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SOCIALIZAÇÃO E ILLUSIO Eros, desejo e falta Existe na noção de interesse uma certa ambiguidade, por que não dizer uma certa complexidade. Porque, bom, essa complexidade ela é explicada por Bourdieu a partir, digamos, de uma certa, de um resgate as concepções filosóficas mais conhecidas e, portanto, de certa maneira, a gente vai ser obrigado a dialogar com elas. Então, uma, uma palavra que é muito recorrente na sociologia de Bourdieu e que ele nem sequer traduz, é Eros. Então, claro, esse Eros ele vai encontrar o seu subsídio mais significativo no banquete de Platão, que é uma obra que Bourdieu lia e gostava muito. Então, claro, a primeira coisa que se destaca no Eros de Platão é o discurso de Sócrates, pelo menos essa é a perspectiva, digamos, oficial, e nesse discurso de Sócrates, Eros é apresentado como sendo desejo e desejo pelo que falta. Então, eu obviamente espero que você entenda, não tem como levar adiante a sociologia de Bourdieu se não entendê-la como uma sociologia de agentes sociais erotizados. Não é por acaso que Eros está sempre presente. Em outras palavras, existe em circulação no campo, né? É, uma enorme carga erótica, uma enorme carga erótica e essa carga erótica ela vai, de certa maneira, também ser chamada por Bourdieu de libido, né? Libido ou Eros, ele usa esses termos indistintamente, o fato é que existe aí uma certa energia disponibilizada pelos agentes sociais pra ir atrás dos troféus do campo, ir atrás das, é, digamos, das metas autorizadas por aquele grupo social. Então a graça da história é que, de certa maneira, quando Platão, através de Sócrates, apresenta a sua definição de amor como sendo o amor erótico e o Eros como sendo um desejo
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pelo que falta, é muito interessante observar que esse ser desejante, né? Esse ser desejante ele é, de certa forma, apresentado como um indivíduo, o que Bourdieu chama de naturalizado, quer dizer, um indivíduo que não se submeteu em algum momento a uma certa história e a um certo processo de socialização específico dentro desse ou daquele universo. Então, dentro dessa perspectiva, o desejo é entendido, se você lê o discurso de Sócrates do Banquete, o desejo é entendido como sendo um atributo do homem, mas esse homem que é desejante, ele é um homem genérico. Essa expressão me encanta. Quer dizer, um homem genérico quer dizer, um homem que não se confunde com nenhum homem particular, né? É um homem que não teve a particularidade de uma trajetória no mundo; a particularidade de uma história; a particularidade de uma vivência, um homem genérico e esse homem genérico é desejante. Então, o que Bourdieu observa? É que homens genéricos não podem ser objeto da sua investigação, porque, digamos, o objeto, o corpus, pra falar como um professor de pós-graduação o corpus da pesquisa de Bourdieu são homens de carne e osso, eles não são genéricos. Mas, gozado, eles são desejantes. Só que, de certa maneira, cabe ao investigador mostrar que esse homem de carne e osso que é desejante, né? Ele não é exatamente um homem genérico ou natural, mas ele é um homem socializado. É um homem cujo desejo resulta de um corpo sovado pela sua história, pelos seus encontros, pela sua socialização, pela sua inscrição no mundo e assim por diante. De tal maneira que dizer que o homem é desejante é falar de um homem genérico que não existe no mundo. Mas explicar que esse Eros tem condições materiais e sociais de emergência, de decantação e de propulsão do homem em busca a, em busca dessa ou daquela meta ou objetivo, aí sim é um pouco mais útil. Então, espero que isso tenha ficado claro pra você essa pequena crítica que faz Bourdieu a
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essa produção filosófica. Muito obrigado por ter falado de Eros. Muito obrigado por ter falado de Eros como desejo e desejo como falta. Isso de fato existe só que Eros, desejo, falta, e homem desejante são noções absolutamente, digamos, transcendentes, né? A imanência do mundo da vida, né? E no mundo da vida o homem não é exatamente desejante, ele é desejante de alguma coisa, e ele é desejante de alguma coisa e esse de alguma coisa, resulta de uma investigação da sua especificidade, da sua particularidade, da sua história, da sua trajetória e assim por diante. Então, nesse sentido vai aí essa primeira, esse primeiro diálogo de Bourdieu com essa perspectiva. É, curiosamente, quando você estuda, digamos, o amor fora do Banquete e esse amor fora do Banquete pode ser estudado no Fedro, por exemplo, você já encontra uma investigação mais, digamos, apetecível ao olhar sociológico de Bourdieu, e essa investigação o que é que nos propõe? Nos propõe que o amor continua sendo desejo, continua sendo desejo pelo que falta, mas o que é que Platão dirá? Platão dirá que existem, digamos, vários tipos de Eros. Opa! Já melhorou, né? Já melhorou, por quê? Porque o que é que Platão dirá no seu afã de defender suas ideias políticas ele dirá que existe um Eros do baixo clero, he, né? Sem que houvesse clero ainda, mas existe um Eros de segunda classe, um Eros, um Eros de gente mixa, né? Um Eros de gente inferior, propriamente. E esse Eros de gente inferior, esse Eros de segunda classe é um Eros, vamos assim dizer, fortemente influenciado pelos apetites, apetites gastronômicos, etílicos e pélvicos, né? Eu enfatizaria o terceiro, tipo de apetite, mas isso é um olhar todo meu do problema. Pélvicos. É, então, você percebe que Eros é tesão pelo que falta, Eros é tesão pelo glúteo intocado, né? Eros é tesão pela boca não beijada, mas é também tesão pela comida ainda não degustada. Eros, então é desejo pelo que falta e gente de gente ruim, gente de segundo escalão, tem um Eros muito determinado pela parte inferior da alma.
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E o que é que Platão logo nos explica no Fedro? Que existe a parte superior da alma e a parte superior da alma também é erotizada, mas ela é erotizada, de certa maneira, por uma coisa que falta que não é glúteos e feijoada, mas é a verdade, né? É o conhecimento, digamos, a competência intelectiva, é a capacidade de pensar melhor, é a capacidade de buscar verdades ainda não conhecidas, então, é claro que isso também falta e isso é objeto de Eros, né? Tesão por conseguir uma performance intelectual ainda não conseguida, esse é o Eros de primeira classe. Ora, o que é que Platão propõe? O que Platão propõe é que pessoas que têm Eros de primeira classe acabam convivendo mais com pessoas que têm Eros de primeira classe. E pessoas que têm Eros de segunda classe, e de terceira classe, e de quinta classe, acabam convivendo com pessoas que têm Eros de segunda, terceira e quinta classe. E de certa forma, essa convivência patrocina e reforça, não é? Essas inclinações iniciais, propriamente. Mas que quando você é, digamos, tem inclinação por buscar desenvolvimento intelectual, isso já se deve a uma predisposição inata, né? Ao desenvolvimento das faculdades intelectivas. E quando você tem busca de apetites de coisas do baixo ventre, isso também é inaptamente determinado e, portanto, você já nasce com a parte superior da alma a desenvolver ou com as partes inferiores da alma a desenvolver. Mas é claro que a vida em sociedade reforça essa tendência, por quê? Porque você acaba tendendo a conviver com gente que tem, digamos, disposições de vida semelhantes. Agora já tá melhorando! Já tá melhorando por quê? Porque se você tirar essa parte do inato, você já chegou em Bourdieu, não precisou fazer muita força, você já encostou. E o que você encostou? Encostou no seguinte, tenderá a buscar, digamos, o desenvolvimento intelectivo aquele que tiver vivido em condições favoráveis a desenvolver esse tipo de atividade intelectiva e tenderá a buscar a satisfação do baixo ventre, aqueles que tiverem esse tipo de inclinação.
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Em outras palavras, o Eros superior ou Eros inferior enquanto busca desse ou daquele tipo de troféu, nada mais é do que o resultado de um certo tipo de pertencimento social, um certo tipo de socialização e de história no mundo social.
Platão Bom, que fique claro, sempre haverá um chato pra dizer que o fulano nasceu na caixa prego, que o pai era alcoólatra, a mãe era prostituta e gostava de ser prostituta, a irmã, é, passou a vida drogada desde seis meses ela já cheirava cocaína e não sei que, e esse indivíduo acabou sendo professor de Teologia na Universidade Pontifícia de Roma. Pois é meu amigo, mas Bourdieu é um sociólogo, não sei se você me entendeu. Não me venha com um palhaço qualquer que é absolutamente extemporâneo e excêntrico e excepcional, o que Bourdieu esta falando é de grandes tendências, grandes inclinações e não a existência de um chato que por conta de esse ou aquele tipo de inclinação acabou, acabou chegando aonde não deveria ter chegado. E segundo aspecto, que fique claro aqui, o estudo da influência da sociedade sobre uma pessoa não deve se limitar aos universos que ela frequenta. Mas deve, de certa forma, descer as minúcias, é, digamos, da trajetória concreta daquela pessoa no espaço social, né? Não é por que você, duas pessoas pertencem ao mesmo campo que elas reagirão da mesma maneira, muito pelo contrário, não é isso que a sociologia diz, tá certo? Então, tem uma questão mesmo de sequencia de trajetória dentro de um determinado espaço, né? Então, sempre tem os apologistas do determinismo biológico, né? Sempre tem: Ah, fulano tinha dois filhos gêmeos, o Asdrúbal e o Assurbanipal. O Asdrúbal virou padre e o Assurbanipal virou, sei lá, virou dono de casa de lenocínio etc. e tal. Então, veja só, como eles já nasceram e não sei que, porque tiveram a mesma socialização, a
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mesma família, a mesma não sei que, não sei que lá. Argumento de fundo de quintal extremamente chato, que tem sempre um chato pra... Sabe por quê? Porque você tende a defender a tese de que o mérito dos, de uma vida que você considera meritória é seu. Então, cai bem pra você acreditar que tem esses casos e tal, mas não seja bobo, cara. Se você põe dois moleques na mesma história, eles não encontram as pessoas na mesma ordem, eles não encontram as pessoas no mesmo momento, eles têm experiências com as pessoas diferentes. Às vezes o cara tem o mesmo professor, na hora que ele vai falar com o professor o professor tava de ovo virado deu-lhe uma chinelada, no dia seguinte o professor tava super bem acolheu, trouxe pra casa, ensinou e etc. e tal. E aí foi ao mesmo professor, a mesma escola, a mesma turma, só que o resultado afetivo daquele encontro foi o oposto. Então, não seja burro. É preciso ser um pouco mais sutil pra entender a complexidade da influência do coletivo sobre os comportamentos diversos. Eu mesmo, né? O cara fala: “Ah, todos nós fomos alunos, professor Clóvis”. Só que cada dia eu tô de um jeito com os alunos do professor Clóvis. O professor Clóvis não é nada, é um corpo em trânsito, velho. Eu já fui muito mais bem humorado do que sou, e mais pobre, etc. e tal. E, portanto, ter tido aula comigo não quer dizer absolutamente nada, né? Quer dizer absolutamente nada. Eu penso, então, que de certa maneira, eis aí uma inquietação que me parece fascinante que é a perspectiva do Eros. Quer dizer, tudo bem, vamos buscar o que falta. Só que o corpo que busca o que falta, né? O corpo que deseja, né? O corpo que tem tesão não é um corpo, mas é uma sociedade feita a corpo. É um corpo trabalhado pela sociedade, né? Então, nesse sentido, eu gostaria que isso ficasse muito claro. Poderíamos descer as minúcias. Eu vou falar das regras da arte proximamente, né? É, hoje não é dia de falar de estética exatamente, mas eu faço questão de dar um exemplo.
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As partes eróticas, quer dizer, em outras palavras, sujeito, quando ele vê alguém pelado ele fica de pinto duro, não é? Então dá a impressão que isso é a natureza se manifestando, quer dizer, quer dizer. É, por que não seria, né? Por que não seria? E é gozado porque essa impressão de que é a natureza se manifestando esconde o que esta por trás. E o que está por trás? O que está por trás é que aquilo que supostamente desperta tesão não é excitador imanente, mas é resultado de uma convenção e isso, e isso é que fica escondido. Em outras palavras, pra deixar isso mais claro, quando você, né? Eu gosto de dar esse exemplo, você mete a mão na panturrilha de alguém, isso é exame pra ver se o sujeito distendeu, se você mete a mão aqui mais pra cima na bunda, no meio da bunda, isso é sacanagem, velho, né? Isso é sacanagem. Então, quando você põe a mão na panturrilha, você esta sossegado, se você meter a mão na bunda, você fica excitado. Por acaso a diferença esta na consistência muscular da panturrilha e da bunda? Não esta porque hoje as mulheres elas ficam dando aquele coice pra trás, e elas ficam com a bunda tão dura quanto a panturrilha. Não é uma diferença de textura, não tá na objetividade muscular, entendeu? Não está na disposição do encaixe tátil. Não tá, não tá. Tá no quê? No fato de que te contaram, ao longo de uma trajetória e interrupta disposição ao mundo, que a panturrilha não é nada, e a bunda é show de bola. Então, passar a mão na bunda é que é excitante. E de tal maneira conseguiram convencer o teu corpo disso, que quando você passa a mão na bunda você fica de pinto duro. Mas é socialmente construído, entendeu? Isso é o que a gente chama de excitação pelos símbolos sociais, está perfeito? É mais eficaz que o Viagra, de certa maneira, né? E por que razão a gente entende a história disso? Porque houve época que uma canela deixava o cara subindo pelas paredes. Hoje a mulher mostra a canela e você diz: “Que foi, machucou?”. E vai ver, destroncou, não sei que e tal, porque... Ninguém pode pretender ficar
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excitado olhando uma canela. Tanto é assim, que se você olhar pro pé de uma mulher e ficar excitado, hoje eles te põe num hospital, com desvios, com patologia, você tem desvio por quê? Porque você está se excitando com aquilo que não é convencionado como sendo excitável. E, portanto, perceba, o quanto a sociedade faz parte do teu corpo nas suas manifestações mais, é, viscerais. Ficou claro isso? Então mudou a história, mudou a sociedade, mudou a coisa. Eu prevejo que não vai ficar... Claro, fomos eliminando a erotização de tudo, né? É, você nasce com tesão por tudo e vai capando, capando, não, o braço não dá tesão, o cotovelo não dá tesão, o pulso não dá tesão, o ombro não dá tesão, o joelho não dá tesão, não sei que e tal e coisa, e foi capando, capando. Aí você vai dizer: “Ah, mas a vulva é sempre excitante”. Lógico, porque a sociedade não pode decretar o fim da sua reprodução. É preciso que o cara se excite com a vulva pra poder nascer criança e a espécie se reproduzir. Então, é claro que existe aí um certo alinhamento de reprodução da espécie aonde pinto e vulva estarão a salvo da deserotização do mundo, entendeu, né? É, e assim vamos. Acho que eis aí a primeira ideia que eu queria passar pra você e que me parece fundamental. Eu acho essa ideia fascinante, quer dizer, de certa maneira, quando eu assisto o Faustão e quando eu assisto o Pânico na TV, eu vejo as Paniquetes, e o que você observa? Você, de certa maneira hoje com o conhecimento conceitual, você consegue, ter experiências e de certa forma recuperar as experiências do teu passado que não eram de Paniquetes mas eram de Chacretes, por exemplo, né? E o que é que você observa? Que a cada segundo você é levado a acreditar que bunda é um negócio espetacular, por quê? Porque, porra, na hora de mostrar como elas são gostosas, o cara vai com a câmera atrás das Paniquetes... Sabe do que eu estou falando, não sabe? Paniquetes? Ninguém assiste, né? São figuras de outro naipe.
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Mas eu conto pra você: eles vão atrás das Paniquetes e mostram bundas peladas, bundas que não sei aonde são, não sei como chega naquele resultado, o interesse não é propriamente meu e tal. Eu fico imaginando o que se, o que foi preciso pra chegar naquilo. Mas de qualquer maneira é um resultado espetacular e você, quer dizer, é o que Bourdieu chama de estruturante estruturado, né? Quer dizer, você poderia imaginar: ele mostra a bunda, porque todo mundo quer ver a bunda, né? Mas o que diria Bourdieu: todo mundo quer ver a bunda porque ele mostra a bunda. Em outras palavras, é o interesse pela bunda está no fato da bunda ter sido consagrada e convencionalizada como sendo alguma coisa excitante a ser mostrada. Tá entendendo? Percebeu o jogo? Quer dizer, claro que eu quero ver a bunda, mas eu quero ver a bunda por quê? Porque sempre me convenceram que a bunda era o que tinha que ser visto, está certo? Em outras palavras, se criássemos uma sociedade tal, né? Em que todo mundo tivesse tesão pelo nariz, então, nós consagraríamos o nariz como instrumento excitante, e as pessoas mostrariam o nariz em foques especiais e pouco a pouco esse processo de socialização te levaria a procurar agarrar narizes na rua, e ser preso por atentado ao pudor por ter segurado o nariz de alguém em algum momento etc. e tal. Mas tudo isso é só uma questão de convenção, né? É, esses exemplos, eles chacoteiam, né? Do imanentismo das regras morais das práticas eróticas, chacoteiam. Muda a sociedade, muda completamente a coisa. Quem quiser ler a Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo perceberá que houve um tempo que o vislumbre de um tornozelo fazia o cara ir pro quarto resolver o seu problema sozinho. Tá escrito no romance. Hoje um tornozelo inclusive, é uma coisa que, não aposte nele pra grandes conquistas, né? É, não é o que se espera.
Pausânias
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No Banquete você tem o discurso do Pausâneas, e é claro que Bourdieu fala dele com enorme simpatia. Ora, por quê? Porque Pausâneas diz o que Bourdieu gostaria que Platão tivesse dito. O mais curioso é que é claro que foi Platão que disse, só que não disse na boca de Sócrates, disse na boca de Pausâneas. E qual é a proposta de Pausâneas? A proposta de Pausâneas é que existe mesmo um Eros vulgar e um Eros nobre e que, agora Pausâneas, quer dizer... O Eros vulgar e o Eros nobre são o resultado do quê? De interesses sociais em conflito. Em outras palavras, as cidades, Pausâneas só faltava falar de campos sociais, né? As cidades, elas definem de forma particular aquilo que é digno e aquilo que é indigno desejar. Em outras palavras, o que Pausâneas propõe é uma sociologia do amor. Entendendo que as cidades são espaços de definição do amor a ser sentido e do amor a não ser sentido. Amor legítimo e amor ilegítimo. Amor nobre e amor vulgar. Isto é Pausâneas falando. Ora, claro está que como é Platão que esta falando o amor vulgar é imediatamente relacionado ao sexo, porque tudo que é inferior pra Platão é corporal. E o amor nobre é imediatamente relacionado à intelecção. Em outras palavras, existe nobreza no amor quando existir ganho intelectivo na relação entre os amantes. Mas o que importa aqui é que Pausâneas destacará que, por exemplo, quando alguém tem amor por alguém, desejo por alguém, vontade de estar com alguém, este desejo que é, segundo diz Pausâneas, um desejo do corpo de quem ama, este desejo terá um valor social definido na cidade e pela cidade, e que se você trocar de cidade o valor social deste amor será mudado, trocado, será outro. Então, Pausâneas chega até a fazer uma espécie de tabela ao falar, por exemplo, do homossexualismo, né? Em tal cidade-estado é tolerado, em tal cidade-estado é aplaudido, em tal cidade-estado é insuportável, em tal cidade-estado é isso, etc. e tal. Dependendo da sociedade, o
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tesão por um corpo do mesmo sexo terá um valor social diferente. Ora, essa ideia é uma idéia absolutamente fascinante pra nós, e enriquecedora pra nós, por quê? Em primeiro lugar, pra deixar claro, que essa é uma perspectiva que Platão execra, né? Como tudo que é, verdade relativa. A sociedade é pra Platão execrável porque as verdades transcendem as particularidades sociais. Então, temos a primeira ideia. Segunda ideia, né? A perspectiva de Pausâneas nos leva a perceber que desde muito cedo já se tinha a impressão de que existem desejos certos e desejos errados de sentir. Ou seja, existem coisas legítimas a desejar e coisas ilegítimas a desejar e que cabe à cidade, à sociedade, à civilização, o quê? A educação do desejo. E educar o desejo é agir sobre o corpo desejante, isso quatro séculos antes de Cristo, agir sobre o corpo desejante, né? Para que possa gostar do que é gostável; desejar o que é desejável; amar o que é amável. E amar o que é amável segundo o quê? Segundo aquele entendimento particular daquela sociedade, daquela cidade específica. Perceba, a perspectiva pausâneana de amor é uma perspectiva que vai ser usada por Bourdieu. De maneira muito eloquente, de maneira muito clara, quando Bourdieu busca mostrar, né? Que existe uma investigação necessária sobre a influência da sociedade sobre as paixões. Em outras palavras, o que o sociólogo tem que investigar? A influência da sociedade sobre o que nós pensamos? É, isso é muito menos necessário, porque essa influência ela é óbvia. Mas sobre o que nós sentimos? Isso é muito mais necessário porque essa influência é muito menos óbvia, e por quê? Porque ela se confunde, ela se confunde com a, digamos, com a naturalidade de um corpo que desejaria naturalmente. Eis aí. Então, daí a, a necessidade da investigação da participação da sociedade na definição dos objetos legítimos de desejo e, digamos, na socialização de entidades desejantes para tal, propriamente.
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Em outras palavras, o trabalho legítimo de civilização é um trabalho de direcionamento do Eros para o que for legítimo desejar, propriamente. Em outras palavras, se você se encontra com alguém que deseja o que é ilegítimo, pois isso é um erro civilizatório, um erro socializatório, um desvio. Desvio, como não dá pra botar na cadeia a sociedade, bota-se na cadeia a vítima do erro que é a entidade desejante, né? Poderia dar um exemplo pra você entender isso melhor. Uma jovem colega me liga, foi colega aqui da USP de cursos que eu fiz aí, e que é responsável por uma escola de elite em Ribeirão Preto. A mais cara, a mais badalada, etc. e tal, e ela é diretora da escola. E ela me liga e diz: “Eu tô com um problema, porque tem um menino que já vai ganhando anos e continua é, digamos, muito inclinado em manipular tatilmente as mamas das professoras, né?” Então, você percebe... “Então o que eu faço, expulso a criança e tal?”. Esse é um ponto fantástico, por quê? Porque você tem, evidentemente num primeiro momento, a autorização da manipulação mamária e isso, claro, ela é, de certa forma, um alinhamento do que a sociedade autoriza e do que o instinto natural recomenda. Então, claro, isso vai até uma certa idade. De repente alguém tem que dizer: “Olha, já não, né?” Quer dizer, é o desmame, né? “É preciso parar com isso”, e aquela coisa e tal. Ora, se o menino não parou é porque houve uma ineficácia do processo civilizatório, né? Então, é claro que o menino tem um desejo inaceitável. E esse desejo inaceitável ele já foi aceito, mas como você tem uma categorização etária dos desejos legítimos e ilegítimos, alguém falhou na hora de produzir a ele uma tristeza necessária pra que ele evitasse de ir buscar esse tipo de satisfação, que é a satisfação do toque mamário. Então, o que é que vai explicar Bourdieu, né? Que na luta na tensão entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, a realidade é a sociedade e a sociedade, de certa maneira, é, deve se organizar de maneira a fazer triunfar, né? A sua condição de sobrevivência em relação às
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pulsões dos agentes que dela fazem parte. Quando isso não acontece você tem um desvio. O desvio é social e civilizatório, quem vai pagar o pato é quem não foi devidamente educado. Aliás, não sei se você já percebeu, sempre funciona assim. Quando você não pensa bem quem paga o pato é você, mas, de certa maneira, se você não foi bem formado, isso é um problema social, né? É, se você pega, de certa maneira, não tem o medo que deveria ter, isso é um problema social e quem paga o pato é você. Sempre quem paga o pato é quem foi vítima de uma sociedade claudicante nos seus processos de civilização, né? De certa forma, é dentro dessa perspectiva que Bourdieu vai, a partir de Pausâneas, nos proporcionar uma reflexão sobre um Eros de campo, propriamente. É aqui que a gente avança.
Libido e campo social Haverá tantas libidos quantos forem os campos sociais em questão. Em outras palavras, é, cada campo tem uma certa forma particular de organizar a libido de seus agentes, né? Então, veja você que bacana a comparação que eu vou fazer. Alguém poderia dizer: “Bom, é, todos nós temos uma energia vital, pulsional, e essa energia pulsional ela não pode ficar desorganizada, mais ou menos como ela nasceu. Ela tem que ser organizada. E quem vai organizar essa energia vital de cada um é o universo social onde cada um está, que nós poderíamos chamar de civilização”. Então a civilização é o espaço legítimo de organização da libido, da energia vital, com vistas a quê? Com vistas à proteção da sociedade e com vistas, de certa maneira, a uma inclusão desse indivíduo que seja, digamos, a menos traumática possível. Eis aí o trabalho civilizatório clássico. Então, princípio de prazer, princípio de realidade. Eis aí o primeiro passo. A sociedade como um todo é um espaço de organização das energias vitais. Isso pode, isso não pode. Isso só pode
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depois. Isso não poderá nunca e assim por diante. Você vai aprendendo como é que você vai satisfazer aquele desejo que é sempre o teu, né? No final das contas, o princípio de prazer não desaparece nunca, você esta sempre querendo coisas, você é uma usina de busca de prazer e a sociedade é uma... Quer dizer, tão ininterrupta é a tua pulsão e a civilização em não deixar que ela seja satisfeita de qualquer jeito. Eis aí duas coisas teimosas que não param nunca, tensão que não acaba mais: eu querendo mamas e glúteos, e a sociedade dizendo não, não, não, não, sim, sim, sim, não, não, não e assim vamos. É claro que isso seria impossível e insuportável se ficasse o tempo inteiro na esfera da consciência. E por isso, é claro, você acaba, de certa maneira, criando mecanismos pra tirar isso do centro da tua consciência, pra se ocupar com outras coisas pra que a vida se torne suportável. Senão, seria insuportável se cada mama não apalpada te desse meia hora de inquietação... Eu, pelo menos, não faria mais nada na vida a não ser lamentar todos os peitos que eu não consegui apalpar. Então, claro, você tem que ir botando pra trás, a sociedade é um espaço de organização da libido.
Eros e Civilização Aí, depois que isso foi dito no Mal-Estar na Civilização, você tem um pouco depois o Marcuse no Eros e Civilização, anote essas coisas, e vai dizer o seguinte: “Bom, se é a sociedade que organiza a libido vamos então partir pro particular. A nossa sociedade é capitalista, então, existe uma forma particular da sociedade capitalista organizar a libido”. Eros e Civilização do Marcuse. E o que Eros e Civilização do Marcuse nos contará? Que o capitalismo, a sociedade capitalista se caracteriza por mecanismos próprios de organização da energia vital dos seus agentes. E, digamos, existe aí um binômio, um binômio organizador da tua energia vital e esse binômio organizador é o quê? O trabalho e o consumo, he. Em outras palavras, pra te tirar um pouco da tua
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onda funicante, né? Porque senão não há sociedade que aguenta tanto hormônio, o trabalho, o trabalho. Em outras palavras, o trabalho permitirá a você, digamos, redirecionar o teu Eros pra coisas do trabalho, né? Coisas do trabalho. E de certa maneira, na perspectiva marcuseana você vai trocar uma bimbada à noite por uma hora extra, né? E troca. Eu te dou um exemplo, ontem, não sei por que, mas... Ontem eu fui dar aula na... Eu fui dar uma aula na USP às oito, sai dez e pouco, peguei o avião onze e pouco, cheguei em Brasília à uma, em Brasília eu comi da uma à uma e oito no Viena do aeroporto. Aí eu peguei o táxi uma e quinze e quinze pras duas eu tava no hotel Tulip Royal o caralho, do lado do Palácio da Alvorada pra dar uma palestra na Caixa Econômica Federal, dei palestra das quinze pra duas as três e dez. Três e treze eu entrei no táxi, três e trinta e três eu cheguei no aeroporto, às dezesseis horas o avião decolou, eu já tava com o chiquinho pronto; cheguei aqui dezessete e trinta, peguei o carro dezessete e quarenta e cinco, e cheguei na USP às dezenove horas e dei aula até às vinte e três. As vinte e três eu sai, cheguei em casa vinte e três e trinta. A minha mulher abriu a porta e o que foi que eu fiz? Tirei, eu já comecei tirando o sapato no elevador, quando chegou no meu andar eu tirei a calça e a cueca, quando ela abriu a porta eu tirei o resto e eu falei: “Para o sofá, porque agora você vai ver com quem você tá casada”. Foi isso o que eu fiz? Não, não foi, não foi. Eu não conseguia nem falar. Eu sentei no puf liguei a televisão, né? Ela: - Ah, você quer alguma coisa? - Não, não da, eu não consigo comer, não - Beber alguma coisa?
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- Não consigo... - Tirar o sapato? - Não, não precisa Ai você deita ali, aquela coisa e tal e você fica ali... E você só acorda hoje, com a gravata, né? Então, você acorda hoje... Então, o que aconteceu ali? Houve um redirecionamento da energia vital para o trabalho, mas não há dúvida, então, essa perspectiva marcuseana é uma perspectiva fascinante por quê? Porque você troca mesmo, né? É uma coisa pela outra, tranquilamente. E é claro que na lógica de Marcuse, muito influenciada por Marx pro gosto do Bourdieu, tudo isso tem a ver com ganho de capital e ganho de capital que permitirá consumo. Então você trabalha, trabalha, trabalha pra caralho, ganha, ganha, ganha dinheiro e com isso vai na Daslu, e ainda existe? Existe. É, Iguatemis e outras coisas, e torra lá no seu cartão de crédito e tem alguma satisfação, entendeu? Pelo menos na hora. Você compra um vaso, uma porra lá, né? No lugar de uma trepada um vaso, né? Uma bolsa Prada, uma porra lá e tal e assim você vai driblando e fazendo passar o tempo. Ora, houve ganho? Houve ganho, porque antes nós estávamos dizendo: a civilização genérica canaliza a libido. Agora nós chegamos na Escola de Frankfurt e nós dissemos: “a sociedade capitalista canaliza a libido”. O que é que vai dizer Bourdieu? É, vamos partir daí. Sociedade capitalista é um negócio muito grande, muito, muito... Como tudo que é muito grande é pouco preciso, né? Pouco preciso. Dentro desse universo grande haverá especificidades. E é claro que na hora que ele corta essa sociedade em campos, ele consegue um resultado infinitamente mais específico de organização das energias vitais em espaços, digamos de maior especificidade nesse resultado. E a partir daí você vai ouvir Bourdieu falar de libido acadêmica,
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libido econômica, libido política, libido jornalística, libido publicitária e assim por diante. Em outras palavras, aceitando que os espaços específicos de pertencimento social, eles de forma relativamente autônoma organizam mecanismos organizadores da energia vital e que, de certa forma, garantem um resultado apaziguador, um resultado de estabilidade que é específico daquele espaço. Então não dá pra falar de sociedade capitalista, porque cada micro universo social consegue esse resultado de maneira diferente. De maneira diferente. Olha só que loucura. Então, eu poderia estabelecer aqui algumas comparações, né? Mas não cabe a menor dúvida que, antes de fazer essas comparações, Bourdieu vai introduzir um elemento, né? Nessa organização das forças vitais dentro dos campos, que é um elemento de temporalidade existencial. Em outras palavras, Bourdieu tava convencido de que uma das formas privilegiadas de você sovar o indivíduo de forma a torná-lo dócil ao pertencimento social é através da organização do seu ritmo de vida, propriamente. Em outras palavras, o ritmo de vida é um elemento constitutivo do Habitus de cada um, e que é constituído dentro de um espaço específico de relações sociais, e que é fortemente determinante da organização da energia naquele espaço. Ficou claro isso, não? É que eu já estou começando a falar... Ah, não, não tem por que não ter ficado claro. Se não ficou claro o problema é seu, porque foi absolutamente claro, né? É, é brincadeira. Eu repito pra quem quiser. Eu acho que você está entendo o que eu estou falando, né? Quer dizer, não dá pra deixar o tesão à solta.
Os afetos no campo Então, você vai jogar um cara na sociedade, a sociedade tem que segurar a onda dele. A pergunta de Bourdieu é: “que sociedade segura à onda?” “Quem exatamente?” “Quais são os elementos materiais da sociedade que mais diretamente agem sobre o indivíduo?”
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Então, o que Bourdieu dirá? No meu caso, por exemplo, digamos, a responsabilidade de organizar a minha energia vital, no sentido de não me converter num homem perigoso pra sociedade, é do campo acadêmico. É o campo acadêmico o espaço que se responsabilizará por me fazer disponibilizar energia de um jeito socialmente legítimo, autorizado, reconhecido, e por que não dizer até nobre, nobre. É o campo acadêmico. Esse é o que vai, é o responsável. Então, eu não sei se você entendeu, se eu fosse funcionário da Bolsa ou se eu trabalhasse num banco ou se eu fosse deputado, eu organizaria a minha energia vital diferentemente. E por quê? Porque o espaço responsável por esse resultado é outro e, portando, existe aí uma especificidade a ser investigada. Ora, como é que ele começa a investigar essa especificidade? Através dos ritmos existenciais. Através do quê? Da maior ou menor rapidez dos encontros dentro do campo. Da maior ou menor rapidez das relações dentro do campo. Da maior ou menor rapidez dos afetos dentro do campo. Tá convencido disso. Quer dizer, a sociedade é um mosaico de orbitais e os átomos dentro desses orbitais circulam em velocidades diferentes de tal maneira que você pode sair, eu vou te dar um exemplo agora; você sai da USP, que é um espaço quase que estático, quer dizer, é a falta de movimento absolutas.Qual é a cadência legítima ali? É de um professor que chega, vai tomar o seu café, vai pra sua sala, isso na segunda-feira, ele é quarenta horas. Ele só vai dar aula na quinta e ele já tá cansado pela aula na quinta que ele vai dar. Ele dá uma aula por semana, entendeu? Aí ele chega, senta na sua sala, aí ele vai ver as notícias do dia, depois ele vai eventualmente fazer um fichamento: “Deixa eu pegar esse livro que chegou agora e tal”. Aí ele vai lá faz umas fichas, aí já é a hora da merenda, depois já é não sei o que e tal. E aí então, esse cara vai pra casa e uma vez por semana ele vai dar aula. E como uma aula por semana é muito cansativo, ele acaba botando o seu assistente, porque ninguém é de ferro, etc. e tal.
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Então, quer dizer, isso é uma cadência, né? E se você falar: “Mas escuta, ninguém faz bosta nenhuma aqui?”, ele tem respostas pra te dar na ponta da língua, quer dizer, pra pensar o que eu penso não dá pra ser na velocidade que você compra ações, né? Por quê? Porque o pensamento requer tempo. Você como é um desmiolado e não pensa é normal que você viva rápido, o pensamento é lento. A profundidade exige a maturação das ideias, você entendeu? Tá certo? Então, você percebe que você tem aí um espaço que é um espaço de lentidão legítima. E é nessa lentidão legítima que você vai organizar as atividades dos agentes. Quer perceber, quer começar a se foder? Tenta acelerar pra você vê o que acontece. Você acelera e você começa a rodar, a rodar sozinho, por quê? Porque existe uma cadência rítmica de deslocamento que é uma cadência que faz com que os encontros se organizem em função de ritmos específicos daquele espaço. Além da USP, existe uma expressão na França chamada “passo de senador”. E o que é o passo de senador? É aquele passo de quem não quer chegar, né? É o passo de senador etc. e tal. E você vai dizer: “Pô, o sujeito se elegeu senador por que anda devagar?”, hehehe, seria o máximo não. Ele passa a andar devagar porque ele se dá conta que naquele universo não adianta andar rápido, ninguém te acompanha. Se você tiver com alguém andando e se você andar rápido, você fica sozinho. Em outras palavras, existe um ritmo social que contamina e respinga, né? Uma certa, digamos, uma certa cadência individual, né? Então, muitas vezes tem conflitos de socialização, né? Bourdieu vai falar de um Habitus primário que são, digamos, disposições de agir que você adquire na infância e na adolescência vitimados por um pertencimento familiar e escolar. Muitas vezes tem um cara super agitado, de repente ele entra num espaço universitário ou num espaço laboral que é incompatível com aquele tipo de Habitus primário, e ele tem que passar
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por um realinhamento das suas disposições práticas, por quê? De certa maneira, a gente pode ter certeza que os RH da vida são pessoas com faro, né? Pra identificar esse tipo de alinhamento. A única coisa que ele não sabe é que são alinhamentos que decorrem de socialização e não de genética, disposições inatas ou competências intelectuais. Não, isso são alinhamentos de socialização. “Nossa, é exatamente o que eu estava procurando”, já ouviu coisas assim: “Nossa, é esse o nosso perfil”; “Não, não sei por que, não é esse o nosso perfil”. “Ah, por quê?” “Ah, porque eu não notei, é, o ‘aguerrimento’ necessário”. O que há ali é um desalinhamento de socializações e espaços diferentes. Pois muito bem, espero que você tenha entendido, essas cadências são cadências socialmente definidas. O que nos leva a imaginar que é o tipo de ritmo de vida é o exemplo maior de um atributo de Habitus, né? Por que, por quê? Porque a tua cadência de vida é o tipo da coisa que você não presta atenção. Você só presta atenção quando há excesso ou quando há falta, mas quando há uma cadência normal de vida pra você isto é o normal do normal, quer dizer, o Habitus. A única coisa que você não para pra pensar é o que aquilo que pra você é normal não é natural, mas é o que foi socialmente disposto enquanto aprendizado social de tal maneira que você acaba, de certa forma, se sentindo bem num lugar aonde o teu, abro aspas, jeito de ser coincide com o jeito de ser das pessoas: “Nossa, parecia que eu já conhecia aquelas pessoas há tanto tempo”, né? “Nossa, parece que eu trabalho aqui há tantos anos” né? Na verdade isso nada mais é do que uma certa coincidência entre o que já acontecia antes e o que acontecia naquele espaço, né? Eu poderia te dar um outro exemplo que é o exemplo do cartório, né? Eu não sei se você já teve a oportunidade de frequentar um cartório mais amiúde. É uma coisa fabulosa. Até outro dia o camarada tirava um caderno gigantesco da coisa tal, e aí: “Qual é mesmo o portal?” E pegava a
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caneta e o cartório... O cara faz aquela letra rocambolesca, gótica... É, aí você olha aquela misancene e, claro, pra você que tá de fora... Né? E assim, saiu da onde, velho? Da década de trinta do século dezenove. Mais pra quem vive ali é, é o que é, é o que é. E quem é o, o dominante? É o que tem a inicial do nome mais... O “ele” do cara ocupa a folha inteira e tal e é, de certa maneira, uma forma de materializar o quê? Um certo tipo de convivência que vai se naturalizando na convivência. E aí? E aí é simples, você só se dá conta que poderia ser diferente quando você transgride, quando você escapa, quando você encontra o que é diferente, quando é obrigado a conviver com aquilo que não é o teu negócio. E é por isso que as pessoas evitam: “E eu vou me foder por quê?” , né? “Eu vou trocar por quê, tô tão bem aqui, essa é a minha casa”. Olha os exemplos: “Essa sempre será a minha casa”. “Eu não poderia fazer outra coisa senão o que eu faço, eu nasci pra fazer isso, né? O vento venta, a maré mareia, o sapo sapeia e eu carimbo, né? Quer dizer, eu nasci pra carimbar. Desde o momento que eu comecei a carimbar eu percebi que eu sou um carimbador, entendeu? Na verdade é o que Deus quer pra mim e por isso eu sou muito feliz fazendo isso”. E, naturalmente, você encontra explicação na casa do chapéu, mas você não aceita que na verdade aquele prazer de chegar todo dia às oito; de fazer todo dia a mesma coisa; de comer todo dia no mesmo lugar; de encontrar todo dia as mesmas pessoas; de fazer todo dia a mesma coisa, aquele prazer nada mais é do que o resultado de um processo de socialização que não só é agradável quando você está alinhado com o que se espera do teu comportamento, como também impede que você tenha encontros desagradáveis, isto é, encontros em que as expectativas em relação ao teu comportamento sejam agressivas em relação as tuas disposições de agir. E é aqui que Bourdieu zomba da Eudaimonia aristotélica, que eu ensino aqui como sendo um negócio muito legal.
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Aristóteles e a Eudaimonia Então, o que vai dizer Aristóteles? O que vai dizer Aristóteles a gente vai descobrir daqui cinco minutos. Vamos, vamos, vamos, vamos! Ora, o universo aristotélico, você se lembra, ele é um todo organizado, eu me atreveria a dizer que existe uma correspondência entre o cosmos, o logos, o teion. Quer dizer, o universo ele é ordenado, pelo fato dele ser ordenado ele é lógico, compreensível e essa beleza e essa maravilha da ordem universal, o homem aceita que não foi ele que fez e, portanto, transcende a ele e, portanto, é divina, né? Um alinhamento entre o cosmos, o logos e o teion. Muito bem. É, nesse momento, isso aí vem tudo proveniente até da mitologia, já tá tudo pronto, Zeus organizou tudo e aí nós temos um lugar natural. Então perceba que Aristóteles fala em lugar natural. É bem bacana isso, né? Lugar natural. E o que é o lugar natural? O lugar natural quer dizer o seguinte: quando o vento venta ele não venta em qualquer lugar, portanto, o vento tem o seu lugar natural que é entre pontos de pressão atmosférica diferentes, tá certo? Quando a maré mareia ela também não mareia em qualquer lugar, certo? Quando o terremoto terremonteia ele tem um lugar natural pra terremontear, que quase sempre é na junção das placas tectônicas, entendeu? Então, já sabe que é ali que vai dar terremoto, se tem um cara que faz a casa e a metade da cama dele está de um lado da placa tectônica, e a outra metade da cama está do outro lado é um indivíduo que já está assumindo um certo risco, porque ali é um lugar natural de terremoto, tá certo? Lugar natural. Tá perfeito? Lugar natural. Então, é claro, se tudo tem o seu lugar natural e nós somos natureza, temos também o nosso lugar natural. Percebe, procure me entender, hein? Aristóteles, lugar natural. E esse lugar natural é
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preestabelecido por Zeus, Zeus, velho. Então, quer dizer, os deuses ficaram com o filé mignon: terra, céu, mar e o caralho. Depois ele distribuiu semideuses, o segundo escalão, ministérios e tal. Depois teve gerencias, diretorias, etc. e tal, quando começou a chegar nos mortais, é nóis. E aí temos também o nosso lugarzinho, está certo. O que tem a ver o nosso lugarzinho? O nosso lugarzinho é o lugar aonde melhor poderemos atualizar os nossos talentos. Então, já existe uma correspondência entre o lugar que é o nosso e a condição ideal para que possamos atualizar, quer dizer, traduzir em ato a potência dos nossos talentos, ficou claro? Por exemplo, Romário no comando do ataque, é o seu lugar natural. É pequenininho, mas é ali, qualquer outro lugar o Romário não joga, porque ele não corre, ele não treina, ele não se esforça, ele não porra nenhuma. Então, não adianta botar nem de lateral, nem de back, nem de meia, nem de marcador, nem de ponta, nem de porra nenhuma. Ele só fica ali, mas ali ele é o cão, é o lugar natural. Ficou claro? Lugar natural. Qual é o lugar natural do cara que esculpe? É, é coisa. O lugar natural... É o lugar onde o talento do cara... O lugar natural do professor Clóvis? É no auditório, aonde ele atualiza a potência do seu talento. É o lugar natural. Quando a gente está no lugar natural a nossa natureza entra em harmonia com a natureza do Universo e a gente então vive bem, hehe. E esse viver bem vai receber o nome de Eudaimonia, bem supremo. E pra que vivamos bem, pra que a vida possa ser feliz é preciso estar no lugar natural e atualizar com excelência a particularidade dos teus talentos. Ficou claro? Acho que você entendeu. A palavra é lugar natural, tá perfeito? E é a natureza que dispõe os lugares em função do quê? Da particularidade, da natureza dos teus talentos.
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Pois muito bem, qual é a graça dessa história? A graça dessa história é que quando você compra esse pacote o seu lugar já está preestabelecido: - Meu amigo, seu lugar natural é lavando o meu carro. - Precisa reclamar com quem? - Ah, é a questão cósmica, né? Eu não tenho nada com isso, eu mando e você obedece. É questão de talento natural. Então, você percebe que toda vez que você atribui à natureza a responsabilidade da divisão do trabalho social, você justifica tudo. De certa forma, pra juntar com que nós aprendemos na aula em que poucos vieram, né? A natureza é uma instância legitimadora dos exercícios de poder na sociedade. Você poderia falar: “Por que você manda e eu obedeço?”, e eu respondo: “Porque Zeus distribuiu o mundo, deu pra Poisedon o mar, deu pra não sei quem coisa, deu blablabla por, deu papapapa, e pra mim deu os talentos que deu. Deu meu lugar natural, deu coisa, etc. e tal, pra você não deu porra nenhuma ou então deu a possibilidade de ser meu escravo e pronto. Você é meu escravo”. Acho que você percebeu, Aristóteles gostava da ideia de escravidão, porque a ideia de escravidão encaixa perfeitamente com a ideia de que tem gente superior a gente, por conta do quê? Dos seus talentos naturais e da capacidade de atualizar os seus talentos naturais. Tá perfeito isso? Tá ok? Então, quando é que você vive “eudaimonicamente”? Quando é que você vive felizmente? Você vive felizmente quando você vive no lugar certo e fazendo aquilo que corresponde as tuas inclinações naturais, aos teus talentos. E aí você se encaixa na ordem cósmica. Ficou claro? Ora, dirá Bourdieu, ou é cínico ou é demente. E é claro que é perfeitamente compreensível
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que Aristóteles pensasse do jeito que pensava, porque não se sabia, na época, quase nada do que Bourdieu já sabia. O Universo não é como Aristóteles achava que era e não sei que, a ideia de lugar natural não se sustenta, porque pra ter um lugar específico é preciso poder posicioná-lo, poder situá-lo e pra situá-lo é preciso que haja finitude, havendo infinitude só mesmo na convenção. Então, naturalmente, a ideia de lugar natural, Bourdieu substituirá a ideia de lugar social ou de posição social. E o que Bourdieu dirá? Quando é que a vida será feliz? hehe. Aristóteles diz, quando houver um alinhamento. Quando houver um alinhamento entre a tua natureza, o lugar aonde você vive, a atualização do teu talento natural e aquilo que o Universo espera de você. Eu costumo dar o exemplo do meu cachorro. O meu cachorro é o Said, é uma homenagem que eu fiz ao bairro onde eu moro, Higienópolis. Meu cachorro é o Said. Muito bem. O Said é uma salsicha, né? E alguém dirá: “Uma salsicha por quê?” Foda-se, porque ele, deram... Duas salsichas treparam e ele nasceu uma salsicha. Então, ele é... Não senhor, tá tudo alinhado, uma salsicha. Ora, a salsicha tem a ver com o seu talento. Qual é o talento de uma salsicha? Entrar em lugar difícil de entrar. Qual é o grande barato de uma salsicha? O que ele gosta de fazer? Isso, entrar em lugar difícil de entrar. E o que o Universo espera que ele faça? Entrar no buraco difícil de entrar. Puta que pariu, não tem como errar. É uma harmonia perfeita. Ele é o que ele faz, o que ele gosta e o que o Universo espera que ele faça. Eudaimonia. Aí ele é feliz. Como? Entrando em lugar difícil de entrar. Quando é que ele é triste? Quando ele não tem um lugar difícil de entrar. Então, é esse o negócio. A salsicha sem um lugar pra entrar. Então, a salsicha é pra entrar. Tá óbvio, tá óbvio. Pegue aí a salsicha na sua mão. Você vê lá, ela é daquele jeito por uma razão de ser. Então, claro, esse é o pensamento grego.
Felicidade e alegria
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Qual é a proposta de Bourdieu? A proposta de Bourdieu é que a felicidade requer mesmo um alinhamento. Ele vai, ele gosta de tirar sarro. Na verdade, então, Aristóteles tem até razão, né? Aristóteles tem até razão. Só que ele tem razão se você aceitar o quê? Primeiro: vamos partir do nosso Universo, ele é infinito, uma zona, não é referência pra nada. O que é que sobrou na nossa mão? A sociedade. Muito bem, a sociedade vai definir o quê? Os seus espaços. Os seus espaços vão definir o quê? Os seus troféus? Os seus troféus vão definir o quê? As competências necessárias pra alcançar os troféus. As competências necessárias pra formar os troféus vão ser definidas e forjadas aonde? Em espaços de formação de competências necessárias pra formar o troféu e vão encontrar até pessoas talentosas pra isso. Quando tiver o alinhamento entre a tua competência, a tua formação, o que a sociedade espera de você e o troféu que você busca, você será feliz. Percebeu? Existe também um alinhamento possível só que ele não é da natureza com o cosmos. Ele é do quê? Ele é da tua educação com que a sociedade espera que você consiga num determinado espaço. Em outras palavras, quando é que você tende a ser feliz? Quando, de certa maneira, você busca aquilo que a sociedade espera que você busque e você tem competência pra alcançar. Eu vou explicar: você tenderá a ser feliz quando você deseja o que a sociedade espera que você deseje, e por alguma razão você adquiriu competências para alcançar. Eis aí a condição sociológica da Eudaimonia Bourdiesiana. Quando é que a vida vai valer a pena? A vida vai valer a pena quando você tiver um tesão, esse tesão é o que a sociedade espera que você tenha tesão por, e por alguma razão você tem capital, condições, recursos e competências pra alcançar aquilo que a sociedade espera que você alcance. Exemplo... Não sei se entendeu, tá me acompanhando, não? É, sujeito adora a mulher.
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Costuma durar quinze dias um mês, não sei, mas ele adora a mulher. Ora, a sociedade monogâmica espera o quê? Que ele adore a mulher. Existe um alinhamento espetacular, ele só tem tesão com a mulher e a sociedade espera que ele só coma a mulher. Quer coisa mais espetacular do que isso? Quer dizer, toda a sua energia mais aparentemente autêntica é alinhada com o que se espera que ele faça. E o que é mais legal, ele tem hormônios a mil pra comer a mulher que a sociedade espera que ele coma. Eu acho que você entendeu, este indivíduo está nas nuvens. Eudaimonia social de Pierre Bourdieu. Fazer, conseguir fazer o que os outros esperam que você faça. Mas é claro que poderíamos acrescentar aí um elemento suplementar. Quase tudo que você disponibiliza pra buscar o que você busca, em outras palavras, este alinhamento a que estamos nos referindo, ele é da esfera do óbvio, da esfera do não percebido, da esfera do inconsciente, da esfera, portanto da illusio. Quer dizer, condição de felicidade, inclusão num espaço organizado. Dois: pertencimento a esse espaço e condições de jogar o jogo. Três: acúmulo progressivo de capital específico no campo. Quatro: competência sempre relativa pra alcançar os troféus do campo. Cinco: desejo óbvio de alcançar os troféus do campo. Seis: uma sociedade que espera que você alcance os troféus do campo. Sete... Acho que você percebeu, existe um alinhamento que vai desde você até a sociedade e cuja fronteira é uma fronteira, é uma fronteira difusa.
Antropologia versus Bourdieu Sabe, os antropólogos, categoria quase sempre inferior, eles tão convencidos numa categoria que é a categoria que Bourdieu contribuiu para borrar, que a fronteira de um lado entre o natural e o cultural. Então, você vai estudar Antropologia, você entra na aula e entra lá o professor de Antropologia. Dez sobre dez professores de Antropologia vão colocar na lousa, no primeiro dia, a
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diferença entre natureza e cultura. Natureza é o que é da natureza e cultura é o que é resolvido pelo homem etc. e tal. O que é que Bourdieu mostra? Esta diferença não existe. E por que ela não existe? Porque a natureza é aculturada e a cultura é naturalizada. Em outras palavras, nós que somos cultura, somos naturais, né? Nós que somos cultura, somos naturais. Então, se a cultura tiver materialidade ela é natural. E, portanto, a natureza humana é culturalizada, não há natureza humana sem cultura, não há essa separação, e não há cultura que não seja materializada numa natureza. E, portanto, natureza e cultura, no nosso caso, são a mesma coisa. Como cultura só existe pra nós, então, essa fronteira é uma fronteira que não existe. Toda vez que você separa natureza de cultura, você separa de sacanagem ou de ignorância. E qual é o ganho que você tem em separar natureza de cultura? É você criar a ideia de um indivíduo puro, né? E de uma cultura do outro lado, como se houvesse assim uma espécie de fase estanque, sem que você perceba que quando você sai do útero, e há os que até antecipam isso por acreditar que já no útero já estamos sob a égide de uma inclusão social, mas vamos, né? Saiu do útero já saiu ouvindo a avó falando: “Que lindo, que não sei que”, aquela coisa, em português. Não é em grego, não é em turco, não é em paraguaio, é em português. Aí já vem um que já dá um tapa mais forte ou menos forte. Pega uma enfermeira brasileira, podia pegar uma polaca, aquelas que segura a criança pela mão assim, dá uma sacudida pra ela chorar assim e tal. Então, você já começa a entender onde caiu no primeiro segundo, não tem natureza que não comece a ser sovada pela cultura no primeiro segundo. Essa fronteira é uma fronteira fictícia, tipicamente intelectual, que não corresponde a nada na realidade. Não há natureza sem cultura, não há cultura sem natureza. Muito bem.
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Nessa nossa investigação sobre a ideia de interesse, Bourdieu dirá: “O interesse não é só Eros”. E é aqui que eu queria que você entendesse, né? O interesse não é só Eros, porque senão o interesse seria sempre por ter o que não se tem. E é perfeitamente possível desejar ter o que já se tem. E é perfeitamente possível que quando você deseja ter o que já se tem, é porque você está muito satisfeito em ocupar a posição que ocupa. Então Bourdieu dirá: “Interesse é Eros e é também filia”. E filia é o quê? É alegria, alegria com o que se tem. Disposição a continuar tendo o que se tem. Se você preferir, interesse também é sustentabilidade. Ou se você preferir, sustentabilidade também é interessada. É claro, estou bem pra caralho e o que eu quero da vida? Pois continuar dispondo do que eu tenho. Interesse. Então, claro, a maioria olha pra cima, ter o que não tem, mas você tem os dominantes que precisam antes de mais nada continuar tendo o que tem e eles são interessados. Então, você tem interesse em ter o que não tem e interesse em continuar tendo o que tem. Existe, portanto, é claro, uma dimensão de falta também na conservação, porque é claro, o interesse é por continuar tendo amanhã o que se tem hoje. E amanhã, amanhã não é hoje. Amanhã não é hoje. Eu me alegro com o que eu tenho hoje, mas quero continuar tendo amanhã o que eu tenho hoje. E amanhã não chegou ainda. Então, eu ainda não tenho amanhã o que eu tenho hoje. E, portanto, eu tenho interesse em continuar tendo amanhã o que eu tenho hoje. E, portanto, existe uma dimensão de falta evidente na perspectiva de conservação de uma posição de dominação. Tá perfeito isso?
Monopólio Ora, meus amigos, essa ideia de interesse como sendo um híbrido de Eros e filia, em outras palavras, como sendo uma busca do que não se tem, uma busca de troféus ainda não alcançados e
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uma conservação dos troféus já alcançados, nos permite entender uma coisa muito importante na sociologia de Bourdieu: é que tudo em Bourdieu tende ao monopólio e nada em Bourdieu alcança o monopólio. Então vamos entender isso. Tudo tende ao monopólio e nada alcança o monopólio. Em outras palavras, todo competidor busca o acúmulo de capital específico no campo com vistas à obtenção dos troféus do campo. E é claro, se você perguntar pra esse competidor o que ele quer, ele dirá: “Eu quero mais capital; eu quero mais troféu; eu quero conservar os troféus. Eu quero, na verdade, sempre mais”. Então, qual é a tendência? A tendência é de um acúmulo indiscriminado de capital, de reconhecimento, de glória, de prestígio, de satisfação, de aplauso do outro, etc., etc. Eu tendo o quê? Eu tendo ao monopólio. Agora, é claro, esse monopólio jamais é conquistado por quê? Porque sempre haverá enfrentamento, outros competidores que buscam a mesma coisa, haverá sempre interesses contraditórios e assim por diante. E é por isso que há uma tendência ao monopólio mais o campo é um espaço, invariavelmente, é um espaço de distribuição e redistribuição permanente dos bens que estão em circulação no seu espaço. Em outras palavras, a tendência ao monopólio é sempre a partir do olhar do jogador, mas quem olha o campo é, digamos, de cima, né? Percebe que o campo é um espaço que redefine a distribuição do seu capital e, portando, esse monopólio ele é sempre desejado mais jamais alcançado. Ora, qual é a graça disso? A graça disso é que os campos sociais eles se materializam num espaço de jogo que nunca termina. É isso o que eu queria dizer. Porque se alguém chega e limpa tudo, rapa tudo, ganha em tudo, acabou o jogo, né? Normalmente num jogo social a gente tem que começar o jogo de novo, aquele cara ganhou tudo, é melhor começar de novo.
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Na sociedade isso nunca acontece, por quê? Porque os troféus estão sempre em disputa. Em outras palavras, o campo social é um espaço de disputa permanente e que nenhum jogador terá condições de monopolizar os recursos dentro do espaço. Por maior, por mais fodido que seja, por mais invencível que seja, por mais competente que seja, o campo social será sempre um espaço de vitórias parciais, de vitórias provisórias, de distribuições provisórias de capital e, portanto, de redefinição permanente da posição dos seus jogadores. Estamos indo bem? Tá perfeito isso aqui? Em outras palavras, você pode ter lá os ministros do STF, né? Que tão lá no topo do campo jurídico, mas, enfim, o campo jurídico será sempre muito maior do que o capital do Gilmar Mendes, mas muito maior, muito maior. De tal maneira que poderíamos dizer, e é aqui que Bourdieu quer chegar, né? Que o campo será tanto mais estruturado quanto mais as posições sociais que o constituem independerem das características particulares dos seus ocupantes provisórios. Sacou? Se não sacou, é preciso dar um exemplo. O campo político tem um troféu maior. Esse troféu maior, simbolicamente, é a presidência da República. Pois muito bem, o campo político será tanto mais estruturado quanto a posição maior de presidente da República tiver o seu prestígio, independentemente do seu ocupante. Foda-se se é Lula, se é Dilma, se é Serra ou se é não sei quem. O ocupante ele é provisório, o ocupante é passageiro, o ocupante é circunstancial, mas as posições sociais do campo, essas não, essas são transitoriamente ocupadas, mas elas são espaços de acúmulo de capital que, evidentemente, subsistir, né? Ao passamento dos seus ocupantes provisórios. Tá perfeito isso aqui? Ora, o que a gente aprende? Que tudo isso é tendencial, tudo isso é relativo. Em outras palavras, nunca haverá uma eugenia absoluta da estrutura do campo em relação à particularidade
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dos seus ocupantes. Não sei se me entendeu o que eu quis dizer. Eu quis dizer o seguinte: por mais que a presidência da República continue, não é a mesma coisa ter o Lula como presidente e ter a Dilma como presidente, e cada um interprete como quiser. É claro que a posição que eles ocupam é formalmente a mesma, mas é óbvio que, de certa maneira, as características pessoais do ocupante acabam contaminando a posição social do campo, respingando sobre a posição social do campo e, portanto, nunca haverá uma eugenia absoluta. E, portanto, como sempre em Bourdieu, tudo é, de certa forma, tendencial, mas nunca é absoluto, é claro, por conta disso é a Sociologia de Bourdieu, ela sempre clama, né? Por uma investigação de carne e osso, né? Da situação histórica concreta, dos ocupantes das posições do campo.
Capital simbólico Observação subsequente. Os espaços sociais são espaços de acúmulo de capital e, portanto, nós podemos divisar dois tipos de capitais em circulação: o capital dos agentes, particular dos agentes, capital que os agentes investem no campo e o capital em circulação no campo e que, de certa maneira, é um capital do espaço. Se você preferir pra isso ficar mais visível pra você, imagine uma instituição. Imaginou uma instituição? Vamos imaginar a USP. Deixa eu me sentar aqui no meio de vocês duas. A USP. Então, é claro, você pode imaginar que o professor Clóvis tem um certo capital acadêmico que é o que é. Esse capital é o reconhecimento do professor Clóvis como acadêmico. Esse capital está em transformação permanente a cada gesto que o professor Clóvis faz no campo acadêmico. Tá perfeito até aqui? Nenhum problema? Muito bem. Mas você tem que admitir que quando eu digo que sou professor da USP eu me sirvo de um capital que, eu me sirvo não, eu prefiro dizer assim. Bourdieu diz “eu me aproprio”, eu prefiro dizer
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eu me sirvo. Eu me sirvo de um capital que não é meu, porque é um capital acumulado pela instituição ao longo de décadas, e que naquele instante é apropriado por mim por me apresentar como representante daquele espaço. Percebeu? Razão pela qual o interesse do pertencimento ao campo é o interesse da possibilidade da apropriação de recursos próprios do campo. Tá me acompanhando, não? Por que, claro, que tipo de ganho social eu tenho em dizer que sou professor da USP? Antes de qualquer coisa, o fato de pertencer a uma instituição seja ela qual for. E, naturalmente, você dirá: “Ah, isso é o óbvio”. É, mais quando você não pertence à instituição nenhuma é que você vê como isso é importante na hora de dizer coisas sobre você, na hora de construir a tua identidade. Então, eu pertenço a uma instituição. Dois: as instituições não têm um capital equivalente, então tem instituições e instituições. E, portanto, quando você diz pertencer a uma instituição com grande capital acumulado, é óbvio, o ganho social é maior do que quando você diz pertencer a uma instituição com capital mirrado e acanhado. Tá perfeito, não? Então, não sei se você já percebeu, normalmente quando um sujeito pergunta: “O que você faz?”, o fulano diz: “Eu sou professor”, se ele der aula em uma instituição de prestígio, ele diz: “Eu sou professor da USP”. Se ele não der aula em uma instituição de prestígio, ele diz: “Eu sou professor universitário”, né? Professor universitário é uma maneira de você diluir a ilegitimidade da instituição a qual você pertence. Você vai dizer pra mim: “Isso é de uma arrogância insuportável”. Não, isto é a vida como ela é. Tá perfeito? Quando é que você cola o nome da instituição ao teu? Quando te interessa. Quando você vai ganhar. E quando você não vai ganhar? Quando você não vai ganhar você não cola. Então, é óbvio que existe um tipo de capital pessoal intransferível que tem a ver com o quê? Que tem a ver com a
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minha performance, com a particularidade da minha existência social. E tem um capital coletivo do qual eu posso me servir quando eu pertenço a esse coletivo. Então você vai perguntar: “Por que caralhos as pessoas se matam em concurso pra entrar na USP se não tem salário?” Porque elas sabem que apesar de não ter salário, elas podem se servir de um capital simbólico fodido, entendeu? Que tá à disposição delas quando elas disserem que pertencem a esse lugar. E por isso elas se estapeiam nos concursos mesmo não valendo nada o salário. Tá perfeito? Muito bem. Mas você pode ter a situação inversa. Eu vou te dar um exemplo, né? É, o Ives Gandra dá aula de direito no Mackenzie. Você já percebeu que a coisa complicou, por quê? Porque não é, o Ives Gandra não vai dizer: “Eu sou professor do Mackenzie”, é o Mackenzie que diz: “O Ives Gandra que dá aula aqui”. E por quê? Porque o capital pessoal supera o capital institucional. Quando o capital pessoal supera o capital institucional é o pessoal que empresta legitimidade a instituição. Coisa muito difícil de acontecer na USP. Por quê? Porque a USP é muito grande, tem um capital institucional muito grande e não há ninguém, nem mesmo os caminhões tipo Marilena, Janotti, Adib Jatene e o caralho, nem esses conseguem prescindir do caminhão institucional que é a USP. Então, é muito difícil de acontecer isso em certas instituições. Mas é claro que você pode ter situações particulares dentro da instituição em que circunstancialmente isso pode acontecer e eu vou dar um exemplo. Montei o programa de mestrado da ESPM, aprovei, coordenei quatro anos e depois vi que tava na hora de sair. Sai e fui pra USP. E o cara da CAPS me falou, o cara da CAPS assim, o presidente da CAPS falou: “Olha, lá pra onde você vai, que é a ECA, né? Saiba que a ECA precisa mais de você do que você dela”. Circunstancialmente, naquele departamento, naquele lugar, quem ia transferir capital pra instituição era eu.
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Então, enquanto USP eu me sirvo, enquanto ECA eu empresto. E você percebeu aqui, que o processo de transferência de capital pode ser bastante sofisticado. Pode ser bastante, digamos, dinâmico. Pode ser bastante dependente da história e da particularidade da inscrição naquele lugar da instituição. Ficou claro isso que eu acabei de explicar? Muito bem. Ora, sendo assim, se alguém for definir interesse sempre terá que considerar dois tipos de variáveis que são: o capital a receber, o capital se pleiteia com o gasto da energia, né? E o investimento realizado no espaço. Em outras palavras, é preciso, portanto, identificar que tipo de ganho você quer ter ao investir tempo e dinheiro num certo espaço de inclusão social. Professor Clóvis, por que o senhor continua dando aula depois de tanto tempo? Não é uma boa pergunta? Naturalmente que eu poderia soltar alguma coisa do tipo, é: “Por um dever de educador”, não pega bem? Você já ri. Por que é que você ri? Porque a aula é de Bourdieu. Vai se foder, coisa de pedagogo, né? É, dever de educador! Não, é por interesse, porque não há ato desinteressado. Agora vamos estudar o interesse? Vamos. É, remuneração hora/aula? Não é o caso, já foi, não é o caso. Então, é interesse simbólico? Bom, que tipo de interesse simbólico eu posso ter aqui? A instituição tem capital pra me transferir? Tem. E por que ela tem? Se você olhar o cardápio lá fora, o que você vai encontrar lá? Você vai encontrar um banco. Ouça-me. Aquela... Olha lá fora, aquele negócio verde. Lá tem o nome dos cursos. O nome dos cursos é o que menos importa. Ali tem o nome dos professores. Aquilo é uma vitrine. E ali você tem um banco. Alguns tão emprestando o capital pra instituição e outros tão tirando capital da instituição. Ali é o espaço em que uns deixam e outros põem. Ali é o caixa, entendeu? Ora, presta atenção, eu sou, sei lá, deve ter algum porra aí fodão do pedaço, é que eu não olhei o semestre que vem, mas sempre tem um fodão da minha... Presta atenção, eu vou te emprestar tanto aqui. E pá.
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E um mequetrefe como eu, ponho o meu nome ali e o que acontece? A instituição é o espaço que assegura a transferência de capital simbólico da Marilena pra mim. Olha que beleza! E por que continua... Eu fico ali, só no chapéu, né? E vendo os caras que vão entrar. No dia que só tiver Zé Mané no cardápio, não me cai moeda nenhuma no meu chapéu, no dia seguinte eu não dou mais aula aqui. “É, mas e as ‘muié’ daqui?” Foda-se as ‘muié’ daqui. Nunca peguei mulher nenhuma aqui. É só pelo simbólico. No dia que não tiver ninguém acima de mim me transferindo capital e eu só que tiver sangrando, pau no cú, não volto nem no dia seguinte. Diria Bourdieu. É claro, você não vai imaginar que sou eu que estou fazendo essa análise, pelo amor de Deus. E você dirá: “Mas o senhor é o único escroto que pensa assim”. Ah! Nem fodendo, todos estão aí por esta mesma lógica. A diferença é que quase todos por Habitus, o que é pior, entendeu? Vem e não sabe porquê. Eu não, pelo menos sei exatamente porquê eu estou aqui. No dia que eu fizer um cálculo e não tiver ninguém pra me sangrar capital simbólico, não tem o dia seguinte. Ficou claro a explicação? Ótimo.
Interesse Sendo assim, ainda me resta dizer alguma coisa sobre a noção de interesse. Campo, habitus, legitimidade e interesse. Ainda me resta dizer alguma coisa. A perspectiva de ganho de capital simbólico, ela é relativamente autônoma da existência orgânica dos corpos. Era isso que eu queria destacar aqui. E isso então é delirante. Esse cara era foda, velho. Isso eu posso falar. Um sujeito desse, ele era foda. Eu tive o privilégio de ter conhecido esse cara assim de tomar metrô, sabe? E é gozado, ele não relaxava. Sabe, de falar besteira, você viu, por exemplo, tipo: “Oh, você
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viu, é, o Paris Saint-Germain ganhou do Lyon, tal” Não tinha isso. Ele entrava no ônibus e ele ficava: circuitos de consagração que passam pela... Esse cara não sossega, velho. Ele não sai da tomada, né? É aquela lucidez insuportável crua e destroçante assim. Uma figura. E aí então, é claro que dentro dessa perspectiva, isso ele me falou uma vez tomando um café, ele pegou e falou: “O interesse social, ele transcende e muito o apetite orgânico dos corpos”. E aí, é claro, é o tipo da frase, he, porque ele só lançava mísseis assim, né? E você tomando café... Caralho, velho. Uma máquina, né? E aí, é claro, e sabe-se lá por que ele pensou aquilo naquele momento. Era um cara que saia, e ele ia falando e ele ia, não tinha ipad, ipod, ipude, nós estamos em 1986, ele anotava na carteirinha, e tal e coisa e tal. E isso aí me chamou muitíssimo a atenção. Ele pegou e falou: “É, o capital social, ele transcende a vida orgânica dos corpos supostamente detentores desse capital por quê?” Diga por que vai, responde pra mim. Por quê? Ah! É porque a nossa vida social, ela dura muito mais do que a nossa vida orgânica. Ou não? Não preciso nem continuar ou você quer que eu continue? Você quer que eu dê exemplo ou não? Eu acho que você entende, que quando você fala de Ulisses Guimarães, de certa maneira, ele tem uma existência social que não corresponde a nenhuma existência física. E Bourdieu dirá: “Em épocas passadas a existência social do indivíduo a cerco, não, não, não houve, não treparam ainda, mas o moleque que vai nascer daquela trepada, ele já tem capital, visibilidade, honra, notoriedade, glória, respeito, tudo sem que dessem, não tá no útero, não houve fecundação, mas já há a posição social só esperando que o corpo se apresente. O corpo desaparece e continua notoriedade, reputação, prestígio, reconhecimento, glória e assim por diante”. De tal maneira que é muito comum que nós, que buscamos o tempo inteiro um alinhamento entre os nossos desejos e o que esperam que desejemos, nós nos preocupemos com o quê? Com uma posteridade do nosso capital simbólico que pouco a pouco nos damos conta, transcende a
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nossa existência física. De certa maneira, vou até mais longe, muitas vezes o indivíduo já morreu, mas ele continua sendo um jogador terrível dentro do campo. E a posição que ele sempre ocupou, ele continuará ocupando por décadas depois da sua morte. E de certa maneira, dependendo do cara, ele continuará estruturando o espaço em que ele vivia. Em outras palavras, se houver condição de eternidade, né? Essa condição de eternidade está aonde? Está nos recursos sociais e simbólicos de que dispomos pra existir em sociedade. Esta sim sobrevive à carne. E Bourdieu brincava, porque ele sabe que os filósofos usam o termo transcendência e ele diz: “Veja só, a sociedade é referência transcendente para os recursos vitais”. Por quê? Porque de certa maneira, você morrendo, você continua existindo, produzindo efeito, enchendo o saco, atrapalhando e, de certa forma, é, organizando a vida social a sua volta mesmo não estando mais lá, só com o reconhecimento da tua existência pretérita. Claro que eu só poderia terminar essa aula dizendo que esta frase que Bourdieu me disse no café vale demais pra ele. Porque Bourdieu morreu em 2002, e se for hoje na França e entrar na sala de aula de todos esses pós-modernos, o ódio por Bourdieu continua o mesmo como se ele ainda estivesse ali. E essa é a vingança suprema, porque o reconhecimento, isto é, aquilo que os outros pensam de você, continua entristecendo você mesmo que eu não esteja mais lá. Você nunca ouviu a história: eu vou voltar e puxar o seu dedinho! Não precisa de alma transcendente, basta capital social pra que você sinta o seu dedinho puxado por alguém que já morreu. O capital simbólico faz às vezes da alma penada, sobrevive à vida e participa diretamente do mundo dos viventes já na forma de cadáver. Não é bacana? Sendo assim, só na semana que vem a gente volta pra falar da estética e do livro mais polêmico de Bourdieu: As Regras da Arte. Foi aonde ele mais conseguiu irritar na sua reflexão
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sobre a beleza. Mas isso é pra próxima aula. Boa semana!
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