O CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO E O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

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Leandro da Silva Borba * Leís Márcio Batista Amorim** O CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO E O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA THE CONTROL OF JUDICIARY AND THE NATIONAL COUNCIL OF JUSTICE EL CONTROL DEL PODER JUDICIARIO Y EL CONSEJO NACIONAL DE JUSTICIA

Resumo: O Brasil adotou a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, mas a independência do Poder Judiciário ante os demais poderes sempre foi marcada pela discussão de seu alcance. Não foram raras as intervenções legislativas e executivas em seu controle. Nesse passo, surge o Conselho Nacional de Justiça, com a missão de controlar a administração e as finanças e garantir a transparência do Poder Judiciário. Acendeu-se o debate sobre os limites e a legalidade do CNJ, ao lado da possibilidade do exercício de controle da atividade judiciária pelo mesmo. Após a análise dos ensinamentos doutrinários e da jurisprudência do STF, será demonstrado que o Poder Judiciário está em perfeita sintonia com a Constituição Federal: independente e harmônico com o Legislativo e Executivo. Abstract: The Brazil adopted the theory of Montesquieu's separation of powers. Turns out the independence of the Judiciary against the other powers has always been marked by discussion of their reach. There were few interventions in their Legislative and Executive control. In this step, there is the National Council of Justice with the mission to control the administration and finance to ensure the transparency of the Judiciary. He lit up the debate on the limits and legality of CNJ, * Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba. Assessor de Promotoria do MP-GO. ** Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Ciências e Educação de Rubiataba. Escrevente e Conciliador - Poder Judiciário de Goiás.

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beside the possibility to exercise control of activity by the same. After analyzing the doctrinal teachings and jurisprudence from the Supreme Court, will be demonstrated that the Judiciary is fully in line with the Constitution, independent and harmonious with the legislative and executive branches. Resumen: El Brasil adoptó la teoría de la separación de los poderes de Montesquieu, pero la independencia del poder judicial ante los otros poderes siempre ha estado marcada por la discusión de su alcance. No fueron raras las intervenciones en su control legislativo y ejecutivo. En este paso, surge el Consejo Nacional de Justicia, con la misión de controlar la administración y las finanzas para garantizar la transparencia del poder judicial. Se encendió el debate sobre los límites y la legalidad del CNJ, junto con la posibilidad de ejercer el control de la actividad de un organismo o poder judicial. Después de analizar las enseñanzas doctrinales y la jurisprudencia de la Corte Suprema de Justicia, se demostró que el poder judicial está en plena consonancia con la Constitución Federal: independiente y en armonía con los poderes Legislativo y Ejecutivo. Palavras-chave: Tripartição de poderes, controle externo, independência funcional. Keywords: Tripartite division of Council of Justice, external control, functional independence. Palabras clave: Tripartición de poderes, control externo, independencia funcional.

INTRODUÇãO A ordem constitucional, representada materialmente por nossa Constituição Federal, possui, dentre outras funções, a 404


indelegável missão de reger o Estado, não só na sua organização, como também controlando os atos que são endossados em seu nome, além de eleger diversos direitos e garantias fundamentais para toda a sociedade. Desta feita, a abrangência, para o direito público, do seu conteúdo é um horizonte infinito, tendo em vista que a Constituição é o ponto de partida de qualquer organização política de um Estado. Por ela, os direitos e deveres são previamente estabelecidos, criando um indissolúvel e estreito nexo entre a Constituição e a Administração, tendo em vista que a primeira considera o Estado enquanto constituído, delimitando as balizas para a sua atuação, ao passo que a administração enfoca a respectiva atuação em busca da finalidade pública. Nesse proceder, é de se ressaltar que a nossa Constituição Federal de 1988 buscou tipificar de forma explícita e taxativa essa organização do Estado, sobretudo atinente à divisão e composição dos poderes de nosso país, e fez isso logo em seu início, em seu art. 2°, dizendo que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Na realidade, essa organização dos poderes seguiu a ordem constitucional mundial majoritária, a qual remonta à célebre divisão estatuída preliminarmente por Aristóteles e modernamente por Montesquieu. Alguns doutrinadores ainda se arriscam a fazer uma comparação sutil entre os três poderes com o Ministério Público, porém, somente em âmbito funcional, com nenhuma analogia às suas funções constitucionais, até porque cada órgão possui organização distinta. Ademais, a inclusão do Ministério Público nessa conceituação refere-se tão somente a sua função de guardião do bem comum e da lei, também denominado de custus legis1. Sobre o assunto, ensina Moraes (2005, p. 370): A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da Instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre

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Do latim: fiscal da lei (PRADO, 2005).

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eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controle recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de Direito.

A partir daqui, passemos a enfocar com mais acuidade o Poder Judiciário, envolvendo sua organização, funcionamento e atribuições, tudo sob a ótica constitucional, a fim de compreender de forma mais ampla e segura acerca de seus atos e de sua administração interna. Além disso, buscaremos analisar sobre eventual ingerência dos demais poderes da federação em sua seara e vice-versa, além do possível controle interno do judiciário pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, o qual é um dos seus órgãos. Nesse ínterim, tem-se como divisor de águas a Emenda Constitucional n. 45/2004, a qual possui como objeto nada mais que a organização do Poder Judiciário, visando precipuamente regulamentar esse controle, que alguma das vezes poder-se-á ser verificado até mesmo de forma externa, então denominado ‘controle externo do judiciário’, porém, com ressalvas salutares. A TRIPARTIÇãO DOS PODERES ESTATAIS A instituição do Estado é marcada por seu principal meio de imposição: o poder. Não existe Estado sem poder, pois, do contrário, este não conseguiria coagir seus membros a determinar-se de acordo com sua vontade. O exercício do poder estatal aparece, basicamente, estabelecido em duas formas: concentrado na vontade de um único órgão (monarquia) ou compartilhado entre seus entes. Com efeito, a concentração do poder do Estado em uma só pessoa se revelou como uma medida desaconselhável, visto permitir que o soberano haja tão somente de acordo com seu desejo, além de colidir com a liberdade individual, conforme leciona Ferreira Filho (1999, p. 130): À luz da experiência, porém, essa concentração aparece

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inconveniente para a segurança do indivíduo, por dar a alguém a possibilidade de fazer de todos os outros o que lhe parecer melhor, segundo o capricho do momento. Embora tenha ela a vantagem da prontidão, da presteza de decisões e de sua firmeza, jamais pode servir à liberdade individual, valor básico da democracia representativa.

Daí, no ensejo de limitar os poderes concedidos ao soberano, surgem técnicas de divisão do poder estatal, entre elas a divisão funcional do poder, mais conhecida como separação de poderes. A principal característica dessa técnica consiste em “distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade” (MORAES, 2007, p. 393). O primeiro percursor da teoria da divisão dos poderes estatais foi Aristóteles, em sua obra clássica Política, quando propôs a divisão dos poderes estatais em deliberante, executiva e judiciária: Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazêlas. O terceiro abrange os cargos de jurisdição.

Na sequência, o inglês John Locke, no Segundo tratado do governo civil, reconhece a existência de três funções distintas do poder estatal: a legislativa (competente para prescrever os procedimentos necessários para a comunidade civil preservá-la e seus membros), a executiva (executor das leis internas sobre todos seus componentes) e a federativa (administradora da segurança e do interesse público externo). Insta ressaltar que, na acepção de Locke, os poderes legislativo e executivo deveriam ser exercidos por pessoas diferentes, evitando, assim, que os membros do primeiro adequassem e 407


executassem as leis no sentido de atender somente suas vontades, o que iria em sentido oposto à finalidade da sociedade e do governo. Todavia, em relação aos poderes executivo e federativo, Locke (1994, p. 147) entendia que estes deveriam ser exercidos por uma única pessoa, como forma de garantir a unidade e ordem da sociedade: Embora, como eu disse, os poderes executivo e federativo de cada comunidade sejam realmente distintos em si, dificilmente devem ser separados e colocados ao mesmo tempo nas mãos de pessoas distintas; e como ambos requerem a força da sociedade para o seu exercício, é quase impraticável situar a força da comunidade civil em mãos distintas e sem elo hierárquico; ou que os poderes executivo e federativo sejam confiados a pessoas que possam agir separadamente; isto equivaleria a submeter a força pública a comandos diferentes e resultaria, um dia ou outro, em desordem e ruína.

As contribuições proferidas por Aristóteles e Locke foram, sem embargo de qualquer dúvida, de suma importância para o reconhecimento da distinção dos poderes estatais, mas, como assenta a doutrina contemporânea, a clássica e célebre divisão dos poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) é atribuída à Montesquieu, na obra O espírito das leis. O grande destaque na obra de Montesquieu não foi a identificação das funções do Estado, vez que Aristóteles e Locke já haviam realizado tal feito, mas o reconhecimento da autonomia e ligação entre os poderes, os quais estariam, cada qual, em mãos diferentes e sob organização própria: [...] para Montesquieu à divisão funcional deve corresponder uma divisão orgânica. Os órgãos que dispõem de forma genérica e abstrata, que legislam, enfim, não podem, segundo ele, ser os mesmos que executam, assim como nenhum desses pode ser encarregado de decidir as controvérsias. Há que existir um órgão (usualmente denominado poder) incumbido do desempenho de cada uma dessas funções, da mesma forma que entre eles não poderá ocorrer qualquer vínculo de subordinação. Um não deve receber ordens do outro, mas cingir-se ao exercício da função que lhe empresta o nome. (BASTOS, 2001, p. 353-354)

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As conclusões de Montesquieu podem ser tidas como instrumento originário (em termos filosóficos) da Revolução Francesa, inclusive sendo sua teoria assentada no artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), bem como o ponto de construção de uma sociedade liberal burguesa (COTRIM, 1994, p. 290). Atualmente, discute-se, na doutrina, o valor da teoria implantada por Montesquieu. Na linha de juristas que criticam os apontamentos do citado pensador surge Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), afirmando que essa teoria peca por ausência de caráter científico, ao tempo em que sugere a adoção das lições de Burdeau e Loewenstein. Por outro lado, Celso Ribeiro Bastos (2001) afirma que a teoria de Montesquieu aparece como a mais acertada, pois é utilizada quase à unanimidade nos países ocidentais, “figurando, ao lado da afirmação da soberania popular, como os dois pilares sobre os quais se assenta a organização jurídico-política do Estado Moderno”. A tripartição dos poderes no Direito Brasileiro A tradição constitucional brasileira sempre adotou a divisão dos poderes legislativo, executivo e judiciário, reconhecendo a independência e a harmonia entre seus poderes (1824 – art. 9º2; 1891 – art. 15; 1934 – art. 3º; 1946 – art. 36; e 1967 – art. 6º). A exceção à clássica tripartição dos poderes estatais de Montesquieu ocorreu na Constituição de 1937, pois, apesar de formalmente mantida, “na prática, tendo em vista o forte traço autoritário do regime, o Legislativo e o Judiciário foram ‘esvaziados’” (LENZA, 2009, p. 65). O legislador constituinte de 1988 não fugiu da regra da separação dos poderes, eis que escreveu no artigo 2º da Constituição Federal que, verbis, “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”:

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A Constituição de 1824 – monárquica - previa a existência de quatros poderes estatais: Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador.

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É uma alegação preliminar, que significa: não há poderes provenientes de outras fontes que não a vontade popular, nem se exercerão em outro nome. Porque República assim se caracteriza; não havendo um princípio monárquico, estranho ao veto dos cidadãos, porém, regendo soberanamente a nação a sua Carta Política, elaborada pelos mandatários do povo (1), com a declamação que é um instrumento de democracia de verdade, “todos os poderes emanam do povo””. (CALMON, 1956, p. 31)

O desejo do legislador constitucional originário em afirmar a adoção da teoria de Montesquieu revela-se, especialmente, quando tratou de incluir a tripartição de poderes na órbita do direito brasileiro como cláusula pétrea3 (artigo 60, § 4º, inciso III, CF), pois “atribuir a qualquer dos Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importa a tendência a abolir o princípio da separação dos poderes” (SILVA, 2001, p. 67). A Lei Maior da República regula o Poder Legislativo nos artigos 44 a 45; o Poder Executivo está contido nos artigos 76 a 91 e o Poder Judiciário nos artigos 92 a 135. O CONTROLE EXTERNO DO PODER JUDICIÁRIO Conforme dito em linhas volvidas, a República Federativa do Brasil adotou o sistema da tripartição dos poderes (artigo 2º da Constituição Federal). Com isso, reconheceu a independência e a harmonia havidas entre si pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. O texto constitucional prevê liberdade e autonomia para cada um dos poderes estatais promoverem a sua organização e suas funções, mas, ao mesmo tempo, cria mecanismos para que um poder fiscalize o outro, como forma de evitar abusos ou ofensa aos direitos da coletividade. Calha citar como exemplo do dito anterior a fiscalização promovida pelo Tribunal de Contas da União4 (órgão ligado ao 3

As cláusulas pétreas são preceitos insculpidos na Constituição Federal impassíveis de suprimento. 4 “O Tribunal de Contas da União é órgão auxiliar e de orientação do Poder

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Poder Legislativo) perante as contas do Poder Executivo (artigo 71 da Constituição Federal). Nesse aspecto, antes da edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, várias foram as tentativas, no âmbito das legislações estaduais, de criar mecanismos de controle do Poder Judiciário nesse nível, por meio da instalação de órgãos fiscalizatórios, compostos por uma gama de membros integrantes dos mais variados setores, inclusive do Poder Legislativo e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A criação desses órgãos de fiscalização acendeu o debate sobre sua legalidade, vez que, por não serem previstos na Constituição Federal, estariam infringindo a independência do Poder Judiciário (artigo 2º da CF). Assim, diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram apresentadas perante o Supremo Tribunal Federal com a finalidade de desconstituírem esses órgãos estaduais. Os casos mais emblemáticos foram referentes às Constituições dos Estados da Paraíba e do Mato Grosso, a seguir relatados: A Constituição Estadual da Paraíba previa, em seu artigo 147, §§ 1º e 2º, a existência do Conselho Estadual de Justiça5, composto por dois desembargadores, um representante da Assembleia Legislativa do Estado, o Procurador-Geral da Justiça, o Procurador-Geral do Estado e o Presidente da Secional da OAB. O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente a ADIN n. 135-3/PB (rel. Min. Octávio Gallotti – DJ 21.11.1996), para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos mencionados, sob o argumento do rol de membros do Conselho Estadual de Justiça ofender o princípio constitucional da separação dos poderes. A propósito, cumpre transcrever trecho do proficiente voto do relator Min. Octávio Gallotti: [...] Mostram, todavia, a ciência do Direito Constitucional e a Legislativo, embora a ele não subordinado, praticando atos de natureza administrativa, concernentes, basicamente, à fiscalização” (MORAES, 2007, p. 418). 5 Órgão de fiscalização da atividade administrativa e do desempenho dos deveres funcionais do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia Geral do Estado e da Defensoria Pública (artigo 147, caput, da Constituição do Estado da Paraíba).

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observação histórica dos costumes políticos, que a independência de um Poder é inseparável da autonomia administrativa e da segurança proporcionada pela conquista de gestão autônoma dos meios postos pelo Estado à sua disposição, para garantir a administração e a distribuição de Justiça, papel destinado pela Constituição à responsabilidade de um Poder Judiciário Nacional. Não à de outros órgãos e entidade, que ele não pertençam, como se estabelece no dispositivo impugnado.

Caso semelhante ao ocorrido em solo paraibano instaurou-se no Estado do Mato Grosso, onde, além de a Constituição Estadual prever um Conselho Estadual de Justiça (artigos 121 a 123), criava um rol ainda maior de membros na sua composição, chegando até a contar com a presença de um serventuário da justiça, além de membros do Poder Legislativo e do Executivo (Secretário de Justiça). Sob argumento idêntico (a separação e a independência dos poderes), o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADIN n. 98-5/MT (rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ 31.10.1997), por reconhecer: o trauma que representaria ao modelo positivo brasileiro de independência do Judiciário, que tem um dos seus pilares no autogoverno, a introdução em Estado-membro de um órgão de administração e disciplina em cuja heterogênea formação se abrissem flancos à intromissão dos outros Poderes. (trecho do voto do Ministro-relator)

Outro importante julgado do Supremo Tribunal Federal tratou de apreciar, na ADIN 202-3/BA (rel. Min. Octávio Gallotti – DJ 13.09.1996), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a constitucionalidade dos artigos 122, §§ 1º e 3º, e 119, da Constituição do Estado da Bahia. Os dispositivos impugnados previam competência ao governador daquela unidade federativa para prover os cargos do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, destinados aos juízes de carreira, e à Assembleia Legislativa para aprovar, quer o ato de promoção destes últimos, quer o de nomeação dos candidatos egressos da advocacia e do Ministério Público. 412


O Pretório Excelso julgou procedente a ADIN 202-3/BA, para reconhecer a inconstitucionalidade dos artigos 122, §§ 1º e 3º, e 119, da constituição baiana, pois tais comandos afrontavam o autogoverno da magistratura. Em seu voto, o relator, Min. Octávio Gallotti, invocando precedentes da Suprema Corte (ADIN n. 314, rel. Min. Carlos Velloso, sessão de 06.09.1991; ADIN n. 189/RJ, rel. Min. Celso de Mello, RTJ 138/371), assentou que o provimento dos cargos judiciários aos magistrados de carreira, em tribunais de segundo grau, está na competência institucional do próprio Tribunal de Justiça, como forma concretizadora do autogoverno do Poder Judiciário. Além disso, no tocante à aprovação da Assembleia Legislativa sobre a ascensão de juízes, membros do Ministério Público e advogados, para integrarem os quadros do Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, na esteira dos artigos 96, inciso I, alínea “c”, e 94, ambos da Constituição Federal, cabe ao Poder Judiciário decidir, independentemente ou em conjunto com entidades de classe ou com o governador, sobre a movimentação da carreira judiciária no âmbito estadual, mas nunca estando sob a ingerência do Poder Legislativo. Por fim, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento acerca da impossibilidade da criação de órgãos estaduais, compostos por membros estranhos aos seus quadros, no sentido de fiscalizar o Poder Judiciário, por meio da edição da Súmula n. 649, de 24.09.2003, verbis: “É inconstitucional a criação, por constituição estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros poderes ou entidades”. A principal lição exarada pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 135-3/PB, 202-3/BA (ambas de relatoria do Min. Octávio Gallotti) e 98-5/MT (rel. Min. Sepúlveda Pertence), foi que o ato de incluir pessoas estranhas ao Poder Judiciário, em órgão estadual de caráter fiscalizatório deste Poder, afronta a tripartição dos poderes estatais, bem como diminui o autogoverno da magistratura, eis que, por ausência de previsão constitucional, instituem verdadeiros instrumentos de intimidação e controle – no mais puro uso da palavra – do poder judicante. 413


Acontece que, o legislador constitucional derivado, sensível à necessidade de estabelecer critérios para exercer o controle externo do Poder Judiciário, mas que fossem justos e não afetassem a clássica separação dos poderes estatais, por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004, criou o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, órgão integrante do judiciário, com tal finalidade. A seguir serão traçadas mais considerações sobre o Conselho Nacional de Justiça, a fim de entender todos os meandros que envolvem a questão. O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Histórico O dinamismo imposto pela atual sociedade obriga o legislador a editar normas capazes de se adequarem à realidade, como forma de garantir a função pacificadora e solucionadora de problemas/litígios do direito. No plano constitucional essa afirmação não é diferente. Aliás, como bem já dizia Ferdinand Lassalle, o texto legal pode ser ricamente escrito, podendo estar intitulado de “Constituição”, mas se não expressar os fatores reais do poder, não passará daquilo que é: mera folha de papel. De fato, no final do século XX, a sociedade brasileira já não mais aspira às ideias lançadas pelo legislador constitucional originário na Carta Magna de 1988 quanto ao Poder Judiciário, tanto é que, no ano de 1992, o então Deputado Hélio Bicudo apresenta, na Câmara dos Deputados, proposta de Emenda à Constituição n. 96/92 visando alterar a estrutura do judiciário brasileiro, porém, o processo legislativo da PEC 96/92 perdurou por mais de 13 (treze) anos no Congresso Nacional (LENZA, 2009, p. 497). Nesse espaço de tempo, inúmeros foram os debates acerca das reformas pretendidas com proposta de emenda à Constituição, merecendo destaque a discussão ocorrida no Supremo Tribunal Federal, em sua seara administrativa, quanto à composição de membros do futuro Conselho Nacional de Justiça. 414


Naquela oportunidade, os ministros do STF, após acalorado debate e opiniões divergentes, por maioria de votos manifestaramse favoravelmente à criação do Conselho Nacional de Justiça, mas admitindo tão somente a presença de representantes do Ministério Público e da advocacia, ao lado dos membros provenientes do Judiciário, conforme Ata da Primeira Sessão Administrativa do ano de 2004, mais precisamente na data de 05.02.20046. No ano de 2004, foi aprovada a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional n. 45/2004), tendo como principais novidades as modificações nas competências materiais dos tribunais superiores e nas promoções das carreiras jurídicas, a formalização do ingresso do Brasil perante o Tribunal Penal Internacional e a Criação do Conselho Nacional de Justiça. Conceito e composição O Conselho Nacional de Justiça, órgão do Poder Judiciário (art. 92, inciso I-A, da CF), pode ser conceituado como instrumento destinado a “realizar o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (MORAES, 2007, p. 511). De acordo com o artigo 103-B da Constituição Federal, o Conselho Nacional de Justiça, sediado na Capital Federal, composto por 15 (quinze) membros, todos nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, com mandato de 02 (dois) anos, admitida uma recondução, constitui-se de, in verbis: I – um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal; II – um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; III – um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal; 6

O Conselho Nacional de Justiça foi aprovado para ter, também, como membros, dois cidadãos não integrantes do judiciário, Ministério Público ou OAB, mas de notável saber jurídico, contrariando o desejo do STF.

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IV – um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; V – um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; VI – um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VII – um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VIII – um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; IX – um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; X – um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República; XI – um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; XII – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII – dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

A presidência do Conselho competirá ao ministro indicado pelo Supremo Tribunal Federal (art. 103-B, § 1º, CF), e o Ministro-Corregedor será o ministro oriundo do Superior Tribunal de Justiça (§ 6º). O papel de custus legis no Conselho Nacional de Justiça compete ao Procurador-Geral da República e ao Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (artigo 103B, § 6º, CF), mas a ausência destes nas sessões plenárias não as prejudica (STF – MS n. 25.879-AgR. rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ de 08.09.2006). A idade mínima para um conselheiro é de 35 (trinta e cinco) anos, enquanto a máxima é de 66 (sessenta e seis) anos (art. 103-B, caput, CF). Nesse ponto, surge uma questão curiosa: nos tribunais superiores a idade máxima de ingresso de um ministro é de 65 (sessenta e cinco) anos (STF – art. 101, caput; STJ – art. 104, parágrafo único; TST - art. 111-A – caput; TCU – art. 73, § 1º, inciso I, todos da Constituição Federal), mas os conselheiros do CNJ podem tomar posse no cargo com idade de até 66 (sessenta e seis). O jurista Delarco (2005, p. 26) explica com maestria essa distinção: 416


A aposentadoria compulsória no serviço público se dá aos 70 (setenta) anos. Levando-se em consideração o tempo total de mandato que poderá ter aquele, visto ser possível uma recondução, aquele limite de idade tem o condão de impedir que um membro do Poder Judiciário ou do Ministério Público venha a adquirir a aposentadoria compulsória no quadro deste órgão.

O presidente e o corregedor do Conselho ficam excluídos da distribuição de processos (art. 103-B, §§ 1º e 5º, CF), bem como o primeiro somente exercerá o voto de Minerva. A constitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça É certo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal encontra-se pacífica quanto à impossibilidade de constituição estadual criar órgão de controle administrativo do Poder Judiciário, onde participem representantes de outros poderes ou entidades, pois esse ato afronta o princípio da separação dos poderes e o autogoverno da magistratura (Súmula 649): Observa-se, então, que o STF repudia não só a interferência de outros Poderes ou entidades no controle do Judiciário como, também, qualquer atividade externa que atente contra a garantia de autogoverno dos Tribunais e a autonomia administrativa, financeira e orçamentária, prescritas nos arts. 96, 99 e §§, e 168 da CF, que, segundo fixou a Suprema Corte, são corolários do princípio da separação de Poderes, erigido, conforme já exposto, à categoria de cláusula pétrea pelo poder constituinte originário no art. 60, § 4º, III, que nem sequer admite qualquer proposta tendente a aboli-lo. (LENZA, 2009, p. 572)

Outro aspecto importante foi a manifestação do Pretório Excelso quanto à futura composição do quadro de membros do CNJ (judiciário + Ministério Público e OAB), que não foi acatada pelo constituinte reformador. Este acabou incluindo dois membros provenientes da sociedade civil no Conselho. A partir dessas considerações, a Associação dos Magistrados Brasileiros ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, a 417


Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.367-1/DF, pretendendo o reconhecimento da inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, sob o argumento de que sua existência violaria o princípio da separação dos poderes e o pacto federativo, eis que o Poder Judiciário seria controlado por órgão da União. A questão levada ao Supremo Tribunal Federal foi duramente debatida entre seus ministros, tanto que os julgadores que votaram pela inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça não foram unânimes quanto aos pontos inconstitucionais do art. 103-B da Constituição Federal. Os Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie reconheceram a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e XIII, do art. 103-B, por entenderem indevida a presença de membros do Ministério Público, advogados e cidadãos civis no Conselho Nacional de Justiça, enquanto o Ministro Sepúlveda Pertence opinou pela inconstitucionalidade da presença dos últimos no quadro do Conselho. Por seu turno, o Ministro Marco Aurélio julgou totalmente procedente a ADIN n. 3.367-1/DF, pois entendeu que o fato de o CNJ controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário (art. 103-B, § 4º, CF) implica em afronta à autonomia constitucional do poder judicante (art. 99 da CF): [...] Senhor Presidente, o princípio do terceiro excluído revela que uma coisa é ou não é. Não há campo para o meio-termo. Ou bem se tem a autonomia administrativa tal como estabelecida no artigo 99 da Lei Fundamental, ou não se tem. Pela emenda, a verdadeira e concreta autonomia administrativa passa a ser do recente Órgão, criado como uma panaceia para todos os males do Judiciário. Esperança vã, impossível de frutificar, porque a quadra vivida não decorre do que pretendeu glosar com a existência desse famigerado Conselho Nacional de Justiça. (trecho do voto do Ministro Marco Aurélio)

Acrescentou, também, a inconstitucionalidade da composição: Há a problemática da composição - a maioria é realmente de magistrados. Mas essa circunstância, a meu ver, não afasta o vício quanto ao todo revelado pelo próprio Conselho. Não é o fato de se imaginar até – e não imagino – espírito de corpo, que

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não servirá à conclusão de que pouco importa a participação de seis membros à magistratura: primeiro porque não presumo o excepcional, o extravagante, o teratológico, que é o espírito de corpo, principalmente se se trata de um órgão criado para consertar com “s” e com “c”, a magistratura nacional. Presumo, sim, o que normalmente ocorre e, portanto, a atuação equidistante, considerados os fatos e as normas incidentes no caso. (trecho do voto do Ministro Marco Aurélio)

Apesar dos consideráveis argumentos tecidos pelo iminente Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou totalmente improcedente a ADIN n. 3.367-1/DF. O voto do relator, Ministro Cezar Peluso, foi acolhido pela maioria da Corte, ao entender que a presença de membros estranhos à judicatura não representa a interferência de outros Poderes no Judiciário, nem tampouco atinge sua independência: Pode ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder. (trecho do voto do relator Ministro Cezar Peluso)

E, para arrematar, o ilustre Ministro espancou as desconfianças sobre a interferência que o Conselho Nacional de Justiça poderia proporcionar em relação ao controle financeiro e administrativo do Poder Judiciário: Aqui, a dúvida é de menor tomo. Com o auxílio dos tribunais de contas, o Legislativo sempre deteve o poder de fiscalização dos órgãos jurisdicionais, quanto às atividades de ordem orçamentária, financeira e contábil (arts. 70 e 71 da Constituição da República), sem que esse, sim, autêntico controle externo do Judiciário fosse tido, alguma feita e com seriedade, por incompatível com o sistema da separação e independência dos Poderes, senão como peça da mecânica dos freios e contrapesos. E esse quadro propõe ainda um dilema: ou o poder de controle intermediário da atuação administrativa e financeira do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional de Justiça, não afronta a

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independência do Poder, ou será forçoso admitir que o Judiciário nunca foi, entre nós, Poder independente! (trecho do voto do relator Ministro Cezar Peluso)

Portanto, à par do julgamento proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.367-1/DF, evidente o reconhecimento da constitucionalidade e legalidade do Conselho Nacional de Justiça. O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E O CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 45/2004, ventilou-se, no ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça poder rever as decisões proferidas pelos juízes nos processos, ou melhor, em sua função própria judicante. O Supremo Tribunal Federal apreciou diversas ações incumbidas de buscar a reforma de julgados proferidos pelo Poder Judiciário por meio da competência do Conselho Nacional de Justiça. Para ilustrar a questão, vale registrar a situação narrada no Mandado de Segurança 27.148: os impetrantes visavam a suspensão do curso de ação judicial7 pelo Conselho Nacional de Justiça, alegando a suspeição da juíza presidente do feito. Com efeito, o CNJ barrou a pretensão dos autores, sob o argumento de ausência de falta administrativa da magistrada no caso: Em outras palavras, não há nenhuma correção a ser providenciada na postura da juíza Lilia Simone Rodrigues da Costa Vieira, pois não foi relatada ofensa a deveres funcionais do magistrado, sendo possível que no âmbito do processo ela tenha atuado de modo a contrariar os interesses dos requerentes, situação que deve ser coibida com o manejo dos recursos previstos no ordenamento jurídico.

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Ação negatória de paternidade e regulamentação de visitas na Vara de Família do Distrito Federal.

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Assim, o Ministro Celso de Mello, reconhecendo a competência do Conselho Nacional de Justiça tão somente no plano administrativo, sem poder de ingerência nas decisões dos magistrados, fulminou a pretensão dos impetrantes no Agravo Regimental interposto no Mandado de Segurança 25.879, afastando qualquer possibilidade da intervenção do órgão fiscalizatório nos atos jurisdicionais: Não se desconhece que o Conselho Nacional de Justiça – embora incluído na estrutura constitucional do Poder Judiciário – qualifica-se como órgão de caráter eminentemente administrativo, não dispondo de atribuições institucionais que lhe permitam exercer fiscalização da atividade jurisdicional dos magistrados e Tribunais. (grifos não reproduzidos)

O entendimento exarado pelo Ministro Celso de Mello vai de encontro justamente à ideia lançada pelo também Ministro do STF, Eros Grau, no julgamento da ADIN 3.367-1/DF: De resto – e este ponto é de fundamental importância - ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída competência nenhuma que permita a sua interferência na independência funcional do magistrado. Cabe a ele, exclusivamente, o ‘controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes’, nada mais do que isso. Sua presença, como órgão do Poder Judiciário, no modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre os poderes, não conformará nem informará - nem mesmo afetará – o dever-poder de decidir conforme a Constituição e as leis que vincula os membros da magistratura. O controle que exercerá está adstrito ao plano ‘da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes’. Embora órgão integrante do Poder Judiciário – razão pela qual desempenha autêntico controle interno – não exerce função jurisdicional.

A redação do artigo 103, § 4º, CF, é de uma clareza solar em apontar a natureza estritamente de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, mas nunca de intervenção na órbita da 421


função judicante do magistrado, não permitindo margem para outras interpretações, como tem frisado o Supremo Tribunal Federal. Noutra vertente, discute-se a possibilidade da competência do CNJ permitir a fiscalização dos atos administrativos em todas as esferas do Poder Judiciário, quiçá do Supremo Tribunal Federal. A leitura apressada do art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, poderia levar a interpretação de que o CNJ possui competência para rever até os atos administrativos do STF, eis que sua redação o possibilita de fiscalizar o Poder Judiciário8. Contudo, a própria Constituição Federal desfaz essa ideia quando prevê a competência originária do STF para julgar as ações propostas contra o CNJ (art. 102, inciso I, alínea “r”). Ora, sendo o Supremo Tribunal Federal a instância máxima do Poder Judiciário, não havendo outro órgão capaz de rever seus atos, na esfera nacional9, ao tempo que ele tem a competência para julgar recursos interpostos em face do CNJ, é inadmissível que o Conselho venha a avaliar seus atos administrativos, pois se encontra sujeito a revisão de suas decisões e é hierarquicamente inferior a Suprema Corte. Novamente, reportando ao julgamento da ADIN 3.3671/DF, rel. Ministro Cezar Peluso, cabe registrar que restou consolidada a posição de que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse órgão máximo do Poder Judiciário Nacional, a que aquele está sujeito”. O controle das decisões do Conselho Nacional de Justiça pelo Poder Judiciário Diz o artigo 103-B, § 4º, da Constituição Federal, que compete ao Conselho Nacional de Justiça, verbis, “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do 8

O STF e o CNJ são órgãos do Poder Judiciário (artigo 93, incisos I e I-A da CF). Há a possibilidade de revisão das decisões judiciais do STF pelo Tribunal Penal Internacional (art. 5º, §4º, CF).

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cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”. Já o artigo 115, § 6º, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça reza que, dos atos e decisões do seu Plenário, não cabe recurso, enquanto isso, o artigo 102, inciso I, alínea “r”, da Constituição Federal, prevê competência originária do STF para processar e julgar as ações contra o Conselho Nacional de Justiça. Logo, em razão desses dispositivos, restaram as seguintes dúvidas: (i) se caberia revisão dos atos e decisões emanadas pelo Conselho Nacional de Justiça; e, em caso positivo, (ii) se o STF deveria apreciar toda e qualquer decisão do CNJ. A primeira questão é facilmente resolvida, pois se a própria Constituição Federal previu a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar as causas propostas contra o Conselho Nacional de Justiça (artigo, 102, inciso I, alínea “r”), evidente que uma norma interna (regimento) não possui força para afastar a previsão constitucional. Nesse sentido, cumpre transcrever a forte crítica proferida pelo Ministro Marco Aurélio em seu voto no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n. 3.367-1/DF: Dir-se-á: tudo que o Conselho vier a decidir estará sujeito ao crivo do Supremo Tribunal Federal. Também pudera, se não ocorresse assim, talvez fosse mais interessante fecharmos para balanço, porque aí estaria rasgada a própria Constituição quanto ao livre acesso ao Judiciário; acesso daqueles que se sintam prejudicados por uma deliberação do próprio Conselho.

De outro lado, a segunda proposição revela maior preocupação por parte do Supremo Tribunal Federal, pois, na hipótese de todos os atos e decisões do CNJ poderem chegar a sua apreciação, a Corte Constitucional se tornaria verdadeiro tribunal recursal administrativo. O Ministro Sepúlveda Pertence expressou seu receio quanto a essa possibilidade, em voto monocrático, no MS 26.710QO/DF, 29.06.2007, uma vez que entendia a necessidade “de proceder a uma redução teleológica da letra dessa nova cláusula de competência do Supremo Tribunal, de modo a não convertê-lo, por meio de mandado de segurança, em verdadeira instância ordinária de revisão de toda e qualquer decisão do Conselho”. 423


Atento a essa questão, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Mandado de Segurança n. 26.209/DF, Medida Cautelar, DJ de 26.10.2006, decisão monocrática, tratou de introduzir limites no âmbito dos recursos levados ao STF contra decisões do CNJ, ao reconhecer que, na ordem constitucional vigente, o Conselho possui poder suficiente para exercer suas competências, sendo vedado ao Supremo Tribunal Federal substituí-lo no exame discricionário dos motivos que o levaram a proferir suas decisões, restando cabível a intervenção quando o ato estiver desprovido de legalidade e/ou razoabilidade10. Assim, com base nas primeiras decisões que o Supremo Tribunal Federal vem proferindo na seara da atuação do Conselho Nacional de Justiça, resta perfeitamente possível a interposição de recurso à Suprema Corte em face de decisão do Conselho, desde que o ato atacado contenha vício de razoabilidade ou em sua forma legal11. CONCLUSÃO Após todas as ilações anteriores, podemos estabelecer algumas conclusões importantes sobre o Poder Judiciário, no que atine a sua organização institucional, atividade judicante e atribuições sob a ótica constitucional brasileira, englobando, sobretudo, as eventuais formas de controle de sua atividade e atuação. Nesse ínterim, é possível verificar que o Brasil adotou a denominada e célebre tripartição dos poderes do Estado, a qual se caracteriza por intermédio dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos entre si, conforme cláusula pétrea estatuída no artigo 2° da Constituição Federal de 1988. Pela expressão “independentes e harmônicos entre si” deve-se compreender que os três poderes atuam na atividade política e organização estatal um ao lado do outro, porém, de 10

Perfilha entendimento idêntico Pedro Lenza (2009, p. 575). O CNJ pode analisar o mérito e a legalidade do ato no exercício de sua função correcional e disciplinar, mas, no controle administrativo e financeiro, caberá somente avaliar a legalidade do ato (MORAES, 2007, p. 513).

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maneira que um não intervenha essencialmente na atividade e na atribuição do outro, sob pena de o ato atentar contra a tripartição dos poderes e a nossa Carta Federal (inconstitucionalidade), ou seja, cada qual deve ser responsável pelo exercício de uma função típica do Estado, sendo essas três funções estatais materializadas através das atividades da legislação, administração e jurisdição, respectivamente, as quais devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, que são justamente o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Assim sendo, e, sobretudo, analisando o presente trabalho sob o prisma da atuação do Poder Judiciário e sua atividade judicante, o qual é o seu objeto, calha ressaltar que ele possui larga independência jurisdicional e organizacional sob amparo constitucional, caminhando ele harmonicamente com os demais poderes da federação, porém, sem sofrer qualquer ingerência de outro órgão, seja este qual for. Ou seja, o Poder Judiciário é autogovernável com relação à sua atividade jurisdicional de julgar e solver conflitos, outrora denominados litígios, e qualquer outra forma de controle do poder judiciário, que não controle de seu próprio âmbito, está eivado de inconstitucionalidade, já que atenta contra a própria tripartição dos poderes, que estabelece a cada um dos três as suas atribuições e organizações próprias. Estabelecidas essas premissas, e refutada qualquer possibilidade de ingerência interna na atividade do judiciário pelos demais poderes da federação, questiona-se, ainda, acerca do eventual controle sobre o já citado poder pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, criado com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, arguindo-se inclusive que a criação desse órgão objetivou justamente controlar a atividade do Judiciário, o que não procede. Nesse jaez, restou comprovado que o Conselho Nacional de Justiça possui tão somente (além de zelar pelo cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, ato de menor importância sobre a ótica deste trabalho) atribuições administrativa e financeira sobre o Poder Judiciário (art. 103-B, §4°, CF), e nunca jurisdicional. Referido órgão possui natureza eminentemente administrativa, e não judicante, conforme é exercida única e exclusivamente pelo Poder 425


Judiciário, sob amparo constitucional absoluto. Conforme já dito alhures, se admitido fosse o controle do Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça, o órgão judicante estaria fadado ao “abaixar de suas portas”, já que sua atividade jurisdicional acabaria por estar sendo exercida por um órgão administrativo/financeiro o qual, pela sua criação/função institucional e essência legal não possui legitimidade para tal mister. Assim, por conclusão lógica, não se admite qualquer intervenção no judiciário pelo CNJ. Mais uma vez, toda e qualquer interferência do Conselho Nacional de Justiça na atividade do Poder Judiciário, que não aquela estabelecida taxativamente pela Constituição Federal em seu art. 103-B, §4°, está manchada pela ilegalidade e inconstitucionalidade, uma vez que foge de sua competência e legitimidade, conforme já repisou o Pretório Excelso. Além do mais, essa conclusão sobre a não ingerência do Conselho Nacional de Justiça sobre o Judiciário repousa, sobretudo, no prisma de que o primeiro não possui poder para julgar os atos do segundo, mas somente para acompanhar de forma administrativa e financeira o Poder Judiciário, sem qualquer interferência na sua função judicante e seus atos, os quais somente podem ser atacados através dos recursos propriamente estatuídos em nosso ordenamento jurídico, e nunca por outro órgão possuidor de outra natureza que não a mesma judicante, outrora denominada legitimação jurisdicional, cujo único detentor é o próprio judiciário. Por outro lado, ainda se discute, no mundo jurídico, acerca da existência de eventual intervenção do judiciário na atuação dos outros dois poderes da federação e se isso está respaldado pela legalidade. Sobre esse assunto, o que há de se raciocinar é que o Poder Judiciário não intervém (internamente) na atividade, atuação e organização de qualquer dos outros. O que ocorre é que, quando se pensa que há qualquer ingerência, o que acontece na verdade é que o judiciário, como único detentor legal da atividade judicante, conforme já dito alhures, exerce sobre todo e qualquer ato o seu poder de ‘peneira’ legal a qual tem legitimidade para apreciar e julgar os atos da administração do Estado, e isso engloba em maior 426


amplitude até os outros dois poderes. Ou seja, qualquer ato, seja do Executivo ou do Legislativo (nepotismo dentro da organização de qualquer deles, por exemplo), desde que eivado de qualquer irregularidade ou mesmo ilegalidade, poderá sofrer o controle do judiciário a fim de sanar a falha estatal através de sua atividade judicante (procedimento judicial, controle de constitucionalidade, etc.). Outrossim, não se pode confundir atuação da atividade judicante do Poder Judiciário com controle interno ou externo sobre os demais poderes, até porque, conforme disposto constitucional, ambos os poderes são independentes e harmônicos entre si. E nesse diapasão ainda se engloba o Conselho Nacional de Justiça, no que atine ao eventual controle do judiciário sobre sua atuação, uma vez que, não obstante fazer parte do citado Poder da federação, está sempre sujeito ao seu crivo, envolvendo, nesse prisma todos os seus atos, porém, somente no que atine a sua atuação administrativa e financeira para com o judiciário, e nada além disso, até porque possui organização própria. Ao fim, após profundo estudo sobre o caso, é de se trazer em voga o denominado autocontrole do Poder Judiciário, o qual não sofre qualquer controle externo dos outros Poderes ou até do próprio Conselho Nacional de Justiça, a uma porque são independentes e, portanto, não pode sofrer ingerência dos demais, e outra porque o CNJ não foi criado com esse instituto intervencionista, e se fosse admitido o contrário, corresponderia ao mesmo que colocar em xeque a célebre tripartição dos poderes sobre a qual se fundamenta nossa Federação, e, por conseguinte, referido controle estaria eivado pela inconstitucionalidade.

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