O exercício do cargo público numa sociedade de risco

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Umberto Machado de Oliveira* O exercíciO dO cargO públicO numa sOciedade de riscO e O cOmetimentO de imprObidade administrativa ThE ExErCisE OF PUbliC OFFiCE in a risk sOCiETy anD ThE COMMiTMEnT OF aDMinisTraTivE MisCOnDUCT El EjErCiCiO DEl CarGO PúbliCO En Una sOCiEDaD DE riEsGO y El COMETiMiEnTO DE Una FalTa aDMinisTraTiva

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo confrontar a concepção de “sociedade de risco” com o conceito legal de improbidade administrativa previsto na Lei n. 8.429/92, conhecida como Código Geral de Conduta do Administrador Público no direito brasileiro. A partir disso, buscar-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do cargo público no contexto de uma sociedade de risco, com vistas a contribuir para o debate de sua responsabilização por ato que importe em violação da referida lei em função da não observância dos princípios da precaução e da prevenção, inerentes a tal teoria. Abstract: This paper aims to confront the concept of "risk society" with the legal concept of administrative misconduct under Law 8.429/92, known as the General Code of Conduct of the Public Administrator in Brazilian law. From this, it will get a reflection on the position of exercente public office in the context of a risk society, in order to contribute to the discussion of accountability for an act that matters in violation of that law on the basis of * Mestre em Direito pela UFG. Doutorando pela Universidade de Coimbra. Professor da Faculdade de Direito da UFG. Promotor de justiça do Estado de Goiás.

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non-compliance with the principles of precaution and prevention, inherents in this theory. Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo hacer frente a la noción de "sociedad del riesgo" con el concepto jurídico de falta administrativa en virtud de la ley. 8.429/92, conocida como el Código General de Conducta del Administrador Público en la legislación brasileña. De esto, se conseguirá una reflexión sobre la posición del ejercente del cargo público en el contexto de una sociedad de riesgo, con el fin de contribuir a la discusión de la responsabilidad por un acto que importa en la violación de la ley sobre la base del no-cumplimiento de los principios de precaución y prevención, inherentes a esta teoría. Palavras-chaves: Precaução, prevenção, responsabilidade, administrador, ímprobo. Keywords: Precaution, prevention, responsibility, administrator, dishonest. Palabras clave: Precaución, prevención, responsabilidad, administrador, deshonesto.

intrOduÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo relacionar a concepção de “sociedade de risco” com o exercício do cargo público na perspectiva da configuração de ato de improbidade administrativa, conforme previsto na lei n. 8.429/92, o Código Geral de Conduta

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do administrador Público no direito brasileiro. a partir disso, buscar-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do cargo público no contexto de uma sociedade de risco com vistas a contribuir para o debate de sua responsabilização por ato que importe em violação da referida lei, tendo em vista a repercussão social de sua conduta. a pergunta que se pretende responder, em outras palavras, é: no que podem contribuir a teoria do risco e os princípios que dela decorrem para o combate do fenômeno da improbidade administrativa? Embora saibamos que a concepção de sociedade de risco tem sido estudada mais sob a ótica das inovações tecnológicas e dos riscos que oferecem ao meio ambiente e à saúde do ser humano, o trabalho buscará apoio na doutrina produzida nessa área, com o fito de transportá-la para a questão do exercício do cargo público e da possibilidade do cometimento de atos que violem a lei reguladora da questão no direito brasileiro. É de se considerar que a adoção de medidas para solução de problemas ambientais identificados muitas vezes aproxima-se, ainda que de forma transversa, ao fenômeno da improbidade administrativa. não raro as tentativas de solução de problemas ambientais são, para os malversadores do erário, em muitas situações, uma boa fonte de desvio de recursos. a “causa” é boa, ou seja, a “defesa do meio ambiente”. Os mecanismos de efetivação da tentativa de solução de um problema ambiental são muitas vezes de dificílima ou de impossível aferição posterior quanto à real utilização dos meios sugeridos. Uma exemplificação talvez torne mais clara essa afirmação. vamos tomar a hipótese de um rio poluído. imagine-se que, para a solução do problema da poluição nesse rio, seja apontada, como uma das providências viáveis, lançar um composto químico diluído na quantidade de um milhão de litros de água, e que esse composto químico seja de alto custo. O composto químico é lançado, mas numa quantidade equivalente à metade do que era previsto, enquanto nas planilhas

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de lançamento consta que foi lançado de acordo com o planejado. Como comprovar que essa fraude ocorreu? se, por exemplo, tomarse amostras da água do rio onde foi lançado o composto químico, pode ser afirmado que a dosagem inicialmente planejada não surtiu o efeito esperado e, portanto, há necessidade de uma maior quantidade. não será possível, nessa hipótese, dizer que não foi lançada a quantidade do composto químico simplesmente porque, por exemplo, não se pode, diante do fluxo das águas no leito do rio e de diversos fatores naturais que possam ter influenciado (retenção nas areias no fundo do leito, às margens, etc.), aferir a quantidade lançada. Esse simples exemplo hipotético serve para ilustrar quantos riscos há, em matéria ambiental, de improbidade administrativa. Portanto, a teoria do risco, produzido no âmbito do direito ambiental, pode, cremos, ser transportada para servir de análise da ocorrência do fenômeno.

cOnsideraÇÕes preliminares sObre a lei n. 8.429/92 e delimitaÇÃO dO cOnceitO de imprObidade

a Constituição Federal brasileira previu, em seu art. 37, § 4º, que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. na sequência, em complementação a esse preceito, editou-se a lei n. 8.429/92, a qual estabeleceu, em seu capítulo ii, em três seções distintas, os três grandes grupos de atos caracterizadores de improbidade administrativa1: a) os que importem Essa tipologia já é absorvida pela jurisprudência, até mesmo em função da clareza da divisão feita no texto legal, conforme se depreende da decisão da Primeira

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em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os que causem prejuízo ao erário (art. 10); c) os que atentem contra os princípios da administração Pública (art. 11), compreendida, nesse tópico, a lesão à moralidade administrativa. Quando procedemos à leitura dos dispositivos legais que contêm os tipos de improbidade administrativa (artigos 9º, 10 e 11 e incisos), é possível identificar a coexistência de duas técnicas legislativas na elaboração da lei n. 8.429/92: i) a primeira, que pode ser identificada na cabeça (caput) dos dispositivos tipificadores da improbidade, com a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, o que seria adequado como instrumento que pretende o enquadramento do infindável número de ilícitos de possível ocorrência, decorrentes da própria criatividade humana e de seu poder de improvisação; ii) a segunda, na formação de diversos incisos que compõem os arts. 9º, 10 e 11, com previsões específicas, ou passíveis de integração, de situações que podem consubstanciar, na vida cotidiana da administração pública, improbidade, os quais facilitam o entendimento dos conceitos indeterminados veiculados nos artigos principais e possuem natureza meramente exemplificativa, tendo em vista o emprego do advérbio "notadamente" (GarCia, 2006, p. 248). a previsão de dispositivos de combate à probidade na administração pública tem sido enrobustecida no direito brasileiro, seja com alteração à Constituição Federal pelo constituinte derivado, seja com a inserção em leis complementares e ordinárias de disposições que a essa questão fazem referência. assim é que, logo após a edição da lei n. 8.429/92, foi aprovada a Turma do superior Tribunal de justiça brasileiro, contida no recurso Especial n. 874.040-MG (Diário de justiça Eletrônico de 12.11.2008): “5. Deveras, a título de argumento obiter dictum, o caráter sancionador da lei 8.429/92 é aplicável aos agentes públicos que, por ação ou omissão, violem os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições e notadamente: a) importem em enriquecimento ilícito (art. 9º) ; b) causem prejuízo ao erário público (art. 10); c) atentem contra os princípios da administração Pública (art. 11) compreendida nesse tópico a lesão à moralidade administrativa.”

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Emenda Constitucional de revisão n. 4, que deu nova redação ao § 9º do art. 14, constante do capítulo dos direitos políticos na Constituição Federal, prevendo que lei complementar estabeleceria outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. além disso, é digno de nota que o artigo 15, que estabelece, no caput, a vedação de cassação de direitos políticos, insere entre as hipóteses excepcionais de perda e suspensão dos referidos direitos, no seu inciso v, os casos de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º. ainda, entre os crimes de responsabilidade que podem ser praticados pelo Presidente da república, estão os atos que atentem contra a probidade na administração (art. 85, v, da Constituição Federal de 1988). Também a lei de responsabilidade Fiscal (lei Complementar n. 101, de 04.05.2000), que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências, previu, em seu art. 73, que as infrações a seus dispositivos serão punidas segundo as normas do Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 2.848, de 7.12.1940, da lei n. 1.079, de 10.04.1950 (lei do impeachment), do Decreto-lei n. 201, de 27.02.1967 (lei de responsabilidade dos Prefeitos e vereadores) e da lei n. 8.429/92. Por fim, cumpre registrar que a lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997 (que estabelece normas para as eleições), estatui, em seu art. 73, um rol de condutas vedadas destinado especificamente aos agentes públicos, com “o indisfarçável propósito de evitar que a estrutura administrativa seja utilizada para fins políticos, relegando a plano secundário o interesse público”, com a cominação de sanções que podem ser aplicadas pela justiça Eleitoral (tais como suspensão imediata da conduta vedada, multa e cassação do registro

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ou do diploma), sem prejuízo da configuração, conforme o § 5º do mesmo dispositivo, simultânea de ato de improbidade administrativa a ser punido nos termos do art. 11, inciso i, da lei n. 8.429/92. É de se inferir que se há uma preocupação com a matéria é porque esta, obviamente, tem relevância no contexto do sistema democrático. E ninguém duvida disso. não é preciso muito esforço e conhecimento para supor que o fenômeno da improbidade tem implicações negativas muito amplas na administração pública e, com isso, afeta milhões de pessoas de forma direta e indireta, especialmente quando a escassez de recursos públicos resulta em ineficiência ou mesmo insuficiência na prestação de serviços essenciais (saúde, educação, segurança, por exemplo) à coletividade. a preocupação presente no direito brasileiro é encontrada também no direito internacional, como se percebe dos sucessivos e recentes tratados internacionais sobre a matéria: a) a Convenção interamericana contra a Corrupção, concluída no quadro da Organização dos Estados americanos em 29.03.1996; b) o Código internacional de Conduta para os Funcionários Públicos (resolução n. 51/59, das nações Unidas, em 12.12.1996); c) a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, assinada em Estrasburgo em 30.04.1999; d) a Convenção da União africana para a Prevenção e a luta Contra a Corrupção e Crimes assimilados, aprovada em Maputo em 11.07.2003; e) e, finalmente, a Convenção da nações Unidas contra a Corrupção, assinada em Mérida, no México, em 31.10.2003. nessa linha, cumpre registrar que o conceito de improbidade administrativa é visto como espécie de má gestão pública. Osório (2007) procura situar a improbidade administrativa, num marco ético-institucional, como espécie de má gestão pública, o que implicaria num escalonamento dos ilícitos de má gestão, aparecendo a improbidade em seu devido lugar. Pontua que a noção jurídica de boa gestão, no âmbito do direito administrativo, tem origem teórica inicial nas lições de Maurice hauriou, jurista

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francês que pioneiramente referiu-se ao princípio da moralidade administrativa, fazendo-o na perspectiva funcionalmente apoiada no ideário de boa gestão pública. O referido autor, ao tecer comentários à jurisprudência do Conselho de Estado francês, no começo do século xx, disse que existia uma moralidade administrativa segundo a qual o administrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disciplina interna da administração Pública, o que significava a obediência necessária a pautas de boa administração, transcendendo as minúcias ou previsões expressas nas regras legais. (OsÓriO, 2007, p. 39)

nessa ótica, a boa administração comportaria um espectro de condutas eticamente exigíveis dos administradores públicos, fossem ou não previstas expressamente no ordenamento jurídico passivo. seguindo esse raciocínio, ser bom administrador não equivaleria, originalmente, apenas ao mero cumprimento da legislação, como também o mau administrador poderia descumprir preceitos ligados à ética institucional, à moral administrativa. isso representou um ataque ao pensamento positivista predominante no momento histórico por ele vivenciado. salienta Osório que, muito embora seja possível identificar-se alguns vestígios da exigência de uma espécie de boa administração pública nas remotas culturas ocidentais, é na pós-modernidade que se consolida essa “exigência ético-normativa por meio da mudança da administração burocrática ao modelo gerencial”, e dentro desse ambiente há o aumento dos níveis de responsabilidade pessoal dos agentes públicos. ressalta, ainda, que ninguém duvida de que hoje em dia haja um princípio essencial de boa gestão pública nas Constituições democráticas, como disse, inclusive, “muito acertadamente o Parlamento Europeu, ao anunciar que tal princípio suporta uma série de deveres de boa gestão, deveres imanentes ao sistema e não necessariamente explícitos”. registra que a confiança ou o trust entre administradores e administrados, que está no centro das democracias modernas, tem como ponto 270


de partida a boa gestão pública, até mesmo em decorrência de que os primeiros têm que prestar contas de seus atos aos segundos. Poderia se afirmar, na ótica do autor, que a juridicização do dever de boa gestão pública é decorrente de profundas alterações na teoria política do Estado, o qual passa a ter como suporte novos paradigmas teóricos de justificação, “entre os quais a busca e a implementação de resultados”, que alcança não só o nível administrativo, mas também o institucional. Pontifica que a boa gestão tem como pressuposto o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e a satisfação das demandas da cidadania, cumprindo as exigências do liame de confiança que une e deve unir governantes e governados, administradores e administrados2. E prossegue o autor (2007, p. 43-47) quando discorre sobre o imperativo ético da boa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dos agentes públicos: “O conceito de legitimidade pertence tanto ao campo da ética quanto ao da teoria política. inclui um julgamento de valor sobre um sistema considerado globalmente, que será, assim, tido como legítimo ou ilegítimo, bom ou mau, conforme as razões que impulsionam sua atuação e as necessidades sociais. Esse julgamento se dirige a um fim último do sistema, tomado este e seus elementos como meios aptos para produzir aquele, desde uma perspectiva interna ou externa de balizamento. Em síntese muito apertada, pode-se anotar que, no mundo pré-moderno, a legitimidade dos sistemas políticos se fundamentou basicamente na religião ou em práticas próximas às religiões. no moderno, a legitimidade alicerçou-se fundamentalmente na teoria do contrato social, na ética do consenso, no princípio de soberania popular e em discursos universalizantes na proclamação de direitos humanos. na pós-modernidade, os pressupostos de legitimidade passaram a ser deslocados para outros domínios, nomeadamente pelos critérios de eficiência, o que, para alguns autores, pode significar ocultar do discurso a discussão sobre os fins últimos do Estado, embora isto não seja realmente necessário. vemos a exigência de boa administração - tal e como funciona na atualidade como produto específico da pós-modernidade, esse contexto no marco do qual os novos paradigmas ainda seguem abertos e os velhos em permanente questionamento crítico. É certo que, nesse universo, o discurso político tem muito a ver com o econômico, especialmente no tocante aos paradigmas de qualidade, eficácia e eficiência dominantes no âmbito das atividades privadas. a gestão empresarial, entretanto, tem uns parâmetros próprios, distintos aos de conseguir exclusivamente satisfazer ao bem comum, o que produz paradoxos. Em relação às decisões públicas, o discurso ético da boa administração não se ocupa exclusivamente de resultados, mas também de condutas eticamente corretas. Os meios e os fins são relevantes e positivamente valorados dentro dos paradigmas do bom administrador, daí a processualidade das relações nesse setor. ninguém duvida que a ética institucional do setor público impõe o ideal de boa administração e por, isso proíbe a má gestão pública.”. 2

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Osório observa, nesse ponto, que a corrupção tem sido um assunto central no processo comunicativo de globalização, propiciando a união de esforços e energias internacionais, tanto para o seu combate quanto para se buscar o implemento, a difusão e o fortalecimento de mecanismos preventivos e de diagnósticos precisos, tudo com vistas a objetivos comuns aos povos civilizados e democráticos. Pondera, no entanto, que definir a patologia da corrupção como “o uso indevido de atribuições públicas para obter benefícios privados” é muito amplo e ambíguo, “capaz de abarcar desde as mais insignificantes até as maiores patologias imagináveis” (OsÓriO, 2007, p. 28). O termo carrega em si uma magia capaz de mobilizar a opinião pública e causar sérios prejuízos políticos e até econômicos e hoje os organismos internacionais iniciam a adotar [...] posturas mais coerentes e comprometidas com a solução dessas graves questões, abandonando o viés obsessivo pela terminologia da corrupção, cujas entranhas resultam estreitas para abarcar outros fenômenos. Esse é o caso do Código internacional de Conduta para os titulares de cargos públicos, documento feito pelas nações Unidas. segundo esse Código, os titulares de cargos públicos serão, em última instância, leais aos interesses públicos de seu país, tal como se expressem por meio das instituições democráticas de governo, de maneira eficiente e eficaz. Os agentes públicos devem ser diligentes, justos e imparciais, deveres genéricos, é verdade, que comportam múltiplas formas de concretização e densidade normativa, tarefa a cargo dos Estados soberanos. Tais deveres superam o olhar limitado às desonestidades corruptas ou corruptoras, alcançando outros domínios comportamentais, inclusive não intencionais, apenas violadores de cuidados objetivos e diligentes que deveriam ser tomados. O que se nota é uma preocupação da OnU com problemas que transcendem os limites mais estreitos da corrupção pública, deslocando o debate ao universo mais amplo da má gestão pública, embora os temas resultem entrelaçados e esta movimentação ainda seja tímida em seus sinais mais emblemáticos. (OsÓriO, 2007, p. 36-37)

ainda, registra Osório que alguns sistemas, como é o caso do brasileiro, estão enfocando mais a improbidade, expressão de 272


conteúdo mais amplo, da qual a corrupção constitui apenas uma faceta mais preocupante, mas não a sua inteireza. Dessa forma, na linguagem cotidiana a expressão improbidade substitui a corrupção, absorvendo o enriquecimento ilícito, tendo em vista que essa é a linguagem que se utiliza no meio forense e que é transplantada para os meios de comunicação. O certo é que o Estado vem buscando municiar-se de ferramentas para combater as variadas modalidades de atos ilícitos, seja as que abrangem a desonestidade ou as que assumem a forma de ineficiências intoleráveis. ressalta que é nesse contexto que o direito brasileiro desempenha um papel de vanguarda, assumindo a liderança de um processo de renovação do sistema punitivo, “comprometendo-se com parâmetros de maior eficácia, desde o ponto de vista das ferramentas disponíveis, não necessariamente das instituições competentes”. na visão de silva (2008, p. 669), a probidade administrativa seria uma forma de moralidade administrativa que foi objeto de atenção especial da Constituição, considerando-se que puniu o ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, § 4º), conforme anotado linhas atrás. a probidade administrativa traduzse, assim, no dever do funcionário da administração atuar com honestidade ao exercer suas funções, sem aproveitar-se dos seus poderes ou das facilidades deles decorrentes em proveito pessoal ou de outra pessoa a quem queira beneficiar. O desrespeito a esse dever caracterizaria a improbidade administrativa. Pontifica que a improbidade administrativa constitui-se numa imoralidade administrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem. no âmbito trabalhista a doutrina desenvolveu uma concepção de probidade que se aproxima muito do dever do funcionário para com a administração3. O dispositivo da Consolidação das leis Trabalhistas (Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943) que prevê a demissão do empregado por justa causa por ato de improbidade é o art. 482, “a”, com a seguinte redação: “art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; [...]”. Em comentário sobre essa previsão, Garcia assim se manifesta: “ainda que en passent, é relevante tecer algumas considerações sobre o tratamento da

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a visão de silva no final do parágrafo anteriormente transcrito, no sentido de que a “improbidade é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário”, merece uma melhor reflexão, pois não é de todo acertada. Para a configuração da improbidade às vezes não há necessidade de prejuízo ao erário, e também nem toda infração à legalidade (como previsto no art. 11 da lei n. 8.429/92) ou à moral pode ser vista de pronto como caracterizadora de improbidade. Primeiramente, o art. 5º da lei n. 8.429/92 já sinaliza a desnecessidade de ocorrência do efetivo prejuízo ao erário para a configuração de improbidade administrativa ao estabelecer que “ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano”. O gerúndio “ocorrendo” dá a exata noção de que pode não ocorrer e assim a lei será aplicável da mesma forma. nem todos os incisos previstos no art. 9º necessitam do dano ao erário para sua configuração e o 11 e incisos não pressupõem a ocorrência de dano ao erário público, pois nestes foram eleitas condutas que configurariam atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública. ademais, o art. 21, i, estabelece que a aplicação das sanções previstas no art. 12 prescinde "da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público", o que reforça a ideia da desnecessidade do dano ao erário para configuração de improbidade. Essa conclusão é ainda mais robustecida pelo feixe de sanções previstas para infração em seu art. 12, incisos i a iii, em que se prevê ressarcimento integral do dano “quando houver”. nesse ponto é de se observar, conforme anota Garcia, que o disposto no art. 21, inciso i, deve ser interpretado em harmonia, em especial com o art. 10, pois para que haja subsunção de determinado fato às figuras previstas “neste dispositivo é imprescindível a ocorrência de dano ao patrimônio público, o que, por evidente, não poderia ser dispensado por aquele” (GarCia, 2006, p. 277). improbidade nas relações trabalhistas, seara em que sua presença consubstancia justa causa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador (art. 482, i, da ClT)”.

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Para melhor elucidação do conceito de improbidade administrativa, torna-se adequado abrir um parêntesis para incursionar nos critérios propugnados na doutrina para a aplicação da lei n. 8.429/92. Garcia prega, nesse aspecto, a utilização do princípio da proporcionalidade, de tal forma que se estabeleçam “critérios passíveis de demonstrar a configuração da improbidade administrativa em sua acepção material”, evitando-se a realização de uma operação mecânica (“formal”) de subsunção do fato à norma. Destaca que à atividade de concreção dos valores que foram eleitos pelo legislador na referida lei devem ser estabelecidos limites, “sob pena de se transmudar uma legitimidade de direito em uma ilegitimidade de fato”. É necessário “uma valoração responsável da situação fática”, pois assim é que essa legislação, restritiva de direitos fundamentais, manter-se-á em harmonia com os limites constitucionais, “não incursionando nas veredas da despropositada aniquilação desses direitos”4. Então, utilizando-se o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, torna-se inadequada a aplicação da lei n. 8.429/92, por não configurar ato ímprobo, quando desprezível a lesão aos deveres do cargo, tendo em vista que, além da insignificância do ato, a aplicação das sanções previstas no art. 12 da Em relação ao princípio da aplicação do princípio da proporcionalidade, prossegue Garcia (2006, p. 104-105): “Este princípio deflui do sistema e visa a evitar restrições desnecessárias ou abusivas aos direitos constitucionais, permitindo a busca da solução menos onerosa para os direitos e liberdades que defluem do ordenamento jurídico. Em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade será observado com a verificação dos seguintes fatores: a) adequação entre os preceitos da lei nº 8.429/92 e o fim de preservação da probidade administrativa, salvaguardando o interesse público e punindo o ímprobo; b) necessidade dos preceitos da lei nº 8.429/92, os quais devem ser indispensáveis à garantia da probidade administrativa; c) proporcionalidade em sentido estrito, o que será constatado a partir da proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido, vale dizer, entre a preservação da probidade administrativa, incluindo as punições impostas ao ímprobo, e a restrição aos direitos fundamentais (livre exercício da profissão, liberdade de contratar, direito de propriedade etc.). afora estes, os quais formariam a denominada razoabilidade interna, luís roberto barroso acrescenta a razoabilidade externa, que representa a compatibilidade entre o meio utilizado, o fim colimado e os valores constitucionais.”.

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lei n. 8.429/92 ao réu importa lesão maior do que aquela que ele causara ao ente estatal. nesse caso, poderão ser aplicadas ao agente público outras sanções (de caráter disciplinar, como a advertência, etc.), que tenham compatibilidade com a reprovabilidade de sua conduta e com a natureza dos valores porventura infringidos. a improbidade administrativa, conforme observa Osório (2007, p. 179), deve ser a última ratio do direito administrativo sancionador. Propugna, pois, que “à improbidade formal deve estar associada a improbidade material”, sendo que esta não restará configurada quando a distorção comportamental do agente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou de nenhum valor; bem como quando a inobservância dos princípios administrativos, além daqueles elementos, importar em erro de direito escusável ou não assumir contornos aptos a comprometer a consecução do bem comum (art. 3°, iv, da Cr/88).

vê-se, pois, que a improbidade administrativa não está relacionada a qualquer situação de desbordamento de preceitos morais ou mesmo a desvios de pouca monta do erário, passíveis de correção por outras vias punitivas, como, por exemplo, de caráter disciplinar no plano administrativo. Destaca que, tendo sido encampado o princípio da dignidade da pessoa humana como direito fundamental, ele deve ser utilizado conjuntamente com o princípio da proporcionalidade para, a partir da ponderação, evitar ilegítimas restrições a tais direitos. Menciona como parâmetro a técnica utilizada no direito germânico para identificar a "justa medida"5 na restrição aos direitos fundamentais. assim se manifesta Garcia (2006, p. 106-107): “De acordo com scholler, 'na aferição da constitucionalidade de restrições aos direitos fundamentais, o Tribunal Federal Constitucional (alemão) acabou por desenvolver, como método auxiliar, 'a teoria dos degraus' (Stufentheorie) e a assim denominada 'teoria das esferas' (Sphãnrentheorie). De acordo com a primeira concepção, as restrições a direitos fundamentais devem ser efetuadas em diversos degraus. assim, por exemplo, já se poderá admitir uma restrição na liberdade de exercício profissional (art. 12 da lei Fundamental) por qualquer motivo objetivamente relevante (aus fedem sachlichen Grund), ao passo que no degrau ou esfera mais profunda, o da liberdade de escolha da profissão, tida como sendo em princípio irrestringível, uma medida restritiva apenas encontrará justificativa

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Portanto, se o dano causado ou o benefício auferido não é expressivo (como a destruição de uma folha de papel comum, utilização de um grampo para fins privados, etc.6), que seu ato atingiu in totum o fim previsto na norma e que, no contexto em que o ato foi praticado, o erro de direito era plenamente escusável, a aplicação da lei n. 8.429/92 apresentará nítida desproporção com o ato, estando ausente a proporcionalidade em sentido estrito, pois o ônus imposto ao agente em muito superará a lesividade de sua conduta: não sendo identificada a prática de um ato objetivamente relevante, não se poderá ascender, sequer, ao "primeiro degrau" da escala de restrição dos direitos, o qual seria atingido com a mera aplicação da lei n° 8.429/92. Os "degraus subsequentes", por sua vez, serão galgados na medida em que for identificada a relevância do ato, valorada a sua potencialidade lesiva e constatada a reprovabilidade da conduta do agente, o que permitirá que seja aferida a sanção que se afigura mais justa ao caso [...].

Prossegue reforçando que, detectada apenas a improbidade formal, deve incidir apenas as sanções de ordem política ou administrativa, de natureza e grau compatíveis com a reprovabilidade do ato. para salvaguardar bens e/ou valores comunitários de expressiva relevância de ameaças concretas, devidamente comprovadas, ou pelo menos altamente prováveis". Evidentemente, operação como essa, à luz do direito pátrio, não deverá sopesar uma ordem axiológica supralegal; na alemanha, ao revés, é constante a adoção dessa técnica pelo Tribunal Constitucional, o que, não obstante as críticas, encontra ressonância no direito positivo daquele país.”. 6 Esses exemplos são fornecidos por Garcia. Embora bastantes ilustrativos, eles são extremos e acabam por não fornecer um parâmetro para que se possa excluir a configuração do ato ímprobo. a lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997, que, entre outras providências, regulamenta a atribuição do advogado-Geral de União prevista no art. 73, vi, da lei Orgânica da advocacia da União (lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993, que possibilita, entre outras hipóteses, a desistência em ações de interesse da União), estabelece, em seu art. 1º-a, que o “advogado-Geral da União poderá dispensar a inscrição de crédito, autorizar o não ajuizamento de ações e a não-interposição de recursos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públicas federais, observados os critérios de custos de administração e cobrança”. já no seu art. 1º-b. estatui que “os dirigentes máximos das empresas públicas federais poderão autorizar a não-propositura de ações e a não-interposicão de recursos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de

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Obtempera, contudo, que a atipicidade (material) não tem o propósito de abrir as portas da impunidade, e, nessa linha, a “sua aplicação deve manter-se adstrita às hipóteses em que a consubstanciação da improbidade venha a ferir o senso comum, importando em total incompatibilidade com os fins sociais da norma e as exigências do harmônico convívio social (art. 5°, caput, da liCC)”. lembra, em conclusão, frase atribuída a jellinek, que sintetizaria a ideia de proporcionalidade: "não se abatem pardais disparando canhões". Osório (2007, p. 89-90) alerta para a visão da improbidade administrativa sob a ótica da moral privada, o que resulta em um “indevido controle da vida privada dos agentes públicos e a distorção fundamental do conceito de probidade no campo ético-normativo”. Observa que, em face da prodigalidade do direito em criar tipos sancionadores da falta de probidade, não raro há confusão por parte do povo sobre esses conceitos, “imaginando que probo seria o sujeito moralmente correto do ponto de

desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualizados, de valor igual ou inferior a r$ 10.000,00 (dez mil reais), em que interessadas essas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas condições aqui estabelecidas” (ambos, artigos 1º-a e 1º-b, incluídos pela lei n. 11.941, de 2009). Como se vê, embora a configuração de atos de improbidade dependa da análise de cada caso concreto, esses dispositivos nos permitem a reflexão no sentido de que, se a União ou as entidades públicas estiverem desistindo de valores de até r$ 10.000,00, é possível admitir que, avaliadas as provas produzidas numa eventual ação judicial que questione um ato praticado imputando-o de ímprobo, possa ocorrer absolvição ainda que a lesão não se resuma aos valores ínfimos de uma folha de papel ou um grampo utilizado, conforme exemplos de Garcia. veja que no âmbito penal a matéria já objeto de decisão pela sexta Turma do superior Tribunal de justiça, ao apreciar o rEsp 250631 / Pr, da relatoria do Ministro Paulo Gallotti (Dj de 18.02.2002, p. 525): “recurso Especial. Penal. Descaminho. Princípio da insignificância. aplica-se o princípio da insignificância ao não pagamento de impostos em valores que o próprio Estado expressou o seu desinteresse pela cobrança. recurso especial não conhecido. acórdão. vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da sexta Turma do superior Tribunal de justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, não conhecer do recurso, nos termos do voto do sr. Ministro relator. Os srs. Ministros Fontes de alencar, vicente leal e hamilton Carvalhido votaram com o sr. Ministro relator. ausente, justificadamente, o sr. Ministro Fernando Gonçalves”.

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vista de seus deveres privados” (fidelidade num matrimônio, pagamento de uma dívida junto ao vizinho, ajuda aos pobres que pedem esmolas, etc.). Defende que “aos agentes públicos se assegura o supremo direito à imoralidade, dentro de limites mais estreitos, é certo”, e por isso considera incorreta a tese que busca identificar na improbidade uma imoralidade comum. Pondera, no entanto, que o regime jurídico de direito público é mais severo e rigoroso que outros, o que reduz sensivelmente a vida privada dos agentes públicos, sem indicar o desaparecimento desta. sustenta, pois, que a improbidade não se identifica com a “mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qualificada pelo direito administrativo”, pois também os agentes públicos gozam dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilos de vida e personalidades. Dessa forma, os agentes públicos teriam “espaços privados nos quais podem praticar atos imorais, desde que esses atos não transcendam os estreitos limites da ética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros”. O problema da falta de probidade administrativa deve ser reduzido, segundo Osório, ao universo da ética pública, no contexto de normas jurídicas especificamente protetoras das funções públicas, dos valores imanentes às administrações Públicas e aos serviços públicos. acresce que a definição de improbidade como “uma imoralidade administrativa qualificada” merece uma justificação. nesse ponto, a bem da verdade, os preceitos dos arts. 5º, lxviii, lxix e lxxiii, 37, caput, § 4º, 142, vi, e 85, v, todos da Constituição Federal brasileira, versariam normas de ética institucional, ou de moralidade administrativa. a moral administrativa seria “fonte do dever de probidade administrativa que se encontra no art. 37, § 4º”, pois esse dever seria uma espécie de moralidade, ou seja, “probidade é espécie do gênero moralidade administrativa”, de tal forma que a “improbidade é imoralidade qualificada”, ou seja, “toda

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improbidade deriva de uma imoralidade administrativa, mas nem toda imoralidade constitui uma improbidade administrativa”. assevera também a correção em se afirmar que o dever de probidade descende de uma “ética institucional peculiar ao setor público, traduzindo um ponto de encontro entre normas éticas e jurídicas, nos limites da segurança e da capacidade de serem previstas as decisões dos operadores do direito” (OsÓriO, 2007, p. 88-89). no sentido, portanto, de uma correta aplicação da lei n. 8.429/92 (lei Geral de improbidade administrativa - lGia7) e com os olhos voltados para o seu artigo 11, o qual seria, na sua visão, o ponto de partida para a interpretação desta lei, Osório (2007, p. 326) afirma que, interpretados de forma leviana os deveres consagrados na lGia, redundaria em que qualquer ilegalidade poderia ser entendida como improbidade. no entanto, a regra geral será muito diferente, direcionando com precisão para o caráter excepcional da lGia e de seus tipos sancionadores para alcançar condutas marcadamente danosas e patológicas, de tal forma que nem toda parcialidade, desonestidade, ilegalidade ou imoralidade administrativas configuram uma improbidade administrativa, automaticamente. Como se pode inferir das posições doutrinárias, o conceito de improbidade administrativa não é de fácil intelecção. É preciso, pois, esforço investigatório com eficiência para que os elementos que caracterizem a ocorrência de improbidade administrativa sejam identificados e, nesse contexto, os princípios da precaução e da prevenção, desenvolvidos no âmbito do direito ambiental, podem ser úteis na análise do contexto fático em que se deu a conduta do administrador objeto de questionamento. vamos analisar agora o conceito de sociedade de risco para, depois, buscarmos a resposta à indagação que o presente trabalho pretende dar solução. Osório (2007, p. 182 e ss.) rotula lei n. 8.429/92 de “lei Geral de improbidade administrativa” por considerá-la um “Código Geral da Conduta” dos agentes públicos brasileiros.

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O Que vem a ser uma sOciedade de riscO?

luhmann (1993, p. 3), quando discorre sobre a concepção de risco, observa que atualmente o risco é procurado por uma ampla variedade de áreas especiais de pesquisa e mesmo por diferentes disciplinas científicas. afirma que o tratamento estatístico tradicional sobre o cálculo do risco foi explorado pela investigação econômica. Fundamental nesse desenvolvimento foi a brilhante abordagem feita por Frank knight. seu objetivo inicial era o de explicar o lucro empresarial em termos da função de absorção incerta. segundo luhmann, essa ideia não era nova, pois o autor Fichte já a teria introduzido no que diz respeito à propriedade da terra e à diferenciação de classe. no moderno contexto da economia, porém, ela tem permitido a união astuta das teorias macro e micro-econômica. assevera que a distinção de knight entre risco e incerteza tem, no entanto, petrificado em uma espécie de dogma - de tal forma que a inovação conceitual recebe a censura de não ter aplicado o conceito corretamente. no entanto, anota luhmann, outras disciplinas não enfrentam o problema de explicar o lucro das empresas, nem estão preocupadas com as diferenças e as ligações entre as teorias do mercado e da empresa. indaga, então: “por que então eles devem tirar o conceito a partir desta fonte?”. Mais à frente, luhmann sustenta que para a sociologia deveria ser o tópico do risco subsumido embaixo de uma teoria da sociedade moderna, e deveria ser formado pelo aparelho conceitual disso. Mas, adverte, não haveria nenhuma tal teoria, e as tradições clássicas que continuariam guiando a maioria dos teóricos no campo da sociologia forneceriam poucas aberturas de tópicos como ecologia, tecnologia e risco, sem falar dos problemas da autorreferência. ressalta que não se pode, nesse ponto, discutir as dificuldades gerais da pesquisa interdisciplinar, pois há cooperação ao nível

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de projeto e campos de pesquisa que pode ser definida como transdisciplinar (cita como exemplo a cibernética e a teoria de sistemas). nesse contexto, a pesquisa dos riscos poderia representar uma nova possibilidade. Contudo, afirma que as consequências negativas da participação por diversas disciplinas e áreas de pesquisa especiais seriam mais evidentes. não haveria nenhuma definição do risco que pudesse satisfazer os requisitos da ciência. Pareceria que cada área da pesquisa envolvida estaria satisfeita com a orientação fornecida pelo seu particular contexto teórico. Em função disso seria de se indagar se, em áreas de pesquisa individuais, e até na cooperação interdisciplinar, a ciência saberia sobre o que estaria falando. se só para razões epistemológicas poderíamos não assumir que uma coisa como o risco existe, e que ele é só uma matéria de descobrimento e investigação. a aproximação conceitual constituiria o que está sendo tratado. O próprio mundo exterior não conheceria ele próprio nenhum risco, já que ele não saberia nem distinções, nem expectativas, nem avaliações, nem probabilidade - exceto as produzidas autonomamente por sistemas de observação no meio ambiente ou outros sistemas. alerta luhmann (1993, p. 6) para o fato de que, quando buscamos definições do conceito de risco, imediatamente encontramo-nos obscurecidos, com uma impressão de sermos incapaz de ver além do nosso próprio para-choque dianteiro. Mesmo as contribuições focando o tópico diretamente não conseguiriam apreender o problema de forma adequada. O conceito do risco seria frequentemente definido como uma “medida”, contudo, se fosse só um problema da medição, não estaria suficientemente claro sobre o que seria todo o distúrbio. Os problemas da medição seriam problemas da convenção, e, em todo caso, os riscos da medição (assim como de erros de medição) não seriam os mesmos como o que estaria sendo medido como um risco. Tais exemplos poderiam ser multiplicados infinitamente, paradoxalmente

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nas ciências exatas especialmente, já que elas pareceriam assumir que a exatidão tem de ser expressa na forma de um cálculo e que o uso da língua diária consequentemente não necessitaria nenhuma precisão. seria, contudo, geralmente concordante que não se deve dar muita importância para questões de definição, já que as definições serviriam só para delimitar, não apropriadamente para descrever (excluindo explicar) o objeto sob investigação. a despeito de tudo, se não fosse de modo nenhum claro com o que se supõe que cada um estivesse tratando, seria bastante impossível começar a investigar. E, justa ou injustamente, ao sociólogo seria permitido assumir que essa imprecisão ofereceria a oportunidade de trocar tópicos conforme a moda e a opinião, com mudança de patrocinadores e turnos em atenção ao público. assim, teríamos a boa razão para concernir-nos inicialmente com a delimitação do objeto da pesquisa dos riscos. Entende, desse modo, que teria boas razões para se preocupar inicialmente com a delimitação do objeto de pesquisa do risco. Dispara luhmann (1993, p. 8) que as civilizações antigas teriam desenvolvido técnicas bastante diferentes para tratar com problemas análogos, e, por isso, não teriam tido nenhuma necessidade de uma cobertura de palavra, o que agora entendemos pelo termo “risco”. a humanidade sempre teria estado naturalmente preocupada com a incerteza sobre o futuro. a maioria dessas civilizações, contudo, sempre confiou em práticas proféticas, que - embora incapazes de fornecer segurança fiável - sem embargo assegurariam que uma decisão pessoal não teria acordado “a ira dos deuses” ou de outros poderes impressionantes, mas teria sido salvaguardada pelo contato com as forças misteriosas do destino. Em muitos aspectos o complexo semântico do pecado (conduta que contradiz instrução religiosa) também representa um equivalente funcional, já que ele pode servir para explicar como se sucede o infortúnio.

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no comércio marítimo oriental antigo houve já o que pode ser descrito objetivamente como consciência dos riscos, acompanhada pelas respectivas instituições legais, que, em primeiro lugar, deveriam ser apenas distinguidas de programas de profecias, apelações a deuses tutelares, etc., mas que de um ponto de vista da lei - particularmente o tanto quanto a distribuição de papéis entre os fornecedores da capital e os marinheiros fosse envolvido - claramente exerciam a função de seguros. Tal fato, com relativa continuidade até a idade Média, influenciou a lei marítima do comércio e a lei do seguro marítimo. Mesmo na antiguidade não cristã não teria havido, contudo, nenhuma consciência de decisão totalmente desenvolvida. assim, o termo “risco” teria aparecido primeiro no período transicional entre a idade Média e a primeira era moderna. a etimologia da palavra seria desconhecida, segundo luhmann8. alguns suspeitariam que ela tivesse origem arábica. na Europa, a palavra poderia ser encontrada em documentos medievais, mas ela teria vindo à tona só com o advento da imprensa escrita, na fase inicial, ao que parece na itália e na Espanha. não haveria nenhum estudo abrangente da etimologia e da história conceitual do termo, e isso seria compreensível desde que a palavra, no início, aparece por vezes raramente e é usada em uma grande variedade de contextos. Ela encontra aplicação significativa nos campos de navegação e do comércio. O seguro marítimo é um primeiro exemplo de controle dos riscos planejado, mas em outro lugar também encontramos formulações como “ad risicum et fortunam” ou “pro securitate et risico” ou “ad omnem risicum, periculum et fortunam dei” em contratos nos quais alguém deve suportar uma perda no caso da sua ocorrência. O termo risco teria permanecido, contudo, limitado a esse domínio, mas teria se estendido a partir de 1500, provavelmente busca, então, desenvolver a concepção sociológica de risco, sob a ótica do perigo (lUhMann, 1993, p. 17-22). 8

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com a expansão da impressão. anota que scipio aminirato teria escrito, por exemplo, que seja quem fosse que propagasse um rumor geraria um risco (rischio) de ser perguntado onde teria obtido a sua informação. Também Giovanni botero teria escrito “chi non risica non guadagna” e, seguindo uma velha tradição, distinguiria essa máxima de projetos vãos e temerários. annibale romei teria reprovado quem “non voler arrischiar la sua vita per la sua religione”. Em uma carta dirigida a Claudio Tolomei por luca Contile, no século xv, seria encontrada a formulação: “vivere in risico di mettersi in mano di gente forestiere e forse barbare”. Desde que a língua existente tenha palavras para “perigo”, “ventura”, “possibilidade”, “sorte”, “coragem”, “medo”, “aventura”, etc., à sua disposição, poderíamos assumir que um novo termo entra em uso para indicar uma situação problemática que não poderia ser expressa de forma suficientemente precisa com o vocabulário disponível. De outro lado, a palavra ultrapassaria o contexto original (por exemplo, na citação “non voler arrischiar la sua vita per la sua religione”), de tal forma que não seria fácil reconstruir as razões do novo conceito, que nasce com base nessas ocorrências casuais do termo. beck (1992) afirma que a multiplicidade de definições dos riscos da civilização com o aparecimento de “mais e mais riscos”, possibilita a dramatização de “outro risco” para defender a utilização de um produto perigoso, bem como a manipulação conceitual para assegurar o seu próprio negócio9. Destaca o autor a possibilidade de que as causas de efeitos danosos, como, por exemplo, a destruição florestal, serem manipuladas ao sabor de concepções individuais e apoiadas em explicações científicas elaboradas para defesa de determinado ponto de vista. beck indaga: “The Multiplicity of Definitions: More and More risks. The theoretical content and the value reference of risks imply additional components: the observable conflictual pluralization and multiplicity of definitions of civilization's risks. There occurs, so to speak, an overproduction of risks, which sometimes relativize, sometimes supplement and sometimes outdo one another. One hazardous product might be defended

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O automóvel seria “o poluidor principal da nação” e assim o verdadeiro “assassino florestal”? Ou é finalmente tempo para instalar aparatos de alta qualidade e última geração de carvão? Ou resultaria demasiado possivelmente inútil, desde que os poluentes que causam a morte da floresta sejam entregues “gratuitos à nossa entrada” (ou “gratuitos à nossa floresta”) das chaminés e escapamentos de países vizinhos?

aqueles que se encontram no pelourinho público como produtores dos riscos refutariam as acusações como pudessem, com a ajuda "de uma contra-ciência" que gradualmente está se institucionalizando na indústria, e tentariam fazer entrar outras causas e, assim, outros causadores. O quadro reproduzir-se-ia. O acesso aos meios de comunicação, portanto, se tornaria crucial. a insegurança dentro da indústria intensificar-se-ia: ninguém saberia quem seria o próximo a ser batido pela anátema da moralidade ecológica. Os bons argumentos, ou, ao menos, os argumentos capazes de convencer o público, se tornariam uma condição para o êxito dos negócios. Os publicitários, “os artífices de argumentação”, conquistariam seu espaço na organização (bECk, 1992, p. 32). Essa passagem de beck é bastante interessante de registrar, tendo em vista demonstrar que a manipulação da própria noção de risco hoje pode estar umbilicalmente ligada a uma comunicação “adequada”, o que vale também para a atividade administrativa dos governos, os quais procuram mascarar erros através de informações nem sempre fidedignas. não é infrequente by dramatizing the risks of the others (for example, the dramatization of climatic consequences “minimizes” the risk of nuclear energy). Every interested party attempts to defend itself with risk definitions, and in this way to ward off risks which could affect its pocketbook. The endangering of the soil, plants, air, water and animals occupies a special place in this struggle of all against all for the most beneficial risk definition, to the extent that it expresses the common good and the vote of those who themselves have neither vote nor voice (perhaps only a passive franchise for grass and earthworms will bring humanity to its senses). This pluralism is evident in the scope of risks; the urgency and existence of risks fluctuate with the variety of values and interests. That this has an effect on the substantive element of risks is less obvious” (bECk, 1992, p. 31).

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o uso dos meios de comunicação para alardear medidas administrativas “imprescindíveis” para conter, como “única” solução viável, resultados negativos de situações fáticas consumadas ou em andamento. jaeger (2001, p. 16 e ss.), ao responder à pergunta “o que é risco?”, afirma que, no uso comum, risco tem uma larga variedade de conotações: o medo de riscos específicos; a preocupação com a interdependência dos sistemas humanos e tecnológicos; a incerteza quanto a lucro ou perda financeiros; o medo das forças malévolas da natureza; ou a emoção da aventura, ou a preocupação sobre a competência e a probidade daqueles que administram os riscos. apesar da variação no uso, contudo, essas noções unificam características que fundam a significação do risco. Todos os conceitos do risco pressupõem uma distinção entre predeterminação e possibilidade, já que, se o futuro foi predeterminado ou independente de atividades humanas presentes, a noção "do risco" não faz sentido. seja qual for a variação na conotação, o risco contém a ideia da possibilidade de um resultado, ou seja, a possibilidade é um elemento indispensável do risco. a incerteza seria o segundo elemento componente do risco. na sequência, adota como conceito de risco: “a situation or event in wich something of human value (including humans themselves) has been put at stake and where the outcome is uncertain”. a administração dos riscos implica, prossegue jaeger (2001, p. 17), que os resultados indesejáveis podem ser às vezes evitados, e, onde inevitáveis, podem ser mitigados se as conexões entre causa e efeito forem feitas de forma apropriada. assim, o risco tipicamente é normativo, bem como descritivo ou analítico. isto é, o risco implica o juízo de avaliação sobre o desejo de resultados. as considerações anteriores sobre a conceituação do que é risco em muito aproximam essa teoria do campo de decisões que o administrador público tem que tomar para atender o interesse público.

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O princípio da prevenção e da precaução em matéria de risco

luhmann (1993, p. 29), ao concluir o capítulo de sua obra onde procura trabalhar o conceito de risco, tece rápidas considerações acerca do “problem of prevention”, o qual, segundo ele, medeia a decisão e o risco. Por prevenção quer luhmann dizer, em linhas gerais, preparar-se para perdas incertas e futuras através da procura da redução da probabilidade da ocorrência dessas perdas ou da sua própria extensão. a prevenção poderia ser assim praticada tanto em caso do perigo como em caso do risco. Poder-se-ia se precaver até contra perigos não atribuíveis às próprias decisões. nós treinamos, por exemplo, no uso de armas, fazemos certas provisões financeiras de emergência, ou cultivamos amigos que podemos procurar se precisarmos de ajuda, reflete luhmann. Contudo, tais estratégias de segurança são uma exibição suplementar. a motivação geral que estaria por trás dessas providências seria a percepção de que a vida neste mundo é carregada de incertezas10. Prossegue luhmann afirmando que, pelo contraste, se estivermos tratando com o risco, a situação seria em aspectos significantes diferentes, já que nesse caso a prevenção influiria na vontade de tomar riscos e isso afeta uma das condições da ocorrência da perda. se houvesse um método de construção mais ou menos resistente a terremoto, cada um seria mais prontamente inclinado a construir em uma área propensa a terremoto. Um banco seria mais disposto a conceder um empréstimo se o interessado pudesse fornecer garantias suficientes. Para a locação de uma estação de produção de energia nuclear, as possibilidades de rapidamente evacuar a população civil (isso teria paralisado um projeto em long island) seria um aspecto bastante importante. Mas o ciclo de redução e aumento de risco, determinado pelo fator de “estar preparado”, iria muito além disto, segundo luhmann. Os estudos no comportamento dos gerentes de riscos evidenciariam que eles demonstram uma tendência bastante comum de superestimar o seu controle sobre o curso de desenvolvimento de perigos possíveis, ou mesmo firmar a sua decisão rejeitando dados disponíveis e obtendo estimativas diferentes, mais favoráveis. Em outras palavras, cada um ativamente procura a confirmação da suposição que o curso de eventos permanecerá receptivo para controlar. Esse tipo de comportamento poderia também ser descrito como uma estratégia de distribuição dos riscos. O risco primário da decisão - que seria o primeiro assunto - seria absorto, completado e enfraquecido por 10

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Quem procedeu ao estudo no direito brasileiro sobre os princípios da prevenção e da precaução de forma bastante didática foi leite e ayala (2004), os quais anotam que esses princípios são reputados estruturantes para a organização do Direito do um risco secundário, que, desde que ele seria também um risco, pode, em certas circunstâncias, aumentar o risco primário. nesse caso, o risco de eliminação do risco permaneceria um risco. Desde que ambos, riscos primários e riscos de prevenção, seriam riscos, implicariam os problemas de avaliação dos riscos e aceitação. Mas a sua dependência mútua fá-lo-ia uma matéria complexa e que seria, para todas as intenções e propósitos, imprevisível. bem que poderíamos enxergar a prevenção com olhos diferentes e aceitá-la de forma mais disposta, porque ela serve como segurança contra um risco primário. buscaríamos e encontraríamos um risco de álibi. saberíamos os riscos implicados em instalações técnicas e estaríamos, por isso, mais dispostos a confiar no pessoal contratado numa relação de emprego para controlar tais riscos, ou na redundância de outro tipo. Finalmente, o problema em discussão também teria um aspecto político. Para a avaliação política do risco aceitável, permissível, a tecnologia de segurança, bem como todas as outras medidas tomadas para diminuir a probabilidade da ocorrência de perdas ou reduzir perdas ou dano em caso de acidentes, desempenhariam um papel considerável; o alcance da negociação seria presumivelmente encontrado nesse campo e não naquele de opiniões divergentes quanto ao risco primário. Mas precisamente esse desenvolvimento levaria a política a um território enganador. só não é exposto ao habitual e à subavaliação de riscos, que inicialmente provoca a politização dos tópicos, mas também a torcimentos que resultariam do fato que cada um considera o risco primário como controlável ou incontrolável, dependendo do resultado que cada um estaria esperando realizar. Cada avaliação dos riscos seria e permaneceria um contexto atado. nem psicologicamente nem em condições sociais prevalecentes estaria lá uma preferência abstrata de riscos ou a falta da preferência. Mas o que aconteceria se o contexto que produz a própria avaliação dos riscos for um novo risco? Conclui luhman afirmando que seria necessário, nesse contexto, rever a distinção de risco e perigo, em especial em relação à política. Mesmo se ele fosse só uma questão de perigo no tocante à catástrofe natural, a omissão da prevenção tornarse-ia um risco. seria aparentemente mais fácil distanciar alguém politicamente de perigos do que de riscos - mesmo onde a probabilidade da perda ou a extensão da perda é maior em caso do perigo do que naquele do risco; e presumivelmente também independentemente da questão (mas isso necessitaria uma investigação meticulosa) de como a prevenção fiável em cada caso seria e o que ela custaria. Mesmo se a prevenção está disponível para ambos os tipos da situação, poderia ser sem embargo relevante se o problema primário é tratado como perigo ou risco. Exemplifica com uma situação ocorrida na suécia, onde teria sido politicamente oportuno evacuar um grande número de pessoas pelo helicóptero de uma área onde ocorreria um teste de um míssil, muito embora a probabilidade e a extensão da perda no caso de um choque de helicóptero fosse muito maior do que a possibilidade que uma única pessoa viesse a ser atingida pelo entulho do míssil que cairia na área que era habitada de modo esparso. Mas um caso foi, ao que parece, avaliado como um risco, enquanto o uso do helicóptero (além disso bastante incorretamente) só como um perigo (lUhMann, 1993, p. 29-31).

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ambiente. Esses princípios definiriam, em essência, um Direito do ambiente de conteúdo precaucional e de antecipação. Evidenciariam a importância da orientação de antecipação e o controle da previsão dos riscos, que ocuparia posição de destaque nos modelos democráticos participativos que qualificam os sistemas constitucionais contemporâneos. leite e ayala (2004) sustentam que, para a compreensão da diferenciação do círculo de aplicação de cada princípio ser realizada, é possível estabelecer uma distinção entre perigo e risco, estando presente, nas duas espécies de princípios, o elemento risco, mas sob configurações diferenciadas. Entretanto, afirmam que, se fosse a pretensão a união semântica das categorias de risco (atual e concreto ou potencial) e de perigo, seria possível considerar que o princípio da prevenção se dá em relação ao perigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precaução, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato. O conteúdo cautelar do princípio da prevenção seria dirigido pela ciência e pela detenção de informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco fornecido pela atividade ou pelo comportamento, que, assim, revelaria uma situação de mais verossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da precaução. a prevenção se justificaria pelo perigo potencial de que a atividade sabidamente perigosa poderia produzir efetivamente os efeitos indesejados e, em consequência, um dano ambiental, logo, prevenindo de um perigo concreto, cuja ocorrência seria possível e verossímil, sendo, por essa razão, potencial. sua aplicação, portanto, procuraria evidenciar que seria provável que a atividade perigosa se demonstrasse de fato perigosa, ou seja, concretamente perigosa, evidenciando que seria possível que viesse a produzir os efeitos nocivos ao ambiente. a emissão de efeitos poluentes ou degradadores pela atividade perigosa seria potencial, provável e verossímil. seria

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objetivada a prevenção ou a cautela contra o risco de dano ou lesão oriunda da possibilidade de que a atividade perigosa produzisse concretamente os efeitos nocivos proibidos. Dessa forma, não bastaria, simplesmente, que se tivesse certeza do perigo da atividade (periculosidade da atividade), mas do perigo produzido pela atividade perigosa. Ou, em outras palavras, de que a atividade perigosa colocasse o ambiente, potencialmente (de forma verossímil), em estado de risco (ou de perigo). Esta (atividade perigosa) deveria demonstrar também verossímil capacidade de poluir ou degradar, entendendo-se, para os efeitos da aplicação do princípio da prevenção, no seguinte sentido: seria possível (juízo de verossimilhança) que a atividade perigosa poluísse ou degradasse. logo, medidas preventivas seriam necessárias (já que a origem do risco seria conhecida). anotam leite e ayala (2004) que toda a análise sistemática dos riscos de qualquer atividade deveria compreender, necessariamente, a observação de três elementos: a avaliação, a gestão e a comunicação dos riscos. O âmbito funcional da aplicação do princípio da precaução se circunscreveria ao da gestão dos riscos, relacionado diretamente com o desenvolvimento das atividades de participação generalizada nos processos políticos de tomada de decisões, e aí residiria a importância de sua qualidade para o desenvolvimento das instituições democráticas. a incidência do princípio da precaução se adstringiria à hipótese de risco potencial, ainda que esse risco não tivesse sido integralmente demonstrado, não pudesse ser quantificado em sua amplitude ou em seus efeitos, devido à insuficiência ou ao caráter inconclusivo dos dados científicos disponíveis na avaliação dos riscos. Portanto, o domínio específico de sua aplicação envolveria a necessidade de resolução de problemas a partir de bases limitadas de conhecimento, circunstância que enfatiza sua compreensão a partir de uma dimensão programadora, que se concentraria em buscar alternativas de tomada das melhores

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decisões possíveis, objetivando a superação dos estados de incerteza. Uma atuação precaucional exigiria a tomada de decisões, ainda que o conhecimento disponível no momento não estivesse em condições de permitir uma correta avaliação dos riscos, com a finalidade de justificar ou fundamentar as ações ou medidas necessárias. reconhecer a incerteza que permea a identificação e a avaliação dos riscos não permitiria sustentar, no entanto, que a aplicação do princípio da precaução prescindiria de tais atividades, pois seria a partir da avaliação que os graus de incerteza científica poderiam ser estabelecidos, e, em consequência, fixase até que ponto a incerteza científica precisaria ser superada mediante decisões, e principalmente, se possível, qual o nível de risco considerado inaceitável. Mesmo não sendo possível atingir um nível integral de compreensão dos riscos, dever-se-ia procurar caracterizá-los da melhor forma possível e da maneira permitida pelo conhecimento disponível, com o objetivo de estabelecer diretrizes para a aplicação concreta do princípio da precaução e reduzir o nível de incerteza verificado. Denotam leite e ayala (2004) que a jurisprudência comunitária europeia, em diversas ocasiões, vem delineando as condições a partir das quais poderiam ser justificadas medidas precaucionais, e cita, entre outros casos, o Pfizer (Tribunal de 1ª instância da Comunidade Europeia), no qual se discutiu a pertinência da implementação de medidas precaucionais diante dos riscos à saúde humana, que estariam associados ao uso da virginiamicina como aditivo na alimentação animal. nesse caso, a afirmação dos riscos consistia na possível transferência da resistência antimicrobiana, do animal para o homem, resultando em redução da eficácia de certos medicamentos, contexto a partir do qual puderam ser estabelecidas várias diretrizes de orientação para a aplicação do princípio, sendo a mais importante, no sentido de que o princípio da precaução autorizava a decisão por medidas preventivas sem que fosse necessário aguardar até que

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a realidade dos riscos e a gravidade de seus efeitos potencialmente adversos estivessem plenamente demonstrados por meio de provas científicas concludentes.

anota que no acórdão considerou-se expressamente que: [...] salvo esvaziando-se o princípio da precaução do seu efeito útil, a impossibilidade de realizar uma avaliação científica completa dos riscos não pode impedir a autoridade pública competente de tomar medidas preventivas, se necessário rapidamente, quando tais medidas sejam indispensáveis atendendo ao nível de risco para a saúde humana determinado por esta autoridade como sendo inaceitável para a sociedade.

não se exigiria, portanto, a demonstração exaustiva e completa sobre a existência de riscos, sua identificação e especificação, caracterização ou demonstração segura sobre a extensão de seus efeitos, apreciação que se submete a um juízo de verossimilhança, que orienta a formação científica da convicção da atribuição da qualidade de periculosidade ao comportamento. se a certeza não é pressuposto para uma atuação precaucional, procurar conhecer da melhor forma possível e permitida os graus de incerteza que permeiam a decisão é condição de relevante consideração na aplicação do princípio.

Prudência ou abstenção?

kourilsky (2001) desenvolve um raciocínio para demonstrar que o princípio da precaução e prevenção deve ser analisado com profundidade para que não seja entendido como “abstenção”. alerta que o cerne conceitual e operacional do princípio da precaução residiria no aprofundamento do conceito de risco, ou seja, seria necessário dar conteúdo ao conceito de risco. nessa condição, indaga se poderíamos passar de uma compreensão abstencionista para uma prática ativa do princípio da precaução. 293


alerta que seria preciso ficar atento ao significado das palavras, pois o risco deve ser distinguido do perigo. O perigo seria aquilo que compromete a segurança, a existência de uma pessoa ou coisa. já o risco seria um perigo potencial, para mais ou para menos, previsível. O risco não seria um perigo. Um perigo seria algo prejudicial à saúde. anota que há cerca de cem anos uma longa controvérsia teria abalado os parisienses sobre os riscos que poderiam envolver a instalação de uma rede de esgotos subterrânea: alguns temiam que ela espalhasse germes, que londres e Estocolmo já tinham há anos. Enfim, não se verificou qualquer risco, mas um risco potencial pode ser zero. Poder-seiam diminuir os riscos de um acidente de um avião ou de um automóvel, mas não se poderia atingir o risco zero. no que diz respeito aos riscos potenciais, o risco seria criado pela hipótese, e teoricamente poderia ser zero, a menos que a operação intelectual declarasse plausível anulá-lo e decidisse que a hipótese devesse ser ignorada. Eles poderiam pensar que a velocidade superior a vinte milhas por hora é intrinsecamente perigosa para o organismo, mas o risco seria considerado hoje nulo, quer dizer, seria simplesmente colocado de lado. Passa, então, a analisar o princípio da precaução e da prevenção. afirma que a distinção entre o risco potencial e o risco comprovado teria sua raiz na diferença entre prevenção e precaução. Precaução seria relativa aos riscos potenciais e prevenção aos riscos comprovados. Muito frequentemente se confundiria precaução e prevenção. Geralmente, pensa-se que os riscos potenciais seriam pouco prováveis e eles seriam inconscientemente assimilados aos riscos comprovados, cuja probabilidade de controle seria ainda menor. isso seria, na sua concepção, duplamente errado. Em primeiro lugar, as probabilidades não seriam da mesma natureza (no caso da precaução, que seria a probabilidade de que a hipótese estivesse correta; no caso da prevenção, a periculosidade seria estabelecida e

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seria a probabilidade do acidente). além disso, e principalmente, os riscos potenciais, apesar do seu caráter hipotético, poderiam ter uma alta probabilidade de realização. na prática, porém, a precaução, sustenta kourilsky, poderia ser entendida como o prolongamento dos métodos de prevenção aplicados aos riscos incertos. analisa, também, a distinção entre precaução e prudência. À semelhança de qualquer ação humana, o exercício da precaução apresentaria um risco. O primeiro seria o de se equivocar na definição e avaliação dos riscos potenciais. Estes seriam, por vezes, impossíveis de se quantificar (“riscos não-probabilizáveis”), porque as observações seriam incompletas ou os instrumentos atingiriam seus limites práticos e teóricos. assim, inevitavelmente, há coincidências entre a vacinação realizada em uma população inteira e o aparecimento de uma doença particular em um pequeno número de pessoas vacinadas. se a frequência de coincidências é demasiada baixa, a correlação, como a ausência de correlação, será impossível de se estabelecer através de estatísticas. Esta é uma verdadeira lei de incerteza, tão implacável como a que rege a física de eletróns. E deveria ser ressaltado que o instrumento estatístico dá, naturalmente, resultados mais e mais aleatórios à medida que estaria interessado em fenômenos mais e mais raros. aqui estaria um verdadeiro limite teórico que não poderia ser afastado apenas pelo aumento do tamanho da amostra analisada. Mas esse aumento de tamanho, por sua vez, amplia as incertezas de interpretação pela necessidade de ter em conta outros fatores (por exemplo, geografia). O estabelecimento de medidas de precaução poderia levar a erros, se todas as consequências não tiverem sido pesadas com antecedência. nem sempre seria fácil. O processo que teria levado, em 1987, ao Protocolo de Montreal sobre a proteção da camada de ozônio seria exemplar, pois levou a uma ação planetária. Talvez tivesse sido mais prudente se ater a alguns aspectos da sua implementação. Os países ricos teriam feito um

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esforço para pagar os mais pobres, mas, para os frigoríficos, gases substitutos comprovadamente menos eficientes e o processo de destruição dos equipamentos antigos, peças, etc., teriam criado certa confusão. Dever-se-ia estar ciente, ainda, que medidas radicais de proibição poderiam fechar o campo experimental e eliminar qualquer possibilidade de provar ou refutar a hipótese que teria conduzido à decisão e, assim, inovações potencialmente úteis seriam, então, permanentemente retiradas. Daí a necessidade geralmente reconhecida para se desenvolver uma área de investigação. além disso, seria ingênuo ignorar que a precaução tem um custo e que seria, em geral, amplamente divulgado na comunidade. Por último, as medidas de prevenção poderiam ser prejudiciais para os indivíduos não geradores de risco potencial. Estes teriam, então, direito a reclamar uma indenização do Estado ou da justiça. Do mesmo modo, aqueles que estão por trás do risco potencial poderiam contestar decisões contrárias aos seus interesses e obter também reparação se a avaliação dos riscos potenciais estivessem errados. no total, não seria um trocadilho afirmar que o princípio da precaução deveria reger a aplicação da precaução. Essa aparente tautologia reflete o fato de, bem como a prevenção, a precaução é filha da prudência. aplica-se ao público e ao privado, onde suas decisões têm riscos potenciais ou comprovados. a prudência exigiria se considerar a possibilidade e as consequências das suas ações e as providências necessárias para que se evitasse causar dano a outrem. no âmbito da prudência, o princípio da precaução exprimiria a demanda social para a redução de risco. Ela exigiria um reforço da prevenção e da utilização de ferramentas adequadas para gerir riscos potencialmente graves e irreversíveis, cuja probabilidade de ocorrência seria baixa e pouco conhecida. as convergências entre precaução, prevenção e prudência poderiam justificar que se substituísse o princípio de precaução por

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um princípio de prudência, que abrangeria precaução e prevenção. Essa opção parece ser pouco realista da forma como o princípio da precaução é difundido. Poderia, contudo, ser útil para guardar na memória, se persistente a incompreensão sobre o significado do princípio da precaução - por exemplo, se uma fração tão significativa da opinião continuasse a incluir o princípio da precaução como uma regra sistemática de abstenção ou se fosse a alternativa para evitar bloqueios e promover um melhor entendimento nas discussões internacionais.

a respOnsabiliZaÇÃO dO exercente dO cargO públicO numa sOciedade de riscO

Cunha (2004, p. 115) observa que, em 1989 e 1990, o princípio da precaução foi, respectivamente, consagrado como princípio geral da política ambiental pela Comissão Econômica das nações Unidas para a Europa, e foi, universalmente, consagrado na Declaração do rio de janeiro. afirma que a sociedade evolui e a evolução acarretaria novos problemas, que postulariam novas soluções. a ordem jurídica teria a função de encontrar princípios ou regras metodológicas para a solução desses problemas, diferendos ou interesses que colidem, onde o princípio da precaução deve ser encarado como um princípio metodológico, de procedimento, subjacente ao processo decisório e seu fundamento. Finca que o domínio por excelência do princípio da precaução seria o do ambiente, área onde o risco releva e mais efeitos é apto a produzir, mas o princípio teria evoluído no sentido da aplicabilidade nas mais diversas áreas do direito nas quais o conceito de risco apresentasse características análogas às verificadas na

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área do direito do ambiente. Cita, como exemplos, os direitos do consumo, nomeadamente com a introdução das chamadas condições gerais dos contratos e a consequente proibição de inclusão de cláusulas que possam significar o aproveitamento da debilidade dos consumidores; e o do urbanismo, onde o tecido normativo, através dos institutos planificadores, com os múltiplos planos de ordenamento do território, pretende determinar, com antecedência, eventuais danos, para que estes possam ser corrigidos na fonte, com medidas do foro cautelar. Cunha entende, pois, aberta a possibilidade de se aplicar esse princípio a outros ramos do direito. nessa linha, Ericson e haggerty (1997, p. 51) obtemperam que vários ramos do direito, além da área criminal, têm sido instrumentos para interpretar práticas sociais do risco. E a lei civil especialmente teria se expandido em nome do controle de risco. baseados em Pries, afirmam que a função principal da lei civil moderna seria controlar o risco. nesse sentido, porque não indagar: podem ser não só o princípio da precaução e da prevenção, mas mesmo as noções de risco, desenvolvidas no âmbito do direito ambiental, utilizadas também para a avaliação de decisões tomadas e que podem se subsumir nas hipóteses de ato ímprobo previstas na lei de improbidade administrativa? Ora, se formos analisar a atividade administrativa no seu cotidiano, verificaremos que a tomada de decisão envolve, muitas vezes, situações que podem resultar em danos não só às pessoas (administrados), como também prejuízo ao erário. Então, sem muita dificuldade, pensamos que a resposta a essa indagação seria, como apoio nas noções conceituais que foram até aqui desenvolvidas em relação à improbidade administrativa e ao risco, positiva. E essa conclusão não seria aqui uma afirmação leviana, desprovida de sustentação científica ou mesmo um oportunismo. não, absolutamente não. Percebe-se, indubitavelmente, a intersecção que há entre o

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dever de good governance (boa gestão pública, boa governação) e a administração de riscos. Mas não se pretende aqui uma conduta de abstenção sempre que houver dúvida. Muito ao contrário. não só porque a conduta omissiva do administrador público pode lhe custar um processo judicial, mas levando em conta também que em determinadas situações a boa governação implica em natural contrariedade de interesses de particulares, como acentua aragão (2005, p. 108-111) quando se refere à questão da legitimidade e à aceitação das decisões na democracia em termos de boa governância e a síndrome social “sim, mas não no meu quintal”: Por isso, a promoção da governância passa muito mais pelo incremento da legitimidade, do que pelo reforço da autoridade. Da legitimidade acrescida resultará, idealmente, a aceitação voluntária, pelos cidadãos, das directrizes da entidade decisória, dispensando-se o recurso a meios de implementação coactiva das decisões. É nesta distinção que se baseia alguma doutrina para distinguir a governância do governo (ou governação). na primeira, o respeito por regras apresentadas sem coação seria espontâneo, no segundo, estaria implicada a imposição coerciva de normas. Contudo, esta parece-nos ser uma visão demasiado redutora, por duas ordens de razões. antes de mais, porque mesmo com graus elevados de governância, a imposição coerciva de certas normas pode ser um mal necessário. Estamos a pensar naquelas normas que, para trazerem benefícios para todos, não podem deixar de impor encargos a alguns. Por exemplo: a construção de um novo hospital psiquiátrico, de um novo cemitério, de um novo aterro, sendo projectos de interesse comum, são normalmente rejeitados precisamente por aqueles que se encontram fisicamente mais próximos de tais instalações, porque residem, trabalham ou passam férias nas imediações. Quando o sindroma social "sim, mas não no meu quintal" se manifesta em toda a sua extensão contra um "uso do solo localmente indesejável", formas específicas de governância podem atenuar significativamente os sintomas, mas dificilmente eliminarão a totalidade da doença. Por outro lado, no extremo oposto, mesmo o cumprimento espontâneo pode ser determinado por causas bem diferentes do simples reconhecimento da legitimidade.

Entendemos que a lei de improbidade administrativa é uma das intervenções legais (conforme anteriormente já mencionado) 299


que teve por objetivo propiciar mecanismos de controle dos riscos de desvios administrativos11 que, na recente história democrática brasileira, e observando os fenômenos mundiais, tem sido constatados e comprovados pelos mecanismos de controle internos da própria administração. as condutas previstas especialmente nos “notadamente” dos artigos 9º, 10 e 11 da lei n. 8.429/92 foram, naquele modelo, desenhadas em função da experiência de desvios administrativos passíveis de perpetração por pessoas investidas, de forma transitória ou definitiva, em cargos ou funções públicas. Quando o administrador se vê diante de situações de fato em que há margem de opção administrativa com apoio na discricionariedade, indubitavelmente deve se servir dos critérios de risco e estar orientado pelos princípios da precaução e prevenção na tomada de decisão. a decisão administrativa deve ser inclusive sempre motivada12 em casos tais, pois, conforme verbera Mello (2001, p. 63): Motivo e motivação. 31. não se confunde o motivo do ato administrativo com a “motivação” feita pela autoridade administrativa. a motivação integra a “formalização” do ato, sendo um requisito formalístico dele (cf. 46 e ss.). É a exposição de motivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra de Direito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estribou para decidir e, muitas vezes, obrigatoriamente, (c) a enunciação da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado. não basta, pois, em uma imensa variedade

Mecanismos que, inclusive, servem para perseguir os desmandos administrativos praticados no âmbito da gestão ambiental: “a má gestão pública do patrimônio ambiental, com danos ao patrimônio público resultantes de graves equívocos administrativos ou de atuações dolosas, é outra hipótese emblemática, que tem merecido crescente intreresse. Essa modalidade de conduta ímproba é relativamente recente, mas tende a ganhar força. Os maus gestores da área ambiental devem ser fiscalizados com suporte na lGia. Todavia, há campos muito nebulosos. inexiste uma definição rígida de improbidade ambiental. Costuma-se considerar os níveis de ilegalidade, bem assim o montante dos danos e a objetiva conduta do infrator” (OsÓriO, 2007, p. 378). 12 sobre a necessidade do dever de fundamentação das decisões administrativas veja-se: vieira de andrade (2007). 11

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de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato. na motivação transparece aquilo que o agente apresenta como “causa” do ato administrativo, noção que será melhor esclarecida a breve trecho (conf. ns. 43 e ss.).

além, disso, como registra o mesmo administrativista, O desvio de poder, com alheamento a qualquer finalidade pública, é um vício que encontra espaço para medrar precisamente quando o agente público está no exercício de competência discricionária. a doutrina caracteriza genericamente o desvio de poder como ilegitimidade específica desta categoria de atos nos quais a administração dispõe de certa liberdade. no desvio de poder, praticado com fins alheios ao interesse público, a autoridade, invocando sua discrição administrativa, arroja-se à busca de interesses inconfessáveis. É bem de ver que o faz disfarçadamente, exibindo como capa do ato algum motivo liso perante o direito. Trata-se, pois, de um vício particularmente censurável, já que se traduz em comportamento insidioso. a autoridade atua embuçada em pretenso interesse público, ocultando dessarte seu malicioso desígnio. sob a máscara da legalidade, procura à esconsa, alcançar finalidade estranha à competência que possui. Em outras palavras: atua à falsa-fé. Enquanto de público o ato se apresenta escorreito, na verdade possui uma outra face que se forceja por ocultar, já que é constituída de mámorte e orientada por escopos subalternos. Dele se pode dizer, com Caio Tácito, que a ‘ilegalidade mais grave é a que se oculta sob a aparência de legitimidade'. a violação maliciosa encontra os abuso de direito com a capa da virtual pureza. (MEllO, 1992, p. 63)

Com apoio nas lições de jean rivero e Waline, lembra que, embora observem essas dificuldades, acentuam também que, por força da compostura esquiva, não se pode exigir uma produção da prova com ela incompatível, sob pena de não se viabilizar o controle jurisdicional dessas condutas viciadas. lança, então que a convicção pode resultar de um “feixe de indícios convergentes”. Portanto, a teoria dos riscos desenvolvidos no âmbito do direito ambiental, e os princípios que dela defluem servem de apoio para, num feixe de indícios convergentes, delinear a conduta ímproba do agente público. 301


Mais. O agente público deve não só pautar sua conduta procurando se servir da teoria do risco e dos princípios dela fundantes da precaução e prevenção com vistas a moldar sua decisão de forma a torná-la também, sob essa ótica, proporcional e razoável. Deve também atuar no momento de decidir para que ela própria, a decisão, não seja, na sua execução, uma fonte de possíveis desvios e atos de improbidade. significa isso que o administrador pode ser responsabilizado, com apoio na lei de improbidade administrativa, por ter tomado uma decisão que, não obstante ter avaliado os riscos e se pautado nos princípios da precaução e prevenção para dar solução à situação de fato enfrentada, tenha propiciado na sua execução desvios administrativos que poderiam ter sido plenamente identificados no momento da decisão tomada. Ou seja, embora a decisão tomada tenha levado em conta os riscos que ela importaria do ponto de vista de sua finalidade para dar solução, o administrador público não teria avaliado de forma adequada os riscos que ela poderia representar como meio de propiciar a prática de atos ímprobos no momento de sua implementação. Está o administrador obrigado a adotar providências, em face do princípio da eficiência e da boa governação, que impeçam ou dificultem ao máximo desvios de conduta das pessoas que irão executar a decisão.

cOnclusÃO

Como se vê, há um entrelaçamento entre as noções de risco e os princípios fundantes dessa teoria, especificamente, no caso estudado, os princípios da precaução e da prevenção, e a postura que o administrador público, o agente público, deve adotar na sua tomada de decisão do ponto de vista concomitante da

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razoabilidade e proporcionalidade. isso resulta numa contribuição significativa da teoria do risco no que se refere à aferição da conduta administrativa adotada e à configuração da improbidade administrativa do ponto de vista material. a motivação da decisão tomada é, nesse contexto, de singular importância, pois dela é que se poderá inferir se, no decidir, estava o agente público atento aos riscos dessa tomada de decisão e se atendeu aos princípios da precaução e da prevenção. no entanto, a insuficiente motivação do ponto de vista da avaliação dos riscos não impede que isso seja aferido e, caso constatado o não atendimento ou observância dos riscos possa o administrador, em qualquer uma das hipóteses previstas na tipologia da improbidade administrativa, ser responsabilizado nessa perspectiva.

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