Eliane Pires Araújo* A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NOS CASOS DE CUSTÓDIA DE PESSOAS E BENS THE CIVIL RESPONSIBILITY OF STATE IN CUSTODY CASES OF PEOPLE AND PROPERTY LA RESPONSABILIDAD CIVIL DEL ESTADO EN LOS CASOS DE CUSTODIA DE PERSONAS Y BIENES
Resumo: O presente artigo trata do dever estatal de indenizar os prejuízos causados a pessoas e bens que estão sob a sua guarda. Considerando a determinação constitucional de que as pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado que prestam serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, o Estado é responsável pela integridade do que tem sob sua custódia. Diante da presença dos pressupostos positivos para a aplicação da responsabilização objetiva (conduta, dano e nexo causal entre este e aquela) e da ausência de causa excludente daquela, o dever de guarda imporá ao Estado responsabilidade objetiva, com fundamento na chamada teoria do risco criado. Não é outro o entendimento recente dos Tribunais Superiores. Abstract: This paper addresses the state’s duty to compensate for the damages caused to people and property that are under the state’s custody. Considering the constitutional determination that legal entities of Public Law and Private Law that provide public services shall be liable for damages that their agents, in this state, cause to third parties, the State is responsible for the integrity of what it has in its custody. In the presence of positive presuppositions for the application of objective responsibility (conduct, damage, and causal connection Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela UFG. Assistente Administrativo do MP-GO.
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between the two) and the absence of an exclusionary cause of that, the duty of custody will impose on the State objective responsibility, based on the created risk theory. There is no other recent understanding from the Superior Courts. Resumen: Este artículo trata de la obligación del Estado de indemnizar los daños a personas y bienes que se encuentran sob guarda. Considerando la determinación constitucional que las personas jurídicas de Derecho Público y las de Derecho Privado que ejecutan servicios públicos responderán pelos daños que sus agentes, en esta cualidad, causaren a terceros, el Estado es responsable por la integridad de lo que tiene sob custodia. Así, ante la presencia de los presupuestos positivos para la aplicación de la responsabilización objetiva (conducta, daño y nexo causal entre estés y aquella) y de la ausencia de causa excluyente, el deber de guarda impondrá al Estado responsabilidad objetiva, con fundamento en la llamada teoría del riesgo creado. No es otro el entendimiento actual de los Tribunales Superiores. Palavras-chaves: Responsabilidade objetiva, compartilhamento de riscos e teoria do risco criado. Keywords: Objective responsibility, risk sharing and created risk theory. Palabras clave: Responsabilidad objetiva, compartimiento de riesgos e teoría del riesgo creado.
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INTRODUÇÃO O estudo da possibilidade de o Estado ser responsabilizado por danos causados a pessoas e bens, quando qualquer um deles esteja sob a sua custódia, é recente e exige a análise de várias questões, como a conceituação do que se entende por responsabilidade civil, quais são as suas funções, a verificação dos princípios e regras que a norteiam, dentre outras tantas. A matéria possui amparo no Texto Maior. A Constituição Federal de 1988 determina, em seu art. 37, § 6º, que as pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado que prestam serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. É certo que a atividade estatal, considerada a sua amplitude, pode causar prejuízos a alguns administrados, em benefício de outros. Sob o pilar da isonomia, é correto afirmar que tal fato gera aos lesados o direito de exigir do Estado o restabelecimento do status quo ante. Isso porque, se é incontestável a repartição dos benefícios decorrentes da atuação do Poder Público, também os danos sofridos por alguns devem ser compartilhados e suportados pelos demais, que assim o fazem através da indenização paga àqueles pelo Estado. É notória a grande extensão da matéria. Assim, o estudo aqui proposto limitar-se-á à análise, sob o enfoque doutrinário e jurisprudencial, da possibilidade de o Estado ser responsabilizado nos casos em que é ele quem produz a situação da qual o dano depende. Sem dúvida, o comportamento do Estado geralmente contribui de forma decisiva para a ocorrência do dano, ainda que, por vezes, não seja a sua causa direta e imediata, a exemplo do que acontece nos casos em que o Poder Público coloca-se na função de “garante” de bens e pessoas. Nessas relações, de sujeição especial, o Estado é responsável pela integridade do que tem sob custódia. Assim, se houver prejuízo, o dever de guarda imporá ao Estado responsabilidade objetiva, com fundamento na chamada teoria do risco suscitado, ou criado. 233
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS Inicialmente, cumpre evidenciar que toda a teoria da responsabilidade civil funda-se na máxima romana neminem laedere, isto é, no princípio de que não se deve prejudicar ou lesar a ninguém. A responsabilidade civil assume funções essenciais na ordem jurídica. A sua função reparatória e/ou compensatória é a mais tradicional na doutrina e na jurisprudência, muito embora não seja a única. Centra-se no fato de que o dano já ocorreu, e, não sendo possível voltar no tempo e impedi-lo, resta indenizá-lo. Além da reparação, a responsabilidade civil também deve ser associada a uma função preventiva. Isso porque se deve buscar ao máximo evitar lesões a direitos e valores juridicamente protegidos. Cumpre frisar o entendimento de Nelson Rosenvald1, segundo o qual são quatro as funções elementares da responsabilidade civil: [...] (a) a função de reagir ao ilícito danoso, com a finalidade de reparar o sujeito atingido pela lesão; (b) a função de repristinar o lesado ao status quo ante ao qual o lesado se encontrava antes de suportar a ofensa; (c) a função de reafirmar o poder sancionatório (ou punitivo) do Estado; (d) a função de desestímulo para qualquer pessoa que pretenda desenvolver atividade capaz de causar efeitos prejudiciais a terceiros.
Não há dúvida de que a responsabilidade do Estado sofre o influxo dessas noções iniciais conduzidas pelo Direito Privado. Isso porque ela é objeto de estudo do Direito Constitucional e, com mais força e ênfase, do Direito Administrativo, muito embora deva dialogar com o Direito Civil e demais ramos do Direito, já que na seara jurídica não mais devem existir abordagens apenas unilaterais. Ao utilizar a expressão responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, Celso Antônio Bandeira de Mello2 a define como sendo ROSENVALD,Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013. p. 76-77. 2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2009. p. 983. 1
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a obrigação que lhe [Estado] incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.
A matéria ora tratada é tanto influenciada pelas suas próprias funções como também sofre o influxo de diversos princípios. Partindo-se da premissa de que a Constituição Federal de 1988 adotou, no que tange ao Estado, a responsabilidade objetiva, Felipe P. Braga Netto3 destaca três princípios fundamentais da matéria: a primazia do interesse da vítima, a reparação integral do dano e a solidariedade social. Sem olvidar da necessidade do elemento causalidade (ou nexo causal) para a responsabilização, o referido doutrinador4 aponta que a utilização desse primeiro parâmetro constrói soluções mais justas, adequadas e humanas. Preceitua que na busca da realização da justiça substantiva e concreta, deve-se dar primazia à restauração do esquilíbrio social rompido, conferindo proteção qualitativamente diferenciada à vítima.
Ademais, adverte para o fato de que, quando o Estado é o causador do dano, não se avaliará as suas condições socioeconômicas, razão pela qual assume tal princípio condição mais confortável para ser aplicado. Quanto à necessidade de reparação integral do dano, cumpre reforçar, com José dos Santos Carvalho Filho5 que: A indenização devida ao lesado deve ser a mais ampla possível, de modo que seja corretametne reconstituído seu patrimônio ofendido pelo ato lesivo. Deve equivaler ao que o prejudicado perdeu, incluindo-se aí as despesas que foi obrigado a fazer, e ao que deixou de ganhar. Quando for o caso, devem ser acrescidos ao montante indenizatório os juros de mora e a atualização monetária.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual da responsabilidade civil do estado: à luz da jurisprudência do STF e do STJ e da teoria dos direitos fundamentais. Salvador: Editora JusPODIVM, 2012. p. 50. 4 Ibidem, p. 43. 5 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 45. 3
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Tanto a doutrina quanto a jurisprudência são pacíficas nesse ponto: o dano deve ser integralmente reparado, envolvendo os danos morais, materiais e estéticos, inclusive, cumulativamente indenizados, conforme o caso. Felipe P. Braga Netto6 pontua que o princípio da solidariedade social prega que haja uma distribuição equitativa, por todo o corpo social, dos encargos suportados isoladamente por alguém. Não seria justo, nessa ordem de ideias, que a vítima de uma ação ou omissão estatal arcasse sozinha com os danos. Se presumivelmente, os benefícios da atuação do Estado atingem a todos, os prejuízos não devem ser suportados individualmente.
Esse princípio também é compreendido na doutrina como “princípio da igualdade”, na medida em que, se os benefícios de uma ação estatal são usufruídos por toda a coletividade, da mesma forma deveria esta compartilhar os prejuídos por alguns suportados. Assevera Aparecido Hernani Ferreira7 que: Embora lícita, a atividade estatal pode gerar danos a alguns, em benefício de outros, causando uma desigualdade impossível de se sustentar numa República. Como consequência, gera direito ao lesado de exigir do Estado indenização com o intuito de restabelecer a situação anterior. O princípio da isonomia é corretor das desigualdades produzidas pela atividade estatal interventora. Na realidade, será este o princípio que demarcará os limites de atuação dos Poderes Públicos.
A questão desenvolve-se ainda mais. Para grande parte dos administrativistas, há distinção entre os princípios fundamentadores da responsabilidade civil do Estado baseada no caráter lícito ou ilícito da atuação ou omissão deste. Na precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello8: [...] a) No caso de comportamentos ilícitos comissivos ou omissivos, jurídicos ou materiais, o dever de reparar o dano é a contrapartida do princípio da legalidade. Porém, no caso de comportamentos ilícitos comissivos, o dever de reparar já é, além disso, imposto também pelo princípio da igualdade. BRAGA NETTO, op. cit., p. 45. FERREIRA, Aparecido Hernani. Responsabilidade do Estado: Reparação por dano moral e patrimonial. Campinas,São Paulo: Servanda Editora, 2006. p. 294. 8 MELLO, op. cit., p. 997. 6 7
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b) No caso de comportamentos lícitos, assim como na hipótese de danos ligados a situação criada pelo Poder Público – mesmo que não seja o Estado o próprio autor do ato danoso –, entendemos que o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito.(grifo do autor)
À guisa de conclusão, cumpre ressaltar que, em verdade, a responsabilidade civil do Estado decorre do Estado Democrático de Direito. Carmen Lúcia Antunes Rocha9 pondera que são fundamentos daquela: a) princípio democrático, que cinge a pessoa estatal à obrigação jurídica de não permitir que lesões aos particulares provenientes de sua conduta na gestão da coisa pública restem ao desamparo; b) de outra parte o princípio republicano, do qual nascem os direitos dos indivíduos a atividades havidas por essenciais de forma aberta e comprometida com a sociedade sem quebra da igualdade de todos que compõem o público, titular desta mesma coisa. Do primeiro surgem, eminentes, de imediato os princípios da juridicidade e o da responsabilidade, e do segundo nasce, diretamente, o da igualdade de todos no suportamento das incumbências públicas, e correspectivamente, como a materialização deste princípio, o da responsabilidade.
A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO A teoria objetiva de responsabilização estatal somente foi adotada de forma explícita no direito brasileiro a partir da Constituição Federal de 1946, por força do seu artigo 194. Os diplomas posteriores seguiram fórmula semelhante no trato da matéria. Por meio da responsabilidade objetiva, a comprovação do dever de indenizar do Estado exige apenas a presença dos elementos: conduta, dano e nexo de causalidade. Ademais, há de estarem ausentes as excludentes da responsabilização. Cumpre enfatizar que a adoção da teoria objetiva não expurgou por completo a discussão da culpa na responsabilização. Esta apenas deslocou a análise do dolo ou da culpa em sentido estrito da ação principal (de indenização propriamente dita) para a ação 9
ROCHA, 1994, p. 262 apud FERREIRA, op. cit., p. 290.
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de regresso. Dessa forma, apenas o agente público causador do dano responde subjetivamente. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º, estabelece que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. O dever de indenizar do Estado, calcado na responsabilidade objetiva, tem como fundamento a noção de risco. O Estado, ao tomar para si a incumbência de prestar serviços públicos, assume o risco de eventualmente ocasionar prejuízos nas atividades que desenvolve.Nessa esteira, preleciona Sérgio Cavalieri Filho10, para quem: [...] a Administração Pública gera risco para os administrados, entendendose como tal a possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em decorrência da normal ou anormal atividade do Estado. Tendo em vista que essa atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser também suportados por todos, e não apenas por alguns. Consequentemente, deve o Estado, que a todos representa, suportar os ônus da sua atividade, independentemente de culpa dos seus agentes.
Esse modo de compreensão da responsabilidade objetiva do Estado apresenta duas modalidades: o risco integral e o risco administrativo. Ambas sustentam a necessidade da conduta, dano e nexo causal entre aquela e este, diferindo apenas na admissão de excludentes de responsabilização. No Brasil, a teoria do risco integral é aplicada em algumas situações excepcionais. O ordenamento jurídico adota como regra geral a responsabilidade objetiva do Estado na modalidade do risco administrativo, consoante dispõem o art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, e o art. 43 do Código Civil de 2002. A característica marcante da responsabilidade objetiva é a desnecessária comprovação de culpa do agente ou do serviço responsável pelo dano. A culpa, portanto, não é pressuposto para a aplicação da responsabilidade civil do Estado. 10 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 242.
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A demonstração da responsabilidade objetiva do Poder Público apresenta três pressupostos positivos – a ocorrência do fato administrativo (conduta, lícita ou ilícita, praticada por agente público no exercício de suas funções), do dano, e do nexo de causalidade entre aquele e este (relação de causa e efeito) –, e um pressuposto negativo – a ausência de causa excludente da responsabilização do Estado. Saliente-se, em arremate, que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou acerca desses elementos configuradores da responsabilidade do Estado. Calha transcrever um de seus julgados11: E M E N T A: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – ELEMENTOS ESTRUTURAIS – PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – MORTE DE INOCENTE CAUSADA POR DISPARO EFETUADO COM ARMA DE FOGO PERTENCENTE À POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL E MANEJADA POR INTEGRANTE DESSA CORPORAÇÃO – DANOS MORAIS E MATERIAIS – RESSARCIBILIDADE – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damni” e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes. A ação ou a omissão do Poder Público, quando lesiva aos direitos de qualquer pessoa, induz à responsabilidade civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a terceiros. Doutrina. Precedentes. - Configuração de todos os pressupostos primários determinadores do reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, o que faz emergir o dever de indenização pelo dano moral e/ou patrimonial sofrido. (RE 603626 AgR-segundo, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 15/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe113 DIVULG 11-06-2012 PUBLIC 12-06-2012, grifo nosso).
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 603626. Relator: Ministro Celso de Mello. 12/06/2012. Disponível em: <http://www. stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html >. Acesso em: 17 mar. 2015.
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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NOS CASOS DE CUSTÓDIA O comportamento do Estado geralmente concorre de forma decisiva para a ocorrência do dano, ainda que, por vezes, não seja a sua causa direta e imediata. É o que ocorre nos casos em que o Poder Público se coloca na função de “garante” de bens e pessoas. Nessas relações, de sujeição especial, o Estado é responsável pela integridade do que tem sob custódia. Assim, se houver prejuízo, o dever de guarda imporá ao Estado responsabilidade objetiva. Sérgio Cavalieri Filho12 ilustra que: Não seria justo e nem jurídico que apenas alguns sofressem os prejuízos decorrentes da explosão de um paiol de munições ou da evasão de presidiários que, ao fugirem, praticam atos de violência contra pessoas e coisas nas proximidades dos presídios. Tendo em vista que estes estabelecimentos são instituídos em proveito de todos, é natural que os danos deles decorrentes sejam também por todos suportados.
Assim o sendo, o Estado é chamado a indenizar, objetivamente, os danos decorrentes dessa guarda, tendo como fundamento a chamada teoria do risco suscitado ou criado. A responsabilidade estatal é objetiva na modalidade do risco administrativo, razão pela qual se admite a sua exclusão em alguns casos. A doutrina majoritária compreende que apenas a culpa exclusiva da vítima e a força maior/caso fortuito afastam o dever de indenizar. O fato de terceiro, ao contrário, não constitui excludente da responsabilidade nos casos de custódia, em razão do mais acentuado dever de vigilância e de proteção atribuído ao Estado nessas relações de sujeição especial.13
Assim, com lastro no risco administrativo, a responsabilidade estatal só se evidencia se há nexo de causalidade e se o dano decorrer do risco suscitado. Caso contrário, não haverá responsabilização do Estado. Com maestria, entende Celso Antônio Bandeira de Mello14 que: CAVALIERI FILHO, op. cit., 265-266. MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 304. 14 MELLO, op. cit., p. 1009-1010. 12 13
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[...] se os evadidos de uma prisão vierem a causar danos em locais afastados do prédio onde se sedia a fonte do risco, é óbvio que a lesão sofrida por terceiros não estará correlacionada com a situação perigosa criada por obra do Poder Público. [...] se um detento fere ou mutila outro detento, o Estado responde objetivamente, pois cada um dos presidiários está exposto a uma situação de risco inerente à ambiência de uma prisão onde convivem infratores, ademais inquietos pela circunstância de estarem prisioneiros. Reversamente, o Estado não responde objetivamente se um raio vier a matar um ou alguns presidiários. Isto porque não há conexão lógica alguma entre a situação de risco e o raio. Com efeito, os raios não têm preferência alguma por cair em presídios.
Em razão da multiplicidade de situações nas quais o Estado é responsável pelo risco emergente das pessoas e bens que mantém sob sua custódia, não seria possível, neste estudo, compreendê-las todas. Assim, a seguir, serão analisadas apenas algumas das situações sobre as quais mais se debruçam doutrina e jurisprudência pátrias. A CUSTÓDIA DE PRESOS A Constituição Federal de 1988 reservou rol específico destinado à proteção dos detentos. Destaca-se o preceito insculpido no art. 5º, XLIX, que assegura aos presos o respeito a sua integridade física e moral. Ademais, salienta-se que é princípio estrutural do ordenamento jurídico brasileiro a dignidade da pessoa humana, que não comporta exceções, aplicando-se, obviamente, aos presos. Destaca-se que a garantia constitucional é aplicada independentemente do tipo de estabelecimento prisional em que se encontra recluso o indivíduo. Não importa se o mesmo está em penitenciária, colônia agrícola, industrial ou similar, casa do albergado, centro de observação, hospital de custódia e tratamento psquiátrico ou cadeia pública. A partir do momento em que é segregado, o indivíduo passa à tutela do Estado, que assume a responsabilidade por qualquer ato que provoque dano àquele, ainda que praticado por terceiros. Ao aprisionar um indivíduo, o Poder Público assume o ônus de garantir a sua incolumidade física e até psiquíca. Assim, qualquer lesão que o preso sofra, seja por ação dos agentes públicos, seja por ação dos outros presidiários, leva à responsabilização 241
estatal de forma objetiva, sendo prescindível a análise da culpa do dano. Nessa linha, André Bernardes Dias15 aduz que: A obrigação de preservar a intangibilidade física dos detentos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento prisional, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os presos que se acharem sob sua guarda. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do detento, ou até mesmo causado a sua morte, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, achavase sob sua guarda, atenção, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários penitenciários.
Sob a ótica do risco administrativo, a doutrina e a jurisprudência pacificaram o entendimento de que a morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional, ainda que causada por outro interno, gera responsabilidade objetiva do Estado. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona no sentido de que, presente o nexo de causalidade entre o dano e a situação de risco provocada pela custódia, a responsabilidade estatal é objetiva. Nesse sentido, confira-se o seguinte aresto16: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO, SOB A CUSTÓDIA DO ESTADO. DANOS MORAIS. CONFIGURAÇÃO. SÚMULA 7/STJ. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM EM CONSONÂNCIA COM A ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL PREDOMINANTE NESTA CORTE SUPERIOR. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83 DO STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO. INTERPOSIÇÃO DO ESPECIAL PELA ALÍNEA C DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. NÃO INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO LEGAL AO QUAL TERIA SIDO DADA INTERPRETAÇÃO DIVERGENTE. SÚMULA 284 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.[...] II. Esta Corte já se posicionou no sentido de que o Estado possui responsabilidade objetiva, no casos de morte de detento, custodiado em unidade prisional. Nesse sentido: AgRg no AREsp 446.316/PE, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA,
DIAS, André Bernardes. Responsabilidade civil da Administração Pública na garantia da integridade física e moral de detentos. 136 fl. Monografia (Graduação em Direito). Universidade de Brasília, Brasília, 2013. p. 76-77. 16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 492804/PE. Relator: Ministra Assusete Magalhães. 30/09/2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia. html>. Acesso em: 28 mar. 2015. 15
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DJe de 01/07/2014;AgRg noAREsp 346.952/PE, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 23/10/2013. [...] (AgRg no AREsp 492.804/PE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/09/2014, DJe 30/09/2014, grifo nosso)17
Na mesma linha de posicionamento, no sentido de que o Estado tem o dever legal de proteger os detentos, respondendo objetivamente nos casos em que aqueles tenham sido vítimas de danos, tem se manifestado a jurisprudência do Excelso Pretório, consoante ementa abaixo transcrita18: Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE MENOR EM CENTRO DE RESSOCIALIZAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. NECESSIDADE DE REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO CONSTANTE DOS AUTOS. SÚMULA 279 DO STF. INCIDÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - A apreciação do recurso extraordinário, no que concerne à alegada ofensa ao art. 37, § 6°, da Constituição, encontra óbice na Súmula 279 do STF. Precedentes. II - O Tribunal possui o entendimento de que o Estado se responsabiliza pela integridade física do pessoa sob sua custódia, devendo reparar eventuais danos por ele sofridos. Precedentes. III - Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 718928 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 11/03/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe062 DIVULG 27-03-2014 PUBLIC 28-03-2014, grifo nosso)19
Questão polêmica na doutrina e na jurisprudência é, ao contrário, a responsabilidade estatal em decorrência de suicídio do preso. Há quem entenda que a hipótese é de culpa exclusiva da vítima, afastando o dever de indenizar do Estado. Essa tese é bastante defendida pelas Procuradorias da Fazenda Pública. Na visão de André Bernardes Dias20: [...] filiar-se à teoria da responsabilidade objetiva para reger hipótese de suicídio de detentos seria admitir conclusão dissociada da realidade.
17 Na mesma linha, cf. AgRg no AREsp 283111/PE, Resp 1409518/BA, AgRg no Ag 986208/MT, Resp 593265/MG e Resp 713682. 18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 718928. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. 28/03/2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia.html >. Acesso em: 29 mar. 2015. 19 Do mesmo modo, cf. RE 662563, RE 466322 e RE 272839. 20 DIAS, op. cit., p. 104-105.
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Pensar que o Estado poderia impedir o suicídio, sob qualquer pretexto, é admitir vigília diuturna e ininterrupta a cada preso, o que, de fato, não ocorre, e nem ocorrerá em curto espaço de tempo, dado o longo caminho a ser trilhado para equipar todos os estabelecimentos prisionais de equipamentos eletrônicos de vigília. Ainda que com esse aparato técnico, não há qualquer garantia que fatos danosos como esse não possam ocorrer. Não há como o Estado manter a vigilância individual sobre todos os presos durante todo o tempo – é atentar contra o próprio princípio da reserva do possível. (grifo do autor)
A despeito desse entendimento, há que se observar, entretanto, que a tendência mundial (e nacional) é de ampliação dos casos de responsabilidade objetiva do Estado. Assim, a jurisprudência parece caminhar no sentido de que o preso deve ser protegido inclusive de si mesmo, uma vez que o ambiente carcerário pode produzir alteração no seu estado mental. A Constituição Federal, quando disciplina a garantia de integridade dos detentos, não restringiu o âmbito de sua aplicação. Por conseguinte, não pode doutrina e jurisprudência o reduzirem. Sem dúvida, há nexo de causalidade no caso de suicídio de detento dentro de estabelecimentro prisional. Entretanto, a relação causal não se estabelece entre o suicídio e a prisão, muito embora tal fato possa repercutir no valor da indenização. A responsabilidade civil do Estado decorre do fato de estar o preso sob a custódia estatal, devendo este ser amplamente protegido. O Superior Tribunal de Justiça assim já entendeu21 22: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ACLARATÓRIOS NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DETENTO MORTO APÓS SER RECOLHIDO AO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. SUICÍDIO. OMISSÃO RECONHECIDA. EXISTÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS SEM EFEITOS MODIFICATIVOS. 1. Nos termos consignados pelo acórdão ora embargado, foi reconhecida
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1305259/SC. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. 22/08/2013. Disponível em: <http://www. stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>. Acesso em: 30 mar. 2015. 22 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1305259/SC. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. 09/04/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/ jurisprudencial>. Acesso em: 30 mar. 2015. 21
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a presença dos requisitos necessários para a responsabilização objetiva do ente público ora embargante tendo em vista a ocorrência de suicídio de detento em unidade prisional. Não obstante, houve omissão no que tange à presença ou não, no caso em concreto, de nexo de causalidade entre suposta ação/omissão estatal que teria resultado a morte de detento em virtude de ato por ele mesmo praticado (suicídio). 2. Embora no acórdão recorrido tenha sido afirmada a culpa exclusiva da vítima - e assim afastado o nexo de causalidade - é de se ressaltar que, no caso em concreto, a relação que deve ser estabelecida é entre o fato de ele estar preso sob a custódia do Estado. Conforme muito bem ressaltado pelo Exmo. Senhor Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI em seu voto relativo ao recurso especial n. 847.687/GO, "o Estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si mesmos. Não se justifica que tenha tido acesso a meios aptos a praticar um atentado contra sua própria vida. Os estabelecimentos carcerários são, de modo geral, feitos para impedir esse tipo de evento. Se o Estado não consegue impedir o evento, ele é o responsável". (REsp 847.687/GO, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 25/06/2007). Precedentes do STJ e do STF. 3. Portanto, no caso em concreto, embora afastada pelo Tribunal a quo, é inegável a presença do nexo de causalidade a autorizar a responsabilização civil do ente público pela morte do detento em virtude de suicídio. 4. Embargos de declaração acolhidos sem efeitos modificativos. (EDcl no AgRg no REsp 1305259/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 22/08/2013, grifo nosso) PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO CARACTERIZADA. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Na hipótese dos autos, as recorridas ajuizaram ação ordinária visando à condenação do Estado de Santa Catarina ao pagamento de indenização pelos danos que suportaram com o suicídio de um parente em uma cela de presidiária. 2. O Tribunal de origem não condenou o Poder Público, em razão da ausência de nexo de causalidade entre eventual omissão estatal e o falecimento do preso. 3. Contudo, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e a do Superior Tribunal de Justiça são no sentido de que não é necessário perquirir eventual culpa/omissão da Administração Pública em situações como a dos autos, já que a responsabilidade civil estatal pela integridade dos presidiários é objetiva em face dos riscos inerentes ao meio em que eles estão inseridos por uma conduta do próprio Estado. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1305259/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/04/2013, DJe 09/04/2013, grifo nosso)
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Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal, consoante ementa a seguir transcrita23: Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Administrativo. 3. Responsabilidade civil do Estado. Indenização por danos morais. Morte de preso em estabelecimento prisional. Suicídio. 4. Acórdão recorrido em consonância com a jurisprudência desta Corte. Incidência da Súmula 279. Precedentes. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 700927 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-182 DIVULG 1409-2012 PUBLIC 17-09-2012, grifo nosso)24
Insta salientar que a responsabilização estatal, nesses casos, não implica a adoção da teoria do risco integral. Isso porque, ainda que o causador do dano tenha sido o próprio preso, o Estado estava legalmente (e constitucionalmente) obrigado a impedi-lo em virtude de seu dever especial de vigilância. O Poder Público tem o dever de zelar pela incolumidade dos detentos, indenizando a quem de direito pela sua morte, porque aqueles estavam sob a sua custódia.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 700927. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 28/08/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia. html >. Acesso em: 30 mar. 2015. 24 Semelhante é o caso de pessoa que se suicida em hospital público. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que tal fato também não afasta o dever de indenizar do Estado. Segue ementa de julgado: E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) – RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º) – CONFIGURAÇÃO – SUICÍDIO DE PACIENTE NO PÁTIO EXTERNO DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO – RECONHECIMENTO, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE QUE SE ACHAM PRESENTES TODOS OS ELEMENTOS IDENTIFICADORES DO DEVER ESTATAL DE REPARAR O DANO – NÃO COMPROVAÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE NITERÓI, DA ALEGADA INEXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL – CARÁTER SOBERANO DA DECISÃO LOCAL, QUE, PROFERIDA EM SEDE RECURSAL ORDINÁRIA, RECONHECEU, COM APOIO NO EXAME DOS FATOS E PROVAS, A INEXISTÊNCIA DE CAUSA EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO – INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA (SÚMULA 279/STF) – DOUTRINA E PRECEDENTES EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO – ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RECURSO IMPROVIDO.(ARE 691744 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 28/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe204 DIVULG 17-10-2012 PUBLIC 18-10-2012, grifo nosso) 23
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A CUSTÓDIA DE ALUNOS E PROFESSORES DA REDE PÚBLICA DE ENSINO Consoante determinação constitucional, a prestação do ensino público obrigatório é dever do Estado. Assim, se o desempenho dessa função lesar outrem, será o Poder Público obrigado a recompor os prejuízos causados. Não há dúvida de que tanto aqueles que usufruem desse serviço, como é o caso dos alunos, quanto aqueles que exercem atividade a ele relacionada, como é o caso dos professores e diretores, estão sob a custódia estatal. Dessa forma, assume a Administração o dever de zelar pela integridade (física, moral e, inclusive, psíquica) destes. União, Estado e Municípios, portanto, respondem objetivamente pelos danos sofridos por tutelados. O Supremo Tribunal Federal já analisou a matéria e decidiu pela responsabilização objetiva do Estado nos casos de danos a alunos que estavam sob sua custódia, vigilância, guarda e proteção. Confiram-se as ementas de alguns julgados nesse sentido25 26: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. DECISÃO ALINHADA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ELEMENTOS CONFIGURADOS DA RESPONSABILIDADE COMPROVADOS NA ORIGEM. SÚMULA 279/STF. Hipótese em que o acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “a obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 794475. Relator: Ministro Roberto Barroso. 28/10/2014. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia. html >. Acesso em: 30 mar. 2015. 26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 754778. Relator: Ministro Dias Toffoli. 19/12/2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ portal/jurisprudencia.html >. Acesso em: 30 mar. 2015. 25
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descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e atividade estatal imputável aos agentes públicos” (RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello). Ademais, divergir do entendimento firmado pelo Tribunal de origem sobre a existência dos elementos configuradores da responsabilidade objetiva do Estado, demandaria o reexame dos fatos e do material probatório constantes nos autos, o que é vedado em recurso extraordinário. Incidência da Súmula 279/STF. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. Agravo regimental desprovido. (ARE 794475 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 28/10/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-226 DIVULG 17-11-2014 PUBLIC 18-11-2014, grifo nosso) EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Administrativo. Estabelecimento público de ensino. Acidente envolvendo alunos. Omissão do Poder Público. Responsabilidade objetiva. Elementos da responsabilidade civil estatal demonstrados na origem. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que as pessoas jurídicas de direito público respondem objetivamente pelos danos que causarem a terceiros, com fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, tanto por atos comissivos quanto por omissivos, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e a omissão do Poder Público. 2. O Tribunal de origem concluiu, com base nos fatos e nas provas dos autos, que restaram devidamente demonstrados os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado. 3. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame de fatos e provas dos autos. Incidência da Súmula n. 279/STF. 4. Agravo regimental não provido. (ARE 754778 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 26/11/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 1812-2013 PUBLIC 19-12-2013, grifo nosso)
Ademais, já entendeu o Excelso Pretório que o Estado deve indenizar aluno que sofreu dano decorrente de ato de outro aluno no ambiente escolar. Segue a ementa do julgado, de clareza ímpar27: E M E N T A: INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS DE DETERMINAÇÃO DESSA RESPONSABILIDADE CIVIL DANO CAUSADO A ALUNO POR OUTRO ALUNO IGUALMENTE MATRICULADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO - PERDA DO GLOBO OCULAR DIREITO - FATO OCORRIDO NO RECINTO DE ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL - CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJEBRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 109615. Relator: Ministro Celso de Mello. 02/08/1996. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencial >. Acesso em: 17 mar. 2015.
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TIVA DO MUNICÍPIO - INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL DEVIDA - RE NÃO CONHECIDO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. [...]RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO POR DANOS CAUSADOS A ALUNOS NO RECINTO DE ESTABELECIMENTO OFICIAL DE ENSINO. - O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno. - A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos. (RE 109615, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 28/05/1996, DJ 02-08-1996 PP-25785 EMENT VOL-01835-01 PP00081, grifo nosso)
Na mesma linha já entendeu o Superior Tribunal de Justiça, conforme a ementa a seguir28: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS, MORAIS E ESTÉTICOS. ALUNO TEVE OLHO PERFURADO A LÁPIS DENTRO DA SALA DE AULA. LESÃO IRREVERSÍVEL. CEGUEIRA. DANO. CONFIGURAÇÃO. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. VALOR DA INDENIZAÇÃO NÃO EXORBITANTE OU IRRISÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal de origem, a quem é dada a análise das circunstâncias fático-probatórias da causa, reconheceu o princípio do risco administrativo e entendeu pela ocorrência de nexo causal entre a conduta do município e a perda de visão do autor. [...] Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 360.271/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/09/2013, DJe 18/09/2013, grifo nosso)
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 360271/PE. Relator: Ministro Humberto Martins. 18/09/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia. html>. Acesso em: 30 mar. 2015.
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O Superior Tribunal de Justiça entendeu pela responsabilização estatal no caso em que uma professora foi agredida por um aluno dentro do estabelecimento de ensino. Confira-se a ementa do julgado29: RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. REVISÃO. FATOS. NÃO-CABIMENTO. SÚMULA 07/STJ. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. OMISSÃO. NEXO. INAÇÃO DO PODER PÚBLICO. DANO. CULPA. CABIMENTO.[...] 2. No presente caso, o acórdão recorrido concluiu pela conduta omissiva do Estado, tendo em vista que a recorrida, professora da rede distrital de ensino, foi agredida física e moralmente, por um de seus alunos, dentro do estabelecimento educacional, quando a direção da escola, apesar de ciente das ameaças de morte, não diligenciou pelo afastamento imediato do estudante da sala de aula e pela segurança da professora ameaçada. 3. Destacou-se, à vista de provas colacionadas aos autos, que houve negligência quando da prestação do serviço público, já que se mostrava razoável, ao tempo dos fatos, um incremento na segurança dentro do estabelecimento escolar, diante de ameaças perpetradas pelo aluno, no dia anterior à agressão física. 4. O Tribunal de origem, diante do conjunto fático-probatório constante dos autos, providenciou a devida fundamentação dos requisitos ensejadores da responsabilidade civil por omissão do Estado. Neste sentido, não obstante o dano ter sido igualmente causado por ato de terceiro (aluno), atestou-se nas instâncias ordinárias que existiam meios, a cargo do Estado, razoáveis e suficientes para impedir a causação do dano, não satisfatoriamente utilizados. [...] (REsp 1142245/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/10/2010, DJe 19/10/2010, grifo nosso)
O Supremo Tribunal Federal também já entendeu que o Estado responde objetivamente pelos danos sofridos por professores nos estabelecimentos de ensino. Nesse sentido30: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONSTITUCIONAL. PROFESSORA. TIRO DE ARMA DE FOGO DESFERIDO POR ALUNO. OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA EM LOCAL DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ABRANGÊNCIA DE ATOS OMISSIVOS. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1142245/DF. Relator Ministro Castro Meira. 19/10/2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia.html>. Acesso em: 30 mar. 2015. 30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 663647. Relator: Ministra Carmen Lúcia. 06/03/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia. html >. Acesso em: 30 mar. 2015. 29
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AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (ARE 663647 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 14/02/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-046 DIVULG 05-03-2012 PUBLIC 06-03-2012, grifo nosso)
Diante do exposto, é fácil concluir que ao Estado incumbe o dever de custódia, cuidado e vigilância de alunos e funcionários de estabelecimento escolar oficial mantido e administrado por ele. Essa condição faz emergir para aquele o dever de indenizar os seus tutelados nos casos de danos por eles sofridos. Assim, enquanto permanecerem no recinto do estabelecimento de ensino, o Poder Público assume função de verdadeiro “garante”, respondendo objetivamente por sua incolumidade. A CUSTÓDIA DE BENS A responsabilidade civil do Estado nos casos de custódia de bens é pouco discutida na doutrina e na jurisprudência pátrias. A essência da matéria, entretanto, é a mesma da custódia de pessoas. A responsabilidade objetiva estatal emerge dos danos causados por agentes públicos que, nessa qualidade, lesam terceiros, independentemente da configuração de culpa ou dolo, desde que comprovado o nexo de causalidade entre o dano e o suposto ato ilícito. Em alguns casos, o Poder Público assume a função de garante dos bens sob sua guarda. Equipara-se, em verdade, ao depositário do Direito Privado, obrigando-se a ter o cuidado e a diligência que costuma ter com o que lhe pertence na guarda e conservação da coisa depositada. Dessa forma, os danos causados a bens custodiados pelo Estado devem ser indenizados, utilizando-se, para tanto, a responsabildade civil objetiva. Analisando o assunto, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios já decidiu que o Poder Público é responsável pela perda ou deterioração de bens particulares sob sua posse. Confiram-se as ementas de alguns jugados nesse sentido31 32: 31 BRASIL. Tribunal do Distrito Federal e Territórios. Apelação Cível n. 446962. 5ª Turma Cível. Relator: Desembargador João Egmont. 10/09/2010. Disponível em: < http://www.tjdft.jus.br/institucional/jurisprudencia>. Acesso em: 17 mar. 2015. 32 BRASIL. Tribunal do Distrito Federal e Territórios. Apelação Cível n. 231802. 1ª Turma Cível. Relator: Desembargador Flávio Rostirola. 01/12/2005. Disponível em: < http://www.tjdft.jus.br/institucional/jurisprudencia>. Acesso em: 30 mar. 2015.
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DIREITO ADMINISTRATIVO E CIVIL. APREENSÂO DE MERCADORIAS POR AGENTES PÚBLICOS DE FISCALIZAÇÃO EM RAZÂO DE ATIVIDADE COMERCIAL NÂO AUTORIZADA, NA FEIRA DO ROLO NA CEILÂNDIA. EXTRAVIO. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR DO ESTADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ART. 37, §6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NEXO DE CAUSALIDADE. DANO. CARACTERIZAÇÃO. PROCEDÊNCIA. 1. Conforme dispõe o art. 37, §6º, da Constituição Federal, o Estado responde pelos danos que seus agentes, causarem a terceiros, independentemente da configuração de culpa ou dolo, desde que comprovado o nexo de causalidade entre o dano e o suposto ato ilícito do agente.[...] 3. Na condição de depositários, os agentes da Administração Pública, estão obrigados a conservar os bens apreendidos, consoante disposto no art. 648 c/c o art. 629, ambos do Código Civil, responsabilizando-se civilmente em casos de extravio. 3.1 É dizer ainda: "O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante" (CCB/02 art. 629), devendo, portanto, ter na custódia do bem o cuidado e a diligência que costuma ter com o que lhe pertence, respondendo pela perda ou deterioração se culposamente contribuiu para que isto acontecesse. 4. Configurado o ato negligente da Administração, impõe-se o dever de reparar o dano, independente de culpa ou dolo. 5. Simples portaria administrativa, que estipula o prazo de 30 (trinta) dias para a retirada da mercadoria, não elide a obrigação de indenizar. 6. Recurso conhecido e não provido. (Acórdão n.446962, 20080110554702APC, Relator: JOÃO EGMONT, Revisor: ROMEU GONZAGA NEIVA, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 08/09/2010, Publicado no DJE: 10/09/2010. Pág.: 146, grifo nosso) CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ARMAS APREENDIDAS ILEGALMENTE. EXTRAVIO. INDENIZAÇÃO. MONTANTE DEVIDO. 1. O Estado responde objetivamente pelos danos que seus agentes causam a terceiros, a teor do disposto no §6º do art. 37 da Constituição Federal. Desta feita, se as armas encontravam-se sob a sua custódia e foram extraviadas, dúvida não persiste quanto ao dever do DF em ressarcir o proprietário dos bens pela lesão ocasionada. 2. Diante do certificado de registro de armas constante à fl. 10, resta indene a prova de que a referida arma pertence de fato ao apelado. 3. Se o autor foi despojado de suas armas no ano de 1994, encontrando-se sem elas há mais de 10 (dez) anos, entendo que o valor arbitrado equivalente a 80% do montante apresentado repara de forma razoável a lesão ocorrida. 4. Recurso não provido. (Acórdão n.231802, 20040110692379APC, Relator: FLAVIO ROSTIROLA, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 14/11/2005, Publicado no DJU SEÇÃO 3: 01/12/2005. Pág.: 246, grifo nosso)
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O Tribunal Regional Federal da 3 ª Região também compreende que o Estado é responsável objetivamente pelos bens que mantém sob sua custódia33: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. REEXAME NECESSÁRIO. ILEGIMIDADE ATIVA EM RELAÇÃO À PARTE DO PEDIDO. INTERESSE DE AGIR E POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CONFIGURAÇÃO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. ART. 72, § 1º, "A", CPC. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM RAZÃO DE OMISSÃO. LESÃO, DANO MATERIAL E NEXO CAUSAL COMPROVADOS. VALOR DA INDENIZAÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA.[...] VII - A Constituição Federal de 1988 impõe ao Estado o dever de indenizar os danos causados a terceiros, por seus servidores, independentemente da prova do dolo ou culpa (Art. 37, § 6º). Tal norma firmou, em nosso sistema jurídico, o postulado da responsabilidade civil objetiva do poder público, sob a modalidade do risco administrativo. A doutrina é pacífica no que toca à sua aplicação em relação aos atos comissivos, contudo diverge em relação aos atos omissivos. Prevalece no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que o referido princípio constitucional se refere tanto à ação quanto à omissão. VIII - Para fazer jus ao ressarcimento em juízo, cabe à vítima provar o nexo causal entre o fato ofensivo, que segundo a orientação citada pode ser comissivo ou omissivo, e o dano, assim como o seu montante. De outro lado, o poder público somente se desobrigará se provar a culpa exclusiva do lesado. [...] O fato é que o veículo estava em poder de um agente do Estado, em razão de ordem judicial, e foi devolvido ao proprietário em condição totalmente precária, daí o dever de indenizar. Assim, correta a sentença ao condenar a União ao ressarcimento dos danos patrimoniais suportados pelo autor concernentes especificamente a tais avarias. X - Configurou-se o nexo causal, liame entre a omissão da União, que não evitou a depredação do bem que estava sob a guarda do depositário, e a lesão acarretada. XI - O ente estatal não provou causa excludente de responsabilidade. [...] Apelações e reexame necessário desprovidos.(Apelação 1568823, Rel. Desembargador Fedaral André Nabarrete, 4ª Turma, julgado em 25/10/12, publicado em 12/11/12, grifo nosso)
A seu turno, o Tribunal Federal Regional da 1ª Região condenou a FUNASA pelo furto de equipamento de terceiro nas suas dependências, fundamentando a responsabilidade daquela BRASIL. Tribunal Regional Federal. 3ª Região. Apelação n. 1568823. 4ª Turma. Relator: Desembargador Federal João André Nabarrete. 12/11/2012. Disponível em: http://www.trf3.jus.br/>. Acesso em: 30 mar. 2015.
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exatamente sob o argumento do dever de custódia. Segue transcrição da ementa do julgado34: ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. OMISSÃO. FURTO DE EQUIPAMENTO DE INFORMÁTICA. VIOLAÇÃO DO DEVER DE GUARDA E VIGILÂNCIA. NEXO DE CAUSALIDADE. ALUGUEL. LIMITAÇÃO DO PEDIDO ATÉ A DATA PROLAÇÃO DA SENTENÇA. 1. "A responsabilidade civil que se imputa ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-lhe o dever de indenizar se se verificar dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior ou decorrer de culpa da vítima. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade objetiva e aqueles que adotam a responsabilidade subjetiva, prevalece na jurisprudência a teoria subjetiva do ato omissivo, de modo a só ser possível indenização quando houver culpa do preposto" (REsp 602102/RS; Relatora Ministra ELIANA CALMON DJ 21.02.2005). 2. A ocorrência do furto de equipamento de informática na sede da FUNASA enseja a responsabilidade da Fundação Pública pelo ressarcimento do valor do bem furtado. O dano experimentado pela empresa locadora decorre de omissão culposa do Poder Público por ter negligenciado o cumprimento de dever de guarda e vigilância dos bens. Nexo de causalidade demonstrado e que acarreta a obrigação de indenizar. [...] 4. Dá-se parcial provimento ao recurso de apelação e à remessa oficial. (Apelação Cível 177839720014013300, Rel. Juiz Federal Rodrigo Navarro de Oliveira, Sexta Turma, julgado em 16/07/2010, publicado em 02/08/2010, grifo nosso)
O Estado, portanto, é responsável objetivamente pelos danos causados a bens sujeitos a sua custódia.
BRASIL. Tribunal Regional Federal. 1ª Região. Apelação Cível n. 17783972. 6ª Turma. Relator: Juiz Federal Rodrigo Navarro de Oliveira. 02/08/2010. Disponível em: <http://www.trf1.jus.br/Processos/JurisprudenciaOracle/jurisprudencia.php>. Acesso em: 30 mar. 2015.
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CONCLUSÃO O presente trabalho discorreu sobre alguns aspectos essenciais da responsabilidade civil do Estado e, em especial, desta nos casos de custódia de pessoas e bens, sem qualquer pretensão, contudo, de esgotar o tema. A abordagem dos temas transcritos foi feita com leitura crítica de alicerçada doutrina e exame da jurisprudência dos tribunais brasileiros, notadamente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Verificou-se que a matéria deve ser analisada sob enfoque multidisciplinar, não se olvidando dos princípios e das funções que a alicerçam. A responsabilidade civil do Estado pode ser conceituada como a obrigação imposta a este de reparar danos causados aos administrados em decorrência de sua conduta (lícita ou ilícita, comissiva ou omissiva, material ou jurídica). Sob o pilar da isonomia, é correto afirmar que se é incontestável a repartição dos benefícios decorrentes da atuação do Poder Público, também os danos sofridos por alguns devem ser compartilhados e suportados pelos demais, que assim o fazem através da indenização paga àqueles pelo Estado. O ordenamento jurídico brasileiro incorporou a responsabilidade civil objetiva do Estado, consoante disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988. O Estado, ao tomar para si a incumbência de prestar serviços públicos, assume o risco de eventualmente ocasionar prejuízos nas atividades que desenvolve. Dessa forma, os danos causados a bens custodiados pelo Estado devem ser indenizados, utilizando-se, para tanto, a teoria objetiva. Em linhas gerais, são essas as conclusões deduzidas do estudo proposto. Salienta-se que as transformações históricas, doutrinárias e jurisprudenciais da responsabilidade civil do Estado inspiram a necessidade de ampliação da responsabilização estatal, em especial no que tange à proteção de seus custodiados. Por todo o exposto, é forçoso reconhecer que o Estado é responsável por danos causados a pessoas e bens que estejam sob a sua custódia, sob o amparo da teoria objetiva fundada no risco por ele próprio criado. 255
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