Samuel Sales Fonteles* DIREITO AO ESQUECIMENTO, ESTE DESCONHECIDO Right tO ObliviOn, thiS UnknOwn DEREChO al OlviDO, EStE DESCOnOCiDO
Resumo: Nos dias atuais, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para reconhecer às pessoas o direito de serem esquecidas, vale dizer, de migrarem da notabilidade social para o anonimato. No entanto, o exercício desse direito é de difícil conciliação com a liberdade de expressão e as liberdades comunicativas, o que faz nascer uma série de colisões. O presente trabalho busca oferecer parâmetros para elucidar quando o direito de ser olvidado assumirá um peso maior do que outros, delimitando sua natureza, sua extensão, seu sujeito ativo e seu sujeito passivo, dentre outros aspectos relevantes. Abstract: Nowadays, the doctrine and jurisprudence evolved to recognize people the right to be forgotten, that is, to migrate from the social notability to the anonimity. However, the exercise of this right is difficult to reconcile with freedom of speech and communicative freedoms, wich gives birth to a series of collisions. This paper seeks to provide parameters to elucidate when the right to be forgotten assume a greater weight than others, limiting its nature, extension, subject of rights, subject to duties, among others relevant aspects. Resumen: Actualmente, la literatura jurídica y la jurisprudencia evolucionaron para reconocer a las personas el derecho a ser olvidado, es decir, de migrar de la notabilidad social para el anonimato. Sin embargo, es difícil conciliar el ejercicio de este derecho con la libertad de expression Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Direito Constitucional. Promotor de Justiça do MP-RO.
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e con las libertades comunicativas, lo que genera una serie de colisiones. Este trabajo intenta proporcionar parámetros para aclarar cuando el derecho al olvido asumirá un peso mayor que los demás, delimitando su naturaleza, alcance, sujeto activo, sujeto passivo, dentres otros aspectos relevantes. Palavras-chave: Anonimato, colisões, liberdade, expressão. Keywords: Anonimity, collisions, freedom, speech. Palabras clave: Anonimato, colisiones, libertad , expression. CONCEITO E ORIGEM Reputa-se direito ao esquecimento a garantia de que os fatos desabonadores não devem ser perenizados como fantasmas que assombram aquele que os vivenciou, sob pena de eternizar-se o escárnio na memória coletiva e, com isso, inibir o progresso daquele a quem se atribui a desonra. Cuida-se, pois, do direito de não se penitenciar pelos erros mais remotos da vida, de seguir em frente, de buscar a felicidade sem olhar para trás. Em suma, de ver esquecidos equívocos, infelicidades, tragédias, humilhações, crimes, escândalos, vexames, constrangimentos ou simplesmente escolhas que, dadas as circunstâncias atuais, não mais seriam realizadas. O exercício do direito ao esquecimento afigura-se como a liberdade de transitar entre os mundos da popularidade e do anonimato, em uma via de mão dupla. É a oportunidade concedida pelo Direito para que as pessoas escolham seus projetos de vida, livres de um passado que as acorrentaria a uma estigmatização indesejada. À guisa de exemplos, é o direito que possui uma ex-prostituta de não ter sua história encenada por uma dramaturgia televisiva ou mesmo o direito que possui um ex-viciado em drogas de não ter suas agruras retratadas pelos veículos de mídia, ambos assegurados por meio de uma tutela judicial inibitória. 64
a origem do direito ao esquecimento remonta ao célebre caso Lebach, julgado pela Corte Constitucional alemã. Em 1969, um depósito de munições no lugarejo de Lebach foi alvo de um violento assalto, o que culminou na morte de quatro soldados. Dois agentes foram condenados à prisão perpétua, e o terceiro membro do grupo foi sentenciado a uma pena de 6 (seis) anos de reclusão. na véspera de sua soltura, a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), emissora televisiva alemã, programou a exibição de um documentário que detalhava os delitos, indicava a identidade dos envolvidos e insinuava um vínculo homossexual entre eles. a Corte alemã, em sede de uma reclamação constitucional, proibiu cautelarmente a transmissão do documentário, pelo menos até que o caso fosse decidido pelos tribunais ordinários. FUNDAMENTO LEGAL E CONSTITUCIONAL Em um raciocínio lógico indutivo, a ser percorrido da norma específica para a geral, vislumbra-se o direito ao esquecimento no art. 21 do Código Civil de 2002, segundo o qual “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Porém, mais do que um direito da personalidade, o direito ao esquecimento traduz um direito fundamental implícito, a ser vislumbrado como um consectário dos direitos constitucionais à privacidade, intimidade e honra, tal como previstos no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988. Por fim, de maneira ainda mais geral, a doutrina aponta como fonte a norma constitucional que alberga a dignidade humana, princípio fundante da República (art. 1º, iii, CF/88). a propósito, o tema foi objeto de estudo na VI Jornada de Direito Civil, rendendo ensejo à aprovação do Enunciado n. 531: “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Eis a justificativa formalmente apresentada para o verbete doutrinário:
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Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mas especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.
assim, ao se adotar como verdade a premissa de que o direito ao esquecimento é extraído da própria noção de dignidade humana, o chamado right to be let alone não precisa sequer estar escrito nas Constituições. Um ser humano tem dignidade porque a Constituição a previu ou simplesmente porque é uma qualidade que lhe é inerente? não fosse o art. 5º, iii, CF/88, seriam todos indignos? Sendo um desdobramento da dignidade humana, escrito ou não, o direito ao esquecimento haveria de existir. apesar das considerações tecidas acima, a existência do direito ao esquecimento ainda sofre resistência de constitucionalistas, dentre eles, Daniel Sarmento1. Em primoroso parecer, que teve como consulente a sociedade empresária globo Comunicação e Participações S/a, o jurista asseverou: O direito ao esquecimento, em primeiro lugar, não está consagrado em qualquer norma jurídica, constitucional ou infraconstitucional. na extensão que lhe atribuiu o StJ, ele tampouco pode ser extraído da Constituição pela via interpretativa – seja da garantia da privacidade, do princípio da dignidade da pessoa humana ou de qualquer outra cláusula – pois é claramente incompatível com o nosso sistema constitucional [...].2
não é, contudo, a posição que tem sido acolhida pela doutrina majoritária e pela jurisprudência. no brasil, tal direito já encontra eco na jurisprudência do STJ3, no campo cível. O StF reconheceu a repercussão geral da discussão4. a rigor, o eminente publicista admite hipóteses específicas em que seria possível o direito ao esquecimento, a exemplo da proteção de dados pessoais, despidos de interesse público, sobretudo no âmbito da informática. Como se vê, trata-se de uma visão sensivelmente mais resistente a esse direito. 2 SaRMEntO, Daniel. liberdades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional brasileira. Parecer jurídico, 22 jan. 2015. p. 29. 3 REsp 1.335.153-RJ e REsp 1.334.097-RJ. 4 agRE 833.248. 1
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Em 13 de maio de 2014, o tribunal de Justiça da União Europeia também reconheceu o direito ao esquecimento, no caso Google Spain SL e Google Inc v. Agencia Española de Protección de Datos e Mario Costeja Gonzales5. O leading case originou-se da pretensão de que o site de buscas não exibisse notícias sobre a constrição de bens de um indivíduo, em antigas execuções de dívidas contraídas perante a seguridade social. isso eternizava a condição de devedor do postulante, que desejava ser esquecido. QUEM DEVE ESQUECER E O QUE DEVE SER ESQUECIDO? O Direito é marcado pela bilateralidade. Se alguém tem um direito, há quem tenha um dever. É o que Miguel Reale denominava de bilateralidade atributiva. Ora, se uma pessoa invoca o direito ao esquecimento, quem deve esquecer e o que deve ser esquecido? Em outras palavras, quais são os elementos da relação jurídica travada pelo direito ao esquecimento? vejam-se todos, um a um. Sujeito ativo O sujeito ativo do direito ao esquecimento é a pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, cuja honra esteja em risco. aqui, algumas observações são necessárias. Primeiro, a de que pessoas jurídicas podem sofrer dano moral, porquanto se revestem de honra objetiva (Súmula n. 227 do StJ); por conseguinte, em princípio, também podem invocar o right to be let alone, direito este corolário da honra, intimidade, vida privada e imagem das pessoas. Contudo, isso se restringe às pessoas de direito privado. Pessoas de direito público não podem invocar o direito ao esquecimento, afinal, subsiste o interesse público em conhecer tudo aquilo que diz respeito à coletividade, mormente em se tratando de uma república, forma de governo marcada pela transparência. ademais, o Superior tribunal de Justiça considera que a Fazenda Pública não tem direito a dano moral, não se lhe aplicando o teor do Enunciado n. 2276. 5 6
Case -131/12. REsp 1.258.389/Pb, julgado em 17/12/2013.
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Desse modo, o direito de não ser compulsoriamente rememorado é invocável por pessoas físicas e jurídicas, mas estas devem ser de direito privado. Por fim, é de se ressaltar que o direito ao esquecimento é fruível também por pessoas de notoriedade social, embora isso exija alguns cuidados. O direito de não ser lembrado é titularizado apenas pelos anônimos que foram arrebatados para a (má) fama ou também está à disposição daqueles que, desde o princípio, se faziam notar? Como mencionado linhas acima, o exercício do direito ao esquecimento afigura-se como a liberdade de transitar entre os mundos da popularidade e do anonimato, numa via de mão dupla. Se é desejo do ser humano tornar-se pessoa pública, a recíproca também é passível de ser desejada. nesse ponto, concordamos com gilmar Ferreira Mendes7: a celebridade do passado nem sempre será objeto legítimo de incursões da imprensa. algumas pessoas de renome voltam, adiante, espontaneamente, ao recolhimento da vida de cidadão comum – opção que deve ser, em princípio, respeitada pelos órgãos de informação. Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária. (grifo nosso)
O cuidado deve recair sobre determinadas pessoas que, embora almejem o retorno à invisibilidade social, carregam consigo um fragmento da história brasileira. nesse caso, subsistirá um interesse público que impedirá o exercício do direito ao esquecimento. tome-se como exemplo o impeachment do Sr. Fernando Collor. O fato é desabonador, mas convém seja lembrado, sobretudo para que não se repita. O julgador, na difícil tarefa de equacionar o direito que deverá pesar no caso concreto, poderá diferenciar se a notoriedade social advém de talentos artísticos ou se provém de aspectos políticos. no último caso, ao que tudo indica, não haverá direito de ser olvidado.
MEnDES, gilmar Ferreira; bRanCO, Paulo gustavo gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 286.
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Sujeito passivo Em face de quem pode ser invocado o direito ao esquecimento? Quem tem o “dever de esquecer”? antes de qualquer coisa, esclarece-se que somente o decurso do tempo8 ou enfermidades específicas (alzheimer, amnésia etc.) podem compelir alguém ao esquecimento, jamais um provimento jurisdicional. O Judiciário não penetra a mente humana, logo, não lhe é dado apagar arquivos guardados nos porões da memória. Se o direito ao esquecimento verdadeiramente fosse assegurado, como o nome induz a crer, a mera lembrança já configuraria a sua violação. a ilicitude não consiste em lembrar algo ou alguém, comportamento este irrelevante para o Direito. viola-se a norma jurídica quando se atinge a honra de outrem, propalando fatos que deveriam estar sepultados, à semelhança da exumação de um cadáver. Conclui-se que, em boa verdade, a expressão “direito ao esquecimento” é apenas uma licença poética que designa, na maioria das vezes, o direito de não serem mencionados os elementos da personalidade. Em alguns casos, isso pode representar o direito ao anonimato. Portanto, o objeto do “esquecimento” é o fato desabonador. Se este vier a ser exumado, proíbe-se a identificação do ator que o protagonizou. aliás, o ordenamento jurídico já tutela esse bem jurídico por meio da tipificação do crime de difamação (art. 139 do Código Penal), criminalizando a conduta daquele que propala um fato que, mesmo verídico, avilta a honra da vítima. todavia, a proteção penal é repressiva e não atinge pessoas jurídicas. a vantagem de exercer o direito ao esquecimento é a possibilidade de atuação preventiva, inclusive, contra entes morais. Quem deve “esquecer” (entenda-se: quem deve manter sigilo sobre os fatos desabonadores)? O comum e o rotineiro é que o direito ao esquecimento seja exercido perante o particular, fenômeno doutrinariamente conhecido como eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Pelo menos, assim o será no campo cível. É o que ocorre quando um criminoso cumpre a sua pena e postula judicialmente uma tutela inibitória para Os experimentos do alemão hermann Ebbinghaus (1850-1909) constataram que o esquecimento é mais rápido nas primeiras nove horas.
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impedir que determinado programa televisivo veicule um documentário que verse sobre os crimes que cometeu. trata-se de uma ação cível que tem como fato subjacente a temática criminal. Para além das demandas cíveis, uma corrente tem sustentado ser possível a incidência do direito ao esquecimento em causas tipicamente criminais. Se invocado no campo criminal, incidirá no contexto da eficácia vertical dos direitos fundamentais, posto que sua oponibilidade seria endereçada ao Estado. Quanto ao adimplemento, se ainda não violada a honra, o direito de ser olvidado concretiza-se por meio de um non facere. Quando posterior ao vilipêndio, a reparação exigirá um facere. Disso resulta que o direito ao esquecimento é, por excelência, um direito subjetivo. não se trata de um direito potestativo, porquanto exige-se uma prestação negativa ou positiva da parte adversa. no entanto, ainda que se cuide de um direito subjetivo, estará imune à prescrição, considerando sua natureza de direito fundamental. EXTENSÃO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO: O QUE É NOTICIÁVEL E POR QUANTO TEMPO? É crucial para os veículos de mídia a ciência exata de quando devem ter como proscrito um dado fato da vida, a ele não podendo se reportar. O tema se reveste de alta complexidade. Afinal, o que é noticiável e a quem incumbe esse discernimento? Em princípio, noticiável é tudo aquilo que não fira a honra ou, embora conspurque a reputação, interesse à coletividade. Os excessos e as situações limites devem ser aquilatados cuidadosamente pelo Judiciário, e nada há de novo nisso. Casuisticamente, é impossível prever, de antemão, todas as situações concretas no mundo fenomênico. alguns parâmetros podem ser fornecidos para verificar a presença ou ausência de interesse público naquilo que se busca noticiar. Um ótimo exemplo nos é dado pelo próprio Código Penal, que revelou uma ponderação realizada pelo legislador na tipificação do crime de difamação. Para que se configure o delito de difamação, como regra, é irrelevante a veracidade dos fatos imputados, eis que a conduta de propalar fatos verdadeiros e desonrosos também é criminosa. Se João 70
espalha um boato de que Maria é adúltera, ainda que não se trate de uma mentira, a infração penal estará consumada. no entanto, em se tratando de fatos atinentes ao servidor público e à sua função pública, prevalece o interesse público de tomar conhecimento da notícia, motivo pelo qual o ordenamento admite a exceção da verdade. Segundo a norma penal, “a exceção da verdade somente se admite se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.” (art. 139, parágrafo único, CP). a indagação que deve permear o raciocínio é: existe um interesse público subjacente à divulgação dos fatos ou trata-se de um interesse meramente comercial do veículo de mídia? O julgador chamará para si a difícil tarefa de discernir se o fato noticiado é de interesse público ou se a sua veiculação vocaciona-se ao mero locupletamento do agente emissor. Este pode estar exercendo responsavelmente uma atividade jornalística ou simplesmente sacrificando a honra de um ser humano, no altar das curiosidades mórbidas, em troca de audiências midiáticas. Se o lucro é o único elemento anímico, o direito ao esquecimento certamente poderá ser exercido. aviltar a honra de um ser humano em nome de um enriquecimento repugna ao Direito Constitucional. isso traduziria a mais odiosa instrumentalização do homem, que migraria do mundo dos fins para o mundo dos meios, assumindo a decadente condição de Coisa. É a abjeta mercantilização dos piores episódios de uma história de vida. Conforme estudado, o Enunciado n. 531 da vi Jornada de Direito Civil revela que o direito ao esquecimento é proveniente da dignidade humana. na distinção de kant, dignidade é aquilo que não é economicamente apreciável, diferentemente das coisas, que são quantificáveis em pecúnia. não há, por conseguinte, valor em dinheiro que legitime a exposição de um ser humano ao escárnio universal9. não obstante, se, além do lucro, subsistir uma intenção a dignidade humana já assumiu diversos contornos. Com a sua secularização, que a desgarrou das bases tomistas e cristãs, prevaleceu o significado atribuído pela filosofia kantiana. nas palavras de kant, citado por ingo Sarlet: “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...]. Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse
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informativa, o Juiz enfrentará um desafio ainda maior para separar o joio do trigo. Mais uma vez, repita-se: não se trata de problema intrínseco ao direito ao esquecimento, mas de um legítimo hard case. Esse fenômeno poderá ocorrer em inúmeras outras colisões de direitos, não devendo ser tido como obstáculo intransponível à fruição do direito de não ser rememorado. Surge mais um complicador. não bastasse a dificuldade de decifrar a licitude da divulgação de um fato, é possível que um caso seja noticiável e transite para ganhar o status de inoticiável. É como se houvesse informações perecíveis, isto é, timbradas com um prazo de validade. no REsp 1.334.097, o StJ condenou a Rede globo a indenizar determinada pessoa por noticiar, no Programa linha Direta, que sobre ela recaiu uma suspeita de participação na Chacina da Candelária (1993). a vítima foi absolvida pelo tribunal do Júri, e o programa televisivo em momento algum omitiu a verdade, porém, o Tribunal da Cidadania entendeu que o decurso do tempo fez perecer a liberdade de veicular a tragédia, ante o direito ao esquecimento do ofendido. Essa é uma das questões mais tormentosas do direito ao esquecimento: quanto tempo seria necessário para operar-se o perecimento do direito de veicular um fato desabonador? A partir de quando uma pessoa, que até então poderia ser lembrada, faz jus ao direito de ser esquecida? a resposta só pode ser a sinalização, no caso concreto, da substancial mudança de vida daquele que protagonizou os fatos desabonadores. Exemplificando, se a notícia versar sobre crimes, um marco seguro é o cumprimento integral da pena. tal fato representa um divisor de águas para o reeducando, que migra da condição de apenado para pessoa sem qualquer débito com a Justiça Penal. Se o fato extravagante ofende o pudor e o decoro de parcela mais conservadora da sociedade, a exemplo da participação em filmes eróticos ou ensaios de nudez, um casamento, o nascimento de um filho ou uma conversão religiosa são indicadores de alerta. Em síntese, nesses casos, o direito ao esquecimento será um preço, sem de qualquer modo ferir sua santidade”. (SaRlEt, ingo wolfgang. Dignidade da Pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto alegre: livraria do advogado, 2012. kindle Edition. Posição 547).
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fruto da cláusula rebus sic stantibus, na medida em que seu nascedouro advirá das mudanças no arcabouço fático, a indicar uma nova postura de vida. Assim, somente as peculiaridades do caso subjacente poderão revelar balizas para aquilatar se os fatos devem ser esquecidos ou se continuam noticiáveis, o que exigirá a sensibilidade do magistrado. a questão é delicada, é de se admitir, mas nem por isso se deve deixar de assegurar o desfrute de um direito tão caro à reputação das pessoas. a certeza jamais existirá, assim como não se sabe ao certo que conduta pode render ensejo a um dano moral. no Direito, há sempre zonas cinzentas ou de incerteza, e isso não deve intimidar o hermeneuta. Sabe-se que o Judiciário tem superado desafios na concretização de direitos fundamentais, por exemplo, na invalidação de sanções administrativas de suspensão de servidores, sob o fundamento de que não são proporcionais. Ora, se o Judiciário pode considerar a punição ilegítima, em razão do seu quantum expresso em dias, a mesma régua serviria para indicar a desproporcionalidade de uma lembrança tão remota, despropositada e nada edificante. a unidade de medida é a mesma: dias. a verdade é que somente a razoabilidade e a prudência do Juiz permitirão que o direito ao esquecimento incida no suporte fático. A DIFÍCIL APLICAÇÃO DO DIREITO AO ESQUECIMENTO E O CHOQUE COM OUTROS DIREITOS O exercício do chamado right to be let alone é tarefa espinhosa. Pela sua própria essência e conteúdo, o direito ao esquecimento já nasce com espírito beligerante, dada a imensa probabilidade de vir a colidir com inúmeros outros direitos limítrofes de envergadura constitucional. assim, de maneira direta ou imediata, o direito à informação, à memória, à cultura, a liberdade de comunicação, de expressão, a vedação à censura, o direito à cultura, à verdade histórica, à segurança pública e até mesmo o direito à isonomia são todos adversários iminentes do direito ao esquecimento, que poderá triunfar ou mesmo ser por eles derrotado, a depender das peculiaridades do caso concreto. Portanto, não é possível afirmar, aprioristicamente, 73
quando se terá o direito de ser olvidado. não raro, a concretização do direito ao esquecimento só será viabilizada socorrendo-se do auxílio do princípio da concordância prática ou mesmo da proporcionalidade e suas respectivas subregras da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. tamanha a sua complexidade, a chance de tensão entre um direito constitucional e o direito ao esquecimento é sempre incalculável, pelo que se pode afirmar que possui mais propensão para a discórdia que para a concórdia. Se o exercício de um direito qualquer, de uma maneira geral, revela potencialidade para colidir com um ou dois direitos, o exercício do direito ao esquecimento é como uma caminhada em um campo minado. a lide, conceituada como um conflito qualificado por uma pretensão resistida, encontra no exercício do direito ao esquecimento um terreno fértil para frutificar. Portanto, o direito de ser olvidado é vocacionado ao conflito e facilmente desestabiliza a harmonia do sistema constitucional, bastando para tanto que seja invocado apenas um palmo além da sua efetiva extensão. Colisão com os direitos à memória coletiva e à verdade a rubrica “direito ao esquecimento” mais atrapalha que ajuda. na realidade, o fato desabonador jamais será apagado. nem mesmo as recordações são proibidas. O que se desestimula é a recolocação do tema na pauta do dia, como se de fato recente se tratasse, despertando um interesse há muito adormecido. Uma ilustração pode elucidar o que foi dito: suponha-se que uma mulher de vida eclesiástica, durante a juventude, tenha realizado um ensaio fotográfico sensual para uma revista de conteúdo adulto. Por mais que se arrependa do que fez, jamais terá poderes jurídicos para vindicar o confisco dessas revistas. Os leitores adquiriram, portanto, um direito vitalício de contemplar a sua nudez estampada nas imagens do ensaio fotográfico. O mesmo vale para uma ex-atriz de um filme erótico. Se, futuramente, vier a se arrepender de ter contracenado em uma obra cinematográfica dessa natureza, não poderá postular a apreensão dos filmes comercializados. Os consumidores terão o direito de armazenar o filme e de assistir à obra tantas vezes quantas acharem por bem. não obstante, nos exemplos citados, as pessoas arrependidas poderão obter uma tutela inibitória para que, após décadas, o filme 74
não seja reprisado ou a revista novamente posta em circulação. Como se vê, o direito ao esquecimento, ao contrário do que o nome sugere, não assegura que o seu titular seja efetivamente esquecido, mas garante que a notícia não tome proporções ainda maiores. O direito ao esquecimento estanca um sangramento. a partir do raciocínio acima, percebe-se que a memória coletiva e o direito à verdade não estarão necessariamente comprometidos com o exercício do direito ao esquecimento. Os fatos desabonadores continuam documentados, afinal, o direito ao esquecimento não significa a eliminação de vestígios. Os jornais da época não serão descartados e podem perfeitamente guarnecer o acervo das bibliotecas públicas, motivo pelo qual os fatos não edificantes estarão a salvo. Repita-se à exaustão: o que se desestimula é que o assunto ganhe ares de novidade, recuperando a mesma força que o impulsionou na origem. Por fim, se o fato se revestir de interesse público, simplesmente o direito ao esquecimento não existirá10. Imperativo categórico de Kant: um sofismo para sonegar direitos nas palavras de Daniel Sarmento11, “a gramática dos direitos fundamentais envolve a pretensão da universalização”. lastreado nesta premissa verdadeira, o insigne constitucionalista acaba extraindo uma conclusão falsa. O autor inspira-se no imperativo categórico de kant, para quem as virtudes morais poderiam ser universalizadas. no seu raciocínio, se todos fruíssem do direito ao esquecimento, o direito à memória coletiva estaria comprometido; se apenas alguns pudessem fruir do direito ao esquecimento, o direito à isonomia estaria conspurcado. O imperativo categórico de kant pode ser uma perigosa ferramenta para sonegar direitos legítimos, se empregado como um sofismo. isso porque determinadas condutas, simplesmente, jamais vão se generalizar. no campo argumentativo e da retórica, servindo-se do Já tentaram negar o holocausto. não obstante, segundo o StF, “Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendem justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inigualável” (hC 82.424/RS, Rel. para acórdão: Min. Mauricio Corrêa). 11 SaRMEntO, op. cit., p. 13. 10
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imperativo categórico de kant, alguém poderia sustentar até mesmo que, se todas as relações sexuais praticadas no mundo fossem de índole homossexual, a humanidade não perpetuaria a espécie. Pergunta-se: isso legitima a proibição de relações homossexuais? Evidentemente que não, pois a liberdade constitucionalmente assegurada garante aos seres humanos o direito de autodeterminação sexual. Do mesmo modo, se todas as pessoas decidissem exercer o direito de reunião, concomitantemente, em todos os recantos do planeta, certamente essa pretensão estaria fadada ao fracasso. Sucede que a unanimidade nas reflexões acima é meramente artificial ou hipotética. a sociedade é plural. Disso resulta que o imperativo categórico de kant está longe de oferecer parâmetros seguros para aferir a legitimidade de direitos, não devendo, pois, ser empregado como ferramenta para sonegá-los. Uma vaga restrição a direitos fundamentais? Por força da teoria dos limites dos limites, as restrições a direitos fundamentais sofrem determinadas limitações para que sejam legítimas. assim, as leis que restringem direitos fundamentais devem ser genéricas, proporcionais, e não podem ser vagas. isso levou parte da doutrina a afirmar que a vagueza do direito ao esquecimento o impediria de restringir (validamente) tantos direitos fundamentais que com ele colidem. todavia, o direito ao esquecimento, como o próprio nome revela, afigura-se como um direito fundamental, e não propriamente uma restrição a essa gama de direitos. assim como qualquer direito, suas fronteiras acabam por delimitar o exercício de outros direitos confinantes. É a velha parêmia: o direito de um acaba quando começa o do outro. não sendo uma restrição a direitos fundamentais, mas sim um direito fundamental autônomo, sua existência não reclama a incidência da doutrina dos limites dos limites. trata-se de um direito constitucional implícito no art. 5º, X, assim como o princípio da razoabilidade está nas entrelinhas do art. 5º, liv (due process of law). E também não se diga que o seu conteúdo vago o desqualifica como direito constitucional, afinal, o direito fundamental à dignidade humana é dotado de uma elevadíssima carga de abstração e nem por 76
isso é desqualificado como norma cogente. Como lembra ingo wolfgang Sarlet12, “[...] já se afirmou até mesmo ser mais fácil desvendar e dizer o que a dignidade não é do que expressar o que ela é”. Realçando a porosidade da dignidade humana, ingo Sarlet arremata: [...] se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambiguidade e porosidade, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos à dignidade humana.13
O maior limitador de direitos fundamentais é o direito à dignidade humana, e nem por isso se lhe exige que abandone sua vagueza e imprecisão para validamente limitar outros direitos fundamentais. logo, nada impede que o direito ao esquecimento, assim como a dignidade humana, consagre-se como uma cláusula geral. Direitos preferenciais versus princípio da unidade da Constituição Como se teve oportunidade de ver, parte da doutrina nega a existência do direito de não ser lembrado. a viga mestra da corrente negativista, capitaneada por Daniel Sarmento14, é a suposta primazia de que as liberdades comunicativas desfrutariam em uma eventual colisão com os direitos da personalidade. Uma coisa é o que o Direito é. Outra, bem diferente, é aquilo que se gostaria que ele fosse. nos Estados Unidos, o Direito Constitucional tem consagrado a doutrina dos direitos preferenciais, lastreados na 1ª Emenda, cuja matriz é a liberdade de expressão (freedom of speech). Para se ter ideia, até mesmo membros da Ku Klux Klan podem expressar suas ideias racistas, realidade inimaginável em terras brasileiras. Embora se reconheça uma remota tendência de atribuir primazia às liberdades de expressão, que ainda é amplamente majoritária no brasil a incidência do princípio da unidade da Constituição. SaRlEt, op. cit., posição 699. ibidem, posição 68. 14 Repita-se: o doutrinador da Escola Fluminense de Direito Constitucional reconhece o direito ao esquecimento em situações tão restritas que, na essência, traduz uma negação ou esvaziamento. 12 13
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Por força dele, todas as normas constitucionais estão no mesmo patamar hierárquico, quer se trate de direitos fundamentais, direitos não fundamentais, cláusulas pétreas, normas originárias ou normas derivadas. ademais, também é amplamente aceita entre nós, inclusive mais do que deveria, a doutrina de Robert alexy, segundo a qual a colisão de princípios constitucionais há de ser solucionada a posteriori, por meio da aplicação da regra da proporcionalidade. infere-se, pois, que não é de todo correto presumir que o fiel da balança deva pender para as liberdades comunicativas, em uma eventual tensão de direitos. ilustrativamente, quando um paparazzi escala uma árvore para fotografar uma atriz que amamenta seu filho no jardim de seu lar, a foto simplesmente não poderá ser publicada. O Juiz prudente deverá perceber o óbvio: que o direito à liberdade de imprensa não é absoluto e que o abuso, no caso narrado, determina maior peso ao direito à intimidade. CONCLUSÃO Por tudo o que foi elucidado linhas acima, conclui-se que o direito ao esquecimento está positivado no ordenamento jurídico, mas aloja-se nas entrelinhas. não foi explicitado, mas está implícito no art. 5º, X, CF/88. Sua vagueza em nada compromete o seu caráter cogente, assim como a cláusula geral da dignidade humana. O grande obstáculo ao exercício do direito ao esquecimento é a dificuldade de aferir, em concreto, se um fato se reveste de interesse público. não se verificando o interesse coletivo na informação, quem vivenciou os fatos desabonadores tem o direito de ser esquecido. trata-se de um direito subjetivo, portanto, que permite ao seu titular a exigência de uma prestação positiva ou negativa da parte adversa. apesar de subjetivo, é imune à prescrição, dada a sua natureza de direito fundamental. Pessoas jurídicas podem exercer esse direito, exceto as fazendas públicas. Pessoas físicas de notoriedade social podem fazer uso do direito de não serem rememoradas, mas desde que não carreguem consigo um fragmento da biografia nacional, isto é, desde que não haja interesse público no conhecimento do fato desabonador. informação noticiável é aquela que não fere a honra ou, 78
embora nociva à reputação, interesse à coletividade. Embora noticiáveis, podem perder essa qualidade com o decurso do tempo, pois o passar dos dias tem o condão de subtrair o interesse público no conhecimento das informações. Um giro copérnico, que sinalize uma substancial mudança de vida daquele que protagonizou os fatos não edificantes, pode revelar que os acontecimentos não mais devem ser propalados. É a incidência da cláusula rebus sic stantibus, perfeitamente aplicável ao direito de ser olvidado. a rigor, o direito ao esquecimento não assegura que algo seja efetivamente esquecido, mas apenas que os fatos injuriosos não sejam recolocados na pauta do dia. Parte dos vestígios históricos dos acontecimentos é preservada, o que o torna conciliável com o direito imaterial à verdade histórica. Cuidando-se de um direito constitucional, não é possível afirmar, a priori, que direito pesará em uma eventual tensão de princípios constitucionais. Deste modo, a doutrina dos direitos preferenciais fere o princípio da unidade da Constituição. O direito ao esquecimento, como uma dimensão da dignidade humana, assegura que somente os momentos felizes da vida sejam guardados ad perpetuam rei memoriam. REFERÊNCIAS MEnDES, gilmar Ferreira; bRanCO, Paulo gustavo gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. SaRlEt, ingo wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto alegre: livraria do advogado, 2012, kindle Edition. SaRMEntO, Daniel. liberdades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional brasileira. Parecer jurídico, 22 jan. 2015.
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