à qual se dedicou, tendo desenvolvido vários trabalhos, principalmente relacionados com a avaliação da evolução e dos riscos do transplante de dador vivo e a otimização de terapêutica imunossupressora. Neste âmbito, também participou em vários estudos multicêntricos nacionais e internacionais. Atualmente aposentado do serviço público e com 69 anos, o nefrologista tem aprofundado e dedicado mais tempo à prática de atividade física. Também pratico desportos aquáticos, como andar de caiaque. Além disso, gosto de atividades que me permitem estabelecer uma ligação direta com a natureza, como o trekking e a observação de aves”, revela. José Guerra é também um apreciador de música erudita e pop dos anos de 1950, 1960 e 1970, além de que procura acompanhar os eventos culturais que vão ocorrendo na cidade de Lisboa. “Sou uma pessoa disposta a disfrutar de todas as possibilidades que o nosso mundo tem para oferecer”, conclui.
Momentos marcantes na vida do Dr. José Guerra contados na primeira pessoa
MAIORES CONQUISTAS ENQUANTO JOSÉ GUERRA FOI DIRETOR DO SERVIÇO DE NEFROLOGIA DO HSM riação de consultas multidisciplinares, como a Consulta C de Cuidados Paliativos e Tratamento Conservador; Redução da demora média no internamento para sete a oito dias, com muito baixo índice de reinternamento; Aumento, em cerca de 60%, do número de primeiras consultas, com a consequente melhoria da acessibilidade à consulta externa de Nefrologia; Aumento superior a 50% no número de transplantes renais efetuados anualmente; Aumento do número de especialistas no Serviço; Redução do tempo médio de espera para consulta, de 168 para 48 dias; Aumento significativo da atividade científica (comunicações em congressos, publicação de artigos e participação em ensaios clínicos e estudos multicêntricos nacionais e internacionais); Certificação da Unidade de Transplantação Renal; Início da Certificação do Serviço de Nefrologia e Transplantação Renal; Aprovação do projeto para as novas instalações da Unidade de Transplantação Renal.
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ETRATO
PAIXÃO POR MEDICINA E LITERATURA DESDE A INFÂNCIA
Das “cirurgias” em bonecos de papelão às leituras “clandestinas”, o Dr. Leonídio Dias acreditou, desde cedo, que seria médico e que a Literatura o acompanharia ao longo da vida. Após 40 anos de dedicação ao Centro Hospitalar Universitário do Porto/ /Hospital de Santo António (CHUPorto/HSA), onde coordenou a Unidade de Transplante Renal, aposentou-se do serviço público no verão de 2021, pretexto para uma conversa com a TransMissão, colocando em retrospetiva a vida profissional e a procura do belo na poesia. Pedro Bastos Reis
“H
ei de ser médico ali.” Aos 10 anos de idade, quando passava junto ao Hospital de Santo António no elétrico 6, proveniente do Carvalhido e com destino à baixa do Porto, Leonídio Dias tinha o pressentimento de que, um dia, trabalharia naquele hospital emblemático. O destino estava traçado e a aspiração de criança concretizou-se: durante quatro décadas, aquele edifício foi a segunda casa de Leonídio Dias, que dedicou a sua carreira à Nefrologia e à transplantação renal. “Devo muito a este hospital, onde cresci e tanto aprendi”, desabafa. Nascido a 4 de agosto de 1954, no Porto, na Maternidade Júlio Dinis (onde a mãe trabalhava), muito tempo da infância de Leonídio Dias foi passado na rua, a jogar à bola e à sameira com os amigos, mas também na Casa-Museu Fernando de Castro, dependência do Museu Nacional de Soares dos Reis, onde o pai era vigilante. Foi aí que, ainda antes de entrar na escola primária, aprendeu a ler, folheando o Jornal de Notícias. Primórdios de um gosto pela leitura que lhe ficaria para o resto da vida. Apesar das brincadeiras na rua com os amigos, Leonídio Dias recorda também a “solidão” da sua infância, fruto de ser filho único e da vida profissional atarefada dos pais. “Às vezes, ficava em casa sozinho e tinha de inventar”, recorda, admitindo que o interesse pela Medicina, quiçá com alguma influência do seu padrinho, que era médico, nasceu 14 | AGOSTO 2022
nessa altura. “Eu fazia bonecos de papelão e metia-os em caixas de saboneteiras, que depois transformava em helicópteros imaginários, levando doentes para o hospital, onde os operava. Acho que fiquei médico desde os 10 anos. Aquelas brincadeiras entraram no meu ser”, conta.
CAMINHO NATURAL PARA A TRANSPLANTAÇÃO Aos 18 anos, Leonídio Dias entrou na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, desde logo com um interesse especial por Anatomia Patológica, Farmacologia e, sobretudo, Imunologia, o que lhe valeu a alcunha de “C3NEF”. “Numa apresentação, falei bastante tempo sobre o sistema do complemento e o fator nefrítico e os colegas de curso passaram a chamar-me de ‘C3NEF’. Mal eu sabia que viria a ser nefrologista”, explica. Dos tempos de estudante, Leonídio Dias também gravou na memória os “convívios na cantina da Faculdade de Medicina”, em que os professores se juntavam aos finalistas, cantando e dançando, com violas em punho. No dia 3 de janeiro de 1981, Leonídio Dias começou o internato geral no HSA, ponto de partida para uma carreira de quatro décadas naquele hospital. O único interregno deu-se entre 1992 e 1994, quando esteve no Hospital de Vila Nova de Gaia para ajudar a alavancar o Serviço de
OS LIVROS FAVORITOS DE LEONÍDIO DIAS Obra Poética I & II, de Sophia de Mello Breyner Andresen (Círculo de Leitores); Ágora, de Ana Luísa Amaral (Assírio & Alvim); C ântico do Homem, de Miguel Torga (Editora Coimbra); Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho (Porto Editora).
Nefrologia. De regresso à “casa-mãe”, passou a trabalhar na área que marcaria o seu restante percurso profissional: a transplantação renal. O primeiro transplante renal proveniente de dador falecido do HSA realizou-se em 1981, pouco depois de Leonídio Dias ter começado o internato geral, o que, na altura, lhe despertou muito interesse. Além disso, com a transplantação a dar os primeiros passos, aumentava o interesse por esta área, sobretudo depois de, em 1986, se ter realizado o primeiro transplante de dador vivo naquele hospital. Quanto às suas referências no HSA, o nefrologista destaca o Dr. António Morais Sarmento, primeiro coordenador do Programa de Transplantação Renal (PTR), criado em 1983; o Dr. Mário Caetano Pereira, ex-diretor do Departamento de Transplante de Órgãos deste hospital e “um dos pioneiros da transplantação em Portugal”; e o Dr. António Castro Henriques, “uma pessoa extremamente empenhada no desenvolvimento do PTR do HSA”, do qual foi o segundo coordenador.
DINAMISMO NACIONAL E INTERNACIONAL Já centrado numa área que lhe permitia conjugar a paixão pela Nefrologia e pela Imunologia, a década de 1990 foi de grande atividade para Leonídio Dias. Desde logo com um estágio na Unidade de Transplante Reno-Pancreático do Hospital Clínic de Barcelona e com o envolvimento na European Living Donor (EULID) e no Living Donor Observatory (LIDOBS), dois organismos patrocinados pela Comissão Europeia, que emitiram, de forma sistemática, importantes recomendações no âmbito do transplante de dador vivo. Dessas experiências, o nefrologista realça “a alegria de ver as conclusões destes grupos de trabalho divulgadas pela Europa”, destacando também “o papel fundamental” da Dr.ª Ingela Fehrman, da Suécia, e do Dr. Martí Manyalich, de Espanha, enquanto “defensores do transplante em que a proteção do dador vivo assumia primordial importância”. Em Portugal, o CHUPorto/HSA foi pioneiro no transplante ABO incompatível, no transplante de doentes hipersensibilizados e no transplante renal cruzado. Leonídio Dias fez parte do grupo de trabalho que elaborou a Regulamentação do Transplante Renal Cruzado e também dos comités de peritos do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) nesta área e para atualização dos estudos imunogenéticos dos pares dadores-recetores. Face aos avanços que se iam registando, Leonídio Dias acreditava que ainda era possível ir mais longe. Nesse sentido, bateu-se pela internacionalização de Portugal no transplante renal cruzado, estando também na génese da introdução da South Alliance for Transplants, que engloba os pares dador-recetor de Portugal, Espanha e Itália. O primeiro transplante renal cruzado internacional realizado no nosso país ocorreu no dia 12 de março de 2020, no CHUPorto/HSA, dias antes de ser decretado o estado de emergência em Portugal devido à COVID-19. A pandemia, de resto, marcou o período em que Leonídio Dias assumiu a coordenação da Unidade de Transplantação Renal do CHUPorto/HSA (de janeiro de 2020 a agosto de 2021), limitando muito a sua atividade.
GOSTO ESPECIAL PELA POESIA Após a aposentação, além de seguir com mais pormenor as publicações do New England Journal of Medicine, Leonídio Dias dedica mais tempo à Literatura, uma grande paixão, da qual fala com o mesmo sorriso que é visível quando o assunto é o CHUPorto/HSA. Afinal, tal como a Medicina, a Literatura é uma paixão antiga, que nasceu na sua infância. “Quando tinha 12 anos, houve um dia em que me ‘perdi’ de tal modo a ler O Príncipe e o Pobre, de Mark Twain, sentado à porta de um prédio, que faltei
às aulas. Claro que depois os meus pais se zangaram comigo [risos]”, conta Leonídio Dias, acrescentando que “ficava com uma lanterna a ler livros de aventuras noite afora”. Com o passar dos anos, o gosto pela Literatura foi-se dirigindo para a poesia. Além de Miguel Torga, que, “no meio da opressão e da escuridão, escrevia para procurar a verdade e a luz sobre o futuro”, Leonídio Dias tem predileção por Sophia de Mello Breyner Andresen e Ana Luísa Amaral. “Há uma hermenêutica nestas duas poetisas, cuja escrita parte do seu mundo e das suas vivências, para depois procurarem o belo. E procurar o belo, na poesia, é procurar a verdade”, reflete. Entre os seus livros favoritos, o nefrologista indica o romance Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho, cuja narrativa se desenrola na Lusitânia do século III, durante o Império Romano. “É a história de um homem para quem o interesse da cidade estava acima dos interesses particulares; um homem que, na sua liderança, tentou sempre ser justo”, resume. O interesse particular pela História é, aliás, outra vertente a que Leonídio Dias se pretende dedicar agora que tem mais tempo para além do trabalho, quiçá com a participação num curso sobre história medieval ou história portuguesa do século XIX. Além disso, terá de continuar a sua prática de exercício físico, como andar de bicicleta. “Sempre fui um pouco ‘anarca’ a gerir o tempo e, mesmo agora, se não o conseguir gerir bem, não vai ser fácil”, confessa, entre risos. É que, apesar de aposentado do serviço público, o nefrologista continua a trabalhar em hemodiálise, numa clínica de Vila Nova de Gaia, e não planeia abandonar a Medicina tão cedo. “Aquele desejo de ser médico, que vem desde os 10 anos, continua. E vai continuar até ao último dos meus dias.”
“Procurar o belo na poesia é procurar a verdade”, diz Leonídio Dias, grande admirador de Literatura Portuguesa. A paixão pelos livros, cada vez maior, começou na infância/adolescência, quando, às escondidas, lia Mark Twain e livros de aventuras. Antes de entrar para a escola primária, aprendeu a ler com a ajuda do pai, folheando o Jornal de Notícias.
Veja e ouça o Dr. Leonídio Dias a partilhar passagens marcantes do seu percurso
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ETRATO
UMA ROTA DE
“BONS PESCADOS” Agraciados pela brisa fresca do rio Mondego, conversámos com o Dr. Rui Dias na Marina da Figueira da Foz, onde atraca o seu Tântalo II, o barco que lhe permite alimentar uma grande paixão: a pesca desportiva no mar. Aos 66 anos, o ortopedista, que foi responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) desde 2004 até à aposentação do serviço público, em julho de 2021, falou sobre o percurso na Ortopedia e na área da transplantação, sem esquecer o seu particular interesse pelo universo aquático, nomeadamente pela pesca. Marta Carreiro e Pedro Bastos Reis
L
ogo para início de conversa, Rui Dias não esconde a adoração que nutre pela cidade onde nasceu e fez toda a sua vida. “Foi em Coimbra que me formei em termos académicos, cívicos e profissionais, contribuindo para a pessoa que sou hoje”, afirma. Apesar de sentir, desde jovem, uma curiosidade especial pelo universo da Medicina, a ideia inicial de Rui Dias era seguir um curso relacionado com a Engenharia. No entanto, terminado o ensino secundário no Liceu D. João III, atual Escola Secundária José Falcão, não hesitou em responder ao chamamento da Medicina, uma escolha da qual se orgulha e que, “por obra do destino”, acabou por conseguir conciliar com o seu fascínio pela Engenharia, ao seguir a especialidade de Ortopedia. Rui Dias entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1973 e foi inevitável envolver-se nas lutas estudantis, vivendo “intensamente” os acontecimentos que desembocaram na Revolução do 25 de Abril, no ano seguinte. “A maior parte das minhas memórias dessa época estão ligadas
SABIA QUE…
às amizades que fiz. Muitas perduraram no tempo e ainda hoje se mantêm. Foi uma altura brilhante”, recorda. Em 1979, Rui Dias concluiu a licenciatura em Medicina e iniciou os dois anos de internato geral. O resultado obtido no exame de acesso ao Internato Complementar de Especialidade permitia-lhe escolher qualquer área. “Quando fui para o curso de Medicina, não tinha nenhuma ideia pré-definida da especialidade que queria seguir. Depois, percebi que gostava de conciliar a vertente médica com a cirúrgica e acabei por optar pela Ortopedia”, explica. Assim, em 1983, Rui Dias iniciou o internato da especialidade nos Hospitais da Universidade de Coimbra, agora CHUC, cujo Serviço de Ortopedia “já era de grande relevo” naquela altura. Obtendo o grau de especialista em 1990, o ortopedista manteve-se no CHUC até meados de 1991, mudando-se depois para o Hospital Distrital de Bragança. Logo a seguir, integrou a equipa fundadora do Serviço de Ortopedia do Hospital Distrital de Macedo de Cavaleiros, onde também dirigiu o Serviço de Consulta Externa e o Serviço de Urgência. “Estive dois anos e meio em Macedo de Cavaleiros e posso dizer que foi uma das melhores experiências da minha vida. Eu era um recém-especialista cheio de ideias, que viu ali uma oportunidade para crescer”, diz. Em 1993, Rui Dias regressou a Coimbra, ao hospital onde se formou e no qual se manteve até à aposentação, a 1 de julho de 2021. Ao longo da sua carreira, o ortopedista realizou mais de dez mil cirurgias, a maior parte no Serviço de Ortopedia do CHUC, mas também noutros locais, nomeadamente: Hospital Distrital de Bragança, Hospital Distrital de Macedo de Cavaleiros, Hospital de Lamego, Hospital Arcebispo João Crisóstomo, Hospital de Elche (Espanha), Hospital Cantonal de Friburgo (Suíça) e Clínica MAPFRE, em Madrid. Assim, adquiriu grande experiência na cirurgia traumatológica e na cirurgia reparadora da anca e do joelho, as suas áreas de maior interesse e especialização.
…em 2015, Rui Dias recebeu a distinção de “honra de cavaleiro” pela sua participação, como palestrante, no XXIII Congresso da Sociedade Latino-Americana de Ortopedia e Traumatologia? Nas suas intervenções nesse congresso, que se realizou na Cidade do México, o ortopedista abordou as patologias do joelho e temas relacionados com a transplantação e os aloenxertos. 16 | AGOSTO 2022
CONDIÇÕES PARA UMA “BOA PESCARIA”
Segundo Rui Dias, as condições meteorológicas e marítimas são essenciais para perceber se o dia poderá ser bom para a pesca. Além disso, o ortopedista considera essencial utilizar cartas náuticas, que assinalam as zonas de melhor pescado. Nas águas de Figueira da Foz e São Pedro de Moel, onde Rui Dias costuma pescar, os peixes mais comuns são:
ROBALO
FANECA
LIGAÇÃO À TRANSPLANTAÇÃO DE TECIDOS ÓSSEOS O Prof. Fernando Judas foi o principal responsável pela ligação do Dr. Rui Dias à área da transplantação, pois foi quem o convidou a integrar a equipa do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC, nos anos de 1990, onde descobriu o fascínio pelo universo da transplantação. “É extraordinário como um tecido de uma pessoa poder ser útil e resolver problemas graves de outras pessoas. Para nós, médicos, é muito compensador termos a possibilidade de salvar vidas através de um ato de extremo altruísmo. Todos devem reconhecer a importância do ato nobre da doação”, afirma. Em 2004, o ortopedista assumiu a responsabilidade pelo Sistema de Qualidade deste banco, função que desempenhou até à sua aposentação do Serviço Nacional de Saúde. Criado pelo Prof. Norberto Canha, em 1982, o Banco de Tecidos Ósseos de Coimbra foi o primeiro em Portugal. Rui Dias destaca a “perseverança” das pessoas que foram integrando este banco ao longo dos anos, “tendo sempre em vista a constante expansão, a melhoria das instalações e da metodologia de trabalho”, resultando na estruturação de “um verdadeiro sistema de qualidade”. O ortopedista destaca o contributo da enfermeira Celeste Francisco, atual responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC, que dedicou muito tempo ao crescimento desta estrutura do Serviço de Ortopedia. Dentro do vasto universo da transplantação, Rui Dias considera que “a área dos tecidos ósseos é uma das mais gratificantes”, na medida em que, comparativamente a outras vertentes, como a renal ou a cardíaca, “não implica um risco de rejeição relevante”. Contudo, “é de sublinhar a dificuldade relacionada com a triagem dos dadores, sendo muitas vezes difícil encontrar tecidos em boas condições”. Da sua intervenção neste âmbito, Rui Dias tem sido um membro ativo da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT). “Pertencer à SPT é um enorme gosto para mim. Foi uma porta que se abriu e me permitiu conhecer pessoas magníficas, todas com um sentido comum: a luta pelo bem-estar do doente.”
PERCA
SAFIO
De facto, o ortopedista manteve a pesca desportiva sempre presente na sua vida, apesar de ter passado por uma fase em que não conseguiu dedicar-se a este seu hobby, por motivos profissionais. Chegado ao ano 2000, por uma conjugação favorável de fatores, Rui Dias adquiriu a sua primeira embarcação de pesca, que batizou de Tântalo, o nome de um elemento químico metálico. Este foi o gatilho para retomar, à séria, a atividade da pesca desportiva. “Há uma frase de que gosto muito porque espelha bem o meu sentimento pela pesca: mais vale um mau dia de pesca do que um bom dia de trabalho. Ou seja, às vezes, vamos à pesca mais pelo convívio com os colegas ou pela possibilidade de um momento de reflexão a sós, apenas com a cana e os peixes, do que pelos resultados da pescaria em si”, explica. Em 2009, o ortopedista adquiriu uma nova embarcação, apelidada de Tântalo II, que mantém até aos dias de hoje. Apesar de a pesca ser o seu principal interesse extraprofissional, Rui Dias também gosta de Política, sendo o atual presidente da Mesa da Assembleia da Junta de Freguesia de Santa Clara e Castelo Viegas, pelo Partido Socialista. Ao nível associativo, é também membro da direção do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro.
Em vídeo, conheça o Tântalo II, o barco de pesca de Rui Dias, bem como os destaques da entrevista à beira-rio
Rui Dias ao comando da sua atual embarcação de pesca, que apelidou de Tântalo II, depois do seu primeiro barco Tântalo, nome de um elemento químico metálico. Hoje em dia, o ortopedista dedica-se sobretudo à pesca marítima
ESPAIRECER COM A PESCA DESPORTIVA Como cresceu numa cidade plantada à beira-rio, Rui Dias estabeleceu contacto com o universo aquático desde muito cedo, sobretudo com o rio Mondego. “Em miúdo, com os meus amigos, percorria as margens do rio com regularidade. Na altura, podíamos ir desde a ponte de Santa Clara até à Portela, no verão, sem molhar os pés. Procurávamos aproveitar todas as possibilidades que o rio tinha para nos oferecer, nomeadamente a pesca, atividade pela qual nutro um especial interesse até aos dias de hoje”, conta.
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RANSFORMAR
DIÁLOGO PRÓXIMO ENTRE LABORATÓRIO E CLÍNICA
Grupo de intervenientes e assistência que marcaram presença na reunião organizada pelo Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética da Sociedade Portuguesa de Transplantação
O Grupo de Histocompatibilidade e Imunogenética (GHI) da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) foi criado em 2019, no decorrer do Congresso da European Federation for Immunogenetics realizado em Lisboa. Três anos depois, e com uma pandemia pelo meio, foram aprovados os corpos sociais e, a 26 de março passado, realizou-se o primeiro curso organizado pelo grupo – um evento dinâmico e centrado na discussão de casos clínicos. Pedro Bastos Reis
O
curso, que contou com cerca de 50 inscritos, arrancou com uma sessão teórica sobre o estudo laboratorial para transplante de órgãos sólidos. A primeira apresentação, que ficou a cargo do Dr. António Martinho, focou-se no estudo inicial do candidato para inscrição em lista de espera. A esse respeito, o responsável técnico-científico de transplantação no Centro de Sangue e Transplantação (CST) de Coimbra e um dos impulsionadores do GHI da SPT salientou a importância da “primeira avaliação do doente”. “Estamos no caminho certo para classificarmos, cada vez melhor, os doentes e para que estes sejam transplantados com toda a segurança e com uma análise de risco consubstanciada.” António Martinho asseverou também que “é necessário que os clínicos entendam o trabalho de laboratório, nomeadamente como se estuda imunologicamente os doentes, como se faz a classificação e a avaliação do risco”. Por outro lado, o orador relevou a importância do “diálogo com todos os parceiros e o meio envolvente do doente na transplantação de órgãos e tecidos”. Quanto ao estudo laboratorial de dador falecido, o Dr. Luís Ramalhete, do Laboratório Serológico de Lisboa do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), evidenciou a importância do “diálogo com as unidades”. Nesse sentido, e apresentando já a perspetiva do nefrologista, a Dr.ª Rita Leal discorreu sobre a alocação dador-recetor em 18 | AGOSTO 2022
transplante renal com dador falecido, referindo que a “perspetiva laboratorial e clínica se complementam”. “Na alocação dador-recetor, os principais desafios são as compatibilidades HLA, a alossensibilização e o seu efeito na sobrevivência do enxerto”, afirmou a nefrologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). Rita Leal defendeu ainda que a legislação portuguesa deve ir mais longe no que toca aos doentes hiperimunizados. “Apesar de, a nível laboratorial e clínico, existir uma articulação para garantir que a alocação de enxertos é justa, igualitária e utilitária, ainda há a necessidade de rever a legislação, que data de 2007”, explicou.
TRANSPLANTES CARDÍACO E RENAL HLA INCOMPATÍVEL Seguiu-se a discussão de casos clínicos. De acordo com a Prof.ª Sandra Tafulo, presidente do GHI da SPT, todos os casos apresentados durante a reunião “trouxeram algo de diferente e o denominador comum da necessidade de intervenção do laboratório para a decisão final”, seja no crossmatch com citotoxicidade dependente do complemento (CDC, na sigla em inglês) ou na decisão de avançar ou não com o transplante em doentes com anticorpos antidador identificados no crossmatch virtual. “Isso exige uma conversa entre a clínica e o laboratório, para que exista integração de ambas as partes na decisão final informada”, realçou a também supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do CST do Porto.
Curso Histocompatibilidade e Imunogenética Do Laboratório à Clínica
No que diz respeito às apresentações, que contaram com membros da clínica e do laboratório, o primeiro caso foi de um candidato a transplante cardíaco, ligado a um suporte circulatório mecânico, com cardiopatia isquémica e em tempestade arrítmica. “Foi oferecido um coração que apresentou um crossmatch com CDC positivo. Contudo, verificámos que o doente não tinha anticorpos antidador pré-formados, o que nos levou a questionar se existiria um falso positivo neste crossmatch”, resume a Prof.ª Sandra Amorim, cardiologista no Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto. Quanto ao desfecho, Sandra Amorim esclarece que “tratava-se, de facto, de um falso positivo, tendo o doente sido transplantado com sucesso, com o enxerto a responder positivamente”. “Quando existem resultados duvidosos de aceitação ou não do órgão, deve haver sempre um diálogo entre o centro de transplante de coração e o IPST”, sublinha a especialista. Em seguida, examinou-se uma situação de transplante renal HLA incompatível no dador falecido. Em causa estava uma doente de 35 anos com um valor calculado do painel reativo de anticorpos (cPRA) de 99,5%. “Conversando com os colegas da histocompatibilidade e percebendo quais eram, realmente, os anticorpos incompatíveis e inaceitáveis, conseguimos baixar o cPRA e chegámos a um dador”, realçou a Dr.ª Susana Sampaio, nefrologista no CHUSJ. A então presidente da SPT acrescentou que, sem esse diálogo, “provavelmente, a doente esperaria muitos anos ou até nunca viria a ser chamada para transplante”. Hoje em dia, a doente “está a evoluir muito favoravelmente”, com imunossupressão intensa. “Não conseguimos prever o futuro, mas estamos com esperança. Para a sua sobrevida e qualidade de vida, foi muito bom”, afirmou a oradora.
DADOR VIVO E HIPERIMUNIZAÇÃO HLA Quanto ao transplante renal HLA incompatível no dador vivo, o Prof. Jorge Malheiro, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António, alertou que é uma “decisão complexa e difícil, que deve ser partilhada pelos clínicos, pelo dador e pelo recetor” – daí que a chave seja a seleção adequada dos doentes hipersensibilizados. “Dados norte-americanos com grande número de doentes demonstraram que é possível transplantá-los com uma melhoria da sobrevivência do recetor porque, embora haja vários graus de incompatibilidade, existem diversas formas de estratificar os doentes em termos de risco imunológico”, referiu o nefrologista. Segundo Jorge Malheiro, o truque é “tentar perceber qual a incompatibilidade mínima possível para que o doente possa ser transplantado, porque, se não se avançar com este tipo de transplante, a probabilidade de um transplante compatível é muito reduzida”. Uma das soluções para estes casos, acrescentou Sandra Tafulo, “passa pelos programas de doação renal cruzada”. A presidente
do GHI da SPT debruçou-se ainda sobre a hiperimunização HLA: “No laboratório, conseguimos determinar quais os anticorpos antidador que não são tão deletérios. Assim, é possível escolher os anticorpos que serão mais facilmente ultrapassáveis e que não levarão a rejeição de órgão no futuro.”
TRANSPLANTE DUPLO E LIÇÕES DA PANDEMIA A discussão prosseguiu com casos clínicos sobre transplante duplo simultâneo de coração e rim, bem como transplante cardíaco HLA incompatível. Já sobre o transplante de rim e pulmão, a discussão centrou-se na deteção precoce de anticorpos específicos do dador, com a base num caso complexo. “Trata-se de uma doente jovem com fibrose quística e amiloidose comprovada por biópsia, com agravamento da função renal e anticorpos específicos contra o dador”, explicou o Dr. Fernando Caeiro, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral. A prioridade para tratar esta doente era o transplante pulmonar, contudo, “surgiu a oportunidade de fazer o transplante renal”, tendo a equipa decidido avançar com o procedimento. “Este caso, felizmente, terminou bem, mas são situações muito complicadas de gerir”, alertou, por seu turno, Luís Ramalhete, referindo que o papel do laboratório passou por, “no pós-transplante, identificar se havia processo de rejeição e ajudar a definir qual a intervenção mais correta”. Já na reta final do curso, foi ainda apresentado o caso de uma doente hiperimunizada e candidata a transplante renal no contexto da pandemia COVID-19. “Neste caso, tínhamos a particularidade de ser uma doente com baixa probabilidade de vir a ser transplantada noutra altura. Optámos por avançar e correu tudo muito bem, sendo que a doente vai beneficiar de uma melhor qualidade de vida”, assegurou Fernando Caeiro. Ao que Luís Ramalhete acrescentou: “A pandemia trouxe uma necessidade de algo maior, que é o apoio entre equipas. Espero que essa necessidade tenha vindo para ficar.”
Composição do GHI da SPT – triénio 2022-2024 C oordenadora: Prof.ª Sandra Tafulo 1 .º vogal: Dr. Luís Ramalhete 2 .º vogal: Dr. António Martinho 3.º vogal: Prof. Jorge Malheiro 4.º vogal: Dr. Fernando Caeiro 5.º vogal: Dr.ª Rita Leal
Momentos em vídeo do evento, com os palestrantes a destacarem as ideias-chave dos temas discutidos
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MOTIVAÇÃO DAS EQUIPAS DE TRANSPLANTAÇÃO EM DESTAQUE A Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT) 2021 teve como objetivo colocar os responsáveis pelas várias equipas de transplantação a trocar ideias e experiências, de modo a encontrar convergências e afinar estratégias para motivar os profissionais desta área. Neste evento, que decorreu nos dias 26 e 27 de novembro, em Cascais, também estiveram em debate alguns dos hot topics da transplantação, como a doação em vida e a histocompatibilidade, procurando estimular os programas de doação e discutir os critérios de urgência nas listas de espera para transplante. Pedro Bastos Reis
Alguns intervenientes da primeira sessão (da esq. para a dta.): Prof. Manuel Pestana, Dr. Paulo Pinho, Dr. José Pedro Neves, Dr. Rui Dias, Prof. Aníbal Ferreira, Dr.ª Cristina Jorge, Dr. Emanuel Vigia, Dr.ª Dulce Diogo e Dr. Jorge Daniel
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s problemas e desafios para constituir uma equipa cirúrgica estiveram em foco na primeira mesa-redonda da reunião. De acordo com o Prof. Manuel Pestana, moderador da sessão, o perfil das lideranças e as fragilidades da motivação das equipas foram alguns dos destaques. “Essas fragilidades passam pelas exigências crescentes que caracterizam a atividade das equipas de transplantação, quer em termos de dedicação quer de responsabilidade, sem a necessária perspetiva de retorno para os profissionais”, sublinhou o diretor do Serviço de Nefrologia e do Centro de Referência de Transplante de Rim-Adultos no Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto. A primeira preleção ficou a cargo do Prof. José Fragata, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital de Santa Marta, que salientou a importância de as lideranças “capitalizarem a diversidade das suas equipas, orientando-as para a criatividade, a inovação e a resposta à mudança”. Quanto à motivação das equipas, o orador diferenciou “motivação intrínseca”, relacionada com a dedicação à transplantação, de “motivação extrínseca”, associada aos incentivos monetários. E concluiu: “Só a liderança não chega, tal como o dinheiro ou o projeto também não. Uma boa articulação entre estes três aspetos é a metodologia a seguir para manter as equipas motivadas.”
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Em seguida, o Prof. Arnaldo Figueiredo, diretor do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), defendeu que a transplantação é “uma área aliciante”. “O espírito de equipa e de pertença, o executar algo que faz a diferença e que é reconhecido como tal, é o essencial em qualquer atividade, e a transplantação renal é disso um forte exemplo”, afirmou, destacando a importância da multidisciplinaridade, que assumiu um papel central para enfrentar a pandemia de COVID-19. Neste aspeto, o preletor referiu que “o grande desafio não esteve relacionado com a motivação das equipas, mas sim com a descida significativa de dadores e os receios quanto à segurança para os doentes”. Por sua vez, o Dr. José Pedro Neves fez a distinção entre incentivos, remunerações e prémios. “Um incentivo é algo que se dá para fazer mais e melhor, a remuneração é o pagamento justo do trabalho extra, enquanto o prémio está relacionado com as metas”, esclareceu o diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz (CHLO/ /HSC). O especialista chamou ainda a atenção para o longo caminho que existe por percorrer no transplante cardíaco, devido ao “défice relacionado com a taxa de aproveitamento do órgão”, salientando a necessidade de discutir uma “união ibérica” com Espanha para a otimização de resultados. Já a Dr.ª Dulce Diogo, responsável pelo Centro de Referência de Transplantação Hepática do CHUC, incidiu nos desafios desta atividade, marcada por “cirurgias longas, com imprevisibilidade de horário e duros picos de trabalho”. Segundo a também coordenadora da Unidade de Transplantação Hepática Adulta do CHUC, “para constituir uma equipa, é indispensável que os cirurgiões apresentem certas características, como destreza cirúrgica, capacidade de trabalho e resistência física e psicológica”, sendo ainda fundamental uma liderança que “reconheça o trabalho da equipa e que possibilite a diferenciação de acordo com as áreas de interesse individuais”. Também “é essencial um modelo de remuneração que compense adequadamente os profissionais numa atividade tão exigente como é a transplantação hepática”, acrescentou a oradora.
Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de
Transplantação MOTIVAÇÃO DOS MAIS JOVENS E TRABALHO EM EQUIPA Quando se fala no futuro da transplantação, é necessário pensar em “motivar e cativar os jovens” e foi precisamente sobre esse aspeto que se debruçou o Dr. Emanuel Vigia, que tentou “desmistificar uma área que, apesar de complexa, é muito aliciante”. “Além da remuneração, existem outros incentivos, como a realização pessoal por estarmos a melhorar a qualidade de vida dos doentes – no transplante renal, retirando-os do desconforto da diálise no dia-a-dia, e, no caso do transplante pancreático, retirando a insulina”, afirmou o cirurgião no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/ /Hospital Curry Cabral (CHULC/HCC), reforçando o “compromisso que a transplantação exige”. Refletindo sobre a atividade de transplantação, o Dr. Rui Dias descreveu-a como “uma dádiva e ação altruísta e de bondade para com os doentes, o que só por si é um fator de sensibilidade para a motivação das equipas”. Contudo, ex-responsável pelo Sistema de Qualidade do Banco de Tecidos Ósseos do CHUC também destacou “dificuldades muito específicas, tanto na colheita como na aplicação de aloenxertos ósseos”, enumerando alguns dos requisitos necessários para uma equipa que “deve conhecer os riscos e complicações de uma colheita realizada de forma menos correta e para a preparação do aloenxerto”. Por fim, a Dr.ª Cristina Jorge, nefrologista no CHLO/HSC, apresentou os resultados de um inquérito da SPT a vários profissionais de saúde, a maioria dos quais envolvidos na transplantação, que concluiu que “há uma grande percentagem de pessoas que, apesar de se sentirem realizadas com a sua atividade, estão exaustas e pouco motivadas”, identificando-se uma necessidade de “diminuição da carga burocrática e assistencial”. A agora presidente da SPT vincou ainda que “não é só a remuneração que conta na motivação”, sublinhando a importância de “um líder que consiga estimular” a equipa. “Deve-se privilegiar o trabalho conjunto e procurar forças para levarmos avante o nosso dever, sempre motivados”, concluiu. Para alcançar esta motivação, acrescentou o Prof. Aníbal Ferreira, coordenador da vertente médica da Unidade de Transplantação Renal e Renopancreática do CHULC/HCC, é vital que exista “uma verdadeira sinfonia, que só pode ser tocada com uma orquestra bem afinada”. “O mais importante é a motivação intrínseca dos atores desta área, que nos leva a assumir a transplantação como uma atividade muito nobre dentro da Medicina, à qual temos de dar particular carinho, cuidado e atenção a todos os potenciais dadores e recetores”, vincou o moderador da mesa-redonda.
DOAÇÃO EM VIDA O primeiro dia de reunião ficou ainda marcado pela discussão sobre doação em vida. Assinalando o 10.º aniversário do Programa Nacional de Doação Renal Cruzada (PNDRC), a Dr.ª Manuela Almeida, nefrologista no Centro Hospitalar Universitário do Porto/Hospital de Santo António (CHUPorto/HSA), referiu que o transplante cruzado permite “aumentar a rentabilidade de programas de dador vivo
Mesa-redonda “Doação em vida – a motivação como influenciador no processo”: Prof.ª La Salete Martins, Dr. Domingos Machado (moderadores), Dr.ª Manuela Almeida e Dr.ª Lídia Santos
até 30% a 40%”, melhorando também a sua eficácia. A preletora revelou que, neste programa, já foram realizados 33 transplantes cruzados, incluindo transplantes duplos, triplos e até quádruplos. Desde 2017, o CHUPorto/HSA integra a South Alliance for Transplants, que envolve pares dador-recetor de Portugal, Espanha e Itália. “Quantos mais pares forem inscritos, maior será o ganho de um projeto benéfico para os doentes, os dadores e a sociedade em geral”, defendeu Manuela Almeida. Para a otimização do transplante de dador vivo, a Dr.ª Lídia Santos realçou a importância da formação para as equipas de proximidade, incluindo nefrologistas, enfermeiros e assistentes sociais. “É fulcral que estas equipas conheçam as vantagens e desvantagens da transplantação de dador vivo, saibam explicar o processo em si e consigam, de forma precoce, otimizar a identificação de eventuais dadores”, referiu a nefrologista no CHUC. Para tal, é necessário garantir que o “consentimento de recetor e dador seja baseado numa informação rigorosa”, o que realça a importância de uma formação nas equipas de proximidade que vá ao encontro das melhores práticas internacionais.
HISTOCOMPATIBILIDADE: MFI COMO FATOR DE EXCLUSÃO O segundo dia da Reunião Nacional da SPT 2021 arrancou com uma sessão dedicada à histocompatibilidade, na qual se discutiu a intensidade de fluorescência média (MFI) enquanto fator de exclusão na lista de recetores para transplante. “O aumento do conhecimento da imunobiologia da transplantação tem cada vez maior relevância na decisão que tomamos relativamente ao doente”, introduziu CONTINUA
FORTE ADESÃO E ELEVADA QUALIDADE DOS CASOS CLÍNICOS Durante os dois dias de reunião, foram apresentados 32 casos clínicos, o que, de acordo com a Dr.ª Susana Sampaio, constituiu uma “surpresa pela elevada adesão”. “Todos os casos apresentados tinham qualidade e obrigaram-nos a ampliar as sessões, que foram bastante participadas”, salientou a então presidente da SPT. Os casos clínicos dividiram-se em três áreas: infeções desafiantes, abordagem à rejeição crónica associada a problemas imunológicos e casos complexos de dadores e recetores, com foco em dadores problemáticos. “Os colegas mais jovens têm de se integrar na transplantação, pelo que a apresentação de casos clínicos é uma forma de poderem participar, ganhar currículo e contribuir para sessões mais vivas”, frisa a nefrologista no CHUSJ.
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RANSFORMAR
Alguns intervenientes da sessão dedicada à histocompatibilidade (da esq. para a dta.): Prof. Fernando Nolasco, Dr. António Martinho, Dr.ª Margarida Ivo, Prof. André Weigert, Prof.ª Sandra Tafulo, Prof. Jorge Malheiro e Dr. Luís Ramalhete
o Dr. António Martinho, responsável pelo Laboratório de Histocompatibilidade de Coimbra do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). “Por um lado, este conhecimento trouxe um incremento em termos de controlo e funcionalidade do órgão, mas, por outro, levanta-nos alguns problemas nos critérios de seleção dos doentes ou no acesso ao transplante”, acrescentou. Por sua vez, o Dr. Luís Ramalhete, do Laboratório Serológico de Lisboa do IPST, afirmou que “todos os doentes são favoráveis a utilizar o MFI como fator de exclusão”, deixando a ressalva de que “as visões podem diferir quanto aos valores a utilizar”. O orador defendeu a importância deste indicador perante a sensibilização preformada, dado que “muitos dos eventos adversos vão resultar de anticorpos relacionados com um MFI mais alto”. “Nesse sentido, é importante olharmos para o MFI – não para dificultar o acesso do doente ao transplante, mas para melhorar a sua qualidade de vida no futuro.” Já o Dr. Leonídio Dias, ex-responsável pela Unidade de Transplantação Renal do CHUPorto/HSA, destacou que, nesta decisão, é importante definir a “probabilidade de um doente, cujo MFI dos anticorpos anti-HLA define antigénios proibidos, encontrar um potencial dador”. Nesse sentido, a sua apresentação focou as estratégias para “ultrapassar o MFI em doentes nos quais o valor é praticamente insuperável”, o que engloba, entre outros aspetos, “protocolos de dessensibilização, o PNDRC e a formação de equipas entre a imunogenética e os médicos da transplantação, com uma reflexão doente a doente”.
anticorpos HLA de novo, o que é um fator de risco e, por isso, deve ser evitado”, afirmou a supervisora do Laboratório de Alossensibilização e Serologia HLA do IPST do Porto. “Um menor número de mismatch de epletos melhora a sobrevida do transplante a longo prazo”, acrescentou Sandra Tafulo, confiante que esta mudança de paradigma vá “melhorar grandemente a compatibilidade HLA no transplante renal”. A encerrar esta sessão, o Prof. Jorge Malheiro alertou que “existem cerca de 300 doentes hipersensbilizados candidatos a transplante renal em Portugal em lista de espera, um problema que exige respostas céleres”. Nesse sentido, o nefrologista do CHUPorto/HSA e docente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto deu o mote para a criação de um programa a nível nacional para estes doentes, advertindo que é necessário “ou alterar o sistema de alocação nacional como um todo ou criar duas realidades paralelas, em que o sistema de alocação geral esteja lado a lado com um programa de doentes hipersensiblizados”.
ESTIMULAR OS PROGRAMAS DE DOAÇÃO Estimular os programas de doação de dador falecido foi o foco da mesa-redonda seguinte, com a primeira preleção a cargo da Dr.ª Margarida Ivo. A coordenadora nacional de Transplantação no IPST salientou a necessidade de “promover a doação nas unidades hospitalares e de investir no treino específico de profissionais”, revelando que, para 2022, está prevista a realização de cursos específicos, nomeadamente sobre morte cerebral, formações “importantes para incentivar a identificação de dadores nos hospitais periféricos, onde existem menos profissionais preparados”. “Queremos aumentar a taxa de dadores falecidos, investir em novas formas de preservação de órgãos, rever os critérios de alocação de órgãos, reorganizar a colheita e o armazenamento e desenvolver a colheita de tecidos”, sublinhou. Neste âmbito, foram ainda apresentadas as perspetivas do Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação e da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), com intervenções da Dr.ª Andrea Salgueiro e do Dr. João Miguel Ribeiro, respetivamente. Já a Dr.ª Maria Pilar Perez apresentou a perspetiva do coordenador hospitalar, cuja missão “passa por conseguir o maior número possível de órgãos para transplante, aproveitando o máximo potencial de cada hospital”. “Além de uma liderança que faça da atividade de doação a prioridade, é fundamental apostar na formação continuada dos profissionais na área do diagnóstico da morte cerebral”, realçou a coordenadora hospitalar de doação do Centro Hospitalar Universitário do Algarve.
MATCHING MOLECULAR E DOENTES HIPERSENSIBILIZADOS Numa apresentação de olhos postos no futuro, a Prof.ª Sandra Tafulo apontou a necessidade de alterar o formato de compatibilização do par dador-recetor do atual nível de antigénio para um nível molecular centrado nos diversos aminoácidos. “A compatibilidade molecular permite uma avaliação mais fina, em que, quanto maior for o número de mismatch a nível molecular, mais os doentes formam
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Dr.as Maria Pilar Perez, Margarida Ivo e Andrea Salgueiro, após a sessão “Como estimular os programas de doação – dador falecido – pontos de encruzilhada”
Reunião Nacional da Sociedade Portuguesa de
Transplantação DESAFIOS NO TRANSPLANTE HEPÁTICO Na Reunião Nacional da SPT, esteve também em discussão a lista de espera para transplante hepático. “Temos de ter a consciência de que o órgão deve ser sempre direcionado para quem mais pode beneficiar dele”, salientou o Dr. Jorge Daniel, um dos moderadores da sessão. O vice-presidente da SPT referiu ainda que a escolha do par dador-recetor deve ter em conta não só o lugar do doente na lista de espera, mas também o “ajuste necessário relacionado com o grupo sanguíneo ou a gravidade da situação”, entre outros fatores. Sobre esta questão, o Dr. Luís Bagulho focou-se na doença hepática crónica e apelou à discussão de critérios de gravidade que possibilitem uma “melhor estratificação do risco”, sugerindo, além do Model for End-stage Liver Disease, também os critérios definidores do Acute-on-Chronic Liver Failure (ACLF). “O ACLF define os critérios de gravidade e isso permite-nos estratificar melhor o risco de mortalidade associado ao transplante”, destacou o especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva na Unidade de Transplantação do CHULC/HCC. Ao que acrescentou: “A falência cardiovascular e respiratória está associada a maior insucesso no transplante e, para termos sucesso na transplantação, temos de considerar as especificidades destes doentes, com elevado risco de complicações e de desfecho desfavorável após o transplante.” No que diz respeito à alocação de órgãos aos doentes mais graves, versus doentes com melhor sobrevivência, a Prof.ª Helena Pessegueiro reforçou a “necessidade de rever e utilizar as ferramentas já testadas que permitem avaliar que doentes têm um risco de mortalidade mais elevado”, sobretudo no pós-transplante. “Avaliamos melhor o risco de morte imediata do que a sobrevivência do doente depois do transplante, o que torna o processo muito complexo, quando deveria ser o mais reprodutível possível”, afirmou a responsável pela vertente médica da Unidade de Transplantação Hepática do CHUPorto/HSA e docente no ICBAS. A preletora vincou, assim, o interesse na criação de “grupos de trabalho em Portugal para gerar consensos de critérios de urgência e utilidade”. Finalmente, o Dr. Simão Esteves reiterou a importância de “estender o conceito de avaliação a toda a equipa envolvida na transplantação”, que, segundo o especialista, pode assumir duas
Sessão “Transplante de fígado – A urgência em lista de espera”: Dr. Filipe Pissarra, Prof.ª Helena Pessegueiro, Dr. Jorge Daniel, Dr. Simão Esteves e Dr. Luís Bagulho
vertentes: insuficiência hepática aguda e agudização de doença hepática crónica. “São doentes tendencialmente mais jovens, por isso, dificilmente lhes vamos negar o acesso ao transplante hepático”, afirmou o responsável de Anestesiologia do Programa de Transplantação Hepática do CHUPorto/HSA. Ao que acrescentou: “Apenas situações de sepsis, sofrimento cerebral importante ou falência múltipla de órgão representam razão para negar o transplante.” Simão Esteves questionou ainda a avaliação de rotina, equacionando a utilização de “outros métodos complementares de diagnóstico dirigidos ao sistema cardiovascular, como a angio-TAC coronária com score de cálcio ou a ressonância magnética cardíaca”.
Destaques das entrevistas em vídeo a alguns dos intervenientes na Reunião Nacional da SPT, com fotografias dos melhores momentos
COVID-19 NOS DOENTES TRANSPLANTADOS* A reunião terminou com a apresentação da Dr.ª Susana Sampaio sobre as principais conclusões de um estudo observacional multicêntrico realizado em Portugal, para perceber o impacto da COVID-19 nos doentes transplantados. Os resultados reportam ao período entre março de 2020 e julho de 2021:
Doentes internados com COVID-19: 229 (37,5%); Pico de diagnóstico (24,1%) e de internamentos (21,6%) em novembro de 2020;
COVID-19 em doentes com menos de seis meses de transplante aumenta risco de mortalidade;
Risco de morte 7,89 vezes superior em doentes com 60 ou mais anos de idade;
Risco de morte aumenta nos transplantados com hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, respetivamente em 3,44 e 2,51 vezes;
Oxigenoterapia suplementar, ventilação invasiva e não invasiva, admissão em UCI e lesão renal aguda são fatores de pior prognóstico;
Febre, dispneia e síndrome respiratória aguda são os sintomas de COVID-19 com pior prognóstico nos doentes transplatados. *População de 610 doentes transplantados (372 rim, 183 fígado, 10 pulmão, 23 cardíaco e 16 rim-pâncreas)
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PONTAMENTOS
DIA NACIONAL DA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E DA TRANSPLANTAÇÃO
Grupo de oradores e assistência da cerimónia que assinalou a edição de 2022 do Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação. Estiveram presentes representantes da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), da Força Aérea Portuguesa, da Guarda Nacional Republicana, da Coordenação Nacional da Transplantação, dos Gabinetes Coordenadores de Colheita e Transplantação, de vários Serviços e Unidades de Transplantação nacionais e o próprio Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Dr. António Lacerda Sales.
C
omo lembra a Dr.ª Cristina Jorge, presidente da SPT (na foto, 6.ª a contar da direita, na fila da frente), o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, assinalado a 20 de julho, tem por objetivo “homenagear os dadores, os doentes transplantados e as suas famílias, assim como reconhecer os profissionais de saúde envolvidos nesta atividade e promover a sensibilização da sociedade civil para esta área da Medicina”. A também nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz evidencia que “o altruísmo da dádiva salva vidas e é um bem para a sociedade”. Nas celebrações deste ano, que ocorreram em Lisboa, a sustentabilidade da doação e da transplantação foi o tema destacado pelos
vários intervenientes. A Dr.ª Maria Antónia Escoval, presidente do IPST (na foto, 5.ª a contar da esquerda, na fila da frente), sublinhou que, “apesar do longo caminho percorrido em Portugal, que é motivo de orgulho, importa continuar a procurar resposta para os doentes em lista de espera para transplante”. Para tal, a responsável acredita que um dos pontos mais importantes, também referido nas restantes intervenções, é a “viabilização do programa dos doentes hipersensibilizados”. Nesse sentido, Cristina Jorge nota que, “na zona sul do país, entre 40% e 50% dos doentes em lista de espera para transplante renal já são hipersensibilizados, logo, têm menos hipóteses para a transplantação”. Por isso, “é necessário melhorar a técnica que apura as compatibilidades e legislar um programa especial de alocação de rins para esses doentes”. Da cerimónia deste ano, a Dr.ª Cristina Jorge destaca ainda a revelação feita pela Dr.ª Margarida Ivo, coordenadora nacional de transplantação no IPST, do primeiro “dador samaritano” em Portugal. “Ficámos a saber que foi o Dr. Domingos Machado, um médico que dedicou grande parte da sua vida à transplantação, cuja atitude altruísta é de louvar, deve ser enaltecida e comprova que há segurança na doação de órgãos em Portugal.” Marta Carreiro Destaques da entrevista em vídeo com as Dr.as Cristina Jorge (presidente da SPT) e Maria Antónia Escoval (presidente do IPST)
PORTUGAL E BRASIL VOLTAM A REUNIR COMUNIDADE DE TRANSPLANTAÇÃO
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epois do forçado adiamento, o XVI Congresso Português/XX Congresso Luso-Brasileiro de Transplantação, vai realizar-se entre 1 e 3 de dezembro, no Centro de Congressos do Hotel Cascais Miragem. “Ultrapassadas as limitações dos últimos anos, este evento conjunto da Sociedade Portuguesa de Transplantação [SPT] com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos [ABTO] vai decorrer em formato totalmente presencial”, afirma o Prof. Fernando Nolasco, presidente da comissão organizadora. A Dr.ª Cristina Jorge (nefrologista no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental/Hospital de Santa Cruz e presidente da SPT) e o Prof. Aníbal Ferreira (nefrologista no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central/Hospital Curry Cabral e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia) são os dois vice-presidentes do evento, que pretende trazer à discussão os hot-topics da transplantação em Portugal e no Brasil. “Fundamentalmente, vamos incidir sobre as experiências dos dois países e como temos conseguido enfrentar os desafios”, adianta Fernando Nolasco, referindo-se não só à pandemia de COVID-19, mas também às questões por definir ao nível dos modelos de organização. As estratégias para aumentar o número de transplantes são um dos temas fortes do congresso, prevendo-se importantes contributos dos 26 | AGOSTO 2022
especialistas brasileiros. “O Brasil tem um modelo de sucesso – o Hospital do Rim, em São Paulo –, que realiza mais de 1000 transplantes renais por ano. Portanto, temos muito a aprender com os colegas brasileiros”, afirma Fernando Nolasco. No programa do congresso, estarão ainda em foco temas como os novos métodos de monitorização imunológica, o papel das máquinas de perfusão na manutenção dos órgãos, a xenotransplantação (que tem vindo a ganhar grande destaque mediático nos últimos tempos) e o papel dos centros de responsabilidade integrada, entre outros tópicos. A motivação dos recursos humanos que trabalham na área da transplantação será outra temática em discussão, num congresso representativo das várias vertentes da transplantação (hepática, renal, cardíaca, pulmonar, de tecidos ósseos, hematopoiética e pediátrica), que não deixará de parte a imunogenética. Uma novidade é a atribuição de mais tempo às comunicações orais e à discussão de pósteres. A submissão de resumos pode ser feita até ao próximo dia 18 de setembro. Pedro Bastos Reis
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