Alan Miranda Milhomem* Aspectos criminAis dA LeniênciA Antitruste: princípio dA consunção estendidA, dA proporcionALidAde e reLAção de cAusALidAde CriMinAl AsPECts of thE lEniEnCy ProGrAM: PrinCiPlE of ADsorPtion ExtEnDED, ProPortionAlity AnD CAUsAtion AsPECtos PEnAlEs DEl ACUErDo DE lA inDUlGEnCiA: PrinCiPio DE AbsorCión ExtEnDiDo, ProPorCionAliDAD AnD lA CAUsAliDAD
Resumo: o Programa de leniência Antitruste concede benefícios criminais imediatos para o agente criminoso que colabore efetivamente com as investigações promovidas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), nos termos do art. 87 da lei n.12.529/2011. o presente artigo discute inicialmente os efeitos criminais deste acordo na esfera criminal. Em seguida, discute-se se a celebração do acordo de leniência é espécie de suspensão de condição de procedibilidade, assim como quais seriam os crimes diretamente relacionados ao crime de cartel. Para tanto, analisa-se a lista de crimes prevista na legislação sob a égide do princípio da consunção e da proporcionalidade. Por fim, discute-se a questão da prescrição do crime de cartel em relação aos agentes econômicos que não celebraram o acordo de leniência. Abstract: The Antitrust Leniency Program provides immediate criminal benefits for the criminal agent who collaborate effectively with investigations promoted by the Administrative Council for Economic Defense (CADE), pursuant to art. 87 of Law 12.529/2011. This article first discusses the purpose of this Agreement in the criminal sphere. Then Graduando em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará. Estagiário do Ministério Público Militar.
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we discuss if the celebration of the Leniency Agreement is kind of condition of suspension, as well as what are the crimes directly related to cartel crime. Therefore, we analyze the list of crimes covered by the legislation under the aegis of principle of adsorption and proportionality. Finally, we discuss the issue of prescription of the cartel offense in relation to economic agents which have not concluded the leniency agreement. Resumen: El programa de indulgencia Antimonopolio proporciona beneficios penales inmediatos para el agente que colabore eficazmente con las investigaciones promovidas por el Consejo Administrativo de Defensa Económica (CADE), en cumplimiento del art. 87 de la Ley 12.529/2011. En este artículo se analiza en primer lugar el propósito criminal de este Acuerdo en el ámbito penal. A continuación se discute si la celebración del Acuerdo sobre la cooperación es una especie de suspensión de condición de procedibilidad, así como ¿cuáles son los delitos directamente vinculada a la delincuencia cártel. Por lo tanto, analizamos la lista de crímenes cubiertos por la legislación bajo la égida el principio de proporcionalidad y absorción. Por último, se discute la cuestión de la prescripción de la infracción cártel en relación con los agentes económicos que no hayan firmado el acuerdo sobre la cooperación. Palavras-chave: Acordo de leniência, cartel, extinção da punibilidade. Keywords: Leniency agreement, cartel, extinction of punishment. Palabras clave: Acuerdo de indulgencia, cártel, la extinción de la responsabilidad penal.
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o Programa de leniência Antitruste é definido como um conjunto de iniciativas com o escopo de detectar, investigar e punir infrações contra a ordem econômica. os artigos 86 e 87 da lei n. 12.529/2011 e os artigos 197 a 210 do regimento interno do CADE informam às pessoas jurídicas e físicas em geral os benefícios da leniência. segundo o Guia de leniência do CADE (2015, p. 9): Este programa permite que empresas e/ou pessoas físicas envolvidas ou que estiveram envolvidas em um cartel ou em outra prática de conduta anticoncorrencial, celebrem Acordo de leniência com o CADE, comprometendo-se a cessar a conduta ilegal, a denunciar e confessar a prática de infração à ordem econômica, bem como a cooperar com as investigações apresentando informações e documentos relevantes à investigação.
não havendo conhecimento prévio pela superintendênciaGeral do CADE acerca da infração noticiada, o leniente será beneficiado com a extinção da ação punitiva da Administração Pública (art. 86, §4º, da lei n. 12.529/2011 c/c art. 208, i e ii do riCADE). na esfera criminal, a celebração de acordo de leniência determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência, no que tange aos crimes contra a ordem econômica tipificados na lei n. 8.137/1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na lei n. 8.666/1993 e no artigo 288 do Código Penal - associação criminosa. Cumprido o acordo de leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes referidos no art. 87 da lei n. 12.529/11. É importante não olvidar que os artigos 86 e 87 da lei n. 12.529/2011 não exigem, para celebração do acordo de leniência antitruste, a participação do Ministério Público, já que pela leitura desses artigos se compreende que o acordo é de competência restrita da superintendêcia-Geral do CADE. no entanto, em virtude das consequências criminais do acordo, o CADE já celebrava os acordos com a participação do Ministério Público Estadual e/ou federal. Essa atitude do CADE é no sentido de preservar a independência institucional do Ministério Público, titular privativo da ação penal pública, não havendo supressão de competência e preservando a segurança jurídica do acordo de leniência. 199
Apesar de, atualmente, não ser exigida mediante lei a participação do Ministério Público, está em vigor a Medida Provisória n. 703, de 18 de dezembro de 2015, que permite em síntese que o acordo de leniência seja celebrado com a participação do Ministério Público e da Advocacia Pública, com o escopo de dar segurança jurídica às empresas celebrantes, tendo em vista os efeitos do acordo nas esferas administrativa, civil e penal. suspensão de condição de procediBiLidAde ou renÚnciA do direito de denunciAr? segundo Marcelo Mendroni (2015, p. 322): o acordo de leniência é espécie de “suspensão” de condição de procedibilidade da ação penal pública, ou seja, este acordo ocasiona a suspensão da propositura da ação penal como uma espécie de contraprestação aos agentes que permitirem, de forma mais rápida e eficiente, a identificação dos demais criminosos, incluindo a confissão integral, o fornecimento de provas etc.
A nosso ver, a parte final da redação não foi clara quanto ao instituto jurídico penal utilizado para suprimir a autonomia e indisponibilidade da ação penal pública, no entanto, ao analisarmos o Código Penal e o Código Penal Militar, é possível constatar a suspensão da ação como uma condição de procedibilidade. Confira a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “a celebração do acordo de leniência, nos termos desta lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” (grifamos). o art. 457, §3º, do Código de Processo Penal Militar dispõe que, no crime de deserção, a qualidade de militar da ativa é condição de procedibilidade da ação penal pública incondicionada, sendo necessária a reinclusão do praça especial ou do praça sem estabilidade. Assim como no art. 100, §1º, do Código Penal, existe a previsão da ação penal pública condicionada, nesta sendo condição de procedibilidade da ação penal pública a representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça. 200
logo, devemos vislumbrar a possibilidade de existir uma outra condição de procedibilidade da ação penal, não prevista no Código Penal, mas prevista no art. 87 da lei n. 12.529/11 com a seguinte dicção: “Para os crimes previstos nesta lei, é condição de procedibilidade da ação penal pública a ausência de acordo de leniência”. Porém, ainda é discutível a definição da extinção da punibilidade prevista no art. 87, parágrafo único, o qual dispõe: “Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo”. Então, é possível dizer que no final do acordo de leniência haverá uma renúncia ao direito de denunciar pelo Ministério Público? o art. 107 do Código Penal, que define os casos de extinção da punibilidade, não prevê tal renúncia, mas, nos casos previstos na lei n. 9.099/95 (dos Juizados Criminais), o Ministério Público pode transacionar a ação penal pública e, posteriormente, quando a parte cumpre o acordo, a pena é extinta. logo, utilizandose da analogia, é imperioso dizer que o parágrafo único tem o mesmo efeito da transação penal e é uma forma de extinção da punibilidade não prevista no Código Penal, mas prevista em lei. crimes diretAmente reLAcionAdos À prÁticA de cArteL e reLAção de cAusALidAde o âmago do debate acerca dos crimes abrangidos pelo acordo de leniência advém da interpretação do termo: crimes diretamente relacionados à prática de cartel. Existem autores que interpretam esse termo para todos os crimes que ofendem o mesmo bem jurídico tutelado pelo crime de cartel, ou seja, crimes contra a ordem econômica. Mas essa interpretação não logra êxito quando se observa que, no próprio art. 87, existem crimes de natureza diversa abrangidos pelo acordo de leniência. são os casos do crime de associação criminosa - tutela a paz pública, e o crime de fraude à licitação - tutela a lisura da concorrência pública. A doutrina majoritária define que o crime de associação criminosa lesiona a paz pública e que o crime de fraudar licitação 201
lesiona a Administração Pública. Mas, para Mendroni (2015), este último crime visa fraudar uma concorrência específica - no âmbito da Administração Pública, enquanto o crime de cartel visa destabilizar o mercado econômico, ou seja, mercado em sentido amplo e genérico. Qualquer interpretação no sentido de dizer estar implícito um bem jurídico no outro é interpretação extensiva, tipo de argumentação vedada pelo Direito Penal em virtude do princípio da reserva legal. Pode-se dizer que o princípio da consunção estendida está implícito no art. 87 da lei Antitruste, haja vista que, quando o legislador exemplifica crimes de natureza jurídica diferente abrangidos ou absorvidos pelo acordo de leniência, em decorrência de um crime principal, está o legislador personificando o princípio da absorção e estendendo-o a crimes diversos. Ao mesmo tempo, a legislação não viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que os crimes consumidos possuem pena mais leve que a pena do crime principal. no entanto, ainda não existem parâmetros doutrinários para a abrangência de outros crimes não previstos naquela lei específica. Por esse motivo, na tentativa de estabelecermos parâmetros seguros e encontrarmos crimes autônomos, não citados na legislação, tornou-se imprescindível falarmos da relação de causalidade entre o crime principal de cartel e o crime consumido. nesse sentido alude Queiroz (2013, p. 227): Convém notar que o nexo causal é um constructo, e não simplesmente uma constatação físico-natural, porque para afirmarmos ou negarmos uma dada relação causal, é preciso considerar (sopesar, excluir etc.) diversas possibilidades. Assim, há, em princípio, nexo causal entre ação de um pastor americano que ateia fogo em exemplares do Corão e as mortes de cidadãos americanos (em países mulçumanos) que se lhe seguem em represália. Existe também relação causal entre a ação de um estudante que divulga, na internet, imagens íntimas de um seu colega de quarto com o amante e o suicídio que sobrevém à indevida violação da privacidade do estudante vitimado. Apesar disso, em nenhum desses casos é possível imputar crime de homicídio, quer por parte do pastor, quer por parte do aluno que violou a privacidade de outrem. no primeiro caso, porque o nexo causal, embora necessário, não é suficiente à caracterização da responsabilidade penal. E no segundo caso, porque não se trata de omissão penalmente relevante, visto que o estudante que viola a privacidade alheia não é garante nos termos da lei.
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no nosso entendimento, a solução para a lacuna deixada pelo legislador está na segunda parte do caput do art. 13 do Código Penal, que dispõe: “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Esse artigo consagra a teoria da equivalência das condições, também conhecida como teoria da conditio sine qua non, para determinar a relação de causalidade. Para exemplificar melhor, imagine um cartel de 3 empresas A, b e C, onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo todos os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contraprestação, o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a isenção da pena e impedimento da denúncia aos crimes diretamente relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os dirigentes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, disseram que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e C, mediante violação de mecanismos de segurança com intuito de obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada de b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal). A empresa em sua defesa argumentou que o objetivo da invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel, entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se alguma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utilizando dos dados coletados como prova de que a empresa A somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio necessário para o cumprimento do crime de cartel. nesse caso, ainda que o crime tipificado no art. 154, §3º, do Código Penal não esteja previsto no art. 87 da lei Antitruste, ao se aplicar a teoria conditio sine qua non, o princípio da proporcionalidade (pena do crime meio menor que a pena do crime fim) e o princípio da consunção estendida (absorção de crimes diversos diretamente relacionados à prática de cartel), vislumbrase que o crime de invasão de dispositivo informático foi absorvido pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90. A respeito da relação de causalidade, ainda na lição de Queiroz (2013, p. 228):
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De acordo com essa teoria, a questão de quando uma conduta pode ser considerada como causa de um evento há de ser resolvida por meio de uma fórmula da conditio sine qua non, é dizer, para saber se determinada condição pode ser considerada causa do resultado, dever-se-á utilizar o chamado método (ou procedimento) hipotético de eliminação, segundo o qual quando, eliminada mentalmente a causa, eliminar-se o efeito, haverá nexo causal; caso contrário, isto é, se, cessada a causa, não cessar o efeito, a relação causal não estará configurada, e, em consequência, o resultado não poderá ser imputado ao agente, porque tal conduta não constituirá condição sem a qual o resultado não teria ocorrido (conditio sine qua non).
Por sua vez, bitencourt (2011, p. 229), ao discutir a possibilidade de absorção entre crimes e os momentos da absorção, fala: Em síntese, deve-se considerar absorvido pela figura principal tudo aquilo que enquanto ação - anterior ou posterior - seja concebido como necessário, assim como tudo o que dentro do sentido de uma figura constitua o que normalmente acontece (quod plerumque accidit). no entanto, o ato posterior somente será impune quando com segurança possa ser considerado como tal, isto é, seja um autêntico ato posterior e não uma ação autônoma executada em outra direção, que não se caracteriza somente quando praticado contra outra pessoa, mas pela natureza do fato praticado em relação à capacidade de absorção do fato anterior.
bitencourt e Queiroz alertam que a relação de causalidade apenas tem importância nos crimes materiais, ou seja, aqueles de ação e resultado, visto que, os crimes formais, de mera conduta, sem resultado, são irrelevantes para a teoria capitulada no art. 13 do CP. Em sentido oposto, rogério Greco e luiz flávio Gomes asseveram que, quando o caput do art. 13 inicia sua redação dizendo “o resultado, de que depende a existência do crime”, quer se referir ao resultado jurídico. segundo luiz flávio Gomes, citado por rogério Greco (2011, p. 214), o art. 13 do CP se aplica a todas as infrações penais: não existe crime sem resultado, diz o art. 13. A existência do crime depende de um resultado. leia-se: todos os crimes exigem um resultado. se é assim, pergunta-se: qual resultado é sempre exigido para configuração do crime? lógico que não pode ser o resultado natural
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(ou naturalístico ou típico), porque esse só é exigido nos crimes materiais. Crimes formais e de mera conduta não possuem ou não exigem resultado (natural). Consequentemente, o resultado exigido pelo art. 13 só pode ser jurídico. Este sim é que está presente em todos os crimes. Que se entende por resultado jurídico? É a ofensa ao bem jurídico, que se expressa numa lesão ou perigo concreto de lesão. Esse resultado jurídico possui natureza normativa (é um juízo de valor que o juiz deve fazer em cada caso para verificar se o bem jurídico protegido pela norma entrou no raio de ação dos riscos criados pela conduta).
Cabe ressaltar que ambas as argumentações são válidas no que tange à configuração penal do crime de cartel. Primeiramente, porque não se deve olvidar que a infração administrativa da prática de cartel (art. 36 da lei n. 12.529/11) se diferencia do crime de cartel (Art. 4º, inc. i, da lei n. 8137/90) em razão do crime de cartel ser crime material e formal. o art. 36 da lei Antitruste dispõe: “constituem infração da ordem econômica, independente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os efeitos previstos nos incisos i, ii, iii e iV, ainda que não sejam alcançados”. (grifamos). logo, na infração administrativa, o cartel não precisa alcançar um resultado. no entanto, o crime de cartel previsto no inciso i do art. 4º da lei n. 8137/90 dispõe que: “constitui crime contra a ordem econômica: abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas”. logo, o crime de cartel é crime material quando a conduta do agente se encaixa perfeitamente no inciso i do artigo 4º, uma vez que para consumar o crime é preciso existir o resultado, dominando o mercado ou eliminando total ou parcialmente a concorrência. se o crime de cartel for tipificado nas formas previstas no inciso ii do art. 4º da lei n. 8137/90 não será mais um crime material e sim um crime formal, uma vez que o agente não precisa consumar a finalidade visada. Vejamos: art. 4º, inciso ii - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle,
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em detrimento da concorrência, da rede de distribuição ou de fornecedores. Pelo exposto, constata-se que a relação de causalidade prevista no art. 13 do Código Penal poderá se aplicar no crime de cartel em todas as suas formas, desde que haja a devida fundamentação quando houver a tipificação. ou seja, no caso de tipificação do inciso ii e inciso i do art. 4º prevalecerá os argumentos dos professores rogério Greco e luiz flávio Gomes e, no caso de tipificação somente através do inciso i do art. 4º, prevalecerá os argumentos dos professores bitencourt e Queiroz. crimes eXempLiFicAtiVos ou tAXAtiVos? (Art. 87 dA Lei n. 12.529/11) Quanto à extensão do acordo de leniência nos termos do art. 87 da lei n. 12.529/11, discute-se: quais são os crimes diretamente relacionados ao crime de cartel? Vejamos a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, (tais como os tipificados na lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal) a celebração de acordo de leniência, nos termos desta lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” (grifamos). Para ilustrar melhor a falta de clareza advinda dessa redação, Mendroni (2015, p. 324) citou em seu livro o seguinte exemplo: integrantes da empresa formam acordos (Cartel) para fraudar licitação. A princípio, a imputação penal abrangeria os delitos de Cartel e de fraude à licitação. Mas se eles corromperam agentes públicos para facilitar o procedimento licitatório? Eventual acordo de leniência os protege criminalmente contra o crime de corrupção?
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na opinião de Mendroni o legislador ao citar “tais como” especificou de forma absoluta como únicas possibilidades os crimes ali previstos, tipificados na lei n. 8.666/93 e no art. 288 do Código Penal. Para esse autor, se não houvesse tal termo na lei, ter-seia que todos os crimes “diretamente” relacionados à prática de cartel estariam inseridos no âmbito de abrangência do acordo de leniência. Ainda segundo Mendroni (2015), se a lei fixou aqueles delitos, e não referiu expressamente à corrupção, como no exemplo supracitado, é porque não quis, e, a contrario sensu, quis deixá-la de fora. sendo regra no Direito Penal: “não dá para ampliar entendimento a quaisquer outros delitos diretamente relacionados” (grifamos). Com a devida vênia, discordamos do autor em razão dos crimes previstos no art. 87 da lei n. 12.529/11 não serem taxativos como foram classificados. Após uma interpretação gramatical do artigo, constata-se que a lei se refere aos crimes tipificados no art. 288 do Código Penal e os tipificados na lei n. 8.666/93 (lei de licitações). nesta última, o legislador não especificou quais dos artigos tipificados na lei n. 12.529/11 foram abrangidos, podendo abarcar qualquer crime entre os arts. 89 a 99 da lei n. 8.666/93, pois todos eles tipificam as infrações penais no âmbito das licitações, e, dependendo do caso, podem estar diretamente relacionados ao crime de cartel. novamente, veja que o legislador no art. 87 se referiu ao(s) crime(s) tipificado(s) - plural. no entanto, como responder a dúvida fomentada por Mendroni (2015): é possível dizer que o crime de corrupção está diretamente relacionado ao crime de cartel? A nosso ver, é possível dizer que o crime de corrupção está diretamente relacionado ao crime de cartel, mas não é possível dizer que o crime de corrupção foi absorvido pelo crime de cartel. nesse ponto, concordamos com Mendroni(2015), mesmo não tendo sido citado em seu livro que o princípio da proporcionalidade é a regra do Direito Penal que impede a ampliação do entendimento a quaisquer outros delitos diretamente relacionados à prática de cartel.
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princípio dA consunção ou ABsorção É possível que se entenda pela abrangência dos benefícios criminais para crimes diretamente relacionados à prática de cartel, ainda que não expressamente previstos no art. 87 da lei n. 12.529/11, desde que estes crimes cumpram necessariamente dois requisitos: (i) possam ser absorvidos pelo crime principal que, é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. ou seja, significa que o crime meio ou complementar pode ser absorvido pelo crime principal (cartel), desde que o primeiro tenha pena máxima inferior à pena máxima do crime principal e entre eles exista uma conditio sine qua non (art. 13 do CP), não havendo necessidade de que ambos tutelem o mesmo bem jurídico. Quanto ao primeiro requisito, qual seja (i) a possibilidade de ser absorvido pelo crime principal, que é o crime de cartel, cumpre primeiro retomar o conceito do princípio da consunção, como alude Paulo Queiroz (2013, p. 134): logicamente a absorção de um crime por outro só poderia ocorrer quando o crime mais amplo cominasse pena mais grave do que o menos amplo, até porque a maior gravidade deveria ser avaliada, em princípio, segundo um critério objetivo: a pena cominada. no entanto, pode ocorrer de um crime menos grave absorver um mais grave. nesse exato sentido dispõe a súmula 17 do stJ que, “quando o falso exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”, hipótese em que um crime teoricamente menos grave (estelionato, previsto no art. 171 do CP, cuja pena varia de 1 a 5 anos de reclusão) pode absorver o mais grave (v. g., falsidade de documento público, previsto no art. 297 do CP, apenado com reclusão de 2 a 6 anos).
Ainda sobre o assunto, segundo Aníbal bruno, citado por bitencourt (2004, p. 181): [...] o fato posterior deixa de ser punido quando se inclui, como meio ou momento de preparação no processo unitário, embora complexo, do fato principal, ação de passagem, apenas, para a realização final. Assim, a posse de instrumentos próprios para furto ou roubo é consumida pelo furto que veio a praticar-se: as tentativas improfícuas se absorvem no crime que, enfim, se consumou. os fatos posteriores que significam um aproveitamento do anterior, aqui considerado como principal, são por este consumidos.
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A doutrina majoritária define a consunção como a relação existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam o mesmo bem jurídico, constituindo um deles meio necessário ou fase normal de preparação ou execução do outro. o exemplo mais comum nos livros é o crime de perigo ser absorvido pelo crime de dano, ou da violação de domicílio (art. 150 do CP) pelo crime de furto (art. 155 do CP). nesse sentido, Queiroz (2013, p. 135) alerta para as diferenças entre a consunção e o concurso de crimes: […] Ademais, os diversos fatos devem estar numa mesma linha de progressão no ataque a um mesmo bem jurídico protegido, pois do contrário já não se poderá falar de conflito de normas (consunção), senão de concurso de crimes (v. g., furto e receptação por indução; falsificação e posterior uso de documento falso; falsificação de moeda com posterior introdução em circulação; furto e estelionato, em razão da venda pelo agente da coisa furtada etc.).
É imperioso dizer que a definição dada pela doutrina majoritária não é regra absoluta, pois, para que haja absorção de um crime menos grave por um crime mais grave, não é necessário que o primeiro tutele o mesmo bem jurídico que o segundo. o exemplo mais citado nos livros já demonstra essa desnecessidade. Vejamos a contradição: “o crime de violação de domicílio (tutela a inviolabilidade/proteção do domicílio) é absorvido pelo crime de furto (tutela a posse e a propriedade da coisa móvel)” (QUEiroZ, 2013, p. 134). outro exemplo é o caso em que a contravenção penal de fingir-se funcionário público (art. 45 da lei de Contravenções Penais - tutela a fé pública) e o crime de violação de domicílio (art. 150 do CP - tutela a inviolabilidade/proteção do domicílio) são absorvidos pelo crime de roubo (art. 157 do Código Penal tutela o patrimônio), levando-se em conta o fato de que se fingir de funcionário público era meio necessário para roubar alguém dentro de um determinado domicílio. neste trabalho, o fenômeno da absorção de um crime menos grave por um crime mais grave que não tutela o mesmo bem jurídico que o crime absorvido, foi nomeado como princípio da consunção estendida. o princípio da consunção estendida é 209
a relação existente entre dois ou mais tipos penais que tutelam bem jurídico diferente, constituindo um deles meio necessário ou fase normal de preparação ou execução do outro. A respeito desse assunto, é necessário citar bitencourt (2011, p. 227): não convence o argumento de que é impossível a absorção quando se tratar de bens jurídicos distintos. A prosperar tal argumento, jamais se poderia, por exemplo, falar em absorção nos crimes contra o sistema financeiro (lei n. 7.492/86), na medida em que todos eles possuem uma objetividade jurídica específica. É conhecido, entretanto, o entendimento do trf da 4ª região, no sentido de que o art. 22 absorve o art. 6º da lei n. 7.492/86 1. na verdade, a diversidade de bens jurídicos tutelados não é obstáculo para a configuração da consunção. inegavelmente - exemplificando - são diferentes os bens jurídicos tutelados na invasão de domicílio para a prática de furto, e no entanto, somente o crime-fim (furto) é punido, como ocorre também na falsificação de documento para a prática de estelionato, não se punindo aquele, mas somente este (súmula 17/stJ). no conhecido enunciado da súmula 17 do stJ, convém que se destaque, reconheceu-se que estelionato pode absorver a falsificação de documento. registre-se, por sua pertinência, que a pena do art. 297 é de 2 a 6 anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5 anos. não se questionou, contudo, que tal circunstância impediria a absorção, mantendo-se em plena vigência a referida súmula.
seguindo a linha de raciocínio de bitencourt (2011), é possível constatar que no próprio artigo 87 da lei n. 12.529/11 existem crimes de natureza diversa abrangidos pelo acordo de leniência. são os casos de crime de associação criminosa - tutela a paz pública, e o crime de fraude à licitação - tutela a lisura da concorrência pública. logo, por não ser taxativo o rol de crimes previstos no art. 87, os crimes de bens jurídicos distintos não previstos neste artigo podem ser absorvidos pelo crime principal (cartel), isentando o leniente da pena de ambos os crimes. Porém, é preciso salientar novamente os dois requisitos para obtenção da consunção estendida: (i) possam ser absorvidos pelo crime principal que é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Para que
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hC 196690 – bA, 6ª t., rel. og fernandes, 27.09.2011, v.u.
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seja cumprido o requisito (i), a pena máxima do crime absorvido não deve passar de 5 anos, como prevê o art. 4º da lei n. 8.137/90. Para exemplificar melhor, utilizaremos o exemplo já mencionado em linhas anteriores. imagine um cartel de 3 empresas A, b e C onde A propôs o acordo de leniência, cumprindo todos os requisitos do art. 86 da legislação antitruste, em contraprestação o CADE beneficia os dirigentes da empresa A com a isenção da pena e impedimento da denúncia aos crimes diretamente relacionados à prática de cartel (art. 87). Em seguida, os dirigentes da empresa A, ao revelarem os crimes cometidos, disseram que invadiram dispositivos informáticos da empresa b e C, mediante violação de mecanismos de segurança com intuito de obter informações sigilosas e comunicação eletrônica privada de b e C (art. 154-A, §3º, do Código Penal). A empresa argumentou em sua defesa que o objetivo da invasão foi identificar se a tabela de preços e o acordo do cartel entre as 3 empresas estava em fase de implementação, e se alguma das empresas tinha a intenção de desfazer o cartel. Utilizando dos dados coletados como prova de que a empresa A somente queria garantir a eficiência do crime principal, crime de cartel, devido à insegurança da prática do ilícito, isso era meio necessário para o cumprimento do crime de cartel. nesse caso, é possível dizer que o crime do art. 154-A, §3º, do Código Penal foi absorvido pelo crime do art. 4º da lei n. 8.137/90? no nosso entendimento, a resposta deve ser positiva, e a fundamentação não está somente no fato de o crime de invasão de dispositivo informático ter relação direta com prática do cartel, mas também por este crime ter pena máxima de 2 anos, não ultrapassando a pena máxima do art. 4º da lei n. 8.137/90. logo, configura-se perfeitamente a possibilidade da consunção estendida, desde que: (i) possam ser absorvidos pelo crime principal, que é o crime de cartel - art. 4º da lei n. 8.137/90; e (ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Por último, cabe salientar que a crítica dos doutrinadores contra a solução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ não é em virtude da impossibilidade da consunção entre infrações penais que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os doutrinadores discordam da aplicação da súmula n. 17 em razão 211
de ela infringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o princípio da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a pena do crime absorvido (art. 297 do Código Penal) é de 2 a 6 anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5 anos (crime principal - absorvente). princípio dA proporcionALidAde ou princípio dA VedAção dA proteção insuFiciente no direito penAL A respeito de proporcionalidade, é importante citar o entendimento de Juliana Venturella Gavião (2008, p. 106): A importância do papel do princípio da proteção deficiente na seara do direito penal se dá na medida em que já não mais se pode falar em um Estado que guarda exclusivamente das “liberdades negativas”. o Estado passou a ter função de proteção da sociedade em uma dupla acepção: transcendeu sua histórica função de proteção contra o arbítrio do poder, e alcançou a função de concretização dos direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os cidadãos contra as condutas delitivas de terceiros. Dentro deste paradigma surge, e. g., o direito a segurança erigida ao status de direito fundamental. se violado este direito em face da proteção aquém do mínimo exigido pela Constituição, ou pela omissão (no caso da ausência da normatização necessária pelo legislador), verifica-se hipótese evidente de aplicação da proibição de insuficiência.
o direito à segurança previsto no art. 5º da Constituição federal deve ser usado como parâmetro para aplicação e produção de leis, para que não se produza uma proteção deficiente de um direito fundamental. A respeito do crime de cartel, Amanda Athayde e rodrigo de Grandis (2015, p. 292), em artigo que debate os limites da abrangência do acordo de leniência na esfera criminal, expõem dúvida capciosa após um raciocínio extremo. “se um participante do cartel agride fisicamente outro participante do cartel, causando-o lesão corporal ou até mesmo a morte, cometendo crime de homicídio, estaria ou não essas infrações penais abrangidas no acordo de leniência?” 212
os autores dizem que não é possível a abrangência em razão do crime de homicídio não constituir, sob aspecto típico, uma normal fase de preparação ou execução do delito de cartel, de modo que não estariam, pelo menos em tese, alcançados pelo acordo de leniência antitruste. ou seja, os autores aplicaram com perfeição o segundo critério do princípio da consunção defendido neste estudo: (ii) possuam nexo de causalidade com o crime principal. Apenas a aplicação desse critério já é o suficiente para impossibilitar a aperfeiçoamento do princípio da consunção. no entanto, os autores se limitaram, com a devida vênia, em dizer que o princípio da consunção não poderia absorver crimes que tutelam bens jurídicos não semelhantes, interpretação já refutada neste trabalho. logo, com a devida vênia, a explicação da não abrangência do acordo de leniência no crime supracitado, após raciocínio arguido pelos autores, é satisfatório mas incompleto, haja vista que a abrangência não estaria apenas prejudicada em razão do iter criminis ou do nexo de causalidade, pois, como já foi citado em tópicos anteriores, esta condição é apenas um dos pré-requisitos da absorção do crime meio ou complementar pelo crime principal - crime de cartel. na verdade, é imprescindível a análise da proporcionalidade da pena nesses crimes. o crime de homicídio simples tem pena máxima de vinte anos, o crime de homicídio qualificado (art. 121, §2º, inc. V, do CP) tem pena máxima de trinta anos, sem contar que este último é crime hediondo, e nos parece ser a única forma possível de tipificação aplicada ao caso narrado, uma vez que o homicídio seria feito para assegurar a execução, ocultação ou impunidade do crime de cartel. nesse entendimento, é impossível a aplicação do princípio da consunção estendida, pois, caso houvesse aplicação da absorção do crime de homicídio qualificado (crime meio ou complementar) pelo crime de cartel (crime principal – pena máx. cinco anos), estaríamos diante de um caso grave de deficiência da instituição jurídico-penal e afrontando diretamente a Constituição em seu art. 5º, inc. xliii, onde diz: “a lei considerará crimes inafiançáveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, 213
os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Veja que o legislador constituinte deu proteção excepcionalíssima aos casos de crimes horrendos, não sendo possível ao legislador ordinário produzir norma que anistie diretamente ou indiretamente os autores de tais crimes, assim como não é possível a concessão do indulto (art. 2º da lei n. 8072/90) e da graça pelo Presidente da república ao agente criminoso. Então como seria possível um acordo de leniência superar uma norma de grau hierárquico superior que restringe até mesmo a fiança? na lição de nucci (2013, p. 252), o princípio da proibição da proteção deficiente significa: Didaticamente, pode-se considerá-lo presente para enaltecer a importância do respeito à proporcionalidade. se o crime de furto simples não deve ser punido com pena de 20 a 30 anos de reclusão, por ferir diretamente a proporcionalidade, sob outro prisma, o homicídio jamais poderia ser apenado com simples multa. A deficiência de proteção estatal consagraria a desproporcionalidade. […] Cuidando-se de mero espelho da proporcionalidade, não se pode utilizar a proibição da proteção deficiente para derrubar importantes conquistas penais e processuais penais dos últimos tempos. Por isso, esse princípio encontra barreiras em vários outros, como a legalidade, a culpabilidade, a intervenção mínima etc. (grifamos)
o princípio da proporcionalidade na jurisprudência do stJ 2: stJ: “[…] no caso, não se revela socialmente recomendável o deferimento do benefício da substituição da pena, tendo em vista a quantidade e a diversidade de droga apreendida na residência do paciente, a saber, cocaína e crack” (e-fl. 20). tal fato indica que a negativa do benefício da substituição de pena encontra guarida na norma do art. 44, iii, do CP. Eventual conversão da pena corporal em medidas restritivas de direito consubstanciaria infringência ao princípio da proporcionalidade em sua face que veda a proteção deficiente a bens jurídicos constitucionalmente tutelados. no caso, a saúde pública.” (grifamos)
A regra da proporcionalidade deve ser respeitada na aplicação de vários outros princípios como foi dito por nucci (2013), e nesse sentido o Código Penal em seu art. 118 aduz o raciocínio 2
hC 196690 – bA, 6ª t., rel. og fernandes, 27.09.2011, v.u.
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de que ela deve ser respeitada na aplicação do princípio da consunção. o art. 118 dispõe que: “As penas mais leves prescrevem com as mais graves”. prescrição do crime de cArteL em reLAção Aos não Lenientes Após a realização do acordo de leniência, o órgão acusador é impedido de oferecer denúncia contra o beneficiário, e o prazo prescricional da pretensão punitiva do Estado suspende em relação a este. Vejamos a redação do art. 87 da lei n. 12.529/11: “nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, (tais como os tipificados na lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal), a celebração de acordo de leniência, nos termos desta lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” (grifamos). o acordo de leniência não beneficia os coautores do crime, apenas o leniente, e este, por interesse das autoridades, deve ajudar a persecução do ilícito administrativo e penal, não tendo em seu favor o transcurso do prazo prescricional, que poderia levar à extinção da punibilidade. Vamos exemplificar. imagine que existiu um cartel (art. 4º da lei n. 8.137/90) entre as empresas A, b e C, de 1998 a 2015, mas a empresa C saiu da formação criminosa em julho de 2003, e desde lá não manteve contato com as concorrentes e mudou seu ramo de atuação. Em junho de 2015, após quase 12 anos, a empresa A fez acordo de leniência e, no momento da persecução do ilícito administrativo, apontou as empresas b e C como coautoras do ilícito. nesse caso, faltando alguns dias para prescrever a pena relativa à empresa C (art. 109, inc. iii do CP), poderá ocorrer por algum motivo especial a suspensão do prazo prescricional da pretensão punitiva do Estado em relação 215
às empresas b e C? Via de regra, é inevitável dizermos que no caso narrado a pretensão punitiva do Estado contra a empresa C se extinguiria, em virtude da demora da ação penal pública de competência do Ministério Público. Mendroni (2015) ressalta a importância da persecução administrativa do acordo de leniência no âmbito da ação penal, utilizada pelo Ministério Público. nas palavras de Mendroni (2015, p. 322): o órgão acusador [...] poderá e deverá, utilizar todos os dados e documentos advindos do acordo de leniência como prova contra os demais integrantes do cartel. [...] Cumpridas todas as exigências legais, o processo administrativo contará com inestimável fortalecimento probatório, cujo contexto pode ser emprestado para utilização também no processo penal contra os infratores, à exceção do(s) beneficiado(s) pelo Acordo de leniência.
no entanto, uma possível solução para inocorrência da prescrição no caso das empresas b e C, seria a utilização pelo Ministério Público de fundamentação baseada no art. 116, inciso i, do Código Penal - “Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime”. o Código Penal não foi específico quanto ao tipo de processo, sendo concebível dizer que o processo administrativo do CADE está abrangido pelo artigo 116 do Código Penal. Para melhor entendimento, é importante destacarmos o trecho final deste mesmo artigo, onde está escrito: questão que dependa o reconhecimento da existência do crime, este reconhecimento do crime pode ser resolvido no processo administrativo em virtude do art. 191, inciso iV, do regimento interno do CADE, que prevê: “Podem ser proponentes de acordo de leniência pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica e que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos – confesse sua participação no ilícito” (grifamos). o fato de o leniente confessar a participação dele na conduta ilícita e corroborar com dados e documentos que provam inequivocamente o ilícito, enseja a interpretação de que a 216
pretensão punitiva do Estado contra os criminosos, não lenientes, está abrangida pela causa de suspensão prescricional prevista no art. 116 do CP, caso o MP ainda não esteja investigando o crime. lembrando que o acordo de leniência é meio de obtenção de prova e que o processo administrativo somente encerrará, se o leniente cumprir todos os requisitos do acordo, auxiliando o CADE e o MP na persecução criminal e administrativa - art. 87 da lei Antitruste. reiterando aqui o raciocínio de Mendroni (2015, p. 310), quando este ressalta que, nos crimes de cartel e de fraudes à licitação, o agente vai reiterando a execução do crime no decurso do tempo, como acontece nos casos de execução do contrato administrativo. nas palavras do autor: “Esta é a questão chave da diferenciação. se a execução vai sendo reiterada, a consumação vai sendo renovada, assumindo nova data a cada conduta de ‘cumprimento’ do contrato, recebendo parcelas de pagamentos; vale dizer, assumindo novo termo prescricional”. Por essa razão, Mendroni (2015) acredita ser o crime de cartel, um crime de natureza permanente, questão ainda não pacificada na doutrina. Para o autor, o crime de cartel em licitação não se consuma no edital de pré-qualificação. o crime de cartel só se inicia nesse momento, perpetuando-se, todavia, pela vontade dos agentes, a cada reunião, a cada acordo, ajuste, convênio e/ou aliança. concLusão o presente trabalho dedicou-se à análise da abrangência e eficiência de umas das ferramentas investigatórias mais utilizada no mundo: o acordo de leniência. o acordo deve promover segurança jurídica ao leniente e ao órgão acusador, devido à dificuldade de obtenção de provas do ilícito administrativo e criminal. o Estado, ao conceder benefícios ao delator, estimula-o a identificar as condutas criminosas e os agentes envolvidos, abstendo-se de exercer o seu jus puniendi apenas em relação ao leniente.
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Demonstrou-se, a partir de uma análise sucinta e comparativa dos princípios do Direito Penal e da lei Antitruste, a formação de um novo princípio, o princípio da consunção estendida, com aplicação no âmbito dos dois ramos jurídicos – Direito Concorrencial e Direito Penal. tentou-se provar que este princípio está implícito no art. 87 da lei Antitruste, pois, quando o legislador exemplifica crimes de natureza jurídica diferente, abrangidos ou absorvidos pelo crime de cartel em decorrência do acordo de leniência, está o legislador personificando o princípio da absorção e o estendendo a crimes diversos. Ao mesmo tempo, a legislação não viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que os crimes exemplificados e consumidos possuem pena mais leve que a pena do crime principal. salientamos que a crítica dos doutrinadores contra a solução jurídica apresentada pela súmula n. 17 do stJ não é em virtude da impossibilidade da consunção entre infrações penais que tutelam bens jurídicos distintos. na verdade, os doutrinadores discordam da aplicação da súmula n.17 em razão de ela infringir um dos princípios basilares do Direito Criminal, o princípio da vedação da proteção insuficiente, uma vez que a pena do crime absorvido (art. 227 do CP) é de 2 a 6 anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171do CP é de 1 a 5 anos (crime principal - absorvente). Este estudo apresentou a dificuldade na definição do termo “crimes diretamente relacionados à prática de cartel”, por ser um termo vago e de pouco estudo doutrinário. Mesmo assim, o trabalho tentou definir limites na abrangência do acordo de leniência, com a finalidade de promover segurança jurídica aos beneficiários e a terceiros envolvidos ou não no acordo. Para finalizar, espera-se que o trabalho impulsione maiores reflexões a respeito do tema e fortaleça este importante mecanismo de proteção ao ambiente concorrencial, que é o programa de leniência.
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reFerênciAs AthAyDE, Amanda; GrAnDis, rodrigo. Programa de leniência Antitruste e repercussões Criminais: Desafios e oportunidades recentes. in: CArVAlho, Vinicius Marques et al. A Lei 12.529/11 e a Nova Política de Defesa da Concorrência. são Paulo: singular, 2015. bitEnCoUrt, Cézar. Tratado de Direito Penal: parte geral. 16. ed. são Paulo: saraiva, 2011. bitEnCoUrt, Cézar. Tratado de Direito Penal: parte geral. 2. ed. são Paulo: saraiva, 2004. brAsil. CADE. Guia do Programa de leniência. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/upload/Guia%20%20Programa%20de% 20leni%C3%AAncia%20Antitruste%20do%20Cade%20%20Vers%C3%A3o%20Preliminar.pdf>. Acesso em: 10 de fev. de 2016. GAViÃo, Juliana Venturella nahas. A proibição de proteção deficiente. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 61, p. 94-111, mai./jun./2008. GrECo, rogério. Curso de Direito Penal. 13. ed. rio de Janeiro: impetus, 2011. MEnDroni, Marcelo batlouni. Crime Organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 5. ed. são Paulo: Atlas, 2015. nUCCi, Guilherme de souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 3. ed. são Paulo: revista dos tribunais, 2013. QUEiroZ, Paulo. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 9.ed. salvadorbA: Juspodivm, 2013.
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