O AFASTAMENTO CAUTELAR DO AGENTE PÚBLICO ÍMPROBO SOB NOVO PANORAMA

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Altecir Bertuol Junior* O AFASTAMENTO CAUTELAR DO AGENTE PÚBLICO ÍMPROBO SOB NOVO PANORAMA THE INJUNCTIVE REMOVAL OF UNRIGHTEOUS OFFICIAL UNDER NEW PROSPECT EXTRACCIÓN PREVENTIVA DE FUNCIONARIO PÚBLICO DESHONESTO BAJO NUEVA PERSPECTIVA

Resumo: O presente ensaio é voltado a analisar a medida judicial de afastamento cautelar do agente público ao qual é imputada a prática de ato de improbidade sob o prisma do princípio republicano, a fim de esclarecer o conteúdo da norma estampada no art. 20 da Lei n. 8.429/92 não explicitado em seu texto. Abstract: The present essay aims to analyze the judicial providence of injunctive removal of official against who is imputed an act of improbity through the prism of the republican principle to clarify the content of the norm printed in the article 20 of the Law n. 8.429/92 which is not explicit in its text. Resumen: Este ensayo es dirigido a analizar la providencia judicial de extracción preventiva de empleado estatal que es imputado um acto de deshonestidad a vista de lo principio republicano para aclarar el contenido de la norma constante en el art. 20 de la ley n. 8.429/92 que no se expresa en su texto.

* Especializando em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela Escola Superior do MP-MT, especialista em Direito Público pelo Instituto Cuiabano de Educação - ICE e graduado em Direito pela pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Sinop - UNICEN. Oficial de Gabinete do MP-MT, atuante no Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado - GAECO.

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Palavras-chave: Lei n. 8.429/92, interpretação extensiva, lesão ao patrimônio público. Keywords: Law n. 8.429/92, extensive interpretation, public property damage. Palabras clave: Ley n. 8.429/92, interpretación extensiva, daños a la propiedad pública.

INTRODUÇÃO A Lei n. 8.429/92, batizada de Lei de Improbidade Administrativa, como se sabe, tem assento constitucional no § 4º do art. 37 do Documento Político, dispositivo localizado em parte da Constituição reservada às diretivas gerais da Administração Pública, e representa grande avanço para o ordenamento jurídico pátrio, não apenas por fornecer ares de moralidade à Administração, mas porque ela reflete o estágio mais avançado da República como forma de governo, já que sua finalidade é, por excelência, a proteção da coisa pública. Essa compreensão a respeito da Lei de Improbidade - que neste ensaio se busca anunciar -, é primordial para entendê-la e interpretá-la, devendo a sua essência de manifestação do princípio republicano ser o ângulo de análise dos seus institutos. Sob esse enfoque, no presente artigo, busca-se fazer alguns apontamentos a respeito das hipóteses de afastamento cautelar do agente público do exercício das atividades de seu cargo, emprego ou função pública, sob o enfoque da Lei de Improbidade como manifestação da “República”, e assim demonstrar que a providência poderá ser ordenada para impedir que o agente ímprobo continue a praticar condutas ilícitas contra o patrimônio público.

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DESENVOLVIMENTO O instituto em foco é previsto no parágrafo único do art. 20 da Lei n. 8.429/92, que dispõe que a autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual. A literalidade da lei, para a maioria acadêmica, informa que a medida do afastamento do agente público somente pode ser decretada quando a produção da prova puder ser prejudicada pela sua atuação na Administração Pública. Nessa direção, é comum a comparação da providência do afastamento com as hipóteses autorizadoras da prisão preventiva regulamentadas pelo Código de Processo Penal atinentes à necessidade de se garantirem a ordem pública e a aplicação da lei penal, afirmando-se que estes requisitos não permitem o arredamento cautelar do agente público pela prática de ato de improbidade (GAJARDONI et al., 2012, p. 331)1. O afastamento cautelar do agente público do cargo, emprego ou função, para evitar a reiteração de atos lesivos ao patrimônio público, não tem sido aceito também, sob o argumento de que a medida é tratada pela Lei n. 8.429/92 em seu art. 20, em conjunto com as penas de perda do cargo e de suspensão dos direitos políticos, que somente podem ser efetivadas após o trânsito em julgado da sentença, o que revela o caráter excepcional não só destas penas, mas, também, da providência de afastamento do agente público, já que esta poderia produzir na prática o mesmo efeito daquelas, de modo que a interpretação a ser dada ao dispositivo deve ser restritiva e, nesse sentido, a medida do afastamento somente poderia ocorrer no único caso expressamente previsto na lei: para garantia da instrução processual. (ALVES apud GARCIA; ALVES, 2011, p. 905). Não obstante se tenha negado a possibilidade do afastamento do agente público do exercício de suas atividades junto à Administração Pública por fundamento diverso da necessidade 1

No mesmo sentido: DECOMAIN; ALVES, apud GARCIA; ALVES, 2011, p. 906.

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da instrução processual, tem-se admitido na seara acadêmica algumas variantes desse requisito. Nessa esteira, a possibilidade de repetição de atos lesivos ao patrimônio público pelo agente poderia ser interpretada como necessidade da instrução, quando os novos danos “pudessem estar enquadrados no objeto da demanda, vale dizer, consubstanciando reiteração de atos cuja repressão já se ambicionava no próprio processo” (OSÓRIO, apud GARCIA; ALVES, 2011, p. 905). Sob essa perspectiva, a “necessidade da instrução” restaria configurada quando se pudesse verificar no caso concreto, mutatis mutandis, a continuidade delitiva. Assim, o fundamento da “garantia da ordem pública administrativa” tem sido utilizado para sustentar a possibilidade de se determinar medida cautelar voltada à restrição do círculo de atribuições do agente público, das quais se vale para a prática de atos lesivos ao patrimônio público, tolhendo-lhe assim a ferramenta de que se utiliza para a prática de ilícitos, de maneira a evitar que possa dar continuidade à atuação ímproba, medida embasada no poder geral de cautela (ALVES, GARCIA; ALVES, 2011, p. 906-907). Embora sem enfoque voltado à possibilidade de afastamento do agente público do cargo, emprego ou função, a tutela inibitória - aquela que, desvinculada da necessidade da ocorrência do dano, se volta a impedir a ocorrência do ato ilícito -, é apontada como ferramenta para obstar a continuidade da prática de ilícitos contra o patrimônio público (MACHADO NETO; VIEIRA JÚNIOR apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313-315). Sobre essa hipótese, é preciso acrescentar que, diante da ineficácia da medida coercitiva por excelência - a multa diária -, no acautelamento da ocorrência de novos danos ao patrimônio público, a utilização da técnica executiva pelo emprego de medidas de sub-rogação faz-se indispensável, campo em que se enquadra o afastamento cautelar. Nos termos acima, não é difícil constatar que se tem negado ao patrimônio público a tutela efetiva que lhe é devida, seja pelo fetiche da analogia à ordem pública como requisito autorizador do afastamento cautelar, seja pelo sofisma da vinculação do afastamento à sanção da perda da função pública. Aliás, o temor face a 110


esses argumentos tem levado a uma atividade acadêmica criativa no sentido de mascarar o fundamento da necessidade de se evitar a continuidade da prática de ilícitos contra o patrimônio público, na qual se acaba por colocar a hipótese em uma “cama de Procrusto”, a fim de que caiba na necessidade da instrução processual. Com efeito, “é necessário o desenvolvimento de técnicas processuais objetivando reforçar a prevenção, antecipando a proteção do patrimônio público” (MACHADO NETO; VIEIRA JÚNIOR apud OLIVEIRA et al., 2010, p. 313), de modo que não há, data venia, razão para negar o afastamento cautelar do agente da improbidade quando evidenciado que ele continuará a praticar condutas lesivas ao patrimônio público. Não obstante tenha sido previsto no mesmo dispositivo que disciplina a sanção da perda da função pública, o afastamento preventivo do agente não se confunde com ela. De fato, o segundo não é sanção, mas providência cautelar (ALEXANDRINO; VICENTE, 2009, p. 840), ao passo que a primeira tem feição puramente satisfatória do direito material. Com efeito, esse tratamento conjunto das duas medidas tem colhido fundadas críticas. Nesse sentido, tem-se afirmado que a confusão a respeito da natureza da providência de afastamento se dá pela má técnica legislativa empregada, pela qual duas matérias distintas, a saber, medida punitiva e medida de prevenção, foram aglutinadas num mesmo dispositivo da lei de regência (MEDEIROS, 2003, p. 214). Além do mais, não há qualquer razão para se vincular a possibilidade do afastamento do agente público de suas atividades, para evitar que ele se valha do cargo para continuar a praticar ilícitos contra o patrimônio público, à hipótese prevista na lei processual penal - necessidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública -, já que essa referência faz alusão a uma ideia restritiva relativa ao direito de liberdade, que não encontra qualquer respaldo na ação coletiva relativa à tutela do patrimônio público. Com efeito, a prisão preventiva na hipótese em questão não visa assegurar o provimento judicial perseguido no processo penal - condenação do réu e imputação de uma pena a ele -, mas a própria ordem social - indispensável à manutenção do Estado -, que resta abalada pelo alvoroço causado 111


pela repetição de crimes, mas, conforme se demonstrará, o afastamento do agente público de suas atividades busca assegurar a integral proteção da coisa pública. Embora numa perspectiva minimizada se possa dizer que a providência do afastamento temporário vai de encontro ao interesse público, na medida em que o agente público continuará a perceber sua remuneração enquanto estiver privado do exercício de suas funções (MATTOS, 2005, p. 681-682), não se pode esquecer que, a depender do caso concreto, o pagamento do vencimento do agente, sem que ele dê a contraprestação, é menos oneroso ao Estado do que suportar a continuidade de atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito e/ou prejuízo ao erário. Com efeito, a essência cautelar da medida do afastamento temporário reside no fato de que ela visa à proteção da coisa pública, provimento jurisdicional buscado na ação coletiva. Nesse sentido, não se pode olvidar que, a depender do caso concreto, até o trânsito em julgado da sentença, poderá haver um dano irreparável ao patrimônio público ou de dificílima reparação decorrente da reiteração da prática de atos de improbidade, os quais, inclusive, não poderão ser coibidos na ação de improbidade eventualmente já em curso, por não estarem presentes no momento do seu ajuizamento. Não se pode negar que a lesão aos cofres públicos pode chegar a valor inestimável, a depender do “esquema de corrupção” engendrado dentro da Administração Pública por agentes públicos ímprobos, o que torna a reparação do dano deveras difícil, uma vez que, ordinariamente, são necessários anos de investigação, a fim de se produzirem provas das condutas ilícitas - atividade homérica no Brasil, onde imperam ideais extremamente garantistas que, em razão da falta de ponderação, cotidianamente, asseguram a impunidade -, as quais deverão ser confirmadas em procedimento judicial, cuja delonga, não se pode refutar, é também comum. Ademais, a impossibilidade de reparação dos danos decorrentes das condutas de improbidade fica explícita no seguinte questionamento: como se pode reparar o dano causado pelos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei n. 8.429/92)?

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Assim, diante da impossibilidade prática da reparação integral de todos os danos causados ao patrimônio público, a única alternativa é a prevenção da sua ocorrência, de modo que, a despeito da ausência de previsão na Lei n. 8.429/92, não há como negar que seja possível o afastamento do agente público de suas atividades para evitar que ele continue a praticar condutas lesivas ao patrimônio público com base no poder geral de cautela do magistrado, prerrogativa prevista no art. 798, do Código de Processo Civil, que integra a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, a qual assegura que o Poder Judiciário possa fazer cessar ou evitar a ocorrência de lesão ou ameaça a direito (NERY JUNIOR, 2010, p. 1161), plenamente aplicável à hipótese. De mais a mais, o afastamento cautelar do agente para impedir a reiteração de atos lesivos ao patrimônio público se mostra em consonância com o princípio constitucional da razoabilidade, de obrigatória observação no caso em tela, por se tratar de medida restritiva à esfera individual do agente público. Com efeito, ressalvada a possibilidade de restrição das atribuições do agente público, conforme sugerido pela doutrina e alhures demonstrado, o afastamento será providência necessária, posto que não há outra medida menos grave que possa atingir o mesmo objetivo. Além disso, a medida se mostra apta à finalidade que se busca - proteção integral da coisa pública -, bem como proporcional, já que o benefício trazido à sociedade é maior do que o ônus imposto ao agente público -, valendo lembrar nesse ponto que, por expressa disposição da lei, o agente continuará a perceber sua remuneração enquanto afastado. À vista dessas considerações, mostra-se plenamente possível o afastamento cautelar do agente público para evitar que ele continue a investir contra o patrimônio público.

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CONCLUSÃO Deveras, a compreensão de que a Lei de Improbidade decorre diretamente da forma republicana de governo é imprescindível para compreender seus institutos. Portanto, à luz desse entendimento, é possível enxergar claramente que, diante da possibilidade da ocorrência de danos irreparáveis ou de difícil reparação à coisa pública pela manutenção do agente público a quem se imputa atos de improbidade no exercício de suas atribuições, quando estiver evidenciado que ele continuará a praticar condutas lesivas ao patrimônio público durante o processo, o provimento judicial reparatório dado na ação de improbidade será ineficaz, sendo necessária a tomada de providência preventiva que evite a ocorrência dos danos, a qual não pode ser outra senão o afastamento do agente público do cargo, emprego ou função.

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REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Direito administrativo descomplicado. 17. ed. São Paulo: Método, 2009. DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São Paulo: Dialética, 2007. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2012. GAJARDONI, Fernando da Fonseca, et al. Comentários à lei de improbidade administrativa. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da lei n. 8.429/92. 2. ed. Rio de janeiro: América Latina, 2005. MEDEIROS, Sérgio Monteiro. Lei de improbidade administrativa: comentários e anotações jurisprudenciais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. OLIVEIRA, Alexandre Albagli; CHAVES, Cristiano; GHIGNONE, Luciano (orgs.). Estudos sobre improbidade administrativa em homenagem ao Prof. J.J. Calmon de Passos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

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