José César Naves de Lima Júnior* Patrícia Raposo Moreira** A tipicidAde nos crimes de perigo AbstrAto com enfoque nAs relAções de consumo ThE ThEORy OF PRINCIPLES AND ThE FACTUAL SUPPORT OF ThE FUNDAMENTAL RIGhTS LA TIPICIDAD EN LOS DELITOS DE PELIGIO ABSTRATO CON ENFOQUE EN LAS RELACIONES DE CONSUMO
Resumo: Em uma sociedade de riscos, determinadas condutas não são toleradas em virtude do perigo que representam, exigindo-se, de imediato, resposta do Estado para sua efetiva contenção. Nesse particular, os delitos de perigo abstrato, que se consumam apenas com a possibilidade de dano, assumem papel decisivo na tutela de bens jurídicos e, dentre outros, destacamos a incolumidade econômica do consumidor. Por meio de norma penal em branco, o legislador considera crime o comércio de produtos impróprios ao consumo, compreendidos como aqueles que possam provocar males à saúde humana, como a incolumidade econômica de seu destinatário, cuja tipicidade revela-se, na dimensão material, na potencialidade ou aptidão de causar um perigo real ou dano efetivo. Abstract: In a risk society like ours, certain pipelines are not tolerated because
* Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Anhanguera e em Ciências Penais pela UNIDERP. Promotor de justiça do Estado de Goiás. ** Graduada em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Itumbiara-GO. Pós-graduanda em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP. Assessora Jurídica da 7ª Promotoria de Justiça da Comarca de Itumbiara.
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of the danger they represent, thus requiring immediate response by the State for its effective restraint. In particular, the danger offences, which consume just abstract with the possibility of damage, take decisive role in the supervision of legal assets, among others, highlight the economic safety of the consumer. Through blank criminal norm, complementary to an action type or contents varied, the legislator considers crime trade products unfit for consumption, included both those that can cause harm to health as the safety of your recipient, whose economic pattern material reveals the potential or ability to cause a real danger or actual damage. Resumen: En una sociedad de riesgo, ciertos comportamientos no son tolerados por el peligro que representan, a la vez que requieren la respuesta del Estado para su contención efectiva. En ese particular, los delitos de peligro abstracto, que se consumen sólo con la posibilidad de daño, asumen un papel decisivo en la protección de los intereses jurídicos y, entre otros, ponemos de relieve la incolumidad económica de los consumidores. A través de la norma penal en blanco, el legislador considera crimen el comercio de productos no aptos para el consumo, entendidos como aquellos que pueden causar daño a la salud humana, como la incolumidad económica de su destinatario, cuya tipicidad se manifiesta en la dimensión material, en la potencialidad o en la posibilidad de causar un peligro real o un daño efectivo. Palavras-chaves: Sociedade, riscos, delitos de perigo abstrato. Keywords: Society, risks, abstract danger offences. Palabras clave: Sociedade, riesgos, delitos de peligno abstrato. 106
Com as transformações sociais verificadas nas duas últimas décadas, o direito, consequentemente, precisa conformar a nova realidade e as intempéries que daí se apresentam, porém, como é sabido, não consegue ainda evoluir na mesma proporção da sociedade, razão pela qual surgem novos riscos para seus integrantes, causando certa sensação de insegurança e impunidade, pois, em sua maioria, essas inovações não foram delimitadas no campo do Direito Penal. Em decorrência disso, objetivando evitar a tutela atrofiada de bens jurídicos, passa-se a adotar delitos de perigo abstrato, ou seja, aqueles que se consumam apenas com a possibilidade de dano. Nesse prisma, insere-se o direito penal do consumidor, como pode ser visualizado no tipo descrito no artigo 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/90, o qual prevê modalidade de crime contra as relações de consumo, devidamente complementado pelo disposto no artigo 18, § 6º, e respectivos incisos, do CDC. É justamente a interpretação desses artigos em especial, no que consistem os produtos impróprios ao consumo a ensejar reprimenda penal, o objeto deste estudo. A discussão gira em torno do entendimento de que os produtos impróprios para o consumo seriam apenas aqueles que pudessem ser prejudiciais à saúde do consumidor, o que, de certo modo, descriminaliza o comércio de produtos falsificados no Brasil, a exemplo de roupas, DVDs e outros do gênero. De qualquer forma, como veremos a seguir, os produtos falsificados ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, embora possam não causar, em tese, malefícios a saúde humana, são produtos revestidos de vício que podem lesar ou produzir risco de lesão à incolumidade econômica do consumidor, já que o bem jurídico tutelado não é a saúde pública, mas a relação de consumo. Essa nova ótica do direito penal do consumidor, sob enfoque da periculosidade típica, está completamente paramentada de tipicidade, também na dimensão material ou substantiva, vez 107
que o risco intolerável à incolumidade econômica do consumidor revela-se como uma das facetas do princípio da ofensividade, a ser estudada ao longo deste trabalho. Outrossim, percebe-se que a celeuma é de extrema importância, inclusive para a ordem econômica do país, pois, a prevalecer a tese restritiva, ou seja, de que impróprio ao consumo, na esfera penal, seriam apenas os produtos que possam causar males à saúde humana, estar-se-ia fomentando um comércio ilegal, paralelo e clandestino ao mercado, prejudicando-se sobremaneira empresários e diversos setores da economia, além de comprometer as finanças públicas pelo estímulo à sonegação fiscal. Reza o artigo 7º, da Lei n. 8.137/90: Constitui crime contra as relações de consumo: IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo; [...]
Como visto, em complemento à norma penal em branco, temos o disposto no artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor: Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. §6º. São impróprios ao uso e consumo: I- os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos; II- os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação; III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.
A polêmica diz respeito à interpretação desses dispositivos em conjunto, mormente quanto à definição do que seriam 108
produtos impróprios ao consumo, apesar da clareza da norma. Existem decisões judiciais exarando entendimento que impróprio ao consumo seriam tão somente aqueles produtos que, de alguma forma, possam causar malefícios à saúde do consumidor, restando de fora desse rol os produtos falsificados, em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação e que por qualquer motivo se revelem inadequados ao fim a que se destinam, a exemplo de roupas, calçados, etc. Ad argumentandum tantum, não coadumos com o entendimento perfilado, pois a legislação consumerista distingue a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço da responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Na primeira hipótese, prevista nos arts. 14 a 17, da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), a tutela do Estado visa proteger a saúde física e mental do consumidor, ou melhor, protege o consumidor do produto defeituoso, qual seja, aquele que pode causar males a sua saúde, como os alimentos estragados. Por outro lado, a responsabilidade por vício do produto ou do serviço tutela a incolumidade econômica do consumidor, posta em risco por produto viciado, conforme se depreende da leitura dos arts. 18 a 25, da norma especial. Destarte, produto defeituoso é aquele que não apresenta as condições de segurança que dele se espera, como no caso de produtos perecíveis, enquanto produto viciado não coloca em risco a saúde física ou mental do consumidor, mas se mostra inadequado aos fins a que se destina, lesando ou produzindo riscos de lesão à incolumidade econômica de seu destinatário final: Diferença entre FATO do produto e serviço e VÍCIO do produto e serviço. Se for à loja de eletrodomésticos e comprar aparelho de som em que uma das caixas não funciona ou funciona mal, há vício de adequação do produto, gerando responsabilidade por vícios (arts. 18 a 25). Aqui, o prejuízo é intrínseco, estando o bem somente em desconformidade com o fim a que se destina. Entretanto, se este mesmo aparelho de som, por exemplo, em decorrência de um curto-circuito, pega fogo e causa danos às pessoas, tem-se acidente de consumo, gerando responsabilidade pelo fato (no caso, como se trata de aparelho de som,
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a responsabilidade é pelo fato do produto – arts. 12 e 13). Nesta hipótese, o prejuízo é extrínseco ao bem, ou seja, não há uma limitação da inadequação do produto em si, mas uma inadequação que gera danos além do produto. Assim, a responsabilidade pelo fato centraliza suas atenções na garantia da incolumidade físico-psíquica do consumidor, protegendo sua saúde e segurança. Já a responsabilidade por vício busca garantir a incolumidade econômica do consumidor. (GARCIA, 2010, p. 69)
Portanto, a prevalecer o posicionamento de que apenas os produtos ou serviços que possam causar danos a saúde seriam impróprios ao consumo, os produtos viciados que se diferem de produtos defeituosos não serão mais considerados impróprios para o consumo, ao menos na esfera criminal, fragilizando a tutela do Poder Público, sobretudo quanto à incolumidade econômica do consumidor, objeto jurídico assegurado pela norma penal. Como se observa no exemplo citado, um mesmo produto, como aparelho de som, pode apresentar tanto vício quanto defeito, tornando evidente a necessidade de tutela penal sobre os riscos da mercadoria posta à venda nas condições previstas no §6º, incisos I, II, III, do artigo 18, da Lei 8.078/90, isto é, ser imprópria ao consumo. Trata-se de crime formal e de perigo abstrato, o qual dispensa a comprovação de perigo real ou dano efetivo ao consumidor, contentando-se com a mera aptidão, ou potencialidade, para esse desiderato: TJRS: O tipo penal previsto no art. 7º, inciso IX, da lei 8.137/90 constitui norma penal em branco, o que significa dizer que o seu sentido deve ser complementado por norma de igual instância legislativa. Para tanto, dispõe o art. 18, §6º, II, do Código de Defesa do Consumidor que são impróprios para o consumo os produtos deteriorados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos, ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação. Daí infere-se que esse crime é de perigo presumido, assim para sua caracterização, exige-se apenas que o agente tenha em seu estabelecimento ou venda produtos nessas condições. (Ap. 70010777530, 4ª C., rel. José Eugênio Tedesco, 14.04.2005, m.v.)
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CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO – ART. 7º, INCISO IX, DA LEI 8.137/90 – PRODUTO IMPRÓPRIO PARA CONSUMO – CRIME FORMAL E DE PERIGO – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – ABSOLVIÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – 1- Para caracterização do tipo penal do art. 7º, inciso IX da Lei 8.137/90 basta simples exposição à venda de produto em condições impróprias ao consumo para configurar o delito, por se tratar de crime formal e de perigo abstrato, o qual se consuma com a simples ação do agente. 2Comprovadas autoria e materialidade do delito, impõe-se a condenação. Apelo desprovido. (TJGO – ACr 200895949105 – 1ª C.Crim. – Rel. Des. Ivo Favaro – DJe 07.07.2010 – p. 117)
De sorte, interessante transcrever recente acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, reconhecendose a tipicidade de conduta responsável pelo vício de produto, portanto impróprio ao consumo, no qual o réu foi responsabilizado pelo comércio de moletons falsificados, colocando em risco a incolumidade econômica do consumidor: TJPR. APELAÇÃO CRIME N.º 394760-0, DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA 4.ª VARA CRIMINAL Apelante: EDEGAR BARBOSA Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ Relator: Desembargador MIGUEL KFOURI NETO APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. EXPOSIÇÃO PARA VENDA DE PRODUTO IMPRÓPRIO PARA O CONSUMO. MOLETONS FALSIFICADOS (LEI N.º 8.137/90, ART. 7º, IX). CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (ART. 18, § 6.º, II). MATERIALIDADE FIRMADA PELA PROVA PERICIAL. ALEGAÇÃO DE DESCONhECIMENTO DA FALSIFICAÇÃO. INCONSISTÊNCIA. DELITO CONFIGURADO. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
Deveras, segue trecho do voto do eminente relator desse processo, Desembargador Edegar Barbosa, pertinente ao tema: Finalmente, também não colhe êxito a alegação de que os produtos não representavam risco para o consumidor e não eram impróprios para o uso, pois o Código de Defesa do Consumidor, conforme já assentado, considera impróprio para o consumo o produto falsificado, como é o caso apurado nos autos. Trata-se de crime de perigo presumido, não se exigindo dano efetivo ao fato [...] face do exposto, define-se o voto pelo desprovimento da apelação, com a manutenção integral da r.
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sentença recorrida. III - DISPOSITIVO ACORDAM os Desembargadores integrantes da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em negar provimento à apelação, nos termos do voto do Relator. Participaram do julgamento o Desembargador LÍDIO JOSÉ ROTOLI DE MACEDO - Presidente, com voto - e o Juiz Convocado JOSÉ LAURINDO DE SOUZA NETTO. Curitiba, 22 de março de 2007 [...].
Os nossos Tribunais reconhecem a necessidade da tutela penal da incolumidade econômica do consumidor, salientando que o tipo em análise não tem como finalidade específica a salvaguarda da saúde pública. TACRIM – SP (extinto Tribunal de Alçada Criminal, absorvido pelo Tribunal de Justiça): “desnecessário que os produtos sejam considerados inadequados à saúde, pois o bem jurídico protegido é a relação de consumo e não a saúde pública” (Ap. 1277401-7, 8ª C., rel. René Nunes, 18.10.2001, v.u.).
Em exaustiva pesquisa jurisprudencial, cuja divergência mais expressiva diz respeito à necessidade de laudo técnico para se atestar que o produto é impróprio ao consumo, posição invocada por Guilherme de Souza Nucci, que, no entanto, destoa do entendimento pacificado no C. Superior Tribunal de Justiça, seja o produto viciado ou defeituoso, o certo é que nas duas modalidades de ilícito, vício ou defeito, o crime contra as relações de consumo se faz presente. A partir daí, nos deparamos com um caso bem peculiar, que possivelmente servirá de exemplo da potencialidade do produto viciado causar danos concretos ao consumidor, deixando a esfera de risco não tolerado pela norma. Com isso, os vícios de produto, embora com menor gravidade e intensidade, podem causar danos concretos ao consumidor, merecendo, exime de dúvidas, a tutela penal, como defendido neste trabalho. Tratase da venda de ração para cães, que causou a morte de diversos animais de estimação. Embora não traga riscos à saúde humana, certamente o produto, in casu, revela-se impróprio ao consumo, sendo patente a lesão causada à incolumidade econômica do 112
consumidor, lembrando que semoventes são destituídos de personalidade jurídica e, logo, não são considerados “pessoa” para o Direito. CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E RELAÇÕES DE CONSUMO – RAÇÃO PARA CÃES IMPRÓPRIA PARA CONSUMO – MORTES – PERÍCIAS E DEPOIMENTOS MÉDICOS – TIPICIDADE – Crime contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo – Lei nº 8.137/90 – Pretensão punitiva estatal acolhida em parte no Juízo de origem – Recurso do Ministério Público e dos acusados: o primeiro, pleiteando a condenação dos acusados também quanto ao delito com relação ao qual os mesmos foram absolvidos; os últimos, pugnando pela absolvição quanto ao crime que resultou em sua condenação – Provimento do recurso interposto pelo parquet e improvimento do apelo defensivo. Não é frágil, mas, ao contrário, sólido e convincente o conjunto probatório constituído de provas periciais e depoimentos prestados por médicos especialistas de medicina veterinária, positivando as condições impróprias ao consumo de ração canina contendo alto nível de toxinas, causando a morte de uma infinidade de cães, adequando-se, o fato apurado, ao tipo penal previsto no inciso IX do art. 7º da Lei n. 8.137/90. É induvidosa, igualmente, a configuração do ilícito penal do inciso II do art. 7º do citado diploma legal se a embalagem da mercadoria vendida (ou exposta à venda) apresentase com padrões em desacordo com as prescrições legais. A responsabilidade jurídico-penal com relação aos fatos delituosos apurados é de ambos os sócios (aliás, os únicos), da empresa distribuidora do produto, por ser um deles o responsável técnico pela supervisão na fabricação do produto, acumulando a função de gerente da empresa fabricante do produto, enquanto ao outro sócio competia a gerência e administração da empresa distribuidora do produto impróprio para o consumo. Improvimento dos apelos defensivos e provimento do recurso do Ministério Público. (TJRJ – ACrim. 985/03 – 2ª C.Crim. – Relª Desª Telma Musse Diuana – DJRJ 07.04.2004 – p. 384)
O vício é, a priori, e com toda a certeza, menos grave do que o defeito, como produto impróprio ao consumo, pois atinge a incolumidade econômica, e não a saúde física ou mental do consumidor, cabendo, portanto, ao Estado-juiz, em observância ao due process of law, aplicar sanção proporcional ao ilícito, além da possibilidade de desclassificação para a modalidade culposa, com redução de 1/3 (um terço) da pena de detenção ou a de multa à quinta parte, se na instrução restar apurado a culpa e 113
não o dolo, a míngua de benefícios previstos em lei daí advindos, nos termos do § único, do art. 7º, da Lei n. 8.137/90, sem citar a possibilidade de apenamento diminuto por meio de multa isolada. Conquanto estejamos a tratar de crime de perigo abstrato presumido, sem resultado naturalístico, a conduta típica não se revela despida de tipicidade material, visto que nas infrações dessa natureza encontra-se consubstanciada na potencialidade ou aptidão da conduta produzir risco real ou dano ao bem jurídico, inadmissível pela comunidade que a suporta. Em uma sociedade de riscos, os tipos de perigo abstrato estão direcionados à salvaguarda de valores conformados com o modelo de Estado. Assim, no Estado Democrático de Direito o valor supremo é a dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as normas devem estar lastreadas a condutas que violem bens jurídicos, vistos estes como interesses decorrentes dessa própria dignidade, tutelada também por princípios constitucionais, com destaque para a fragmentariedade, subsidiariedade, lesividade e proporcionalidade. Nesse ponto nefrálgico da discussão, Bottini (2010) aponta a impossibilidade da presunção de periculosidade nos tipos de precaução, pois importaria na inversão do ônus da prova e a consequente mitigação do princípio da presunção de não culpabilidade. Discordarmos desse ponto de vista. Os direitos fundamentais que estariam a impedir os tipos de precaução no Estado Democrático de Direito não são unívocos, quer dizer, não devem ser compreendidos sob um viés unidirecional, como se devessem tutelar apenas os direitos do autor do fato. Se, por um lado, o direito de defesa merece a tutela do Estado, o direito de proteção jurídica junto ao Estado não pode ser abandonado, sob pena de lesão a direitos fundamentais da sociedade organizada, dos quais somos todos integrantes. Defendemos, a toda evidência, o espectro bidirecional dos direitos fundamentais, pois limitam o jus puniendi do Estado através de 114
um abstencionismo de contenção, mas devem servir de instrumento de tutela, também, do direito à proteção jurídica, que exige o atuar positivo do poder público: [...] deve distinguir-se entre direito à proteção jurídica e direito de defesa (Abwehrrecht) perante o Estado. O direito à proteção jurídica é uma pretensão que qualquer titular de um direito fundamental pode exigir do Estado que o <<proteja>> perante agressões de outros cidadãos; um direito fundamental de defesa é um direito cujo conteúdo se traduz fundamentalmente em exigir que o próprio Estado (poderes públicos) se abstenha de intervenções coactivas na esfera jurídica do particular. Quer dizer: nos direitos constitucionais que apontam para a necessidade de o Estado conformar a ordem jurídica (exemplo: tipificando e punindo como crime as ofensas à vida, ou protegendo os cidadãos contra indústrias poluentes), de modo a evitar a violação dos direitos dos particulares por parte de outros sujeitos privados. Nos direitos fundamentais de defesa, o cidadão pretende uma abstenção dos poderes públicos. (CANOTILhO, 2008, p. 76-77)
Os direitos fundamentais são multifuncionais, pois devem atuar tanto nas relações jurídicas públicas (Estado-cidadão), como nas relações jurídicas privadas (cidadão-cidadão), revelando eficácia horizontal. Com efeito, nos crimes de perigo abstrato vislumbramos o fenômeno da colisão de direitos fundamentais, pois, se de um lado temos a presunção de não culpabilidade do autor, no outro transparece a ordem pública e a paz social, componentes da proteção jurídica, portanto, direito fundamental da coletividade. Partindo-se da premissa de inexistência de direitos fundamentais absolutos, sob pena de inviabilização do sistema constitucional que os revela, o juízo de ponderação ou de sopesamento nos parece autorizar a adoção dos tipos de perigo abstrato, mediante presunção juris tantum em desfavor do autor, que ao praticar determinadas condutas assume o risco da produção de resultados que não podem ser suportados pela sociedade. O porte de arma de fogo, a condução de veículo sob influência de álcool, dentre tantos outros comportamentos, não prescindem da 115
intervenção preventiva calcada na intolerância do risco. A nosso sentir, o banimento dos tipos penais dessa espécie pode fomentar abalos sociais, mesmo porque as outras esferas do direito se mostram ineficientes para conter os riscos que nem mesmo o Direito Penal conseguiu. Prova disso são as mortes no trânsito causadas por motoristas embriagados ou sem habilitação, além de disparos acidentais de armas de fogo que vitimam diuturnamente crianças e pessoas inocentes por todo o país, demonstrando que, apesar da precaução jurídica, a realidade é outra, da qual infelizmente muitos se distanciam, inclusive quanto às infrações contra as relações de consumo, que podem, também, comprometer a ordem econômica. O que se busca nos tipos de precaução é acautelar o meio social quanto a riscos, e para tanto, Bottini (2010, p. 121) aduz que a norma penal se revela como elemento de antecipação de tutela, de forma a prevenir o dano, incriminando-se, por conseguinte, a conduta, e não o resultado: Nestes contextos, o que importa é evitar ou controlar as condutas e não reprimir os resultados. Não interessa ao gestor de riscos atuar após a ocorrência da lesão, mas antecipar-se a ela, diante da magnitude dos danos possíveis. Nestas circunstâncias, a norma penal surge como elemento de antecipação da tutela, sob uma perspectiva que acentua o papel preventivo do direito. Para isso, o tipo penal deve estar dirigido à conduta e não ao resultado. A atividade, em si, passa a ser o núcleo do injusto. A insegurança que acompanha estas condutas e a extensão da ameaça levam o legislador a optar pela norma de prevenção, por meio de descrições típicas que não reconheçam o resultado como elemento integrante do injusto, ou seja pelos tipos penais de perigo abstrato.
Não concordamos com a ideia de antecipação da tutela preconizada, qual seja, de que os crimes dessa espécie não são crimes de lesão. Para haver crime é preciso existir ofensa a bens jurídicos, no entanto, o princípio da ofensividade ou da lesividade no Direito Penal, segundo José Francisco de Faria Costa, pode ser compreendido em três níveis: cuidado-de-perigo, pôr-em-perigo e 116
dano/perigo. No primeiro nível estariam os crimes de perigo abstrato, no segundo os de perigo concreto e, por último, os de dano. A tipicidade material nos crimes de perigo abstrato ou presumido, como já explicitado, encontra-se na potencialidade ou aptidão da conduta em produzir um perigo real ou dano a bens jurídicos protegidos pelo ordenamento e, caso inexista, temos um fato atípico. A exemplo, o porte de arma de fogo municiada ou desmuniciada, conforme entendimento prevalente no STF, é crime, todavia, a arma deve estar apta a efetuar disparos, sob pena de atipicidade. Resta evidente a necessidade de atestar sua potencialidade lesiva, mas não o perigo real ou dano. Com isso, o porte de arma inapta é formalmente típico, no entanto, destituído de tipicidade no plano material. O tipo verifica-se pelo risco da conduta, ou melhor, é preciso que a ação ou omissão crie um perigo potencial para o bem jurídico tutelado pela norma, mas que não necessita ser concreto. Nessa ótica, merece destaque o trecho do acórdão 70032030116 – 3ª C.Crim. – Rel. Des. Odone Sanguiné – J. 10.06.2010, do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual se define, de forma precisa e com inigualável domínio, os crimes de perigo abstrato como sendo crimes de lesão: APELAÇÃO CRIMINAL – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO – ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03 – 1- CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO CONFIGURADO [...] O conceito de lesividade ou ofensividade nos crimes de perigo abstrato difere dos crimes de lesão a bens jurídicos individuais. Assim, a lesão deve ser compreendida como um efeito sobre o próprio bem jurídico (desvalor do resultado) e não sobre um elemento distinto em que aquele ‘toma corpo’, isto é, sobre o objeto da ação. Deve tratar-se de uma lesão efetiva, isto é, verificável no próprio sistema social. Não é correta a idéia de que os bens jurídico-penais supraindividuais, ao não ter objeto material como substrato, não podem ser lesionados. Esta postura não percebe que existe sim um objeto do delito, a partir do qual é factível valorar se o bem jurídico foi afetado. A necessária diferenciação entre as infrações administrativas e penais obriga a comprovar, em cada caso concreto, que ‘ex post’ o bem jurídico penal resultou afetado. Não é possível fundamentar um injusto penal no mero descumprimento de uma normativa administrativa, nem sequer na realização da conduta típica que
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não suponha, no caso concreto, um risco para o bem jurídicopenal protegido. A lesividade é o fundamento da antijuridicidade material e sua ocorrência não pode limitar-se aos crimes de resultado. O resultado em sentido jurídico - Lesividade deve ocorrer sempre e se concebe como afetação ‘ex post’ do bem jurídico-penal protegido, seja individual ou supraindividual. Para conciliar o crime de perigo abstrato com o princípio da lesividade, é necessário exigir que fique comprovada a perigosidade objetiva ‘ex ante’ da conduta, no momento de sua execução, isto é, a sua aptidão ou idoneidade objetiva de ação perigosa no sentido de possibilidade de lesionar o bem jurídico embora efetivamente não chegue a lesionar-se ou colocar-se em perigo concreto [...] (destaque inserido).
Como se viu, a lesividade ou ofensividade é o fundamento da ilicitude material e sua existência não se restringe aos crimes de resultado, sendo suficiente a comprovação da perigosidade objetiva, quer dizer, da aptidão ou potencialidade da ação para lesionar o bem jurídico, embora não o lesione e nem o coloque em perigo real. Por tais argumentos, a descriminalização discutida pode fomentar a proliferação da prática dessas infrações, colocandose em risco não só a incolumidade econômica do consumidor, mas também, pela via transversa, a própria ordem econômica (CF, art. 170), desmotivando parcela do empresariado nacional, que observa a lei e recolhe impostos, a prosseguir com suas atividades econômicas, dada as facilidades que os autores terão em comercializar tais produtos, sendo, nesse pensar, insuficiente a atuação do Poder de Polícia de órgãos administrativos para conter essas atividades. Ademais, é preciso ainda lembrar que o consumidor é presumidamente vulnerável, presunção jure et de juris, absoluta, inadmitindo-se prova em contrário, pois decorrente de lei (CDC, inc. I, do art. 4º). Nesse sentido, é vulnerável no sentido técnico, jurídico e econômico, seja por desconhecer as especificidades dos produtos que adquire, seja por não conhecer seus direitos a contento e, em certos casos, não todos, dada a uma disparidade econômica. Trata-se de instituto de direito material, em nada se 118
confundindo com a figura do hipossuficiente, também prevista no CDC, em seu art. 6º, inciso VIII, que é relativa a instituto processual, onde o Estado-juiz, no caso concreto, inverte o ônus da prova para facilitar a defesa, pelo consumidor, de seus direitos em juízo. Portanto, levando-se em conta essa característica peculiar, a não incidência do tipo nos casos de responsabilidade pelo vício do produto, vulnera bastante o consumidor, que deixará de contar com a proteção do Estado na esfera penal, em total descompasso com a própria mens legis, nos termos do artigo 5º, da LICC. Aliás, quando o legislador, no § 6º, incisos I, II, e III, do CDC, definiu o que seriam os produtos impróprios ao consumo, complemento à norma penal em branco, e elemento normativo do tipo previsto no artigo 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/90, não fez distinção entre as condutas que poderiam causar riscos de dano à saúde física ou mental do consumidor daquelas que poderiam atingir sua incolumidade econômica, motivo pelo qual, certamente, é inafastável a regra basilar de interpretação jurídica emanada do magistério de Carlos de Carvalho (apud FRANÇA, 1997, p. 27/28): “Quando a lei não fez distinção o intérprete não deve fazê-lo, cumprindo entender geralmente toda a lei geral”. Por outras palavras: onde o legislador não faz distinção não cabe ao intérprete fazê-lo, sob pena de desbordar dos limites da própria lei, sem se perder de vista o caráter restritivo da norma penal. Do contrário, se admitirmos que o intérprete possa excepcionar o que a regra não excepcionou, possivelmente a insegurança jurídica e seus desdobramentos malfazejos poderão comprometer toda a eficácia do sistema normativo vigente. Os delitos de perigo abstrato contra as relações de consumo são indispensáveis à sociedade de risco, ressaltando que sua adoção em nada fere os princípios basilares da ofensividade, fragmentariedade, subsidiariedade e proporcionalidade, pois são delitos de lesão (cuidado de perigo), e a incolumidade econômica do consumidor exige tutela penal (bem jurídico), inclusive para a 119
ordem econômica, revelando-se ineficientes os demais ramos do direito para sua salvaguarda, cuja reprimenda, como explicitado, deverá ser necessária e suficiente à satisfação do juízo de censurabilidade social.
referÊnciAs
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