Luciana Andrea Rosário Ribeiro* A obrigAtóriA intervenção do Ministério Público nAs Ações eM que se discute A ocorrênciA ou não dos PressuPostos constitucionAis AutorizAdores dA desAProPriAção ThE MANDATORY INTERvENTION OF ThE PROsEcUTORs IN shAREs ThAT DIscUssEs ThE OccURRENcE OR NOT OF cONsTITUTIONAL AssUMPTIONs AUThORIzERs ExPROPRIATION LA INTERvENcIóN OBLIGATORIA DEL MINIsTERIO PúBLIcO EN LAs AccIONEs EN qUE sE DIscUTE LA OcURRENcIA O NO DE LOs sUPUEsTOs cONsTITUcIONALEs qUE AUTORIzAN LA ExPROPIAcIóN
Resumo: O tema do presente artigo é a obrigatória intervenção do Ministério Público nas ações em que se discute a ocorrência ou não dos pressupostos constitucionais autorizadores do procedimento expropriatório. O direito de propriedade, tutelado constitucionalmente, cede espaço, com fulcro no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, para a satisfação de interesses coletivos por meio da desapropriação. O procedimento expropriatório, pois, deve se encontrar absolutamente coadunado aos pressupostos constitucionais e legais para que possa ser considerado legítimo. Por meio de ação direta, pode-se discutir a efetiva ocorrência dos requisitos autorizadores da desapropriação, com a participação do Parquet, agindo como duplo garantidor: salvaguardando o interesse público, bem como o direito fundamental de propriedade. Abstract: The theme of this article is the mandatory intervention in the actions of prosecutors to discuss the presence or absence of constitutional assumptions authorizers of the expropriation. The property right, * Especialista em Direito do Estado pela Universidade Baiana de Direito, em parceria com a Escola de Magistrados da Bahia. Graduada em Direito pela UFBA. Analista Judiciário do TJ-PI.
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constitutionally protected, give away, with focus on the principle of supremacy of public interest over private, to the satisfaction of collective interests by means of expropriation. The expropriation procedure, therefore, must lie absolutely assumptions conform with constitutional and legal order to be considered legitimate. Through direct action, we can discuss the actual occurrence of the requirements of authorizers expropriation, with the participation of the Parquet, double acting as guarantor: safeguarding the public interest, as well as the fundamental right to property. Resumen: El tema de este artículo es la intervención obligatoria del Ministerio Público en las acciones en las que se discute la ocurrencia o no de los supuestos constitucionales que autorizan el procedimiento de expropiación. El derecho de propiedad, protegido por la Constitución, da paso, con punto de apoyo en el principio de la supremacía del interés público sobre el privado, a la satisfacción de los intereses colectivos por medio de la expropiación. Por tanto, el procedimiento de expropiación debe cumplir los supuestos constitucionales y legales para ser considerado legítimo. Mediante la acción directa, podemos hablar de la existencia real de las disposiciones que autorizan la expropiación, con la participación del Parquet, actuando con doble efecto de salvaguardar el interés público, así como el derecho fundamental de propiedad. Palavras-chaves: Direito de propriedade, expropriação, Parquet. Keywords: Property right, expropriation, Parquet. Palabras clave: Derecho de propiedad, expropiación, Parquet.
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introdução
O ordenamento jurídico pátrio não admite o poder sem peias do expropriante. A alienação unilateral decorrente da desapropriação trata-se de medida excepcional, somente se legitimando nas hipóteses taxativamente previstas e em nome de um interesse de ordem pública. O Poder Público encontra-se adstrito aos casos expressamente permitidos pela carta Maior, não podendo, ao seu alvedrio, criar novas hipóteses de desapropriação, nem desvirtuar os seus pressupostos. Este trabalho, pois, tem o escopo de analisar a função do Ministério Público – enquanto agente de transformação social que é – nas ações diretas em que se pretenda discutir a ocorrência ou não dos pressupostos constitucionais autorizadores do procedimento expropriatório. Para o alcance de tal fito, imprescindível a ponderação de específicas questões acerca da desapropriação. sem a pretensão de exaurir as minudências de tão próspero tema, mas com a certeza de que o vertente capítulo torna-se absolutamente necessário para a compreensão do ponto central deste estudo, passa-se ao exame dos fundamentos e pressupostos da desapropriação. Outrossim, trata-se, ao final, da atuação do Ministério Público enquanto duplo garantidor. Ao mesmo tempo em que salvaguarda o interesse público, na hipótese de efetiva ocorrência dos pressupostos autorizadores da desapropriação, tutela o direito fundamental de propriedade, de topografia constitucional, no caso da eventual descaracterização dos mesmos.
considerAções ProPedêuticAs O direito de propriedade se confunde com a própria evolução da humanidade. Em remota fase da sua história, o 73
homem deslocava-se em bandos, sem fixar-se em um local específico. Nesse momento, a satisfação dos interesses do grupo baseava-se em trocas livres e espontâneas, não existindo o chamado excedente econômico, tampouco, por outro lado, a escassez de bens. com a descoberta de técnicas destinadas ao plantio e à criação de semoventes, houve a necessidade de abandono da vida nômade, passando a economia, assim, a fundamentar-se na distribuição da colheita entre os integrantes do grupo. sucede, porém, que o crescimento da produção de bens acabou por resultar em uma parcela não consumida imediatamente pelos membros da comunidade. A partir dessa ocasião, em que se configurou a apropriação do excedente por alguns indivíduos, estabelece-se o direito de propriedade privada. Inicialmente estigmatizada como direito sagrado e inviolável, a propriedade sofreu transformações profundas no transcorrer do tempo. Paulatinamente, passou de uma feição coletiva para um caráter individualista, culminando nos dias hodiernos, nos quais tal direito, malgrado se encontre dotado de traços essencialmente individuais, não mais é tutelado de forma absoluta. De um lado, a atual constituição Federal pátria eleva o direito de propriedade à alçada de direito fundamental, conferindo-lhe, pois, uma justificada relevância jurídica. De outra banda, a mesma carta Maior trata de afastar qualquer interpretação que considere o mencionado direito como ilimitado, afinal, dentre outras condicionantes, deve a propriedade ser utilizada em consonância com a sua função social. Pugna o atual sistema jurídico, revise-se, que a propriedade não seja compreendida sob uma ótica egoística, devendo servir não apenas a seu titular, mas também ao bem-estar da coletividade. Assim é que, em contrapartida à garantia constitucional do direito de propriedade, o Estado contemporâneo – com o fito de satisfazer as exigências e os interesses coletivos, bem como garantir o cumprimento da função social da propriedade – imiscui-se nas relações privadas, intervindo de distintas maneiras. Nesse sentido, é cediço que a desapropriação – procedimento pelo qual o Poder Público, ou seus delegados, com fulcro 74
nos requisitos constitucionais, transfere para si a propriedade de terceiro – consiste na mais draconiana dessas intervenções. Não é recente o fenômeno da limitação do direito de propriedade. Já entre os romanos, a desapropriação, obviamente sem apresentar todas as características que a definem em tempos atuais, era o instrumento utilizado para exigir dos proprietários as áreas indispensáveis às necessidades de interesse geral: construção de aquedutos e estabelecimento de restrições em benefício dos vizinhos são exemplos recorrentes para a época. O procedimento expropriatório, como limitador do direito de propriedade, encontra-se irrefutavelmente adstrito aos pressupostos estabelecidos na carta Magna. À guisa de introdução temática, são de obrigatória referência as palavras de Eurico sodré (1955, p. 16): A tradição humana, através de todos os povos, reconhece êsse poder do Estado de utilizar, em prol do bem comum, coisas pertencentes aos particulares. A fim, porém, de evitar o arbítrio no seu exercício, antagônico à ordem necessária nas relações entre os vários titulares de direitos, as leis modernas – numa conquista progressiva de perfeição – especificam os casos, estatuem o processo e condições dêsse apossamento pelo Estado. (sic)
De igual modo, precisa é a lição de Miguel seabra Fagundes (1942, p. 17): [...] o direito de desapropriar constitue, do módo por que se apresenta hoje em dia, rigorosamente delimitado pelo direito positivo, antes uma garantia assegurada ao direito de propriedade do que uma ameaça á sua integridade. condicionando a subsistencia da propriedade particular aos supremos interesses coletivos se lhe criam restrições, mas, por outro lado, pondo-se limite á ação desapropriadora do Estado, se lhe assegura relativa intangibilidade. (sic)
com efeito, na medida em que subordina o poder estatal de intervir no domínio privado, por meio da desapropriação, às finalidades e pressupostos que enumera exaustivamente, a carta Maior acaba por vedar o exercício desse procedimento em 75
quaisquer outras hipóteses, o que, decerto, reforça a garantia da propriedade. Assim é que a desapropriação somente se reveste de legitimidade quando presentes os pressupostos constitucionais e legais que a autorizam. concretizada, pois, a desapropriação, deve o administrador atribuir ao bem recém adquirido a finalidade que justificou o procedimento, ou, em última análise, qualquer finalidade pública, sob pena de incorrer em tredestinação ilícita. FundAMentos e PressuPostos do ProcediMento eXProPriAtório Estabelecer os fundamentos do procedimento de transferência compulsória da propriedade, consoante entendimento de José carlos de Moraes salles (2009, p. 75), é definir a “base, o alicerce, que justifica a expropriação”. No particular, a tarefa de identificação das justificativas da desapropriação reveste-se de relevante importância, notadamente quando se pretende examinar, em linhas futuras, a obrigatória intervenção do Ministério Público na hipótese de ausência das mesmas. É incontroverso que a paz social somente é alcançada mediante a conciliação de interesses. Nesse sentido, muitas vezes, as pretensões estritamente particulares devem se submeter ao interesse público em benefício da coletividade. Tal compreensão representa, à vol d’oiseau, o fundamento da desapropriação. Durante muitos anos, a história mundial testemunhou a configuração e a manutenção de um modelo de Estado liberal e abstencionista, em resposta ao longo período de Absolutismo Monárquico. Tendo como marco paradigmático a Revolução Francesa de 1789, fomentava-se a tutela dos direitos de ordem individual por meio desse novo formato de Estado. O globalmente conhecido preceito “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que inspirou o movimento iluminista francês, também serviu de esteio para a “positivação de direitos e garantias aptos à salvaguarda dos indivíduos quanto à intromissão ou arbítrio praticados pelo Estado”, de acordo com lição transmitida por 76
Manoel Jorge e silva Neto (2006, p. 39). sucede, todavia, que a opção adotada de não intervenção do Estado na economia não ocorreu ad infinitum. O exacerbado individualismo, amplamente difundido no epigrafado momento histórico, provocou inúmeras reações nos âmbitos político, social e econômico, tornando necessário o abandono da posição marcadamente abstencionista do Estado. As desigualdades, principalmente sociais, provocadas pelo extremo liberalismo econômico da época, forçaram os Estados a buscarem uma postura mais intervencionista no domínio econômico, com o fito de tornar a sociedade mais igualitária. Assim, ante a mudança do papel desempenhado pelo Estado, salienta, com razão, Maria sylvia zanella di Pietro (2009, p. 65) que “o Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo”. Ampliou-se, consideravelmente, a assunção de atividades específicas pelo Estado, com o intuito de atender ao interesse público e às necessidades coletivas em geral. Tal mudança de paradigma fez-se notar, com clareza, no âmbito do direito de propriedade, que passou a sofrer mais intervenção do Poder Público em nome do bem-estar social. Nesse diapasão, insere-se o Parquet como órgão atento às transformações sociais, capaz de tutelar os interesses globais da coletividade, afinal, como vaticina hugo Nigro Mazzilli (2001, p. 36), “toda atuação do Ministério Público é finalística: sempre age em defesa de pessoas, ou de grupos de pessoas, ou de toda a sociedade”. Nesse momento, pois, começou-se a compreender, à semelhança do que ocorre em tempos hodiernos, que os interesses particulares devem se submeter aos públicos, quando em conflito com os mesmos. sempre pertinente é a compreensão de celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 58), que afirma, acerca da posição de superioridade em que se encontra o interesse público diante do particular:
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Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados.
Ao refletir acerca do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, José dos santos carvalho Filho (2009, p. 737) traz, com autoridade, valiosa contribuição para este artigo: No caso da intervenção na propriedade, o Estado age de forma vertical, ou seja, cria imposições que de alguma forma restringem o uso da propriedade pelo seu dominus. E o faz exatamente em função da supremacia que ostenta, relativamente aos interesses privados. quando o particular sofre a imposição interventiva do Estado em sua propriedade, sua reação natural é a de insatisfação, e isso porque seu interesse foi contrariado. Mas toda intervenção visa ao atendimento de uma situação de interesse público, e, sendo assim, há de justificar-se a atuação estatal, mesmo contrária ao interesse do particular.
De fato, a supremacia do interesse público sobre o privado representa o principal fundamento justificador da realização do procedimento expropriatório. Alguns autores, no entanto, acrescentam outros fundamentos, tais como a função social da propriedade (cARvALhO FILhO, 2009, p. 738) e a utilidade e necessidade públicas, bem como o interesse social (sALLEs, 2009, p. 77), que neste trabalho convencionou-se classificar como pressupostos. Antes de ingressar na análise dos pressupostos do procedimento expropriatório, é indispensável que se estabeleça uma premissa básica quanto à nomenclatura da questão. Isso porque alguns autores especializados, tais como celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 820) e hely Lopes Meirelles (2009, p. 615), tratam as situações de necessidade e utilidade públicas, bem assim de interesse social, como requisitos da desapropriação. O que importa anotar é que, denominando-as de requisitos ou de pressupostos, são a necessidade pública, a utilidade pública e o interesse social as hipóteses, em tese, caracterizadoras 78
do procedimento de transferência compulsória da propriedade, a teor do artigo 5º, inciso xxIv, e 184, da constituição Federal de 1988. Ademais, para o objetivo deste estudo, a nomenclatura adotada não se faz relevante, mas sim a noção de que, sem a presença desses pressupostos, a desapropriação não pode ser considerada legítima. caberá, em ação adequada e oportuna, conforme demonstração posterior, a intervenção obrigatória do Ministério Público como duplo garantidor: fiscalizando a correta aplicação da constituição Federal, bem como tutelando o eventual interesse público envolvido no bem a ser desapropriado. Explica-se. sob as tenazes da prevenção, logo nas primeiras linhas deste artigo científico, alertou-se para a referência constitucional do direito de propriedade. Nesse momento, mais uma vez, o tema é trazido à baila. como é cediço, uma das funções precípuas do Parquet é zelar pela boa aplicação da lei, pela ordem jurídica e pelo Estado Democrático de Direito. Nesse passo, em ação oportuna, deve intervir o Ministério Público para que se garanta o direito de propriedade daquele que se viu obrigado a transferir o seu patrimônio, em função de um interesse público que deixou de existir, ou até mesmo nunca se fez presente. Isso porque, se o particular deve suportar o ônus da transferência de seu patrimônio, por outra face, o Estado possui a obrigação de, sob pena de se esvaziar de sentido jurídico o procedimento expropriatório, verificar, cum grano salis, a ocorrência ou não de seus pressupostos autorizadores. Em última análise, a ratio essendi Ministerial estaria, no momento de sua intervenção, no feito para garantir a correta aplicação da carta Maior, concretizada. Ratificando a sua condição de duplo garantidor, por outro lado, como frisado nas primícias dessa exposição, deve o Ministério Público intervir, em razão do interesse público envolvido na lide, a teor do artigo 82, inciso III, do código de Processo civil pátrio. Ultrapassado esse juízo prefacial acerca do fundamento da desapropriação e a sua consequente relação com a atuação Ministerial, deve-se examinar, conquanto em síntese, o conteúdo dos conceitos jurídicos mencionados anteriormente, quais sejam, utilidade e necessidade públicas e interesse social. É incontroverso 79
que eles são definidos por meio de normas infraconstitucionais, como demonstra José dos santos carvalho Filho (2009, p. 776), segundo o qual “as hipóteses de utilidade pública e as de interesse social serão ex vi legis, vale dizer, serão aquelas que as leis respectivas considerarem como ostentando um ou outro dos pressupostos constitucionais”. Pois bem. No âmbito da legislação ordinária atual, são definidos apenas os casos de utilidade pública e de interesse social. Em tempos pretéritos, quando da vigência do antigo código civil, previu-se, também, as hipóteses de necessidade pública. É o Decreto-lei n. 3.365/1941 que representa o diploma básico sobre o assunto. Foi este diploma legal que promoveu a fusão, em categoria única, dos casos de utilidade e necessidade públicas colacionados pela antiga codificação privada. Assim é que as hipóteses de necessidade pública passaram a fazer parte do gênero utilidade pública, a teor do artigo 5º, do Decreto-lei n. 3.365/1941. como parece frequente em relação ao tema desapropriação, tal aliança também não encontra unanimidade na melhor doutrina. Isso porque como, percucientemente, demonstra sérgio Ferraz (1972, p. 33/35), há quem entenda que é adequada a manutenção da excogitada tricotomia, assim como existem autores que pugnam pela inserção da necessidade pública no conceito da utilidade pública. A interpretação adotada por este artigo científico perpassa pela ideia de que a tripartição dos pressupostos da desapropriação revela-se pertinente, vez que as minudências trazidas para cada um deles ajuda a coibir exageros no procedimento, facilitando, inclusive, o seu controle. Isso não significa, todavia, que se nega a noção de que toda desapropriação necessária é, também, em última análise, útil. De fato, malgrado a carta Magna se refira a três pressupostos específicos e tal tripartição permita que se explicite mais adequadamente as hipóteses de expropriação, é de fácil percepção que o conceito de utilidade pública abrange o de necessidade pública. veja-se. A noção de utilidade pública relaciona-se com a ideia de conveniência, isto é, a transferência compulsória da propriedade revela-se proveitosa e propícia para o Poder Público, ou para aqueles que possuem competência para desapropriar. 80
A guisa de ilustração, podem-se citar alguns casos que ensejam a expropriação por utilidade pública, quais sejam: segurança nacional, defesa do Estado, obras de higiene e decoração, funcionamento dos meios de transporte coletivo, preservação e conservação de monumentos históricos e artísticos e criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves. Por sua vez, o conceito de necessidade pública revestese de caráter emergencial. As situações inadiáveis, que exigem a transferência do bem particular ao patrimônio estatal são consideradas hipóteses de necessidade pública. De simples constatação, pois a desapropriação baseada no pressuposto em tela, inevitavelmente, também é útil, afinal, demonstra ser conveniente para a Administração. Nesses termos, define, com o habitual acerto, José dos santos carvalho Filho (2009, p. 775): Ocorre a utilidade pública quando a transferência do bem se afigura conveniente para a Administração. Já a necessidade pública é aquela que decorre de situações de emergência, cuja solução exija a desapropriação do bem. Embora o texto constitucional se refira a ambas as expressões, o certo é que a noção de necessidade pública já está inserida na de utilidade pública. Esta é mais abrangente que aquela, de modo que se pode dizer que tudo que for necessário será fatalmente útil. A recíproca é que não é verdadeira: haverá desapropriações somente úteis, embora não necessárias.
O último dos pressupostos, o interesse social, destina-se a justificar a desapropriação nos casos relativos à melhoria da qualidade de vida das classes menos favorecidas, com o fito de distribuir riquezas e, por conseguinte, amenizar desigualdades. Regulamentado pela Lei 4.132/1962, o interesse social encontra-se intimamente ligado à função social da propriedade. Trata-se, por exemplo, das hipóteses de reforma agrária, de assentamento de colonos e de construção de casas populares, sempre em busca de um melhor aproveitamento da propriedade. Ao contrário do que ocorre nas desapropriações fundamentadas nos dois primeiros pressupostos, os bens expropriados, com fulcro no interesse social, segundo lição colacionada por 81
hely Lopes Meirelles (2009, p. 616), “não se destinam à Administração, ou a seus delegados, mas sim à coletividade ou, mesmo, a certos beneficiários que a lei credencia para recebê-los e utilizá-los convenientemente”. Doutrinariamente, portanto, continuou-se a definir os três pressupostos de forma específica e individual.
intervenção obrigAtóriA do Ministério Público De proêmio, urge colacionar o artigo 9º, do Decreto-lei n. 3.365/1941, o qual prescreve que “ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública”. É símile a previsão do artigo 20 do epigrafado diploma normativo, no sentido de que, ao contrário dos fins colimados pelo festejado princípio da economia processual, “a contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta”. Em linha de raciocínio mais acertada, em que pese a inegável autoridade dos que pensam contrariamente, interpreta-se o artigo 9º, do Decreto-lei n. 3.365/1941, como de acordo com os preceitos constitucionais, segundo os quais lesões ou ameaças a direitos, de quaisquer ordem, deverão ser apreciadas pelo Poder Judiciário, sendo defeso ao Legislativo aprovar texto normativo em sentido inverso. Isso porque a ocorrência ou não dos pressupostos constitucionais, já debatidos em linhas anteriores, pode ser verificada por meio de ação direta, a ser promovida antes, durante ou após a desapropriação. É nessa ação, e não na desapropriação – cuja celeridade ainda exige que se restrinja o seu mérito –, em que se defende a obrigatória intervenção do Ministério Público, a fim de salvaguardar o evidente interesse público que se faz presente nessa lide. Aliás, como notório, quod abundat non nocet, razão pela qual se traz a lume, nessa oportunidade, o artigo 82, inciso III, do código de Processo civil, segundo o qual deve, obrigatoriamente, 82
o Ministério Público intervir nos processos em que haja interesse público, decorrente, entre outros, da natureza da res in iudicium deducta. O procedimento expropriatório, pois, contrariamente à ação direta em que se discute a ocorrência ou não dos pressupostos autorizadores da desapropriação, limita-se à fixação do preço ou vícios do processo judicial, motivo pelo qual não encontra abrigo, neste estudo, a tese de intervenção obrigatória do Parquet na primeira hipótese. Não há, na própria ação de desapropriação, interesse público que justifique a intervenção da nobre Instituição, tendo os representantes judiciais da Fazenda Pública a função de defender os seus interesses. consoante norma constitucional amplamente comezinha, o Ministério Público é órgão do Estado, cujas funções perpassam pela tutela da ordem jurídica e do regime democrático. Nessa senda, ao conferir ao agente Ministerial tais atividades, a carta Maior prescreve comando autoexecutável, sendo prescindível, pois, corpo legislativo posterior para atribuir-lhe completa operatividade. Obviamente, a atuação Ministerial, assim como a judicial, limitar-se-á à apreciação da constitucionalidade ou não do ato declaratório de utilidade pública. Nesse cerne, a análise da conveniência e a oportunidade do procedimento expropriatório fica a cargo do Poder Público, sendo defeso ao Judiciário e ao Parquet a discussão quanto ao mérito administrativo. O Ministério Público, enquanto agente de transformação social, possui valores e princípios fundamentais à manutenção do Estado Democrático de Direito. Atua, nesse passo, objetivando a concretização dos valores mais caros da sociedade, sendo sua função precípua utilizar a ciência jurídica como instrumento de desenvolvimento da realidade social. Em última análise, ser agente de transformação social é atuar com o intuito de eliminar ou amenizar as injustiças sociais, mas também defender a ordem jurídica e o interesse público nas ações em que o mesmo se apresente.
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conclusão Diante das razões espraiadas alhures, algumas conclusões são extraídas, senão vejamos. Percebeu-se, no curso do vertente trabalho, que o direito de propriedade passou por profundas atualizações no transcorrer do tempo. Incabível, hodiernamente, a concepção de que se trata de um direito comunitário. Igualmente, merece rechaço o entendimento de que se trata de direito unicamente subjetivo, de natureza egoística. hoje, o direito de propriedade deve ser duplamente considerado: concomitantemente, deve servir aos anseios individuais do titular do domínio e servir às necessidades sociais. com fulcro em expressa disposição constitucional, a propriedade privada deve atender à sua função social, revelando-se indispensável que o referido direito seja exercido em conformidade com os ideais de solidariedade e justiça social. Deve-se buscar, ao máximo, o bem-estar da coletividade. A constituição Federal de 1988 garante o direito de propriedade e, ao mesmo tempo, autoriza o procedimento expropriatório, que somente se reveste de legitimidade quando presentes os pressupostos que o autorizam, quais sejam: necessidade e utilidade públicas e interesse social. Ainda que o Decreto-lei n. 3.365/1941 – diploma normativo que, até hoje, rege a desapropriação – não tenha versado, expressamente, acerca da obrigatória intervenção do Ministério Público na ação direta que discute a ocorrência ou não dos pressupostos constitucionais permissivos da desapropriação, este é o alvitre hermenêutico ora defendido. corrobora o entendimento esposado o artigo 82, inciso III, do código de Processo civil, segundo o qual deve, obrigatoriamente, o Ministério Público intervir nos processos em que haja interesse público, decorrente, entre outros, da natureza da lide. com efeito, na medida em que se inserem nas funções precípuas do Parquet zelar pela boa aplicação da lei, pela ordem jurídica e pelo Estado Democrático de Direito e preservar os direitos fundamentais elencados na constituição Federal, inevitável 84
é a conclusão da obrigatoriedade de intervenção do órgão Ministerial nas ações diretas em que se discute a existência ou não dos pressupostos constitucionais autorizadores da desapropriação.
reFerênciAs
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