CONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XIX

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Eduardo Alvares de Oliveira* Daniel Adjafre da Costa Matos** CONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XIX CONSTITUTIONALISM IN THE 19TH CENTURY CONSTITUCIONALISMO EM EL SIGLO XIX

Resumo: O constitucionalismo no século XIX, pós-revolução francesa, é caracterizado por mudanças intensas nas relações de poder entre as classes sociais existentes à época, além de marcar o surgimento de novos modelos de organização social e estatal e de novas formas de Constituição. Abstract: Constitutionalism in the nineteenth century, French post- revolution, is characterized by intense changes in power relations between social classes existing at the time, and mark the emergence of new models of social organization and state and new forms of Constitution. Resumen: El constitucionalismo en el siglo XIX, después de la revolución francesa se caracteriza por intensos cambios en las relaciones de poder entre las clases sociales existentes en el momento, y marca la aparición de nuevos modelos de organización social y el estado y las nuevas formas de Constitución.

Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público IDP. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera. Graduado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira. Professor convidado da Universidade de Rio Verde. Juiz de Direito do TJ-GO. ** Especialista em Direito Empresarial pelo Instituto Processus. Graduado em Direito pelo Instituto Processus. Servidor do Tribunal Superior Eleitoral. *

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Palavras-chave: Revolução, constitucionalismo, liberalismo, democratização. Keywords: Revolution, constitutionalism, liberalism, democratization. Palabras clave: Revolución, constitucionalismo, liberalismo, democratización.

INTRODUÇÃO O constitucionalismo como conhecemos hoje é fruto de um longo processo evolutivo histórico, social, político e jurídico. Não se pode dizer que ele se deve a determinados acontecimentos isolados da história, tendo em vista tratar-se de um processo evolutivo. Existem alguns marcos históricos que influenciaram fortemente para alcance do constitucionalismo como enxergamos hoje, tais como a Magna Carta inglesa, a Revolução Gloriosa, a Independência dos Estados Unidos da América (EUA) e a criação de sua Constituição, a Revolução Francesa, entre outros. O século XIX é marcado por profundas mudanças no constitucionalismo, concretizando uma nova era, definida por diversos autores como constitucionalismo moderno, que vem questionar os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo novas formas de ordenação do poder político. Diante desse contexto, surgem limitações ao poder real e a positivação da Constituição, alicerçadas na ideia de democratização do poder e no crescimento de novas demandas sociais. A análise do constitucionalismo no século XIX é relevante para compreendermos o ciclo evolutivo pelo qual está sujeito o constitucionalismo, que vem desde os primeiros textos constitucionais até os dias atuais, em que nos deparamos com Constituições rígidas, com conceitos de supremacia constitucional e judicial review, dentre outros elementos de suma importância. 32


Portanto, é possível perceber que o constitucionalismo contemporâneo é fruto da evolução do seu sistema, de muitas lutas entre classes e da infindável busca pelo aperfeiçoamento do ser humano e de suas instituições. Primeiramente, é preciso pontuar que iremos realizar uma breve abordagem descritiva do contexto histórico do século XIX, partindo da origem da Revolução Francesa até o que restou do Antigo Regime. Na sequência será analisada a consolidação dos ideais liberais, pós-revolução, em que a burguesia ganha papel de destaque na condução da política na França, afastando princípios democráticos e de soberania popular das Constituições. E continuando o desenvolvimento, abordaremos, ainda, a resistência popular a essa forma de governar e decidir politicamente, oportunidade em que foram travadas verdadeiras lutas entre as classes, fato que ao final do século XIX começa a render algumas conquistas às classes trabalhadoras. Após essa contextualização histórica, iremos nos ater à análise do constitucionalismo propriamente dito, com suas características e natureza, com ênfase em um modelo predominante na primeira metade do século XIX e outro que ganha espaço na segunda metade do século, a fim de destacar a passagem de um modelo de Estado liberal para uma espécie de Estado social. É importante ressaltar, ainda, que a presente pesquisa tem cunho histórico e dogmático, e que utilizamos métodos descritivos e analíticos para o seu desenvolvimento. ASPECTOS HISTÓRICOS QUE INFLUENCIARAM O CONSTITUCIONALISMO DO SÉCULO XIX O constitucionalismo do século XIX é marcado pela luta entre classes e pela disputa pelo poder inerente a um período conturbado e de grandes transformações sociais e econômicas. Primeiramente, temos que, com diferentes matizes nos vários países, um conjunto de direito público europeu, no fim do século XIX, era o que se afirmava em oposição ao princípio democrático e da soberania popular. As Constituições não eram democráticas e nenhuma aceitava o poder constituinte e o princípio democrático como fonte de legitimação (PISARELLO, 2011, p. 114). 33


Isso porque a consolidação de um modelo de Estado liberal foi alcançado com a Revolução Francesa, em que a burguesia revolucionária utilizou-a para estreitar os poderes da Coroa e destruir os privilégios feudais, colocando fim ao Antigo Regime. A burguesia, antes dominada, passa a ser classe dominante, formulando os princípios filosóficos de sua revolta social (BONAVIDES, 2004, p. 42). Assim, resta evidente que, a partir do momento em que se apodera do controle político da sociedade, a burguesia já não se interessa pela universalidade dos princípios democráticos e de legitimação do poder na soberania popular. E, para compensar essas limitações de democratização política, as elites da época aceitaram colocar em marcha algumas tímidas reformas no âmbito social e econômico. Na Inglaterra, conservadores e liberais avançaram timidamente nas reformas sociais iniciadas com a vitoriosa limitação da jornada de trabalho. Também na França os republicanos modernos impulsionaram algumas reformas sociais importantes (PISARELLO, 2011, p. 114). Essas leituras democratizantes e socializantes chegaram também a países como a Alemanha e Áustria e encontraram eco em posições de diferentes expoentes do chamado “socialismo jurídico” (PISARELLO, 2011, p. 116). Como será demonstrado, surge a necessidade de um novo curso de ideias, da liberdade do homem perante o Estado - do liberalismo -, avança-se para a ideia democrática na participação total e indiscriminada desse mesmo homem na formação da vontade estatal (BONAVIDES, 2004, p. 43). Do princípio liberal passa-se ao princípio democrático, do governo de uma classe para o governo de todas as classes. A primeira fase da Revolução Industrial - ocorrida no Ocidente - evidencia que a liberdade contratual, a espoliação do trabalho, o emprego de métodos brutais de exploração econômica, expunha os problemas do domínio econômico e a necessidade de revisar o conceito de liberdade construído pelo Estado liberal, com o fito de se firmar um compromisso ideológico que paulatinamente vem sendo enxertado nas Constituições democráticas (BONAVIDES, 2004, p. 59).

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Por isso a importância de revisitar alguns pressupostos históricos ocorridos no decorrer do século XIX para que possamos subsidiar as características do constitucionalismo naquele período, sobretudo com foco na institucionalização do liberalismo jurídico e econômico e, posteriormente, na ideia de democratização - e legitimação do poder - e socialização do Estado e das relações jurídicas. O “fim” da Revolução Francesa O primeiro pressuposto histórico importante para a compreensão do constitucionalismo na primeira metade do século XIX é justamente o que restou do Antigo Regime após a Revolução Francesa; como a sociedade se organizou pós-revolução; e qual o tipo de Estado que se formou com a acomodação do novo sistema. A França antes da revolução constituía-se numa sociedade estruturada no Antigo Regime, sendo o Estado absolutista e monárquico, com economia consistente em práticas mercantilistas e socialmente regidas por relações de servidão (PASSOS, 2015, p. 2). O Antigo Regime pode ser denominado como aquele formado pelo poder monárquico absoluto, em que o rei governava os seus súditos sem ser responsabilizado pelos seus atos de governo ou de gestão, sendo o detentor de toda a soberania e poder estatal. Nesse regime não havia limites impostos ao poder do soberano-rei, que prestava contas, tão somente, ao ser superior, divindade que legitimara a investidura de seu poder. Esse absolutismo monárquico era marcado pela centralização do poder estatal na realeza, que, entretanto, buscava, eventualmente, o apoio de camadas da sociedade, formada pelas tradicionais “ordens sociais”, qual seja, o clero, a nobreza e a burguesia (GRESPAN, p. 22). Segundo Lenio Streck (apud PASSOS, 2015, p. 3), O Estado, em sua primeira versão absolutista, foi essencial aos interesses burgueses, quando por motivos econômicos, estes abriram mão do poder político, delegando-o ao soberano, contudo, na virada do século XVIII, esta classe, não se contentava mais com o poder econômico, desejava poder político só alcançado pela aristocracia.

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A Revolução Francesa, dentre outros méritos, pôs fim ao Estado absolutista, abolindo as instituições políticas do Antigo Regime e instituindo uma nova ordem social e política, caracterizada pela igualdade formal e pela liberdade do povo (TOCQUEVILLE apud PASSOS, 2015, p. 7). É imperioso observar que a desigualdade entre as classes na França do século XVIII foi fator preponderante para a eclosão da revolução. Essa desigualdade pode ser ilustrada na seguinte passagem da obra de George Lefebvre (1989, p. 52): A separação das ‘ordens’, ‘Estados’ ou ‘Stande’ não esgotava a hierarquia social. Por interesse financeiro ou político, o Estado jamais dificultou a concessão de ‘franquias’ ou liberdades, isto é, privilégios, não apenas às províncias ou cidades, mas também a grupos constituídos no seio de cada ordem: repartindo para reinar, mantinha uma organização corporativa cujo princípio, de alto a baixo, repousava sobre a desigualdade dos direitos.

Vitoriosa a Revolução, busca-se instalar uma monarquia constitucional, que é derrubada com a dissolução da Assembleia Constituinte e com o estabelecimento da Convenção Nacional de um Novo Parlamento, período marcado pelo crescimento de posições revolucionárias radicais, oriundas dos jacobinos, tendo como líderes nomes como Robespierre, Saint-Just e Danton, historicamente conhecido como a Fase do Terror (FERNANDES apud PASSOS, 2015, p. 5). Segundo Fernandes (apud PASSOS, 2015, p. 6), a crise econômica e o temor com o radicalismo jacobino se intensificam. Napoleão Bonaparte, jovem e destemido general da Revolução, era o nome esperado pela burguesia para promover a ordem política francesa. Em 1799, ao regressar do Egito, o general se deparou com um cenário de conspiração contra o governo do Diretório, valendose desta oportunidade, para tomar o poder, golpe de 18 Brumário.

Essa superação do Antigo Regime com a tomada de poder pela burguesa e a derrubada da monarquia é o que marca a consolidação das ideias liberais, supremacia do Legislativo e limitações dos poderes do Estado.

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A consolidação das ideias liberais Com a restauração da dinastia borbônica em 1814 (restauração dos Bourbon na França), representada pela ascensão de Luís XVIII ao poder, intenta-se a combinação do princípio de legitimação tradicional real com alguns critérios liberais. Com a outorga de uma nova Constituição, o conteúdo da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão desaparece do texto constitucional, retornando, somente, no pós-guerra do século XX. O Código Civil de 1804 consagra uma ficção de igualdade contratual entre os homens, independentemente da situação material em que se encontrassem, sendo um marco jurídico da autonomia da vontade (PISARELLO, 2011, p. 92). Com a Revolução de 1830, a dinastia borbônica foi deposta cedendo espaço para Luis Felipe de Orleans – considerado a encarnação da monarquia burguesa -, que logo promulgou nova Constituição, dando-lhe um caráter de pacto entre a Coroa e as câmaras. Nessa Carta, suprimiu o princípio de legitimação divina e histórica do rei, para reconhecer o papel legitimador das câmaras censitárias, que era a representante da nação. No entanto, esse princípio legitimador, que ganhava peso em relação à Constituição de 1814, não passava de um artifício antidemocrático, já que o governo e as câmaras eram conduzidos por uma reduzida oligarquia (PISARELLO, 2011, p. 93). Ainda durante a revolução (1830) houve uma tentativa de neutralizar o poder constituinte popular e de impor uma política de restrições às intervenções públicas, as quais seriam reservadas ao mínimo necessário, garantindo a reprodução de uma nova ordem político-econômica liberal na primeira metade do século XIX. Assim, o liberalismo monárquico prestaria inestimáveis serviços às novas relações capitalistas. O próprio Marqués de Lafayette, ao responder a petição de trabalhadores que requereram a intervenção do Poder Público nas relações laborais respondeu, em síntese, que não seria admitida nenhuma petição que fosse dirigida para intervenção na relação entre patrão e obreiro no que tocasse à fixação de salários, à duração da jornada de trabalho e ao contrato de trabalho (PISARELLO, 2011, p. 95).

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Com isso, consolidava-se uma hegemonia burguesa liberal ascendente que não poderia admitir o regresso ao Antigo Regime, ao passo que a monarquia prestava-lhe um inestimável serviço a fim de afastar a “desordem democrática”. Assim, a classe burguesa inseria o liberalismo político, econômico e jurídico como característica do Estado na primeira metade do século XIX, impedia o retorno do absolutismo monárquico e, ao mesmo tempo, neutralizava as forças democráticas, consolidando sua hegemonia sobre o Estado e o povo. Com isso, resta evidente que o povo estava sendo alijado de participar das decisões políticas de seu Estado, e que o poder agora passava a emanar não mais de um homem (o monarca), mas de um grupo de homens que se diziam legítimos a decidir os rumos do Estado e o futuro de todo o resto da nação. E, para contrapor-se a esses ideais liberais surge na Europa, sobretudo na França e Inglaterra, movimentos democratas e sociais, que a seguir serão descritos. Democracia social: cartismo britânico Segundo Wolfgang Abendroth (1986, p. 15-16), a fórmula de Estado democrático e social apareceu pela primeira vez na Revolução de Paris de 1848, em um compromisso firmado entre os pequenos partidos democráticos-liberais e as primeiras associações do movimento trabalhista da França. A fórmula do “Estado de Direito Democrático e Social” apareceu nas publicações de Louis Blanc e tinha um conteúdo concreto, que seria o reconhecimento do direito ao trabalho como um direito fundamental. Na medida em que as relações capitalistas foram se estendendo, a cisão entre a burguesia e o proletariado se tornou patente. Revoltas populares se espalharam pela Europa entre 1820 e 1830, e em 1848 estourou a grande revolta, que apostou em um ideal democrático, identificado como o governo dos pequenos proprietários e produtores independentes, federados entre si em unidades autônomas. O movimento cartista inglês e a insurreição francesa de 1848 conceberam o ideal de democracia

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social1, reivindicando o sufrágio universal e a solução para a exclusão e exploração econômica (PISARELLO, 2011, p. 95-96). Insta pontuar, ainda, que a Revolução de 1848 marca a emancipação das classes populares em relação ao modelo posto pela burguesia, de forma que, a partir desse momento, a monarquia decadente e a burguesia ascendente passam a lutar contra um inimigo comum, qual seja, o povo. O movimento cartista, impulsionado pela Associação dos Trabalhadores de Londres e por ativistas como Willian Lovett (1800-1877), obteve seu nome na Carta Del Pueblo, documento enviado ao parlamento britânico pelos trabalhadores em 1838, contendo seis petições: a) sufrágio universal masculino para maiores de vinte e um anos; b) caráter secreto do voto; c) um soldo anual para os deputados; d) a renovação anual do parlamento; e) a abolição dos requisitos de propriedade para ascender ao parlamento; f) estabelecimento de circunscrições legais que assegurassem a representação do mesmo número de votantes (PISARELLO, 2011, p. 96). Para o movimento cartista, a democracia era necessária porque, uma vez que a maioria pobre fosse politicamente decisiva, poderia aprovar leis que veiculassem seus programas sociais. Segundo Lovett, o objetivo do cartismo era conseguir a união dos setores mais inteligentes e influentes das classes trabalhadoras urbanas e rurais, garantindo a todos os membros da sociedade os mesmos direitos políticos e sociais (PISARELLO, 2011, p. 97). Observa-se que, nessa fase, democracia se aproxima da ideia de defesa e reconhecimento dos direitos de uma classe que foi excluída da participação da tomada de decisões políticas, ou seja, o conceito de democracia impõe maior participação popular na tomada de decisões e legitimação do poder.

É preciso registrar que democracia até metade do século XIX possuía o significado de constituição e manutenção do Estado de Direito e limitação do poder político, ou seja, Estado Democrático seria aquele regido pelo império da lei, contrapondo-se com a vontade do governante, e consequentemente com a limitação do poder político. Já na segunda metade do século XIX democracia passa a funcionar como maior participação social nas decisões políticas do Estado; já não basta um Estado governado pela legalidade, exigindo que essa legislação seja fruto da vontade da maioria do povo.

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Proclamação da república na França Em 1848, trabalhadores, artesãos, estudantes e membros da pequena burguesia levantaram 1.500 barricadas em Paris, protestando contra as reformas liberais de François Guizot e contra a monarquia orleanista, a qual Karl Marx (apud PISARELLO, 2011, p. 98) havia definido como uma grande sociedade por ações para a exploração da riqueza nacional da França, cujos dividendos eram repartidos entre os ministros, as câmaras e 240.000 eleitores. A indignação das classes excluídas refletiu em uma inundação de panfletos em Paris, que concentrava todo o ódio e desprezo contra os setores dominantes em uma só palavra: corrupção. Em três dias, a revolução – que desde o princípio se apresentou como democrática e social – levou abaixo a monarquia, proclamando a república e colocando em marcha um novo processo constitucional (PISARELLO, 2011, p. 98). Instalado o governo provisório, e iniciadas as discussões no projeto de Constituição, Louis Blanc (1811-1882) propôs que se garantisse um direito de existência dos trabalhadores por meio do trabalho e que se criasse um Ministério do Trabalho. Outros socialistas, de maneira mais direta, teorizaram o papel central do direito do trabalho e os direitos sociais. Para Blanc, o direito ao trabalho teria seu fundamento no direito de viver produtivamente e, através dele, de conservar a sua vida (PISARELLO, 2011, p. 99). No entanto, a ala conservadora da Assembleia Constituinte resistia ao projeto de se institucionalizar o direito ao trabalho. Republicanos radicais e socialistas, como Felix Pyat, tentaram convencer a maioria conservadora de que o direito ao trabalho não supunha a extinção do direito à propriedade e nem levaria ao comunismo, pois simplesmente exigiria que o Estado promovesse o pleno emprego através de medidas de intervenção fiscal, laboral e financeira (PISARELLO, 2011, p. 101). Para Marx, o novo capitalismo industrial exigia uma atualização do programa e da luta por uma sociedade civil que não se fundasse na apropriação privada das bases da existência, senão em um “sistema republicano de associação fraterna dos produtores livres e iguais” (PISARELLO, 2011, p. 102).

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Com isso percebemos uma forte investida social-democrática, acompanhada de um contundente reação conservadoraliberal, que levaram a respostas sociais e preventivas, as quais visavam controlar o avanço dos anseios da classe trabalhadora/popular, como a seguir será demonstrado. Das respostas social-preventivas: democratização do Estado e socialização do direito O avanço do movimento democrático, vinculado à aparição de organizações de trabalhadores socialistas, comunistas e anarquistas, gerou diversas reações das classes dominantes. A organização dos trabalhadores, a luta em favor da expansão do sufrágio e o intento de democratização do feudalismo industrial capitalista, colocaram em guarda as classes conservadoras. Em meados do século XIX, todos os partidos invocavam a democracia em seus discursos, uns a “monarquia democrática”, outros a “democracia republicana” e outros uma “democracia pura” (PISARELLO, 2011, p. 105-106). A política social preventiva mais audaz levada adiante na Europa foi a dirigida por Otto Von Bismarck (1815-1898), na Prússia, entre 1862 e 1890. O projeto de Bismarck foi o primeiro modelo de “Estado Social” da Europa moderna. Seu objetivo era desativar de maneira preventiva a “ameaça revolucionária” que havia se estendido na Europa e, desse modo, “ganhar os obreiros para o Império”. Seu programa político era inspirado em pensadores como G. W. F. Hegel, Lorenz Von Stein, Ferdinand Lassalle2, que eram Ferdinand Lassalle (1825-1864) sustentava que a Constituição deveria refletir as condições históricas reais e não ser uma mera abstração desvinculada da realidade. Lassalle, em 1862, pronunciou em Berlin uma célebre conferência sobre a essência da Constituição, argumentando que os problemas constitucionais não eram, primordialmente, problemas de Direito, mas sim problemas de poder. Isso porque, na verdade, a Constituição de um país residia nos fatores reais e efetivos de poder que regiam o país, de maneira que, quando não refletida na realidade era reduzida a pouco mais que uma simples folha de papel. Portanto, Lassalle acreditava que o movimento obreiro poderia encarnar esse “fragmento de Constituição” capaz de obrigar a institucionalização de políticas que conduzissem progressivamente ao socialismo. (in FERDINAND, Lasalle. ?Qué es la Constituciôn?, trad. Prólogo de W. Roces, Ariel, Barcelona, 1976, p. 101-102, apud PISARELLO, Gerardo. Un Largo Termidor. La ofensiva del constitucionalismo antidemocrático. Madrid: Trotta, 2011, p. 108). 2

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chamados de “socialistas da cátedra” (PISARELLO, 2011, p. 106-107). Bismarck, entre 1883 e 1889, colocou em marcha uma nova legislação laboral - após impor uma nova Constituição, a de 1871, e instituir um Estado social paternalista -, que compreendia uma lei de seguro maternidade, uma lei sobre acidentes de trabalho e a primeira lei sobre seguros por invalidez e pensões financiadas mediante cotas mistas entre empregadores e trabalhadores (PISARELLO, 2011, p. 109). Por outro lado, o avanço do sufrágio universal foi um processo árduo e lento. Na Inglaterra, em 1885, se admitia o direito a voto de todos os cidadãos maiores de idade que tivessem, durante um certo tempo, residência própria e a todos que possuíssem propriedade e tivessem uma renda de dez libras, um sufrágio, portanto, distante do universal (PISARELLO, 2011, p. 113).

A EVOLUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XIX Como dito alhures, para compreender a evolução do constitucionalismo no século XIX, é fundamental entender as transformações ocorridas na sociedade e nas relações de poder à época. A Revolução Francesa é um marco histórico para a evolução do constitucionalismo naquele período. A partir do século XVIII, a Europa - cansada do modelo denominado Antigo Regime -, é influenciada pelos movimentos liberais que desenvolveram ideias políticas e jurídicas que inspiraram o constitucionalismo. De acordo com Streck, é diante dessa circunstância, no momento revolucionário francês, que a doutrina do contrato social tornou-se componente teórico fundamental para os revolucionários, posto que o desejo por uma Constituição se embasava na tese de que o contrato social encontra sua explicitação na Constituição (apud PASSOS, 2015, p. 10). É preciso ressaltar que, segundo Bercovici (2013, p. 158177), em 1789, Constituição e revolução coincidem. A concretização da revolução é a Constituição. No entanto, a perpetuação do estado revolucionário, acaba por evidenciar a incompatibilidade entre eles. Isso porque a Constituição passa a ser exigida 42


por aqueles preocupados em terminar a revolução, vista agora como geradora de desordem, não de ordem. Laboulaye chega a afirmar categoricamente que liberdade e revolução são duas coisas distintas e opostas. Na passagem do Estado revolucionário para o Estado ordinário, fez-se necessária a função ordenadora e estabilizadora da Constituição. O ato constitucional vai, assim, bloquear a revolução (apud BERCOVICI, 2013, p. 158). Nesse sentido, Domenico Losurdo destaca que a aguda crise social da época revolucionária, tanto na França como nos Estados Unidos, vai ocasionar a tomada do poder por um general vitorioso. Encerrar a revolução, em ambos os países, era fundamental para a tranquilidade e ordem públicas, contra os excessos irracionais e incontroláveis da democracia (apud BERCOVICI, 2013, p. 158). Isso evidencia que, no início do século XIX, os franceses acreditavam que a Constituição, a qual organizaria o Estado e limitaria o poder estatal, seria o instrumento apto a reestabelecer a paz e harmonia sociais, estabilizando as relações e acomodando as forças conflitantes à época. Deve-se observar, ainda, que após o golpe 18 de Brumário, em 1799, a soberania popular volta a ser deixada de lado. A nova Constituição não chegou a fazer nenhuma menção ao poder constituinte do povo, retornando o poder às mãos de um “imperador”. Alguns autores chegam a afirmar que o bonapartismo não passou de uma ditadura militar constitucionalizada ou de um constitucionalismo monárquico, que, de acordo com Martin Kirsch, o modelo se manifestou no início do século XIX na França, Itália, Suíça, Holanda e Polônia (apud BERCOVICI, 2013, p. 159). Na França, a contrarrevolução vai defender a existência de uma suposta "constituição tradicional" francesa, que a revolução teria vindo destruir. Bonald, por exemplo, entende a Constituição como a forma de ser da sociedade. A soberania reside em Deus e em seu representante, o monarca. O povo é só uma fração da sociedade, não existindo politicamente. A Constituição é a atualização progressiva de uma ordem natural fundada em Deus, exprimindo fisicamente a vontade divina. Com base nesse entendimento, o direito constitucional pós-revolucionário é uma aberração contra as leis divinas. Para ele, o projeto de republicanizar a Europa é um projeto para implementar o ateísmo (apud BERCOVICI, 2013, p. 159). 43


O ideal constitucional das revoluções do século XVIII, segundo Stolleis, pode ser resumido na pretensão de racionalização do poder, o fim dos privilégios, garantia dos direitos de liberdade, com a nação representando-se a si mesma, gerando a identidade ou quase-identidade entre governantes e governados (apud BERCOVICI, 2013, p. 164-165). Com o Período do Terror, no entanto, o entusiasmo constitucional revolucionário se encerra, sendo substituído pela reação conservadora e pelo romantismo político. O medo da revolução fortalece o princípio monárquico. O novo ideal constitucional é o de uma monarquia constitucional, com bicameralismo, voto censitário, separação de poderes, direitos individuais e as garantias do Rechtsstaat (Estado de Direito)3. Complementa Bercovici (2013, p. 170) que o desejo de "terminar a revolução" limitando o poder do soberano torna-se marcante nas constituições liberais do século XIX. A questão da soberania é excluída, está oculta, em tese, resolvida. Ao equilibrarem-se entre rei e parlamento, as constituições liberais reduziram o seu espaço de abrangência, buscando sistematizar as relações entre os órgãos constitucionais e garantir os direitos individuais dos cidadãos. No século XIX, as constituições perderam seu caráter revolucionário originário de direção fundamental para a construção de uma nova sociedade. O modelo constitucional liberal, inspirado em Montesquieu, buscava garantir uma forma de governo moderada e balanceada, com tendência de equilíbrio dualista entre o monarca e o parlamento. Cabia ao Estado garantir a paz e a segurança jurídica das leis, como o código civil que previa a liberdade e igualdade almejada pela burguesia e, principalmente, a garantia da propriedade. O receio do terror jacobino acaba marginalizando a teoria do poder constituinte e, por isso, o pensamento político jurídico europeu do século XIX tende a se pronunciar contra o poder constituinte do povo. Os pensadores mais conservadores não admitem uma Constituição que não seja proveniente da tradição, e os teóricos liberais posicionam-se contra qualquer ideia de poder ilimitado e revolucionário, o despotismo democrático é inimigo da 3

Na primeira metade do século XIX, o Estado de Direito representava democracia.

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segurança jurídica. Portanto, o inimigo comum da monarquia e da burguesia são os princípios democráticos. Surgem assim, os teóricos ingleses contrarrevolucionários dos quais destaca-se Edmund Burke, que se opôs à Revolução Francesa, por considerar que se estabeleceu com ela um regime erguido sobre mentiras e violência e a democracia era capaz de expressar as mais cruéis opressões sobre a minoria. Negava que constituições poderiam ser dogmáticas, escritas num momento específico da história por intelectuais reunidos para tal fim. Apreciava a Constituição britânica por não residir num universo de regras e princípios gerais, mas numa harmonização entre costumes, história e tradição. Para Burke (1992, p. 16)4, a mudança faz parte da história, mas a moderação é uma virtude desejada e poderosa, por isso, deve ser invocada nesses casos. Qualquer mudança que não venha acompanhada de moderação, não será sábia, mas sim crua, precipitada e de pouca duração. Diante desse contexto, predomina na Europa, na primeira metade do século XIX, a linha de pensamento dos contrarrevolucionários como o inglês Edmund Burke, que repudiava o poder constituinte e defendia que as instituições são frutos da tradição, da história e da experiência de cada nação. Nesse cenário, surge na Alemanha a Escola Histórica de Savigny, que vai buscar a sistematização do direito, com o objetivo de garantir a legitimidade histórica, desvinculando as instituições jurídicas e políticas da vontade dos indivíduos. O direito, para Savigny, não pode ser fruto da legislação acidental e variável do Estado, mas da vida e do espírito do povo, em sua evolução histórica e na sua complexidade social (apud BERCOVICI, 2013, p. 169-170).

“Believe me, sir, in all changes in the state, moderation is a virtue, not only amiable but powerful. It is a disposing, arranging, conciliating, cementing virtue. In the formation of new constitutions, it is in its province. Great powers reside in those who can make great changes. Their own moderation is their only check; and if this virtue is not paramount in their minds, their acts will taste more of their power than of their wisdom, or their benevolence. Whatever they do will be in extremes; it will be crude, harsh, precipitate. It will be submitted to with grudging and reluctance. Revenge will be smothered and hoarded, and the duration of schemes marked in that temper, will be as precarious as their establishment was odious”, in BURKE, Edmund. Further reflections on the revolution in France. Edited by Daniel E. Ritchie. Liberty Fund, Inc. 1992 (p. 16).

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De acordo com os ensinamentos trazido por Bercovici (2013, p. 171), a partir de Savigny, surgem três grandes correntes na teoria do Estado alemã do Vormãrz: a) os conservadores defensores do princípio monárquico (como Friedrich Julius Stahl); b) os defensores do Rechtsstaat liberal (como Robert von Mohl); e, c) os organicistas (como Johann Kaspar Bluntschli). Essa fase só se encerra em 1852, com o trabalho de aplicação do método exclusivamente jurídico ao direito público iniciado por Carl Friedrich von Gerber, iniciando, então, uma nova fase do direito público alemão, com as ideias de poder do Estado (Staatsgewalt) e dominação (Herrschaft) no centro do debate científico. O desenvolvimento do direito constitucional escrito e do positivismo legalista não são causas, mas momentos da revolução metodológica iniciada por Gerber. Os conservadores defendiam como melhor forma de governo a monarquia constitucional, pois, quando se coloca o povo acima da Constituição, ela deixa de existir. A autoridade vem de Deus e a soberania é indivisível e exercida pelo monarca que pode até ser orientado pelo parlamento, mas nunca obstaculizado. É a manutenção do status quo anterior à Revolução Francesa, em que o monarca detinha poderes absolutos e ilimitados. No entanto, os conservadores passam a admitir uma espécie de limites - que denominam orientação -, que seria exercida pelo parlamento. Essa corrente representa a resistência monárquica aos novos ideais revolucionários, que buscam redistribuir o poder estatal. Já os defensores do Rechtsstaat liberal rejeitam o autoritarismo monárquico. Também não defendem a soberania popular, mas sim a soberania da lei. Para Robert von Mohl (apud BERCOVICI, 2013, p. 172-173), o Rechtsstaat é muito mais uma redefinição do que propriamente uma ameaça de reviravolta da ordem burguesa por causa da questão social, é como uma garantia para bloquear a ascensão da plebe ao poder por uma revolução. O governo parlamentar seria a última barreira contra a democratização do Estado e a tomada do poder pelas massas. Observa-se que tanto conservadores monárquicos quanto os defensores do Rechtsstaat liberal buscam instrumentos para impedir uma total democratização do Estado, vedando a participação popular na tomada de decisões. Para ambas as correntes, 46


a democratização - nos moldes pretendidos na segunda metade do século XIX - é uma ameaça à segurança jurídica e social. Já os organicistas estabelecem uma ligação entre o direito público e a política, já que acreditavam que não poderiam ser vistos de forma separada, pois o Estado é um ser orgânico com influências recíprocas de ambos (direito e política), assim, o direito público seria um instrumento do direito privado, assegurando os direitos individuais de cada indivíduo. Nesse processo de consolidação do constitucionalismo, Giovanni Tarello (apud BERCOVICI, 2013, p. 174) destaca as similaridades entre a codificação do direito privado e a codificação constitucional. A concomitância de ambos os processos permitiria que a atividade do jurista passasse a ser uma atividade técnicocognitiva, não mais prático-valorativa. O jurista se tornou um técnico, muito mais do que um político. Essa tecnicização da profissão jurídica, acabou desresponsabilizando o jurista politicamente. É diante desse contexto que começa a surgir a expressão "droit(s) constitutionnel(s)" em vários documentos da segunda metade do século XVIII. Portanto, é possível perceber que a própria revolução sofreu ataques e restrições, mesmo após sua vitória, com a reação dos conservadores que resistiam às ideias revolucionárias - e o constitucionalismo a ela inerente -, como por exemplo a formação de um Rechtsstaat liberal, e que estes dois movimentos - conservadores e liberais - se uniram para resistir e afastar as ideias fundadas em princípios democráticos e de soberania popular como legitimação do poder, identificando governantes e governados. É importante registrar, ainda, que segundo Paolo Ridola (2011, p. 298), “nos ordenamentos liberais o constitucionalismo identificou-se e confundiu-se com o parlamentarismo”. Ainda segundo o autor (2011, p. 298), Os aparatos constitucionais do Estado liberal encontraram seu próprio fulcro nas assembleias representativas, autêntico lugar institucional da posição hegemônica da burguesia politicamente ativa. A preeminência das assembleias parlamentares correspondia, portanto, à inclusão do processo político dentro de uma esfera pública homogênea. Disto decorre o caráter alargado e instável das alianças parlamentares, as quais não encontravam correspondência, ao menos

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nos países da Europa continental, em forças políticas estavelmente organizadas na opinião pública.

Assim, o constitucionalismo no início do século XIX é marcado por essa disputa entre monarquia, burguesia e povo, restando vitorioso um modelo de constitucionalismo liberal-formalista, consolidando o poder de uma classe que não permitiria o regresso ao Antigo Regime, ao passo que a monarquia se incumbia de afastar a “desordem democrática”. Assim, a classe burguesa inseria o liberalismo político, econômico e jurídico como característica do Estado na primeira metade do século XIX, impedia o retorno do absolutismo monárquico e, ao mesmo tempo, neutralizava as forças democráticas, consolidando sua hegemonia sobre o Estado e o povo. Dessa forma, percebe-se que o povo estava alijado da tomada de decisões políticas, vez que o sufrágio restrito e o “pacto” entre monarquia e burguesia, amparada pelo parlamento como limitador do poder real, se encarregava de afastar a verdadeira soberania popular. Diante dessa realidade, ainda na segunda metade do século XIX, especialmente após 1848, o constitucionalismo passa a sofrer influências sociais-democráticas, sobretudo, em relação ao direitos dos obreiros. Como dito, os trabalhadores passam a pleitear, dentre outros, um sufrágio menos restrito ou até universal, o voto secreto, renovação e acesso universal ao parlamento. Nessa fase, a democracia se aproxima da ideia de defesa e reconhecimento dos direitos de uma classe que foi extirpada da participação da tomada de decisões de Estado, ou seja, o conceito de democracia impõe maior participação popular na tomada de decisões e legitimação do poder. Deve-se observar, ainda, que o socialismo marxista exigia uma atualização do programa e da luta por uma sociedade civil que não se fundasse na apropriação privada das bases da existência, contribuindo para a socialização do direito e a democratização do poder, marca do constitucionalismo da segunda metade do século XIX. Assim, é possível perceber que, na segunda metade do século XIX, o constitucionalismo sofre uma forte investida social48


democrática, acompanhada de um contundente reação conservadora-liberal. É a passagem do Estado liberal para o Estado social, como exposto acima.

O SURGIMENTO DO DIREITO CONSTITUCIONAL E OS TIPOS DE CONSTITUIÇÃO Em 1834 foi criada a cadeira de "droit constitutionnel" na Universidade de Paris, pela ordenança de Guizot de 22 de agosto de 1834, sendo assumida pelo italiano Pellegrino Rossi. A partir de então, o uso da expressão "droit constitutionnel" se tornou mais frequente e, aos poucos, substituiu a expressão "droit politique", em um esforço de "juridificação" da disciplina. A primeira lição de direito constitucional na Sorbonne ocorreu em 1836. O direito constitucional, na concepção de Rossi (apud BERCOVICI, 2013, p. 175-176), é o ramo do direito público interno, atualmente em vigor, cujo objeto é tratar da estrutura das formas particulares do corpo político independente, a partir do direito positivo. Conclui Bercovici (2013, p. 176) que o constitucionalismo, e o direito constitucional estão estreitamente vinculados com o liberalismo. O Estado misto vai ser visto como a melhor forma de governo. O governo constitucional representativo, ao misturar elementos democráticos com elementos não democráticos, configura uma constituição mista dos tempos modernos. O constitucionalismo do século XIX se coloca em confronto com a revolução e seus corolários: poder constituinte, soberania popular e expansão da democracia. A valorização da Constituição como norma é utilizada para fazer frente ao discurso revolucionário da soberania popular. O constitucionalismo busca a estabilidade ameaçada pela interpretação radical e democrática da revolução. Mais do que isso, o ciclo polibiano das formas de governo vai ser imobilizado pela pretensão de eternidade do liberalismo. O constitucionalismo e sua pretensão de permanência, caracterizada pela rigidez constitucional, tenta evitar a degenerescência da forma política liberal, buscando encerrar a contingência e o dinamismo da política expostos por Maquiavel. De acordo com 49


Matteucci (apud BERCOVICI, 2013, p. 177), o governo constitucional é entendido como o governo de um Estado misto, que garante espaços de liberdade em relação à nova tirania descoberta por Tocqueville: a tirania da maioria. A partir das revoluções do século XVIII, estabelecem-se, segundo a análise de Maurizio Fioravanti (apud BERCOVICI, 2013, p. 169-170), dois tipos fundamentais de Constituição: a "costituzione indirizzo", que chama todos os poderes públicos e os cidadãos para cumprirem uma tarefa coletiva de realização de uma sociedade mais justa, e a "costituzione garanzia", que institui um governo limitado, deixando aos cidadãos e aos governantes o poder de definir livremente seus próprios fins a partir de determinada estrutura institucional mínima. A "costituzione indirizzo" era ameaçadora para os liberais, pois invocava o jacobinismo da soberania popular, da democracia direta, do sufrágio universal e do poder constituinte permanente. O Estado de direito liberal busca a estabilidade, entendendo a liberdade como segurança, fundamental para a sociedade de mercado. Não por acaso, para combater as ameaças do poder constituinte, do sufrágio universal e da democracia, os liberais vão utilizar a "costituzione garanzia" e sua compreensão do constitucionalismo como limitação do poder. E com isso, mais uma vez fica evidenciado que a luta entre as classes durante o século XIX influenciou o constitucionalismo daquele período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos perceber que o início do século XIX é marcado pela ascensão da burguesia, pela instauração de uma liberdade e de uma igualdade formal entre os homens, mas também por um constitucionalismo notadamente liberal, em que não há preocupação em se intervir nas relações jurídicas para reequilibrar as desigualdades sociais fáticas que se instauraram na sociedade após a queda do Antigo Regime. No entanto, não podemos nos descurar da resistência 50


conservadora-monárquica que pretendia combater a ideia de um Rechtsstaat liberal e também das ideias democráticas e sociais, tentando manter o sistema empregado pelo Antigo Regime. Os homens livres e formalmente iguais passaram a estabelecer suas relações sem nenhum tipo de intervenção do Estado, onde os direitos fundamentais cumpriam a função primordial de proteger o indivíduo dos abusos estatais, mas não contra os abusos de seus semelhantes. Assim, o constitucionalismo da primeira metade do século XIX funda-se em um liberalismo econômico e social, consistente e uma monarquia constitucional, distante de princípios democráticos e da soberania popular, onde o monarca encontra-se com poderes limitados pelo parlamento, o qual aprova as leis que irão reger as relações dos cidadãos. No entanto, o processo de escolha dos parlamentares é restrita, fazendo com que as decisões políticas sejam tomadas por uma pequena oligarquia. Já a segunda metade do século XIX é marcada pelo avanço dos ideias sociais-democráticos, os quais acendem a reação conservadora que vê a necessidade de adotar medidas sociais preventivas a fim de evitar o total acesso democrático. Com isso, no fim do século XIX, temos um breve e tímido reconhecimento de alguns direitos sociais e também uma pequena ampliação da participação popular na tomada de decisões e na possibilidade de eleição de verdadeiros representantes do povo.

REFERÊNCIAS ABENDROTH, Wolfgang; FORSTHOFF, Ernst; DOEHRING, Karl. El Estado Social. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição. Para uma crítica do constitucionalismo. Porto Alegre: Quartier Latin, 2013. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

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BURKE, Edmund. Further reflections on the revolution in France. Edited by Daniel E. Ritchie. Liberty Fund, Inc. 1992. GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014. LEFEBVRE, Georges. A revolução francesa. Trad.: Ely Bloem de Melo Pati. 2 ed. São Paulo: IBRASA, 1989. PASSOS, Hugo Assis. França: Teoria Constitucional da Revolução Francesa. Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2015. PISARELLO, Gerardo. Un Largo Termidor. La ofensiva del constitucionalismo antidemocrático. Madrid: Trotta, 2011. RIDOLA, Paolo. O constitucionalismo: itinerários históricos e percursos conceituais. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ajuris, ano 38, n. 121, mar. 2011.

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