Destino dos instrumentos de crimes contra o ambiente

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Pedro Abi-Eçab* DESTINO DOS INSTRUMENTOS DE CRIMES CONTRA O AMBIENTE1 DEStinAtiOn Of inStRUMEntS Of EnviROnMEntAl CRiMES DEStinO DE lOS inStRUMEntOS DE lOS DElitOS AMbiEntAlES

Resumo: Concretizando mandamento constitucional expresso, a Lei 9.605/1998 tipificou as condutas lesivas ao meio ambiente e criou diversas regras próprias, dentre as quais se destaca a que determina o perdimento dos instrumentos utilizados na prática desses crimes, sendo objetivo deste trabalho analisar o destino desses bens e como essa regra de perdimento equivocadamente não vem sendo aplicada por alguns tribunais, desarticulando o sistema de proteção penal do bem ambiental. Abstract: Materializing expressed constitutional act, law 9.605/1998 typified the harmful practices against the environment and created several rules, among which stands out the one that determine the confiscation of instruments used in commitment of such crimes, and the purpose of this work is to analyze the destination of these goods and how this rule of forfeiture has not been mistakenly applied by some courts, dismantling the criminal protection system of the environment. * Mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP. Promotor de justiça do Estado de Rondônia. 1 O presente artigo é baseado em tese aprovada no 11º Congresso de Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo, São Roque, 2007,tendo sido devidamente atualizado, notadamente após o Decreto 6.514/2008.

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Resumen: Al concretizar ley constitucional expresa, la Ley 9.605/1998 ha tipificado las conductas perjudiciales para el medio ambiente y ha creado una serie de normas específicas, entre las cuales se destaca la que determina la confiscación de los instrumentos utilizados en la práctica de esos delitos, siendo objetivo de este trabajo analizar el destino de esos bienes y cómo esa regla de la pérdida erróneamente no ha sido aplicada por algunos tribunales, desmantelando el sistema de protección penal del bien ambiental. Palavras-chaves: Crimes ambientais, instrumentos do crime, perdimento. Keywords: Environmental crimes, instruments of crime, forfeiture.

Palabras clave: Los delitos ambientales, los instrumentos del delito, la pérdida.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objeto analisar qual a destinação dos instrumentos utilizados na prática de crimes contra o ambiente no ordenamento jurídico brasileiro. Muito embora a lei 9.605/1998 (lei de Crimes Ambientais) determine com clareza que os instrumentos do crime contra o ambiente “serão apreendidos” e “vendidos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem” (art. 25, caput e § 4º), têm sido raras, na prática, as decisões judiciais impondo ao 188


infrator a efetiva perda do bem. na maioria dos casos, decide-se por sua restituição ao proprietário ou infrator, sob os mais variados argumentos, alguns deles de duvidosa juridicidade. Assim, embora a interpretação literal da lei aparentemente não traga dúvidas, faz-se necessário examinar o assunto com mais vagar, pois, ao que tudo indica, trata-se de mais um dispositivo legal que, como lamentavelmente ocorre em nosso país, “não pegou”. trata-se, dessa forma, de problema a ser examinado com rigor científico, sob pena de a situação fática redundar em crise de eficácia da norma ambiental, dado seu costumeiro descumprimento, mesmo diante de uma torrente de crimes ambientais2.

O BEM AMBIENTAL E SUA IMPORTÂNCIA

A Constituição da República (1988) foi a primeira em nosso ordenamento a positivar a garantia de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial não só às presentes como às futuras gerações (art. 225, caput). visando dar efetividade ao direito fundamental anteriormente citado, o parágrafo 3º do mesmo dispositivo constitucional dispôs que as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções de natureza civil, administrativa e penal, o que evidencia a nítida intenção do legislador constituinte em maximizar a proteção do bem jurídico meio ambiente através da atuação em três esferas. Em todo o país, são frequentes os exemplos de instrumentos de crimes contra o ambiente que não tiveram seu perdimento decretado. É o caso de motosserras, de veículos terrestres ou aquáticos envolvidos com transporte ilegal de madeira, palmito, ou espécimes da fauna silvestre, de maquinário utilizado na extração ilegal de minérios (dragas), bem como em atividades de mineração ou desflorestamento ilegais.

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bem difuso cuja imprescindibilidade é cada vez mais reconhecida em tempos de caos ambiental planetário (sendo o aquecimento global e a escassez de água potável apenas dois dos mais assustadores sintomas já vivenciados), o meio ambiente relaciona-se diretamente com a garantia da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, iii), objetivo primordial da República, bem como com o direito à vida (art. 5º, caput), devendo também ser respeitado por toda e qualquer atividade econômica (art. 170, vi). Com efeito, é impossível pensar em vida digna para as presentes e futuras gerações fora de um meio ecologicamente equilibrado, de modo que a existência da espécie humana depende da proteção a esse bem.

A RESPONSABILIZAÇÃO AMBIENTAL E SUAS ESFERAS

Conforme estabelecido no texto constitucional, a responsabilidade ambiental ocorre através de três esferas autônomas, a saber: civil, administrativa e penal. nessa tríplice responsabilização inexiste bis in idem, como leciona fiorillo (2005, p. 47). Por esta razão, em muitos casos o infrator incidirá tanto em tipos penais como administrativos (previstos no Decreto 6.514/2008), de modo que estará sujeito às autoridades judiciária e administrativa, que aplicarão, se necessário, as respectivas sanções. no caso dos instrumentos do crime ambiental, em razão da mencionada autonomia, o perdimento poderá ser decretado tanto pela autoridade judicial como pela administrativa (art. 72, iv, da lei 9.605/1998). Porém, conquanto sejam autônomas, as esferas de responsabilização ambiental são interdependentes, e casos haverá em que a decisão na esfera judicial (especialmente a penal) repercutirá sobre as esferas civil e administrativa. É o caso, por exemplo, da absolvição com fundamento no art. 386, i, do CPP. Por 190


outro lado, o infrator pode vir a ter o perdimento do instrumento decretado na esfera administrativa mesmo sendo absolvido no juízo penal (caso do art. 386, incisos iii, vii, do CPP, p. ex., pois aqui não se exclui a responsabilidade administrativa)3.

SISTEMÁTICA DA LEI N. 9.605/1998

O espírito da lei As considerações acima são pertinentes na medida em que a leitura com viés teleológico da Carta de 1988 e da lei 9.605/1998 denotam a preocupação do legislador em proteger com vigor o meio ambiente, para isso punindo com mais rigor aqueles que o degradam. Dessa forma, a Constituição traz disposições sobre o meio ambiente que jamais haviam sido expressamente formuladas em nossa história constitucional; enquanto a lei de Crimes Ambientais de 1998 traz sanções muito mais severas do que aquelas estipuladas na legislação anterior4. Dessa forma, a norma deve ser interpretada como um diploma de caráter sancionador, ainda que descarcerizante5, haja vista Entendendo que a absolvição criminal não implica em impossibilidade de aplicação da sanção administrativa, o tRf da 4ª Região decidiu que “tendo em vista a independência das esferas cível e penal, a conduta praticada pelo demandante pode resultar em um ilícito administrativo, caso em que a multa aplicada pela autarquia demandada não se subordina ao julgamento da ação criminal” (relatora vânia Hack de Almeida, DJU 07/12/2005, p. 874). 4 Anteriormente a 1998 verificava-se a existência de normas penais esparsas de proteção à natureza, sendo a lei de Contravenções Penais (art. 64), o Código de Caça (lei 5.197/1967) e o Código florestal (lei. 4.771/1965) os exemplos mais importantes. Em todos esses diplomas, as infrações eram tratadas como contravenções, sendo as sanções bastantes brandas e, no mais das vezes, inócuas. 5 Diz-se do caráter descarcerizante, pois, embora as sanções sejam bem mais severas do que na legislação anterior, raras serão as vezes em que o infrator 3

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a importância do bem jurídico a ser protegido e da preocupação cada vez maior da humanidade em sua preservação. Com relação aos efeitos da nova lei sobre a legislação anterior, deve-se ressaltar que a mesma possui inegáveis efeitos derrogatórios sobre as normas que lhe contrariarem, haja vista o disposto no art. 2º do Decreto-lei n. 4.657/1942 (lei de introdução ao Código Civil), já que dispôs integralmente sobre a tipificação dos crimes contra o meio ambiente e, ainda, criou novas disposições processuais. Desse modo, as regras dos Códigos Penal e de Processo Penal só se aplicam subsidiariamente às da lei 9.605/1998 quando esta for omissa e no que não lhe contrariarem.

Dos instrumentos do crime e sua apreensão

Gilberto e vladimir Passos de freitas (2001, p. 278) conceituam os instrumentos do crime como sendo “tudo que tenha sido utilizado para a prática do mesmo. São os materiais, as coisas que, usadas, não se destroem e as que podem ser substituídas por outras semelhantes e que tenham sido usadas pelo agente”. De fato, constituem instrumentos do crime tudo aquilo que foi usado para a prática do mesmo, razão pela qual Damásio de Jesus (1998) trata como instrumentos os veículos, tais como o automóvel, a locomotiva, o avião e o navio, com os quais é realizada a conduta típica. Com relação aos instrumentos utilizados na prática de crimes contra o ambiente, a lei 9.605/1998, em caráter inovador e diversamente do que estabelece o Código Penal (art. 91, ii, “a”), preceitua que:

terá sua liberdade restrita através de prisão, já que a maior parte dos tipos penais estão sujeitos à transação ou à suspensão condicional do processo previstas na lei 9.099/1995. Ainda quando tais benefícios não forem cabíveis, será possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (art. 8º da lei 9.605/1998).

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Art. 25. verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. [...] § 4º. Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem. [...] Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no artigo 6º: [...] iv - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; v - destruição ou inutilização do produto; [...] § 6º. A apreensão e destruição referidas nos incisos iv e v do caput obedecerão ao disposto no artigo 25 desta lei.

Regulamentando a lei, o art. 134, do Decreto 6.514/2008, dispõe categoricamente que, após decisão que confirme o auto de infração, os instrumentos utilizados na prática de infração “não mais retornarão ao infrator” (caput), devendo, nos termos do inciso iv, ser destruídos, utilizados pela administração quando houver necessidade, doados ou vendidos, garantida a descaracterização (a fim de evitar novas infrações). Segundo o inciso v, a descaracterização não se aplica aos equipamentos, veículos ou embarcações previstos no art. 72, iv, da lei 9.605/1998, os quais serão utilizados pela administração quando houver necessidade, doados ou vendidos. Como se vê, enquanto a lei penal geral (art. 91, ii, “a”) determina que somente determinados instrumentos do crime devem ser destruídos (quando forem objetos de porte, detenção ou fabricação ilícita), a lei ambiental penal não diferencia os instrumentos do crime ambiental, ou seja, não traz qualquer exceção à regra de perdimento6, de modo que qualquer instrumento utilizado para a prática de crime contra o ambiente, seja de origem, 6 Como forma de interpretar o dispositivo da lei 9.605/1998, o Ministério Público de Rondônia, em encontro dos promotores de justiça com atribuições ambientais, realizado pelo Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente nos dias 20 e 21 de junho de 2007, pacificou entendimento de que: “Os veículos utilizados na prática de crime ambiental constituem instrumentos das referidas infrações, eis que o art. 25, § 4º, da lei 9.605/98 não criou qualquer distinção” (Enunciado 2).

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uso ou posse lícitos ou não, deverá ser utilizado pela administração, doado ou vendido. trata-se de evidente exemplo de preponderância da lei especial e posterior sobre a lei geral e anterior. Outra não é a opinião de Carlos Ernani Constantino (2002, p. 102): a lei Ambiental, em seu art. 25, caput, não fez tal ressalva, mas ordenou, pura e simplesmente, a apreensão dos instrumentos da infração (penal ou administrativa), sem deixar consignada a restrição ‘desde que (os instrumentos) consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito’. Assim, mesmo que os instrumenta utilizados na infração (administrativa ou penal) sejam de fabrico, alienação, uso, porte ou detenção permitidos, deverão ser apreendidos e vendidos. [...] isso com base no princípio de que lex specialis derogat generali, isto é: a lei especial (lei Ambiental) prepondera sobre a lei geral (CP) em sua aplicação.

Com efeito, a exemplo do que já dispunha tanto a antiga legislação penal de tóxicos como a atual (lei 11.343/2006), o instrumento do crime, seja seu uso, fabrico ou porte lícito ou não, deverá ter seu perdimento decretado, não se aplicando a regra geral do Código Penal7. É possível, portanto, observar com clareza a intenção do legislador em agravar o sancionamento das condutas penalmente lesivas ao meio ambiente, através do perdimento do instrumento utilizado na prática do crime, o que inegavelmente possui caráter punitivo e pedagógico, constituindo-se em moderno e interessante instrumento de repressão, pois não ataca a liberdade do agente, mas apenas seu patrimônio8. nesse sentido, sentença proferida no Juizado Especial Criminal de GuajaráMirim-RO: “O Código Penal somente prevê o perdimento dos instrumentos do crime quando eles forem de origem ilícita. Já a previsão da lei ambiental assemelha-se a da lei de drogas: os instrumentos utilizados na prática do crime, independentemente de sua origem lícita ou ilícita, poderão ser confiscados” (Ação penal 015.2006.011299-2, juiz Marcelo tramontini, j. 7.8.2007). 8 Oportuno ressaltar que, em nosso direito, a propriedade pressupõe o atendimento de sua função social (CR, art. 5º, XXiii), assim como a atividade econômica deve respeitar o meio ambiente (CR, art. 170, vi). Posto isto, é evidente que o proprietário de bens móveis que os emprega para a prática criminosa de atos contra o meio ambiente (bem todos e essencial, como já visto) não atende ao pressuposto de obediência à função social. 7

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importante destacar que o legislador não criou distinções entre os instrumentos do crime ambiental, de modo que não cabe ao intérprete fazê-lo. Assim, veículos, maquinário, ferramentas, armas de fogo9, tudo terá o mesmo destino. não exigiu a lei que os instrumentos sejam habitualmente empregados na prática de crime, bastando uma única utilização e sua relação com o resultado (consumado ou tentado) da infração10. freitas e freitas (2001) atentam para o fato de a apreensão, além de se constituir em valioso elemento de prova, em muito concorrerá para que cesse a atividade degradadora. É o que ocorre, por exemplo, com a apreensão de veículos, barcos ou aeronaves empregados pelo agente para o transporte de outros instrumentos usados para a prática delituosa ou para a retirada do produto do crime.

Depósito

Assim que forem apreendidos, os instrumento devem ser colocados sob os cuidados de pessoa encarregada de sua guarda e cuidado até o momento da destinação definitiva. Surgem então, para a autoridade policial ou para o órgão ambiental, duas situações mais comuns: nomear como depositário o próprio infrator ou uma terceira pessoa.

As armas de fogo podem ser instrumento dos crimes previstos na lei 10.826/2003, lei especial que derroga no particular a legislação ambiental. todavia, caso não incidam naqueles tipos, poderão ser objeto de crime da lei 9.605/98 mesmo que o infrator não viole as normas da legislação que regulamentam o uso e o porte de armas. É o caso, p. ex., de agente possuidor de porte de arma de fogo e proprietário de espingarda devidamente registrada que venha a cometer crimes como os dos artigos 29, 32 ou 52. nesses casos, o instrumento do crime é perdido, ainda que o porte seja legal. 10 instrumento é “todo objeto que serve de ajuda para levar a efeito uma ação física qualquer; qualquer objeto considerado em relação à sua função, ao uso que dele se faz, utensílio; [...] recurso ou pessoa que se utiliza para chegar a um resultado; meio, intermediário” (HOUAiSS, 2001). 9

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A primeira hipótese deve ser evitada, utilizando-se apenas em casos excepcionais. isso porque, com o instrumento do crime em mãos do próprio infrator, grandes serão as chances de que este perpetue a prática ilícita ou mesmo oculte o bem, temendo as consequências da lei11. Apenas em casos isolados, quando a remoção do bem for extremamente difícil ou quando não houver estrutura suficiente para a mantença em depósito por terceira pessoa, pode se justificar a nomeação do infrator como depositário. Assim, a colocação do instrumento apreendido em depósito de terceira pessoa revela-se a medida mais prudente, pois garante a aplicação da lei e impede a reiteração da prática delituosa. Para que isso seja cumprido, é aconselhável a atuação do órgão do Ministério Público, emitindo recomendação aos órgãos fiscalizadores ambientais, bem como à autoridade policial, a fim de que somente coloquem o instrumento do crime em depósito do infrator em casos excepcionais e devidamente justificados12.

Restituição

Caso não tenha o depósito sido efetuado em favor do infrator, será possível que este efetue pedido de restituição junto ao juízo criminal competente, nos termos do CPP, ou ajuíze

Evidente que a casuística é variada, ainda mais diante da realidade multifacetária da sociedade contemporânea, bem como da diversidade entre as regiões do brasil. O infrator pode tanto ser uma grande empresa com sede fixa e com um nome a zelar, como um madeireiro que explora os confins da região amazônica, através de uma pessoa jurídica registrada em nome de “laranjas”. O caso concreto ditará a melhor medida. 12 A atuação do MP revela-se importante, pois muitos órgãos ambientais e a própria polícia têm o costume de deixar o bem em mãos do próprio infrator, já que, além dessa medida acarretar menos transtornos ao servidor público burocrata (que não necessitará providenciar um terceiro como depositário, o qual poderia ser ele mesmo ou outro servidor do órgão) acaba por contentar o próprio infrator (que muitas vezes possui algum poder de injunção política). 11

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demanda cível (mandado de segurança, p. ex.) caso haja unicamente a apreensão na esfera administrativa. A legitimidade para pleitear a restituição é exclusiva do proprietário do bem13, sendo imprescindível a apresentação de prova do domínio. Havendo dúvida sobre esta, a questão deverá ser discutida no juízo cível (CPP, art. 120, § 4º). no caso do pedido de restituição criminal, devem ser analisadas as mesmas circunstâncias já estudadas a respeito dos problemas relativos à colocação do bem apreendido em depósito do infrator. Além disso, nesse momento deve-se ressaltar a incidência do disposto no art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, ou seja, se a regra é o perdimento do bem, não há razão justificável, salvo flagrante ausência de justa causa14, para a restituição ao infrator15. A restituição pleiteada na esfera civil, geralmente através de mandado de segurança, somente poderia se vislumbrar no caso de pedido de anulação do auto de infração, o qual, recorde-se, é dotado de presunção de veracidade e legitimidade, visto tratar-se de ato administrativo. Como se sabe, o mandado de segurança não possui dilação probatória, de modo que somente ilegalidades constatáveis icto oculi, vale dizer, flagrantes, poderiam ser corrigidas. nesse sentido, em aresto assim ementado, decidiu o tribunal de Justiça de São Paulo a respeito do tema: Deve ser denegado o mandado de segurança em que pleiteada a liberação de veículo apreendido, em termo circunstanciado, por utilização em suposta prática de crime ambiental, uma vez que não há direito líquido e certo do impetrante, pois o art. 25 da lei “Para fins de restituição é imprescindível a demonstração da propriedade dos bens” (tRf da 1ª Região, ACR 2006.36.01.000492-7/Mt, rel. Des. tourinho neto, 3ª turma, DJ 20/04/2007 p.26, j. 10/04/2007, v.u.). 14 Por exemplo: manifesta atipicidade, prescrição ou ausência de indícios mínimos de autoria ou participação. 15 O Ministério Público do Estado de Rondônia, em encontro dos promotores de justiça com atribuições ambientais, realizado pelo Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente nos dias 20 e 21 de junho de 2007, pacificou entendimento de que: “O art. 25, § 4º, da lei 9.605/98 determina que instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem, sendo portanto vedada sua restituição” (Enunciado 1). 13

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nº 9.605/98 estabelece o perdimento de produtos e instrumentos envolvidos nessas infrações.16

Ainda que o pedido de restituição seja considerado procedente pelo juízo, isso não significará o retorno do bem ao infrator. isso porque pode haver apreensão pelo órgão ambiental e, como já visto, as esferas de responsabilização são autônomas, não havendo, nesse particular, sujeição da esfera administrativa à judicial (salvo, evidentemente, no caso de decisão do juízo cível que anule o ato administrativo de constrição). Assim, segundo freitas e freitas (2001, p. 279-280), embora liberado o bem pelo juízo criminal, isso não significa que ele deve ser devolvido ao proprietário. É que, além da apreensão pelo ilícito penal, outra deve ser feita em razão do ilícito administrativo (lei 9.605/98, art. 70) [...] Ora, o proprietário de veículo usado para transporte irregular de madeira poderá sofrer pena administrativa de perda do bem (lei 9.605/98, art. 72, iv).17

Por essa razão, deve-se ter a cautela de, em decisão judicial (e em atos dela decorrentes, como alvará de liberação, p. ex.) que não anule expressamente o ato administrativo de apreensão, fazer constar a advertência de que a liberação não deve ser efetuada caso haja restrição na esfera administrativa18. trata-se, grosso modo, de hipótese semelhante à do alvará de

MS n. 436.742/0, Cubatão, 3ª Câmara, rel. Des. Ciro Campos – j. 29.4.2003, v.u. É com pesar a constatação, na prática forense cotidiana, do posicionamento de magistrados e membros do MP fruto de um profundo desrespeito para com a autoridade administrativa, além do cabal desconhecimento da lei. É comum observarse decisões judiciais determinando a liberação do bem em atropelo da autonomia das esferas e, pior, como se o órgão ambiental estivesse subordinado hierarquicamente ao Judiciário. Reitera-se que, salvo decisão em demanda judicial visando a anulação do ato administrativo, não é lícito ao juiz determinar a restituição do bem de forma incondicional se existe ato de apreensão na esfera administrativa. 18 É bastante recomendável que o MP requeira a vinda aos autos do processo criminal de cópia do procedimento administrativo existente no órgão ambiental. Além da questão da apreensão de instrumentos, podem existir informações pertinentes para o próprio mérito da imputação. 16 17

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soltura, na qual o preso é posto em liberdade se por outro motivo não estiver detido.

Destinação A apreensão é um estado transitório, pois o destino do bem é a restituição ao seu legítimo proprietário (em caso de absolvição, p. ex.) ou seu perdimento, nos termos do art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998. O mencionado dispositivo da lei de Crimes Ambientais não deixa dúvidas de que os instrumentos utilizados na prática do crime ambiental devem ser vendidos. O procedimento do leilão, segundo Gilberto e vladimir Passos de freitas (2001, p. 279-280), será o do Código de Processo Civil, ante o silêncio da lei 9.605 e do CPP, devendo haver “severa fiscalização do juiz e do representante do Ministério Público a respeito do destino dos bens apreendidos”. Entretanto, diante das especificidades do caso concreto, pode se cogitar da aplicação analógica do disposto no parágrafo 2º do art. 25, doando-se os instrumentos em favor de instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes que previamente manifestem interesse nestes. A medida certamente seria recomendável tanto do ponto de vista técnico (jurídico), como ético e social, além de ser procedimentalmente mais prática do que o leilão, que em muitas ocasiões poderia resultar infrutífero.

transação penal e suspensão condicional do processo Diante das penas cominadas na lei 9.605/1998, torna-se necessário analisar quais as implicações da celebração de transação penal ou da aceitação de proposta de suspensão condicional do 199


processo em relação aos instrumentos do crime. Poderia se questionar da impossibilidade da decretação de perda dos objetos ante o imperativo constitucional que veda a privação dos bens sem o devido processo legal (art. 5º, liv). todavia, referido entendimento é equivocado, já que a transação penal, bem como a suspensão condicional do processo, não constituem exceções ao devido processo legal, mas sim subordinam-se à ele. Desse modo, somente haveria violação ao devido processo, p. ex., no caso de infrator não assistido por advogado, por ocasião da aceitação da proposta ou por não ter acesso à esta mesmo preenchendo os requisitos. Dessa forma, o perdimento do instrumento do crime não ocorre tão somente através de sentença condenatória que o determine, podendo (e devendo) ser determinado incidentalmente pelo magistrado, após a manifestação do Ministério Público e do infrator, em respeito ao contraditório. Além disso, o perdimento pode ser objeto de cláusula da proposta de transação penal formulada pelo MP, conforme entendimento pacificado no fórum nacional de Juizados Especiais (fOnAJE): “Enunciado 58 - A transação penal poderá conter cláusula de renúncia à propriedade do objeto apreendido” (aprovado no Xiii Encontro – Campo Grande/MS). Analogicamente, é evidente que a proposta de suspensão condicional do processo poderá conter cláusula semelhante, nos termos do art. 89, § 2º, da lei 9.099/199519. frise-se que, caso não haja a não formulação, pelo órgão do MP, de proposta envolvendo o perdimento do instrumento do crime, como, por exemplo, no caso do infrator não preencher os requisitos necessários para o benefício (e sendo Caso na transação não seja aceito, pelo infrator, o perdimento como forma de exclusão do processo, necessário o oferecimento de denúncia, constando nas condições da proposta de suspensão do processo igualmente a cláusula de perdimento. Se rejeitada novamente pelo infrator, a eventual condenação obrigatoriamente deverá decretar o perdimento.

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caso de oferecimento de denúncia), o bem não poderá ser restituído ao infrator, ante a expressa vedação contida no § 4º do art. 25 da lei 9.605/1998. nessa hipótese, o destino do bem seria decidido por ocasião da sentença. Como se vê, há uma sistemática bastante distinta da tradicionalmente estudada no âmbito do processo penal comum, sendo certo o desafio imposto ao operador do Direito, ante a necessidade de instrumentos que concretizem a proteção do meio ambiente, superando a distância entre os arcaicos procedimentos previstos nos Códigos Penal e de Processo Penal, motivo pelo qual as recentes normas ambientais, principalmente a lei 9.605/1998, as quais necessitam ser interpretadas sob um novo viés. nesse sentido, decidiu o tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que “Às teorias conservadoras devem-se contrapor a criatividade e a proteção efetiva da qualidade de vida no planeta”, cabendo “aos juízes vasta função criativa, inçada de dificuldades” já que “à processualística resta apenas adaptar-se diante da nova criação doutrinária e buscar soluções”20.

Jurisprudência

Os julgados reunidos e ora analisados estão longe de constituir um exame exaustivo do entendimento dos tribunais brasileiros sobre a matéria. Entretanto, são inegável amostra de como nossas cortes têm interpretado os dispositivos legais anteriormente analisados, especialmente o art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998.

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HC n. 8.150-SP, rel. lagrasta neto, em Boletim IBCCrim, ano 10, n. 116, julho/2002.

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O art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998 e o princípio da proporcionalidade Princípios são mandamentos de otimização (AlEXY, 2005), normas que “ordenam que algo seja cumprido da melhor medida possível” (lOREnZEtti, 1998, p. 317), havendo hoje o reconhecimento pacífico da doutrina e da jurisprudência de que a proporcionalidade é princípio constitucional implícito a integrar a ordem jurídica brasileira. na visão de Alexy, a conflituosidade de princípios é decorrência natural da sociedade multifacetária atual. Analisando os mecanismos de solução das colisões, ensina que inexiste superioridade prima facie dos princípios em conflito, ou seja, uma relação a priori ou ex ante de preponderância, dado que a ponderação somente poderia ocorrer diante do caso concreto. Embora tal raciocínio seja correto para a maioria dos casos, inexistindo, de fato, princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão: não se pode negar, por outro lado, a existência de mandamentos de otimização relativamente fortes, capazes de preceder aos demais em praticamente todas as situações de colisão. Como exemplos podem ser citados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da proteção da ordem democrática e o direito à higidez do meio ambiente. (CRiStÓvAM, 2006, p. 235)

Por essa razão, o próprio Alexy admite o estabelecimento de um sistema de condições de prioridades, a fim de proporcionar informações sobre o peso relativo dos princípios. Em outras palavras, trata-se de estabelecer um sistema de prioridades prima facie, fixando a carga de argumentação e certa ordem no campo dos princípios, embora tal prioridade de um princípio sobre o outro poderá alterar-se no futuro, cabendo, a quem pretender modificar essa prioridade, encarregar-se da prova (PADilHA, 2006, p. 122-123). no mesmo sentido, Canotilho (apud ESPÍnDOlA, 2002, p. 244) ensina que a ponderação entre os princípios ocorre “consoante o 202


seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso”. feitas essas considerações, cabe analisar se a aplicação do princípio da proporcionalidade por alguns tribunais, redundando na restituição de instrumentos de crimes contra o ambiente, encontra-se dentro de parâmetros científicos. Ao manter decisão que autorizava a restituição de instrumento de crime ambiental ao infrator mediante depósito, decidiu o tRf da 1ª Região que: A apreensão de instrumento vinculado à prática de crime ambiental, de que trata o artigo 25, §4º, da lei 9.605/98, não se traduz em iniciativa absoluta, indiscutível, cabendo a mesma ser submetida ao crivo jurisdicional para aferição da proporcionalidade entre a perda do bem e o dano ambiental causado.21

Em semelhante sentido, o tRf da 3ª Região entendeu que havia desproporcionalidade entre o crime, a conduta de pescadores ilegais (tipificada no art. 34 da lei 9.605/1998) e a apreensão de petrechos de pesca e embarcação22. no caso em tela, percebe-se que as Cortes adotaram o princípio da proporcionalidade para mitigar a regra legal do perdimento, para isso usando como parâmetro o valor econômico do instrumento do crime em relação ao dano ambiental causado. Com a devida vênia, longe de ser algo de simples “PROCESSUAl PEnAl. CRiME AMbiEntAl. inStRUMEntOS DO CRiME. APREEnSÃO. PROPORCiOnAliDADE. REStitUiÇÃO DA COiSA APREEnDiDA. ARt. 118, DO CÓDiGO DE PROCESSO PEnAl. CAbiMEntO. 1. A apreensão de instrumento vinculado à prática de crime ambiental, de que trata o artigo 25, §4º, da lei 9.605/98, não se traduz em iniciativa absoluta, indiscutível, cabendo a mesma ser submetida ao crivo jurisdicional para aferição da proporcionalidade entre a perda do bem e o dano ambiental causado. 2. não dispondo a lei 9.605/98 quanto à restituição de bens apreendidos, encontra-se tal medida, nos casos de que trata o artigo 25, da citada lei, submetido ao disciplinamento procedimental dos artigos 118 e seguintes do CPP, devendo o julgador enfrentar cada uma das situações a autorizarem ou não a restituição pretendida. 3. Assegurando o julgador a restituição do bem mediante termo de depositário fiel, resguardando a eventual aplicação do artigo 25, § 4º, da lei 9.605/98, não merece reparo a decisão recorrida. 4. improvimento do recurso” (ACR 2004.37.00.007070-4/MA, rel. Ítalo fioravanti Sabo Mendes , 4ª turma, DJ 02/12/2005, p.147, j. 25/10/2005, v.u.). 22 Ap. Crim. 25663, 5ª turma, relatora Ramza tartuce, DJU 03/05/2007, p. 361. 21

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percepção, a mensuração do dano ambiental é hoje uma das questões mais complexas sobre a qual se debruçam os estudiosos de diversas áreas, especialmente em razão do equilíbrio ecológico não ser aferível de forma estanque, pois a natureza é composta de um intrincado esquema de relações entre seus diversos componentes, e a deterioração de um destes pode provocar reflexos imprevisíveis nos demais, afetando todo o equilíbrio23. Um dos exemplos mais corriqueiros é o dos veículos utilizados na prática de crimes ambientais, geralmente considerados tais bens de valor muito superior ao do dano. É o caso bastante corriqueiro dos caminhões utilizados para a prática do crime do art. 46, parágrafo único, da lei 9.605/1998 (“transportar”), e dos veículos de todo o tipo usados no transporte de animais silvestres para fins de comércio clandestino24. nessas duas situações, é de se indagar se o princípio da proporcionalidade consiste em avaliar o valor de mercado do instrumento do crime (p. ex., um caminhão) e compará-lo à quantidade de toras de madeira nele transportadas. na verdade, o dano ambiental da retirada dessas toras envolve a abertura de estradas (geralmente clandestinas, em razão da ausência de estudo de impacto ambiental) floresta adentro, a derrubada acidental ou não de árvores de menor valor comercial (uma tora, ao cair, arrasta consigo diversas outras árvores que estão ao seu redor) que não serão exploradas. Ora, a derrubada dessas árvores afugentará vários animais e inutilizará inúmeros ninhos de aves silvestres, que, por sua vez, integram cadeias alimentares e de polinização. Além disso, o cálculo do valor do dano ambiental Por essa razão, Antônio Herman benjamin (1993, p. 235) alerta que “nem sempre o dano ambiental é reparável”, e não raros são os casos em que não se consegue valorar adequadamente um bem ambiental e, por conseguinte, o dano. 24 Há sentença proferida em 2006 pelo juízo da vara única da Comarca de Ubiratã-PR restituindo veículo utilitário apreendido quando transportava ilegalmente duzentas aves da fauna silvestre, algumas delas mortas em razão das cruéis condições impostas (autos de n. 83/2006). Houve interposição de recurso de apelação pelo Ministério Público Estadual do Paraná, ainda não julgado. 23

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deve incorporar a perda de carbono fixado nas árvores destruídas. Conforme reconhece ney bello filho (2010, p. 275 e ss.): O Judiciário necessita observar questões extremamente pontuais a partir de um olhar global, [...] [a] tendência do Judiciário é observar cada um destes casos isoladamente, sem conectálos nem dar a eles a sua devida dimensão, olvidando que são apenas uma pequena parte do todo.

fato é que a fundamentação de decisões com base no princípio da proporcionalidade, nem sempre feita com rigor científico, acaba por traduzir, no mais das vezes, um suposto “bom senso” diante da casuística, o que está longe do balizamento metodológico proposto por Robert Alexy (2005, p. 339). Diante da abrangência dos princípios e do caráter plural e multifacetário da sociedade atual, é comum a colisão ou o conflito aparente de princípios. bonavides (2006, p. 279) lembra que a colisão de regras se resolve na dimensão da validade, enquanto a colisão de princípios na dimensão do valor. Portanto, no caso dos instrumentos do crime ambiental, deve-se sopesar os interesses constitucionais em jogo a fim de valorá-los: Interesses do infrator Direito de propriedade (art. 5º, XXii); Princípio da livre iniciativa (art. 170, caput).

Interesse ambiental (difuso) Princípio da solidariedade (art. 3º, i); Princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à saúde, qualidade de vida das presentes e futuras gerações, cuja defesa é dever de todos (art. 225, caput); Princípio da função social, condição sine qua non para o exercício do direito de propriedade (art. 5º, XXiii)25; Atividade econômica deve primar pelo respeito ao meio ambiente (art. 170, vi).

25

Seguindo o espírito constitucional, e ampliando o alcance especialmente para

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Além da valoração anterior, deve-se registrar que há considerável tendência jurisprudencial que entende não haver a incidência do princípio da insignificância (ou da ofensividade) em matéria de crimes ambientais26. Dessa forma, o argumento de desproporcionalidade entre o dano ambiental e o valor do instrumento do crime perde ainda mais força, já que reconhecida a importância do bem difuso tutelado e a considerável lesividade das condutas que o violam. lembre-se, porque oportuno, o ensinamento de Paulo Affonso leme Machado, segundo o qual a atividade degradadora do ambiente acaba sendo uma apropriação do degradador dos direitos de outrem, “pois na realidade a emissão de um poluente representa o confisco do direito de alguém em respirar ar puro, beber água saudável, viver com tranquilidade”. Por essa razão, o consagrado autor (2002, p. 314) cita o magistério de José de Aguiar Dias, que aduz não ser o conflito entre os interesses do homem e da natureza “permanente, como quer fazer crer a doutrina extremista, mas ocasional. E quando ele ocorre, então, sem nenhuma dúvida, o que há de prevalecer é o interesse da coletividade”.

O art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, e o art. 91, ii, “a”, do Código Penal Alguns julgadores têm entendido, com extrema criatividade, que a lei 9.605/1998 não determina o perdimento de veículos a matéria ambiental, dispõe o art. 1.228, § 1º, do Código Civil de 2002, que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. 26 “Princípio da insignificância – inaplicabilidade – Crime contra o meio ambiente – natureza, verdadeiro patrimônio da humanidade, cuja existência e exploração racional é assegurada a esta e às futuras gerações, que não pode sujeitar-se à tese de que eventual lesão seja insignificante em matéria penal” (tJMG, ApCrim 486.599-8, 5.ª Câm. Crim..v.u., rel. Des. Antônio Armando dos Anjos). “Crime contra a flora – Princípio da insignificância – inaplicabilidade – bem jurídico tutelado pela norma que não permite a aplicação do benefício, além da possibilidade de irreversibilidade do dano” (tRf da 1ª Região, ReCrim 2003.34.00.041672-3-Df – 4.ª t. – rel. Des. Carlos Olavo). Em semelhante sentido, ainda: tRf da 3ª Região, 5ª turma, RSE 4543, processo 2005.61.24.000380-8, rel. André nabarrete, j. 30.10.2006, DJ 21.11.2006, p. 605.

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e maquinários, pois esta não teria sido a intenção do legislador (sic). Segundo decidiu o tRf da 1ª Região, em caso de caminhão apreendido ao transportar ilegalmente madeira: não sendo o caminhão coisa cujo fabrico, alienação, uso ou detenção constitua fato ilícito, não há como considerá-lo, a princípio, instrumento de crime, até porque referido bem não é utilizado exclusivamente na prática de crimes. não foi intenção do legislador dirigir a norma do art. 25, § 4º, da lei 9605/98 aos bens que apenas ocasionalmente são utilizados nos delitos ambientais.27

Já o tRf da 3ª Região, em caso de pesca predatória, entendeu que: a jurisprudência vem suavizando o conceito de instrumentos de crime, não entendendo como tais as embarcações e os transportes utilizados, quando se trata de instrumento de crime de pesca predatória.28

Seguindo outro raciocínio, segundo o qual as disposições da lei 9.605/1998 devem ser interpretadas à luz do art. 91 do CP e do art. 118 do CPP (ignorando, portanto, que lei especial derroga lei geral, bem como o espírito da lei ambiental penal), o tRf da 1ª Região decidiu que: não obstante a restrição do alcance da regra do artigo 25 da lei 9605/98, nada obsta que, mesmo em se tratando de crime ambiental, a apreensão observe-se com amparo no artigo 91, do Código Penal, ou no artigo 118, do Código de Processo Penal.29

na mesma e equivocada trilha seguiu o tRf da 5ª Região, ao decidir pela aplicabilidade do art. 91, ii, “a”, do CP, no caso de caminhão apreendido transportando ilegalmente carvão vegetal, por considerar que não se tratava de coisa cujo fabrico, (ACR 2004.41.00.001763-1/RO, rel. Hilton Queiroz , 4ª turma, DJ 21/03/2005, p.79, j. 21/02/2005. idêntica decisão em: ACR 2002.30.00.002164-8/AC). 28 Ap. Crim. 25663, 5ª turma, relatora Ramza tartuce, DJU 03/05/2007, p. 361. 29 Ap. Crim. 2004.37.00.007066-3/MA, 4ª turma, rel. Ítalo fioravanti Sabo Mendes, DJ 14/09/2005 p.33, j. 16/08/2005. Curiosamente, o mesmo julgador relatou acórdão unânime em que a turma se manifesta em sentido diametralmente oposto: “O § 4º, do art. 25, da lei nº 9.605/98, afastou a possibilidade de se restituir coisa que tenha servido como instrumento para a prática de crime contra o meio ambiente” (ACR 2001.41.00.005007-9/RO, DJ25/04/2003, p.127, j. 01/04/2003). 27

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alienação, uso, porte ou detenção constituía fato ilícito30. tal criatividade não é elogiável. Com a devida vênia, os julgadores têm ido além do texto legal, enxergando distinção onde a lei não diferencia, ignorando os efeitos derrogatórios da lei especial, negando vigência a texto de lei federal e olvidando o espírito impresso na lei 9.605/1998, mostrando como os operadores do Direito ainda carecem de conhecimento mais profundo acerca da legislação ambiental e mesmo dos princípios constitucionais que se irradiam por todos os ramos do ordenamento. não obstante, o fOnAJE recentemente pacificou o entendimento de que: “Enunciado 97 - É possível a decretação, como efeito secundário da sentença, da perda dos veículos utilizados na prática de crime ambiental” (aprovado no XXi Encontro, vitória – ES, 2007). Com relação ao enunciado acima, entendemos que o “possível” deve ser interpretado como poder-dever, não havendo discricionariedade judicial. Em outras palavras, tratando-se de instrumento utilizado na prática de crime ambiental, este deverá ter seu perdimento decretado. Oportunamente, freitas e freitas (2001) mencionam aresto anterior à lei 9.605/1998, no qual já se determinava o perdimento de aeronave utilizada em mineração ilegal: Conforme decidiu o tRf da 1ª Região: ‘Aeronave utilizada na garimpagem ilícita, em área indígena, está sujeita a apreensão e perdimento, após sentença condenatória, transitada em julgado, devendo ser leiloada e o produto recolhido à conta do fundo nacional de Mineração’ (Acrim. 0133132/RR, rel. Juiz Gomes da Silva, j. 13.04.1994, DJU 12.05.1994, p. 22.225).

Em verdade, a grande polêmica diz respeito aos veículos utilizados na prática das infrações, geralmente porque às vezes seu perdimento representa, em si, uma penalidade que para o infrator soa mais grave que a própria sanção cominada no tipo penal, não se podendo ignorar que geralmente tais veículos são de propriedade de elites econômicas locais, umbilicalmente ligadas ao poder político31. 30 31

Apelação em MS n. 2004.81.00.001474-7, 4ª turma, DJ 14/10/2005, p. 934. Hoje é consenso que a decretação do perdimento dos caminhões e tratores empre-

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CONCLUSÕES ARTICULADAS

1. A lei 9.605/1998, integrante do microssistema jurídico ambiental, foi editada para cumprir mandamento constitucional expresso (art. 25, § 3º) e tem por escopo reprimir mais duramente a prática de crimes contra o ambiente, privilegiando instrumentos que não impliquem em restrição da liberdade individual. 2. nesse sentido, a lei 9.605/1998, no art. 25, caput, e § 4º, determina expressamente o perdimento dos instrumentos utilizados na prática de crimes nela definidos, assim como ocorre em outras leis (p. ex, lei 11.343/2006). 3. O legislador da mencionada lei não criou distinções entre os instrumentos do crime que devem ter seu perdimento decretado, não cabendo ao intérprete, portanto, fazê-lo. 4. Este perdimento pode ser decretado pela autoridade judiciária ou pela autoridade administrativa, sendo ambas autônomas. 5. O temperamento da regra de perdimento do instrumento do crime com base no princípio da proporcionalidade necessita avaliar a magnitude dos interesses difusos constitucionais envolvidos, especialmente os do art. 225, caput, art. 5º, XXiii, e art. 170, vi, da Constituição da República, que preponderam sobre o direito individual de propriedade.

gados na extração e transporte de madeira ilegal na Amazônia (vulgarmente conhecidos como “toreiros”) imporia a necessidade de uma profunda reformulação do modo de exploração desse recurso natural, hoje quase que totalmente realizado na ilegalidade. injunções políticas e socioeconômicas, entretanto, têm ocasionado o flagrante descumprimento do parágrafo 4º do art. 25, haja vista os inúmeros setores da sociedade amazônica que lucram com o crime do art. 46, parágrafo único, da lei 9.605/98.

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6. Uma das razões da não desarticulação de esquemas consolidados de reiteração delitiva na esfera ambiental reside no não perdimento dos instrumentos do crime, medida que implicaria em ônus ao infrator, tornando a prática da infração bem menos lucrativa, e, portanto, desinteressante, além de ter caráter altamente pedagógico. 7. É equivocada a forte tendência jurisprudencial que tem negado plena aplicação ao art. 25, § 4º, da lei 9.605/1998, impedindo, sob as mais diversas razões, o perdimento dos instrumentos de crimes contra o ambiente. 8. Cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo cumprimento da norma que determina a apreensão e o perdimento, para isso adotando os procedimentos necessários na esfera judicial (peticionando ao juízo ou interpondo recursos, p. ex.) ou extrajudicial, através da promoção de reuniões com os diversos atores envolvidos (órgãos ambientais, policiais e inclusive judiciários), a fim de uniformizar práticas e buscar a eficiência na atuação conjunta.

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