ABORTO E MICROCEFALIA: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL

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Samuel Sales Fonteles* ABORTO E MICROCEFALIA: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL ABORTION AND MICROCEPHALY: A CONSTITUTIONAL ANALYSIS ABORTO Y MICROCEFALIA: ANÁLISIS CONSTITUCIONAL

Resumo: Embora o abortamento seja considerado crime no Brasil, a proibição de abortar continua a inflamar debates em torno da sua constitucionalidade. Com o aumento de casos de microcefalia, a discussão volta à pauta do dia. O trabalho não pretende abordar aspectos religiosos ou morais, mas apenas dilemas jurídicos a respeito do tema, principalmente no que diz respeito ao papel desempenhado pelo Ministério Público nesta controvérsia. Abstract: Although abortion is considered a crime in Brazil, the prohibition of abortion continues to ignite debate about its constitutionality. With the increase in cases of microcephaly, the discussion back to the day agenda. The work is not intended to address religious or moral, but only legal dilemmas on the subject, especially with regard to the role played by prosecutors in this controversy. Resumen: Aunque el aborto es considerado un crimen en Brasil, la prohibición del aborto continúa para encender el debate sobre su constitucionalidad. Con el aumento de los casos de microcefalia, la discusión de nuevo a la orden del día día. El trabajo no pretende abordar aspectos religiosos o morales, sino sólo dilemas legales sobre el tema, especialmente en relación con el papel desempeñado por los fiscales en esta controversia. Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Promotor de Justiça do MP-RO. Ex-Defensor Público. Professor de Direito Constitucional na Escola Brasileira de Ensino Jurídico na Internet - EBEJI.

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Palavras-chave: Eugenia, deficientes, Direito Constitucional, parquet. Keywords: Eugenics, disabled, Constitutional Law, parquet. Palabras clave: Eugenesia, discapacitados, Derecho Constitucional, parquet.

DIREITOS FUNDAMENTAIS PUTATIVOS Uma inflação de direitos fundamentais (FERREIRA FILHO, 2012, p. 85-86) está longe de representar uma situação desejável. Não se pode vulgarizar esses direitos tão caros à humanidade, prostituindo-os no leito da insegurança jurídica. A pretexto de que há direitos apenas materialmente fundamentais, muitos podem invocar a existência de direitos fundamentais que jamais foram cogitados pelo constituinte, o que se dirá previstos por ele. O papel tudo aceita. O membro do Ministério Público carrega consigo o dever constitucional de repelir pretensões infundadas, de manifestar-se contrariamente à invocação fantasiosa de direitos e de recorrer das decisões de Juízes que foram induzidos a erro. Em célebre monografia a respeito do tema, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em um tópico intitulado “Vulgarização dos Direitos”, é incisivo (negritamos): É preciso, todavia, ter consciência de que a multiplicação de “direitos fundamentais” vulgariza e desvaloriza a ideia. Philip Alston chama atenção, em interessante artigo, para isso. Assinala a tendência da ONU e de outros corpos internacionais de proclamarem, a torto e a direito, direitos “fundamentais”, sem critério objetivo algum. E registra novos direitos em vias de serem solenemente declarados fundamentais – direito ao turismo, direito ao desarmamento – afora já propostos – direito ao sono, direito de não ser morto em guerra, direito de não ser sujeito a trabalho aborrecido, direito à coexistência com a natureza, direito de livremente experimentar modos de viver alternativos etc.

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Os direitos fundamentais foram gravados em um rol numerus apertus, e não numerus clausus. O reconhecimento exemplificativo de direito fundamentais, aliado à natureza delirante do ser humano, gerou uma invocação fantasiosa de direitos. Como lembra Daniel Sarmento (SARMENTO, 2015, p. 5-6): [...] nem todo desejo pode ser legitimamente convertido em direito fundamental. Praticamente todas as pessoas querem ser correspondidas em seus amores, e seriam provavelmente mais felizes e realizadas se isso lhes fosse assegurado. Nem por isso, se pode afirmar a existência de um direito fundamental à reciprocidade no amor.

Por vezes, o agente invoca direitos sabidamente inexistentes. Em casos mais delicados, o próprio agente supõe titularizar esses direitos, ignorando a realidade. Tudo não passa de uma alucinação jurídica. Entre a má-fé e o delírio, preferimos trabalhar com a boa-fé de quem invoca direitos inexistentes, razão pela qual classificaremos tais direitos como direitos fundamentais putativos. O ÔNUS ARGUMENTATIVO NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PUTATIVOS Cabe ao Ministério Público provar a inexistência do direito fundamental invocado ou incumbe à parte, que o alega, provar o teor e a vigência da norma que alberga esse direito? De início, cabe lembrar que fatos são provados; direitos, a rigor, são reconhecidos por um Juiz. Mesmo em se tratando de um direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, que, em tese, deveria ser objeto de prova, há um fato a ser comprovado por quem o alega: o teor e a vigência da norma que abriga esse direito. Provam-se o conteúdo da norma e que ela vige, ou seja, fatos objetivamente verificáveis. Provam-se, ainda, os fatos que fazem nascer o direito invocado. Teses jurídicas, ao contrário, não são objeto de provas, mas sim de arrazoados doutrinários, pareceres e repositórios de jurisprudência. Bem colocada a controvérsia, resta-nos examiná-la. Sendo assim, temos duas situações distintas: direitos fundamentais escritos e direitos fundamentais não escritos. Os 11


direitos fundamentais escritos na Constituição não carecem de qualquer prova do seu teor e da sua vigência, porquanto é dever do Juiz (bem) conhecê-los. Nesse caso, se a parte invoca um direito com apoio explícito no texto constitucional, incumbe, sim, ao Ministério Público demonstrar o (des)acerto da tese1. Quanto àqueles albergados por tratados internacionais (v.g. direito fundamental à adaptação razoável e direito fundamental ao desenho universal), o teor e a vigência da convenção deverão ser objeto de prova por quem os invoca, na forma do art. 376 do NCPC, pelo qual “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar”. A situação requer maiores cuidados quando os direitos fundamentais invocados não estão escritos, seja porque implícitos, seja porque hauridos do regime e dos princípios (art. 5º, §2º). Nesse caso específico, diante de uma norma jusfundamental não escrita, os direitos fundamentais nela plasmados em muito se assemelham aos direitos constitucionais consuetudinários2. Isso posto, com arrimo no art. 376 do CPC, o teor e a vigência da norma jusfundamental deverão ser objetivamente comprovados, à luz da melhor doutrina e, principalmente, da construção pretoriana. Somente a praxis é capaz de indicar um direito não escrito, portanto, invisível aos olhos de fração da comunidade jurídica. Nesse caso, as fronteiras do civil law devem ser ultrapassadas, para adoção de um raciocínio pautado no sistema do common law. Portanto, conclui-se que, exceto quando o direito invocado encontrar apoio explícito no texto constitucional, o ônus argumentativo, usualmente, será de quem invoca direitos fundamentais. A propósito, há outras razões técnicas para isso. Primeiramente, porque, mesmo no campo da argumentação, a Por exemplo, elucidando que, embora a Constituição tenha reconhecido esse direito, em nenhum momento ele foi fundamentalizado. Ou ainda que, a despeito de o direito encontrar previsão como um direito fundamental, não há subsunção dos fatos do caso concreto com a norma abstratamente prevista no arquétipo constitucional. A dúvida será dirimida pelo Juiz, à luz da melhor doutrina e da jurisprudência. 2 Poucos são os costumes constitucionais brasileiros. Um deles é o chamado voto de liderança, prática usual nos átrios do Poder Legislativo, por ocasião do processo legiferante. 1

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prova negativa, isto é, de que algo não existe, beira a prova diabólica. É possível provar que uma rosa azul existe, bastando que se lhe demonstre. Diversamente, será impossível provar que ela não existe, pois, por mais que todas as rosas já testemunhadas sejam de cores diversas, isso, em definitivo, não faz prova cabal de que não há uma rosa azul. Exigir do membro do Ministério Público a prova de que um direito fundamental não existe, na imensidão científica e jurisprudencial da atualidade, é um despautério. O tema merece a atenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica. Um fiscal zeloso não pode admitir que direitos fantasiosos sejam invocados, reconhecidos e até concretizados à revelia do ordenamento jurídico, como uma estratagema para fazer valer a vontade pessoal de um dos atores processuais. Cabe aos órgãos de execução do Ministério Público um exame com serenidade, razoabilidade e, acima de tudo, atualização científica, para que não sejam induzidos a erro pelas partes parciais da demanda. “DIREITO FUNDAMENTAL AO ABORTO” A liberdade de expressão científica levou parte da doutrina a sustentar a existência de um direito fundamental ao aborto. Sabe-se que o Código Penal permite à gestante proceder ao abortamento quando for vitimada por um abuso sexual, bem assim quando assujeitar-se a um risco de morte. O Supremo Tribunal Federal entendeu de acrescentar a esse rol a possibilidade de abortamento nas hipóteses de anencefalia (ADPF n. 54). Porém, não é essa a extensão que pretende a doutrina a que se fez alusão. Por exemplo, Maria Berenice Dias defende um direito fundamental ao aborto, indiscriminadamente3, sem qualquer ressalva quanto ao período de gestação. Não distinguindo o marco temporal para o exercício do pretenso direito ao aborto, parte da doutrina brasileira está defendendo, em tese, um sombrio direito individual de exterminar um feto com até nove Estas as palavras da autora (negritamos): “a Constituição (art. 226, §7º), ao proclamar como bem maior a dignidade humana e garantir o direito à liberdade, subtraiu

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meses, portanto, um ser na iminência de ser dado à luz. Cronologicamente, o pleito beira uma súplica pelo direito de homicídio, afinal, nas ciências criminais, as fronteiras entre o abortamento e o homicídio se resumem ao início dos trabalhos de parto. Antes de iniciados, tem-se o abortamento. Após iniciados, configura-se um homicídio. Disso se percebe a linha tênue entre esses crimes contra a vida, cujas fronteiras estão cada vez mais frágeis. No Direito Comparado, a Suprema Corte norte-americana chegou a admitir o direito ao abortamento no primeiro trimestre de gestação, no julgamento do Caso Roe vs. Wade4. Entre nós, os debates são permeados pela lógica do tudo ou nada. DA ILICITUDE DO ABORTAMENTO, MESMO SEM O CÓDIGO PENAL Como é público e notório, no Brasil, a prática do abortamento é definida como crime. Não há direito fundamental à prática de crimes, pelo contrário, é direito fundamental da sociedade que crimes não sejam praticados. A propósito, é isso que se extrai do direito fundamental à segurança pública. Por um consectário lógico, não há como sustentar o direito fundamental ao aborto, afinal, a ninguém é dado um salvo conduto para delinquir. A discussão poderia ser encerrada por aqui, não fosse a obstinação dos defensores desse insólito direito, que passaram a sustentar que a lei penal, que tipificou o abortamento, não foi recepcionada5. É preciso que fique claro que ninguém precisa do Código Penal para negar o suposto direito ao aborto. Uma simples leitura da Convenção Americana dos Direitos Humanos já coloca essa conduta no campo da ilicitude, ainda que não criminalizada. o aborto da esfera da antijuridicidade. No momento em que é admitido o planejamento familiar e proclamada a paternidade responsável, não é possível excluir qualquer método contraceptivo para manter a família dentro do limite pretendido. Assim, frente a norma constitucional, que autoriza o planejamento familiar, somente se pode concluir que a prática do aborto restou excluída do rol dos ilícitos penais. Mesmo que não se aceite a interrupção da gestação como meio de controlar a natalidade, inquestionável é que gestações involuntárias e indesejadas ocorrem e, somente se for respeitado o direito ao aborto, a decisão sobre o planejamento familiar se tornará efetivamente livre”. (DIAS, Maria Berenice. Direito Fundamental ao Aborto. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br>). 4 Caso Roe vs. Wade, de 1973.

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Nesse caso, independentemente de considerações acerca do juízo de recepção do Código Penal, ainda há um obstáculo insuperável que impede o reconhecimento de um direito ao aborto. O Pacto de São José da Costa Rica é de clareza solar quando protege a vida do nascituro5. Logo, em um silogismo aristotélico, todos os que tivessem o direito de abortar teriam, por conseguinte, o direito de violar a Convenção Americana de Direitos Humanos e, como é cediço, não há (e nem pode haver) direitos cujo exercício implica infração a normas jurídicas. Desse modo, quando alguém brada ser possuidor do direito de exterminar uma vida intrauterina, o que essa pessoa pretende é, ao contrário dos seus pares, ter o direito de não sujeitar-se à força normativa do Pacto de São José da Costa Rica, documento que está longe de ser uma mera carta de exortação moral. O pretenso direito ao aborto não resiste a um controle de convencionalidade e nem a uma filtragem convencional. Direitos foram feitos para serem exercidos. O simples exercício desse direito transmudaria em violável aquilo que a Constituição Federal reputou como inviolável. E, verdade seja dita, nesse particular, sequer uma emenda teria poderes para suprimir essa claríssima proteção. DA NECESSÁRIA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, À LUZ DA VEDAÇÃO À PROTEÇÃO INSUFICIENTE (UNTERMASSVERBOTE) Discute-se se, a par da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos, a repulsa ao abortamento deveria ser objeto de criminalização. Isso porque, em tese, o ordenamento poderia repelir essa conduta com outros ramos do Direito ou com medidas alternativas que inibissem a prática. Ingo Wolfgang Sarlet não considera como necessária a proteção do direito à vida intrauterina por meio do Direito Penal, desde que outros meios eficazes garantissem a redução dos casos de aborto e dos efeitos colaterais advindos do abortamento (v.g.

Artigo 4º - Direito à vida. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (negritamos).

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risco de morte da gestante). Nem mesmo o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que perfilha uma corrente francamente mais progressista, consegue vislumbrar como possível o “direito fundamental ao aborto” (negritamos): [...] entendemos ser difícil sustentar, no caso brasileiro, a existência de um direito fundamental ao aborto, o que, por sua vez, não significa que a prática do aborto deva (necessariamente!) ser sancionada na esfera criminal. (SARLET, 2015, p. 413).

Entendemos que a razão está com Paulo Gonet, para quem a criminalização das condutas que exterminam a vida é reclamada pela ordem constitucional. Segundo o constitucionalista, a gestante é um terceiro que não tem poder de disposição sobre a vida do não nascido: A vida humana – como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais, além de base material do próprio conceito de dignidade humana – impõe medidas radicais para a sua proteção. Não havendo outro meio eficiente para protegê-la, a providência de ultima ratio da tipificação penal se torna inescapável. Não havendo outra forma de se atender com eficácia à exigência de proteção ao direito à vida, ordenada aos poderes públicos, deverá o legislador lançar mão dos instrumentos do direito penal. Assim, nos casos em que a vida se vê mais suscetível de ser agredida, não será de surpreender que, para defendê-la, o Estado se valha de medidas que atingem a liberdade de outros sujeitos de direitos fundamentais. Justifica-se, então, que se incrimine o homicídio, mesmo que o próprio legislador contemple circunstâncias que devem ser consideradas com vistas a modular a aplicação da lei penal. Justifica-se, da mesma forma, que se incrimine o aborto, como medida indispensável para a proteção da vida humana intrauterina. A incriminação da conduta não apenas se presta para reprimir o comportamento contrário ao valor central da vida para o ordenamento jurídico, como, igualmente, contribui para que se torne nítida a antijuridicidade do comportamento vedado. A inequívoca e grave rejeição do aborto pela legislação penal deixa claro que terceiros não têm poder de disposição sobre o ainda não nascido. (MENDES et al., 2010, p. 448).

Merece relevo o fato de que ambos os constitucionalistas, favoráveis ou não à criminalização do abortamento, são unânimes em não reconhecer a existência do fantasioso direito 16


fundamental ao aborto. Trata-se de um imperativo lógico: o Direito nem sempre é o que gostaríamos que ele fosse. O jurista deve curvar-se à realidade. Como militante, qualquer pessoa pode ser a favor de um direito ao aborto, mas, como operador do Direito, convém perceber a realidade das coisas: o ordenamento nunca acolheu esse direito. DIREITOS REPRODUTIVOS VERSUS DIREITO À VIDA: O PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA E A PRESERVAÇÃO DO NÚCLEO ESSENCIAL Um desacordo moral razoável demanda que ambas as partes sejam ouvidas, para que se pluralize o debate. Ocorre que, no tema do abortamento, uma das partes está naturalmente emudecida. Isso gera um desequilíbrio argumentativo, porque somente um lado tem voz para reclamar a titularidade de um pretenso direito, ecoando sua pretensão em todos os recantos da sociedade6. Na melhor das hipóteses, terceiros saem em socorro dos direitos do nascituro e da mulher, mas a resistência legítima ao abortamento, por parte de quem mais teria interesse em (sobre)viver, não pode ser ouvida. Daí a importância de uma inclusão discursiva, efetuada nessa leitura de equilíbrio dos direitos fundamentais. Na sagaz percepção de César Fiuza (2016, p. 161), “a situação jurídica do nascituro será, assim, integrada por todos e por cada um de nós que temos interesse em proteger o nascituro, por estarmos, desse modo, protegendo a nós mesmos e a nossa descendência”. O dilema em torno do aborto envolve necessariamente uma restrição de direitos fundamentais, total ou parcial. Se assegurarmos a pretensão do nascituro, a mulher terá seus direitos reprodutivos restringidos parcialmente. Noutra ponta, se o fiel da balança pender para a pretensão da gestante, o feto sofrerá uma restrição total do direito à vida. Nota-se que, em um simples cotejo dos direitos em jogo, ao se admitir o aborto, o direito à vida, “Se perguntássemos hoje a qualquer das pessoas, cujas mães pensaram no passado em abortá-las, mas não sucumbiram à tentação, se gostariam de ter sido abortadas, a resposta seria negativa, visto que agora têm defesa que à época não tinham, se suas mães tivessem concretizado a intenção”. (MARTINS, 1991, p. 12).

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que é condição para o desfrute dos demais, é aniquilado, ao passo que os direitos reprodutivos são apenas restringidos. O mais é eliminado, o menos é restringido. O desequilíbrio é manifesto. Trabalhando-se com uma ideia de que o direito à vida é um direito preferencial, o peso argumentativo para afastá-lo haveria de ser maior. No caso em apreço, a colisão demonstra que o abortamento atingiria de maneira irreversível o núcleo essencial do direito restringido, traduzindo um sacrifício. Na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, colhemos o magistério de Inocêncio Mártires Coelho (apud MENDES; BRANCO, 2015, p. 174), para quem o princípio da concordância prática consiste numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum.

A ideia basilar do princípio da concordância prática é a de que o hermeneuta deve evitar o sacrifício integral dos direitos em choque. Explicando com precisão cirúrgica o caráter preferencial do direito à vida, bem como a impossibilidade de uma concordância prática no caso do aborto, porquanto o direito afastado restaria sacrificado por completo, trazemos as lições de Paulo Gonet (negritamos): Ante a superioridade do valor da vida humana, a proibição do aborto, com a tutela penal, deve subsistir, mesmo que confrontada com outros interesses, acaso acolhidos por outros direitos fundamentais. Embora a gravidez também diga respeito à esfera íntima da mulher, o embrião humano forma um ser humano distinto da mãe, com direito à vida, carente de proteção eficaz pelos poderes públicos – não importando nem mesmo o grau de saúde ou o tempo de sobrevivência que se possa prognosticar para a criança por nascer. Daí a justificação da tutela penal, impeditiva de que o problema do aborto seja reconduzido a uma singela questão de autodeterminação da mãe – qualquer que seja o estádio de desenvolvimento da gravidez. [...] Bens juridicamente relevantes podem contrapor-se à continuidade da gravidez. A solução cabível haverá de ser, contudo, a inexorável preservação da vida humana, ante a sua posição no ápice dos valores protegidos pela ordem constitucional. Veja-se que a ponderação do

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direito à vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio entre eles, mediante compensações proporcionais. Isso porque, na equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apontar para o interesse que pretende superar a vida intrautrerina o resultado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perdese tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrio entre interesses é impossível de ser obtido. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 449).

A ponderação feita por Ingo Sarlet também conduz ao mesmíssimo resultado, qual seja, pela relativização dos direitos reprodutivos: Mesmo para quem entende que existe um direito ao aborto, é preciso considerar que, no plano da colisão da liberdade individual da mulher com outros direitos e/ou bens jurídico-constitucionais, notadamente a vida do nascituro, tal direito não se revela absoluto. (SARLET et al., 2015, p. 413).

Não se trata de uma coincidência. O resultado foi alcançado por ambos porque é isso que se extrai do equacionamento dos “direitos” em jogo. Que restrição deveria ser imposta? Tolerar temporariamente a existência de um convidado indesejado ou morrer? Morrer parece exponencialmente mais gravoso que o incômodo de tolerar a existência de outrem. Enquanto uma parte luta para viver, a outra luta para não tolerar a vida de um terceiro. Daí porque a ponderação legislativa foi a de manter o abortamento no campo da ilicitude. De nossa parte, com a devida vênia aos insignes constitucionalistas, entendemos que sequer há colisão de direitos fundamentais a exigir o emprego da ferramenta da concordância prática. Na realidade, o abortamento está fora do âmbito de proteção dos direitos reprodutivos. Com apoio nas lições de Friedrich Müller, um pintor não tem o direito de pintar um quadro no cruzamento de vias movimentadas quando invoca o direito à liberdade artística. Um músico não pode realizar improvisações de trombone, à noite, sob o argumento de que tem direito à liberdade artística. Nesses casos, não há tensão de direitos fundamentais, mas sim condutas alheias ao suporte fático da norma jusfundamental. De maneira similar, o constitucionalista português José Carlos Vieira de Andrade explica que o direito à liberdade religiosa não contempla 19


sacrifícios humanos; o direito de locomoção não ampara o andarilho que atravessa a rua em situação de nudez; a liberdade artística não abrange a morte de um ator no palco; e o direito ao casamento não dá supedâneo à poligamia. Acrescentamos, no extenso rol doutrinário, que os direitos reprodutivos não compreendem o direito de abortar. Em todas essas casuísticas7, a doutrina constitucionalista sugere que o direito invocado jamais existiu (daí chamarmos de direito fundamental putativo), pois a norma nunca o contemplou para ser exercido dessa maneira. São situações não abarcadas pelo âmbito de incidência, o que não se confunde com a clássica colisão de direitos fundamentais, cujo deslinde demanda a aplicação da regra da concordância prática. O VERDADEIRO CONTEÚDO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS E O LEMA “MEU CORPO, MINHAS REGRAS” (MY BODY, MY RULES) O corpo do nascituro não se confunde com o corpo da mãe, embora esteja inserido nele. Se realmente se tratasse do mesmo corpo, o abortamento traduziria uma amputação. Parece claro que não é disso que se cuida. Daí Paulo Gonet asseverar que “o nascituro é um ser humano. Trata-se, indisputavelmente, de um ser vivo, distinto da mãe que o gerou, pertencente à espécie biológica do homo sapiens” (MENDES et al., 2010, p. 445). O constitucionalista Alexandre de Moraes (2004, p. 66), por sua vez, colaciona a advertência do biólogo Botella Lluziá: Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe.

Os exemplos de Friedrich Müller e de José Carlos Vieira de Andrade são colacionados por Virgílio Afonso da Silva em “O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais”. (Revista de Direito do Estado 4, 2006, p. 33/34).

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Ives Gandra Martins (1991, p. 12), de maneira contundente, esclarece: Os argumentos, que têm sido trazidos à discussão, de que o aborto não é atentado ao direito à vida, mas o exercício de um direito ao corpo que a mulher possui, não prevalece, visto que se a própria natureza feminina faz-lhe hospedeira do direito à vida de outrem, no momento em que a hospedagem se dá, já não é mais titular solitária, que pertence também a seu filho. […] O corpo já não lhe pertence por inteiro e o aborto, em tal caso representa, em verdade, um latrocínio, visto que ao assassinato do filho junta-se o roubo da parte do corpo materno que de direito ao filho gerado pertencia.

Portanto, é verdade que a mulher tem direito sobre o próprio corpo, mas não sobre o corpo do nascituro, que se diferencia do dela e que só foi concebido por um convite. Tomemos um exemplo: o proprietário de uma casa, localizada em um local deserto, é livre para incendiá-la. A casa é dele e está à sua disposição para ser destruída. No entanto, se esse proprietário convida um amigo para morar no interior da casa, abrigando-o confortavelmente, não lhe é dado incendiar o imóvel enquanto essa pessoa estiver no recinto. Se o fizesse, repeliria mortalmente a mesma pessoa que convidou, revelando uma contradição irracional que o Direito cunhou de venire contra factum proprium, isto é, um comportamento contraditório violador da boa-fé. Um ilícito, noutras palavras. Vê-se, com uma clareza meridiana, que convidar alguém para morar no útero e banir esse alguém das próprias entranhas equivale a um abuso de direito que transborda da ilicitude civil para alcançar a ilicitude criminal (aborto). MEU CORPO, MINHAS REGRAS: AUTONOMIA OU SOBERANIA? Ainda que o corpo do nascituro fosse idêntico ao corpo da gestante, o abortamento não seria lícito. O corpo não é uma propriedade privada onde o seu titular exerce soberania. Temos autoridade sobre nosso corpo, temos autonomia sobre ele, mas, definitivamente, não exercemos um poder soberano. O ordenamento jurídico é explícito em subtrair um poder absoluto das

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pessoas sobre o próprio corpo, por exemplo, quando estipula que “é vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto” (art. 9º, §7º). O dispositivo legal proíbe a gestante de dispor até mesmo de partes do seu corpo, revelando insofismavelmente que a cosmovisão de Stuart Mill não encontra guarida na ordem constitucional em vigor. O direito ao próprio corpo, assim como todos os outros, não é um direito absoluto, o que se comprova pela impossibilidade de comércio do próprio sangue8 ou de locar o próprio ventre (barriga de aluguel). Nas palavras da Promotora de Justiça Eliana Vendramini, membro do Ministério Público de São Paulo, referindo-se ao tráfico de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, “corpos não são propriedade privada”9. Para alguns, o tema abortamento tem poderes de devolver o Direito Constitucional para o final do século XVIII, quando a propriedade era tida como um direito absoluto, numa concepção individualista. Algumas pessoas olham para o próprio corpo com os mesmos olhos com que os barões olhavam para as suas terras, vale dizer, como se tivessem sobre elas um direito sagrado e sem qualquer função social. A gestante que pretende exterminar a vida alojada nas suas entranhas, a pretexto de exercer um direito absoluto sobre o próprio corpo, comporta-se como o proprietário que pretendia exercer o direito de propriedade até o infinito, erigindo espetos para furar os balões que sobrevoassem a coluna de espaço aéreo sobrejacente. Em suma, a ideia subjacente ao lema “my body, my rules” (meu corpo, minhas regras) remonta a um momento egoístico do constitucionalismo, que não acomodava nenhum solidarismo. Vive-se em um Estado Democrático de Direito (e deveres), não em um Estado Liberal clássico. Quer se trate de homens ou de mulheres, ambos não podem fazer com o próprio corpo o que lhes aprouver. Art. 199, §4º, CF/88. A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização (negritamos). 9 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140602_ministerio_publico_svo_usp_ orgaos_rs>. 8

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DIREITOS REPRODUTIVOS É importante fixar o significado da expressão direitos reprodutivos. Qual o conteúdo e o alcance desses direitos? Os direitos reprodutivos são direitos humanos e possuem duas dimensões complementares, como duas faces de uma mesma moeda10: a) o livre exercício da sexualidade e da reprodução, abrangendo o controle sobre a fecundidade (dimensão negativa): o Estado e a sociedade não devem interferir na liberdade sexual, no número de filhos, no intervalo entre os filhos etc. b) direito à saúde e à educação, ambos na área sexual e reprodutiva (dimensão positiva): o Estado deve assegurar, por meio de políticas públicas, informações, meios e recursos para o desempenho qualitativo da sexualidade e da reprodução.

No campo da proteção internacional dos Direitos Humanos, somente a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979) tratou do tema, no art. 12: §1. Os Estados Membros adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao planejamento familiar. §2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados Membros garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactação.

Juridicamente, é tudo o que se tem. Na tentativa de enriquecer o conteúdo dos direitos reprodutivos, duas declarações foram elaboradas: o Plano de Ação da Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, e a Declaração e PIOVESAN, Flavia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: <http://siteantigo.mppe.mp.br/uploads/p1KdxISyI758jG2x2XOxQ/oQBSFV2tIXvW3yLQu7NdnQ/Artigo _-_Direitos_reprodutivos_como_direitos_humanos_-_Flv.doc>. 10

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Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, nenhuma delas com o status de tratado internacional, mas com um significado simbólico interpretativo. Pois bem. À luz do arcabouço normativo mencionado, é possível extrair um direito ao descarte da vida intrauterina? Estamos convencidos de que não. Em apreço aos seus direitos reprodutivos, a mulher tem à sua disposição uma gama diversificada de técnicas anticoncepcionais, dentre elas, preservativos, pílulas, dispositivo intrauterino (DIU), coito interrompido, método OginoKnaus, e até processos químicos etc.(KRYMCHANTOWSKI, 2013, p. 206). Com um acervo tão rico à sua disposição, gratuitamente, como, aliás, é dever do Estado, não há chamar alguém à existência e depois contradizer-se, para expelir fatalmente o convidado (venire contra factum proprium). Na sua dimensão negativa, os direitos reprodutivos sujeitam-se à preclusão lógica. No livre exercício da sua fecundidade, a mulher opta se deseja exercer ou não o seu direito de engravidar, no momento e na forma que lhe aprouver. Feita essa escolha, os direitos reprodutivos foram exercidos e se consumaram11. A partir de então, se o abortamento estivesse abrangido pela sua autodeterminação, a rubrica deveria ser direitos destrutivos, e não direitos reprodutivos. Como o próprio nome revela, os direitos reprodutivos estão ligados à ideia de reprodução, isto é, de multiplicar, de procriar, de gerar, de construir, não de eliminar, aniquilar ou destruir. Um exemplo do raciocínio lógico pode ser extraído do processo penal. O Ministério Público tem o direito de recorrer. Uma vez interposto o recurso, não tem o direito de desistir dele. Nem por isso se diz que a impossibilidade de desistência fere o seu direito de recorrer. Semelhantemente, a mulher tem o direito de engravidar (direitos reprodutivos). Uma vez grávida, não tem 11 Após a gravidez, só faz sentido falar em direitos reprodutivos na dimensão positiva, vale dizer, nas políticas públicas de assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurando uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactação, na forma do art. 12, §2º, da Convenção onusiana. Bem se vê, o espírito do referido Tratado de Direitos Humanos remete à vida (e não à morte), ao falar cronologicamente de gravidez, nutrição, parto e lactação. A lógica da convenção aludida é vida digna da mãe e do filho.

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o direito de desistir. Da mesma forma, isso não fere o seu direito de engravidar (direitos reprodutivos). O fato de o Ministério Público não ser detentor do direito de desistir dos recursos, voluntariamente interpostos, não prejudica em nada o seu direito de recorrer, tanto quanto a impossibilidade de a mulher desistir da gravidez, que espontaneamente providenciou, absolutamente não interfere no seu direito de engravidar (ou seja, nos seus direitos reprodutivos). Em suma: a proibição de eliminar a vida intrauterina não prejudica a liberdade de engravidar, isto é, de exercer seus direitos reprodutivos, posto que já fruiu do exercício desse direito em momento anterior. VIDA: UM CONCEITO LÓGICO-JURÍDICO, E NÃO JURÍDICOPOSITIVO No Direito Constitucional brasileiro, não há uma simetria perfeita entre o início da vida e o seu fim. O fim do ser humano é indicado pela Lei n. 9.434/97, que aponta a morte encefálica. Sendo assim, de maneira precipitada, muitos cometem o equívoco de efetuar uma leitura a contrario sensu da norma, para concluir que a gênese da vida é a formação do sistema nervoso central. Isso porque, se a morte é quando se tem por interrompida a atividade cerebral, não haveria vida antes de iniciada esta atividade. O primeiro erro técnico é que essa interpretação é inconvencional, ou seja, violadora da Convenção Americana de Direitos Humanos, de envergadura supralegal, que estipula ser a vida protegida em momento bem anterior: desde a concepção (art. 4º.1). Logo, não há como extrair um conceito legal, a contrario sensu, que conspurque norma hierarquicamente superior. Demais disso, o segundo erro consiste em interpretar a Constituição Federal a partir de conceitos trazidos por uma lei infraconstitucional. Uma das lições mais elementares da hermenêutica constitucional é aquela pela qual a lei não tem poderes para alterar conceitos estipulados na Carta Magna, porquanto equivaleria a uma reforma constitucional escamoteada, levada a efeito por (man)obra ilegítima do legislador. Este não pode alterar conceitos 25


constitucionais. Pergunta-se: em 5 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição, ao positivar a inviolabilidade do direito à vida, a intenção do constituinte foi desabrigar fetos com o sistema nervoso em formação? É o que se alcançaria à luz do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais? Tal exegese restritiva implicaria aplicar a Constituição conforme a lei, e não a lei consoante a Constituição. A se admitir que conceitos constitucionais sejam modificados por definições legais, o legislador receberia um cheque em branco para arbitrariamente alterar o significado de conceitos protegidos pelo constituinte, ao seu alvedrio. A questão que se nos apresenta é: o legislador poderia, ao seu talante, fixar a gênese da vida como a partir da concepção, da nidação, da formação do córtex cerebral ou do nascimento?12 Os congressistas foram presenteados pela Constituição com essa liberdade? Essa anarquia conceitual investiria parlamentares de um poder desmedido, para além do bem e do mal. Bastaria que invertessem, por intermédio da lei, a definição do que é dia e do que é noite, para virar de ponta cabeça a inviolabilidade de domicílio constitucionalmente assegurada (art. 5º, XI, CF/88). Como se vê, um conceito legal não pode alterar o significado de palavras constitucionais para desvirtuá-las daquilo que semanticamente se espera, com mais razão não poderá fazê-lo uma ilação a contrario sensu da definição infraconstitucional de morte encefálica. A vida é um conceito lógico-jurídico, e não jurídico-positivo. Sua validade é delineada pela Ciência, não pelo Direito. Definitivamente, a Lei n. 9.434/97 está muito aquém do necessário para fornecer com segurança quando se tem por vivo o ser humano13. E é de bom alvitre fazer uma advertência de Na opinião médica de Genival Veloso de França, “[s]e a vida humana se inicia na fecundação, na nidação, na formação do córtex cerebral ou até após o nascimento, é mais uma questão de interesses apenas de princípios. A definição de início da vida humana não pode ter como explicação tão somente fundamentos técnicos ou estágios embriológicos, pois o ser humano tem um valor integral. Ele é detentor de uma dignidade própria e não se submete a critérios avaliativos dessa ou daquela ordem, senão ao seu próprio valor. Tem ele um patrimônio moral que aponta seu destino e determina sua dignidade. A defesa e a proteção da pessoa humana, na dimensão que se espera dos direitos humanos, exige, no mesmo sentido e nos mesmos valores, o reconhecimento de todos aqueles que se encontram em qualquer estágio de vida, inclusive no estado embrionário” (FRANÇA, 2015, p. 321). 13 No mesmo sentido aqui defendido, isto é, o de que a Constituição não pode ser 12

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ordem documental: a certidão de óbito não pode ser expedida pelo médico, mesmo diante da morte cerebral, quando ainda não cessadas as funções respiratórias (FIUZA, 2016, p. 157). Se a expedir, será apenas para fins de transplante de órgãos, não para o sepultamento, providência esta que não tem lugar enquanto não interrompidas as funções cardiorrespiratórias, donde se conclui que o marco legal é uma ficção endereçada ao transplante de componentes do corpo humano. Nada além disso. Paulo Gonet, ex-Procurador Geral da República, é contundente (MENDES et al., 2010, p. 446): “[o] direito à vida tem na fecundação o seu termo inicial e na morte o seu termo final”. Segundo o publicista, a lei infraconstitucional é inidônea para fixar arbitrariamente o momento inicial da vida. Ademais, para ele, avilta a dignidade humana e o princípio da isonomia sonegar dos nascituros o direito fundamental mais primevo. Igualmente reconhecendo a ilegitimidade da lei infraconstitucional para indicar, com precisão, a gênese da vida, o constitucionalista Alexandre de Moraes (2004, p. 66) busca subsídios científicos na biologia para compreender que esse momento corresponde à nidação (negritamos): O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo

lida a partir de leis infraconstitucionais que restrinjam arbitrariamente o momento da gênese da vida, confira-se a opinião abalizada de Paulo Gonet, em obra escrita, à época, com Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho (negritamos): “Onde, pois, houver um ser humano, há aí um indivíduo com o direito de viver, mesmo que o ordenamento jurídico não se dê ao trabalho de o proclamar explicitamente. [...] Não se há de condicionar o direito à vida a que se atinja determinada fase de desenvolvimento orgânico do ser humano. Tampouco cabe subordinar esse direito fundamental a opções do legislador infraconstitucional sobre atribuição de personalidade jurídica para atos da vida civil. O direito à vida não pode ter o seu núcleo essencial apequenado pelo legislador infraconstitucional – e é essa a consequência constitucionalmente inadequada que se produziria se se partisse para interpretar a Constituição segundo a legislação ordinária, máxime quando esta não se mostrar tão ampla como exige o integral respeito do direito à vida. Havendo vida humana, não importa em que etapa de desenvolvimento e não importa o que o legislador infraconstitucional dispõe sobre personalidade jurídica, há o direito à vida.” (MENDES et al., 2010, p. 444).

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ou zigoto. Assim, a vida viável começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. [...] A constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina.

Consoante o pronunciamento do antigo catedrático em Obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor Otávio Rodrigues Lima, por ocasião da VII Reunião Mundial da Federação Internacional de Planejamento Familiar14 (destacamos): O nascimento de uma criatura é o ponto terminal de um longo caminho, que começa pela preparação dos elementos masculinos (espermatogênese) e femininos (ovogênese). A fecundação transformaria esses dois em um só: o ovo, contendo um potencial energético insuficiente para prosseguir seu desenvolvimento, somente poderá continuar se novos elementos, nutritivos forem obtidos pela nidação, ou seja, pela fixação do ovo ao organismo da mulher. Neste momento começa a gravidez, que terminará com o parto. [...] Em que instante a vida biológica se transformaria em vida humana? Poder-se-ia responder dizendo que o início da gravidez, isto é, o momento em que o blastocisto se une ao meio interno materno – a nidação – marcaria esta distinção. Esta é a opinião de um grande número de ginecólogos modernos. (MAIA, 2007, p. 48-49).

À vista do exposto, entende-se nesse arrazoado que a gênese da vida tem início com a nidação. Não há, pois, paralelismo conceitual entre a vida e a morte no campo jurídico. ASPECTOS PROCESSUAIS E DE MÉRITO O tema em apreço é de domínio obrigatório por parte de membros do Ministério Público brasileiro, não apenas em razão das causas criminais, mas, sobretudo, nas causas cíveis enfrentadas no âmbito da jurisdição voluntária15, quando o parquet será instado a exarar um parecer acerca do assunto. Quanto ao As palavras do Professor Otávio Rodrigues Lima foram endossadas por George Doyle Maia, Professor Livre-Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nesta obra científica minuciosa acerca da Embriologia Humana. 15 No Novo Código de Processo Civil, as autorizações de abortamento terapêutico continuam submetidas ao procedimento de jurisdição voluntária, em face da inexistência de previsão especial (MARINONI et al., 2015, p. 141). 14

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juízo competente para a expedição do alvará de interrupção da gravidez, a matéria dependerá da organização judiciária regional, mas o tecnicamente correto é que a competência seja da vara criminal16, porque a questão posta em juízo necessariamente envolverá a análise de excludentes legais ou supralegais de ilicitude. Engana-se quem supõe que a decisão do STF, na ADPF n. 54, colocou uma pá de cal nas ações que postulam a expedição de alvará judicial para a “interrupção terapêutica do parto”. DO INTERESSE DE AGIR: O DILEMA DO DIREITO CONSTITUCIONAL À ESCUSA DE CONSCIÊNCIA (ART. 5º, VI E VIII, CF/88) Em princípio, nenhuma das hipóteses admitidas pelo ordenamento ou pela jurisprudência do STF reclamam a prévia autorização judicial. Assim, pelo menos de início, em se tratando de abortamento lastreado em violência sexual, risco de morte ou anencefalia, falecerá à requerente interesse de agir, porquanto o sistema jurídico já permite o procedimento sem que se busque guarida no Judiciário. Se, por exemplo, postularem a expedição de um alvará que permita a interrupção da gravidez de um feto anencefálico, inexistindo prova da recusa médica em realizar o procedimento, o Juiz deve extinguir o feito pela patente carência da ação. Porém, o interesse de agir pode nascer diante de uma recusa médica. Nesse caso, caberá ao magistrado aquilatar as razões da recusa, dirimindo o conflito. Figure-se, ilustrativamente, que uma gestante relate ter sofrido abusos sexuais, mas as circunstâncias do caso concreto indiquem que essa versão é digna de pouca credibilidade. Ante a negativa dos médicos, a dúvida pode ser dirimida por meio de uma ação judicial. Também será possível que profissionais da rede pública se neguem a realizar o abortamento porque não são unânimes em reconhecer o suposto risco de morte ao qual a gestante se sujeita. A propósito, a literatura médica especializada revela que os casos de risco de morte, na prática, são raríssimos. Consoante as ponderações de Delton Croce e Delton Croce Júnior (2012, p. 562): 16

Assim o é, por exemplo, no TJ/GO e no TJ/MS.

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[...] sabemos, motu proprio, que o médico probo nem a dedo conta, em seu atendimento diário às gestantes, ao longo dos anos, as mal definidas situações indiscutíveis de real indicação do aborto necessário ou terapêutico. Assim é que, em trinta e oito anos ininterruptos de profissão, não tivemos nenhum caso de indicação médica de aborto necessário ou terapêutico pela mãe se encontrar em iminente perigo de vida determinado pelo binômio feto-placentário. Destarte, antes de aplaudir intempestivamente o aborto amparado por lei devemos considerar que o progresso vertiginoso da Medicina limita, a cada dia, as suas indicações (se é que à vista de honesto rigorismo clínico elas existem). Assim é que atendemos gestantes cardíacas, (uma delas com dupla lesão mitral), que deram à luz por parto natural e por cesarianas, com êxito feliz para o binômio materno-fetal.

Como se vê, também nesse caso a postulante terá oportunidade de demonstrar, judicialmente, que sua gravidez se amolda à hipótese legal mencionada, que é de dificílima configuração prática. Se o provar, insofismavelmente, o alvará judicial poderá ser expedido. No campo da anencefalia, é possível, por exemplo, que somente um médico da comarca concorde em assinar o diagnóstico17. Em tese, também pode ocorrer de um médico particular subscrever o laudo, mas a sua contratação remunerada despertar a desconfiança do profissional do SUS, que acaba por se negar a subscrever o laudo. Todas essas situações consubstanciam recusas a serem dirimidas na via judicial, portanto, verificase nelas o interesse de agir. Não obstante, também há recusas médicas idôneas. A depender do caso concreto, a recusa pode fundar-se no direito constitucional à objeção de consciência (art. 5º, VI e VIII, CF/88),

A Resolução n. 1989/2012 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre o diagnóstico de anencefalia, exige a assinatura de dois médicos. A leitura da norma é imprescindível antes de qualquer manifestação ministerial sobre o tema. No seu artigo 2º, dispõe: “Art. 2º O diagnóstico de anencefalia é feito por exame ultrassonográfico realizado a partir da 12ª (décima segunda) semana de gestação e deve conter: I - duas fotografias, identificadas e datadas: uma com a face do feto em posição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável; II - laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico” (negritamos). A compilação é extraída da excelente obra de Medicina Legal escrita por Delton Croce e Delton Croce Júnior (CROCE; CROCE JR., 2012, p. 575).

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algo muito comum em nosocômios católicos ou protestantes. Nesse caso, não se pode compelir uma instituição hospitalar religiosa a vilipendiar seu credo institucional, devendo, pois, a ordem ser cumprida em uma Instituição Pública ou privada que aceite realizar o procedimento médico. A decisão da mulher é pessoal e de foro íntimo, não podendo ser estendida para terceiros que não comungam da sua cosmovisão. A laicidade do Estado impõe o respeito a todos os credos, devendo ser reputada como legítima essa abstenção hospitalar. Ademais, até mesmo médicos ateus ou agnósticos podem se recusar, legitimamente, ao abortamento. É um erro crasso supor que somente pessoas religiosas são contra o abortamento de seres humanos. Ateus podem ser contrários a essa prática, afinal, para ser politicamente desfavorável ao abortamento, basta ter apreço pela vida. O Código de Ética Médica, norma endereçada a todos os profissionais da medicina, independentemente do credo que venham a professar, reconhece-lhes o direito de “recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de suas consciências” (art. 28, destacamos). Como proclama a Declaração de Genebra, “manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde a concepção”. Com arrimo no juramento de Hipócrates, “também não fornecerei a uma mulher pessário abortivo”18. Bem se vê, o profissional de medicina é, por definição, um jurado defensor da vida humana, razão pela qual pode rebelar-se contra o abortamento, mesmo nas hipóteses autorizadas pela lei ou pela construção pretoriana do STF. Por óbvio, a objeção de consciência é inaplicável quando a mulher grávida correr risco de morte, embora, repita-se, seja situação de raríssima configuração prática. Em síntese, nas ações de alvará para interrupção de gravidez, só haverá interesse de agir diante de dúvida fundada quanto às hipóteses ou de recusa médica infundada.

A compilação é extraída da excelente obra de Medicina Legal escrita por Delton Croce e Delton Croce Júnior (CROCE; CROCE JR., 2012, p. 575).

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DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: FETOS COM MICROCEFALIA E O ABORTAMENTO EUGENÉSICO Por vezes, a situação submetida em juízo versa sobre hipótese sobremodo aproximada da anencefalia, mas que com ela não se confunde. Figura-se, por exemplo, um feto que padece de exencefalia. Nesse caso, o cérebro se desenvolve fora da calota craniana, em contato com o líquido amniótico, degenerando-se gradualmente. Inúmeros outros casos distintos da anencefalia foram submetidos ao Judiciário, dentre eles, a síndrome de Edwards, holoprosencefalia, osteogênese imperfeita e até mesmo gêmeos xifópagos. Em todos esses casos, inexiste possibilidade jurídica do pedido. Simplesmente, o ordenamento não os contempla, e o silêncio é eloquente, donde se conclui que não há permissivo constitucional para o abortamento de fetos que padecem de microcefalia. A microcefalia representa uma malformação congênita, cuja marca singular é o subdesenvolvimento do perímetro cefálico, que terá uma dimensão aquém dos trinta e três centímetros. Nesse caso, há cérebro e vida extrauterina viável. Logo, a hipótese é absolutamente distinta daquela enfrentada pelo STF na ADPF n. 54. Cuida-se, na espécie, de um abortamento eugenésico, assim conceituado como a “privação dolosa do nascimento do ser humano presumivelmente portador de taras hereditárias” (CROCE; CROCE JR., 2012, p. 562). De todas as modalidades de abortamento, sem dúvidas, o eugenésico é o mais utilizado como forma de extermínio de populações indesejadas por uma parcela mais insensível da sociedade. Noutra formulação: o abortamento eugenésico, como é aquele vindicado por quem busca abortar fetos microcefálicos, está a serviço de um genocídio de deficientes físicos. A pretexto de conferir liberdade à mulher gestante, o fim colimado pode ser simplesmente impedir o nascimento de pessoas portadoras de taras hereditárias. Ou seja, a situação é ainda menos humanitária do que o pleito de abortamento de fetos saudáveis, pois, nesse caso, a deficiência não se aloja na causa de pedir. Os pedidos de interrupção de gravidez lastreados na microcefalia são indiscretos quanto aos propósitos do postulante: visam à eliminação 32


do futuro encargo de velar pela existência digna de um portador de deficiência. É consabido que, numa sombria concepção utilitarista, os deficientes são sobremodo mais vulneráveis no que diz respeito ao direito à vida. A história da humanidade o revela, mormente as agruras do nazismo. Curiosamente, a legislação nazista excepcionou a proibição do aborto, desde que a letalidade recaísse sobre pessoas não pertencentes ao povo alemão, exatamente como forma de conter a multiplicação social de pessoas tidas como indesejáveis por Adolf Hitler. É o que se colhe dos escritos de Hans Welzel (1951, p. 12): El nacionalsocialismo realizó efectivamente esta idea: cuando en los años de guerra, millones de obreros del este fluyeron a Alemania, el ministro de Justicia del Reich fue autorizado, por ordenanza de l9 de marzo de 1943, para exceptuar a las personas no pertenecientes al pueblo alemán de la prohibición del aborto. Como el Estado no tenía interés en el aumento de estos pueblos extranjeros, dejó en ellos el aborto libre de pena.

Aparentemente, uma medida liberal. Na prática, um plano para exterminar seres humanos. É a liberdade sendo usada como um instrumento de morte. O que prestava obséquio aos direitos humanos? Proibir ou excepcionar a proibição do aborto? Toda violação de direitos humanos se faz acompanhar de um discurso legitimador. Usualmente, o discurso legitimador é supostamente mais humanitário que a medida a ser justificada, mas tudo não passa de uma simulação. Em tempos como os atuais, em que o óbvio precisa ser explicitado, convém lembrar o teor da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York (2007): “Os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (art. 10, destacamos). A norma sobredita, de envergadura constitucional, proclama o óbvio: o direito à vida dos deficientes, como algo inerente, isto é, imanente, intrínseco a todas as pessoas. 33


Discorrendo a respeito do raciocínio utilitarista no abortamento, pondera Ives Gandra Martins (destacamos): Nem se argumente que tal concepção é forma de permitir a sobrevivência dos demais, nos lares com muitos filhos, ou de evitar-se a explosão demográfica, visto que, a partir de tal concepção, forma de reduzir a população humana seria eliminar também os velhos, os inúteis, os doentes, aqueles que são um peso para a sociedade. Em tal hipótese, o ser humano deveria ser útil, como o é um touro reprodutor, que, enquanto serve deve viver, mas, passada a época de reprodução, é levado para o corte. O utilitarismo do ser humano, transformado em máquina social, teria idêntico tratamento ofertado ao gado, nas fazendas de seus criadores. (MARTINS, 1991, p. 11).

Ora, a reflexão acima, efetuada em 1991, é atemporal e se encaixa como uma luva nos tempos hodiernos. Pessoas com microcefalia não são menos importantes que quaisquer outras. Pessoas não têm preço, mas sim dignidade19. Outrossim, ainda que a mãe não deseje educar o filho que voluntariamente chamou à existência, desprezando-o covardemente em razão da microcefalia, o ordenamento jurídico permite que a criança seja entregue para adoção. Com apoio no art. 13, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, “as gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude”. A norma fulmina a pretensão deduzida em juízo de abortamento de fetos microcefálicos cuja causa petendi seja de índole econômica. Bem colocada a questão, é hora de sistematizar o assunto: não se pode dizer que há uma posição institucional do Ministério Público, de maneira definida, sobre o debate em torno do Nas palavras de Kant, citado por Ingo Wolfgang Sarlet: No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...] Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir sua santidade (SARLET, 2012, posição 547 – Kindle Edition).

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aborto, que resvala no que se tem convencionado chamar de desacordo moral. Vozes autorizadas se posicionaram pela proteção intransigente do direito à vida intrauterina, a exemplo de Cláudio Lemos Fonteles e Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, membros que já ocuparam o cargo de Procurador Geral da República. Diversamente, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira, também na condição de Procuradora-Geral da República, exarou parecer favorável ao abortamento de fetos anencefálicos, lastreado nos direitos reprodutivos da mulher20. Ainda que houvesse uma posição unânime no Ministério Público sobre esse tema tão controverso, à luz da independência funcional, os membros do parquet continuariam livres para uma manifestação conforme os ditames de suas consciências jurídicas. Todavia, essa liberdade não deve ser desvirtuada como um cheque em branco para que atuem ao arrepio da lei que juraram (fazer) cumprir. Como fiel guardião da ordem jurídica, cabe ao presentante do Ministério Público fazer valer o ordenamento jurídico em vigor, tal como democraticamente elaborado, não devendo aventurar-se na tentativa de corrigi-lo para adequá-lo ao seu sentimento pessoal ideológico21. Lembramos, pois, do princípio das razões públicas (John Rawls). Ou seja, mesmo que o promotor de justiça ou procurador da república carregue consigo a ideologia de que o aborto não deveria ser criminalizado, o fato é que o foi. Bem ou mal, doa a quem doer, no Brasil, em regra, o aborto é crime. Para autores como Ingo Sarlet, nada impediria a sua descriminalização, não obstante, a conduta atualmente está tipificada, realidade perante a qual todos devem se curvar. Logo,

ADPF n. 54. No passado, em um momento de autocontenção, o Superior Tribunal de Justiça já assinalou: “3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador” (HC n. 32.159/RJ, j. em 22/03/2004).

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guardando-se fidelidade à lei, a regra é que, na jurisdição voluntária, o parecer ministerial seja desfavorável à pretensão de eliminar a vida intrauterina, seja pela impossibilidade jurídica do pedido (v.g. abortamentos eugênicos, a exemplo da microcefalia), seja porque, a despeito de amoldar-se às exceções legais, falece ao postulante o interesse de agir (afinal, como regra, as hipóteses autorizadas pelo ordenamento dispensam autorização judicial). Sobrevindo fundada dúvida quanto ao caso concreto ou, conquanto nítido, diante de infundada recusa médica, cabe ao Ministério Público aderir à pretensão deduzida, quando inequivocamente lastreada nas hipóteses do Código Penal ou na exata situação da ADPF n. 54 (não em hipóteses aproximadas). Fora dessas hipóteses, o parecer ministerial favorável será contra legem e, portanto, desaconselhável (para não dizer juridicamente equivocado). Todo cuidado é pouco, porque, em alguns casos, não é dado ao membro do Ministério Público o direito humano de errar, sobretudo quando esse erro humano aniquila outro ser humano. É impossível, nesse caso, restituir o status quo. Quando o assunto é aborto, não se admitem erros.

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