revista
online
#03
abril 2014 ano III | gratuita
expedição (tentativa de ascensão)
bhrikuti mustang e
trekking
Nepal > Abril | Maio 2013
Agulha Charlanon escalada alpes
Peña Prado
escalada via Lago de la Luna
Curavacas, Peña Prieta e Espiguete ascensão
Mizarela via monitor uma escalada fácil
Pirenéus
ascensão Aneto, Pico de Alba, Salvaguardia e Pico Mulleres
Agulha do Tour e Petite Fourche ascensão passada
> Ascensão
Esporão Migot na Chardonnet Alpes
> Ascensão
Vignemale e Monte Perdido Pirenéus
Actualmente, e desde a última edição, estou envolvido em tantos projectos, que por vezes algo tão “apaixonante” como este “contar de histórias” vai ficando num plano diferente de trabalho.
Pedro Guedes
Foram diversas montanhas, cumes, arestas, vias, glaciares, em diversos ambientes fascinantes e envolventes!
director
Não tenho tido muito tempo, a não ser para pensar nas pessoas que estão comigo, na realização das atividades, na gestão da equipa, na capacidade de condução do grupo, na gestão do risco, na psicologia e, acima de tudo, nas decisões e nos seus momentos. Presumo que compreendem, tendo em conta a dimensão destas montanhas e toda a técnica associada quando somos os responsáveis pelos outros. Aliás, de cada vez que estou responsável e a liderar, estas montanhas parecem maiores, parece que crescem a cada dia. Tem sido realmente algo tão absorvente e apaixonante que gostava de vos poder contar mais, de poder dar voz aos participantes das imensas actividades que fizemos e que não estão aqui nesta revista. Falta muita gente, muitos locais ainda, muitas montanhas, muita história. Existe sempre tanto para recordar! 02
#03
Expedição do Bhrikuti é a tentativa de um cume, no desenvolvimento do termo e classificação do que significa realmente ter “sucesso”. Alpinismo no Migot é o culminar de um projecto de uma formação de alpinismo, com diversas sessões teóricas e práticas, e algumas dessas vivências são também aqui partilhadas, como a Agulha da Charlanon nos Alpes e Peña del Prado na zona da Ubina. Esta revista “passa” ainda por diversas ascensões nos Pirenéus e ainda na zona das Fuentes Carrionas. Esta última nos mais recentes programas da Alpine Climbers. Um novo projecto e mais dedicado a ascensões em alta montanha. Leva-nos também de volta ao passado, a recordar a ascensão de um estágio de alpinismo que organizámos em Chamonix, onde subimos, entre muitas outras, à Agulha do Tour, à Tete Blanche e à Petite Fourche. Espero que gostem, essencialmente que seja algo que vos toque e que sintam que, mesmo não estanto lá, todos os que nos seguem fazem parte deste nosso projecto. Dedico também esta revista a alguém que desapareceu no fim do ano passado, o José Silva, com quem partilhei algumas actividades nos Alpes e que me marcou com a sua amizade, a sua forma de estar, o seu riso contagiante e a forma inspiradora de viver a vida. Obrigado por me teres dado a aportunidade de viver esses momentos contigo nessas actividades. Estás presente nesta revista… Um grande beijinho à Beatriz e Patrícia!!! Espero poder um dia dedicar muito mais desta revista apenas ao “Zé”.
índice 04-20 >> expedição
Bhrikuti > Ascensão 22-27 >> alpinismo
Esporão Migot > Ascensão 28-31 >> escalada
Agulha Charlanon > Escalada 32-39 >> ascensão
Vignemale e Monte Perdido > Ascensão 40-54 >> ascensão
Pico Salvaguardia, Alba, Mulleres e Aneto > Estágio ficha técnica Propriedade ALPINE CLIMBERS, LDA
56-61 >> ascensão
Curavacas, Peña Prieta e Espiguete > Ascensão
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62-65 >> escalada
#03
Rua do Amparo, nº 42 B 4350 - 031 Porto
Director/Editor Pedro Guedes
Revisão Editorial
Peña Prado > Escalada
Maria João Leite
Design e Paginação Pedro Vieira da Silva
Fotografia Carlos Araújo
66-69 >> escalada
Mizarela > Escalada
César Silva Edgar Barbosa Oldemiro Lima Paulo Roxo Pedro Guedes
Edição Fotográfica Oldemiro Lima
70-76>> ascensão passada
Agulha do Tour, Tete Blanche e Petit Fourche
Colaboram neste número: Álvaro Reis José Nunes Maria Carronda Pedro Guedes Raquel Carvalho Sandra Reis
Distribuição Online / Gratuita
Periodicidade Quadrimestral
Registo ISSN 2182-7885
78 >> agenda
Próximas Actividades
trekking
mustang expedição
bhrikuti (tentativa de ascensão)
Nepal > Maio 2013
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#03
“Seguindo os passos do sagrado para encontrar Bhrikuti. Quando o budismo, lendas, história e geopolítica se misturam” “Paulo Grobel”
texto: Pedro Guedes fotografia: Edgar Barbosa
Esta frase faz-me parar e leva-me de volta ao Nepal. Estamos no antes, no pré, no planeamento, na selecção, na junção de ideias, na definição, nos primeiros passos e onde se juntam objectivos.
expedição
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#03
Toda uma ideia antes de partir Vou liderar mais uma expedição e as perguntas que se me colocam são sempre as mesmas: qual o projecto ideal? Qual o plano assertivo para responder de forma correcta a uma emergência? Qual o cume ao alcance de todos os participantes? Qual o melhor plano de aclimatação tendo em conta cada um dos participantes? O quê, quem, quando, onde, como? Uma série de considerações diversas e de logística, onde tudo isto faz sentido, e não quero deixar de responder a nenhuma questão que se coloca no meu “eu interior”.
Procuro informação das montanhas do Nepal, de algo que seja fora do comum, e essa referência e inspiração têm o nome de Paulo Grobel. Para além de ter uma página web e livros muito bem documentados, é ao mesmo tempo uma aventura a leitura dos relatos das suas expedições. Paulo Grobel é um guia de alta montanha francês e um dos mais dinâmicos e assíduos alpinistas em zonas remotas do Nepal. Nas palavras relata as suas expedições pelo Nepal quase como um convite onde “contaminando” qualquer alpi-
Tinha chegado da Argentina, do Aconcágua, mas o meu
nista. Descubro com ele o Bhrikuti, uma montanha de 6.460
pensamento regressava diariamente e numa constante ao
metros.
Nepal. Em cada leitura das montanhas do Damodar sei que esta é a expedição que quero fazer. Não consigo pensar em mais opções e o dia-a-dia leva-me sempre ao Bhrikuti. É o Nepal, é o Bhrikuti que me vai na cabeça mesmo entre os diferentes trabalhos, da loja e cursos. A expectativa é grande! Quero “embarcar” numa nova viagem, numa expedição, num projecto, na procura de algo diferente do mais comum do Nepal. As referências da zona do Mustang e do Damodar definem como algo mais isolado, rodeado de montanhas inexplora06
Paulo Grobel: a referência e a inspiração
das, numa mistura de montanha com o sagrado.
Bhrikuti situa-se no Nepal, na zona do Mustang e dos lagos sagrados do Damodar. Paulo Grobel afirma com convicção que ali encontramos um desejo de nos envolvermos num ambiente desconhecido e de exploração. Descreve-o ainda como um lugar nas montanhas dos Himalaias muito inesperado, onde o céu se funde com os desertos das imensidões tibetanas. Refere talvez até profundamente: “É acima de tudo uma aventura humana, original e especial!” Estava tudo decidido. Só faltava “contaminar” os alunos da Espaços Naturais para participarem neste projecto! Passar a mesma referência e inspiração aos que me seguem; aqueles que eu ensino e faço acompanhamento técnico pelas diferentes montanhas.
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expedição
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Quero subir o Bhrikuti!
Não tem grande dificuldade e desta vez também não procuro nada muito técnico.
Sei de antemão que não estamos a falar de uma montanha
Alpinismo e altitude são prioridade, se possível fazer a tra-
comercial, onde praticamente chegar ao cume está mais
vessia integral do Bhrikuti.
garantido, ou tem maior possibilidade de sucesso.
A indicação que vem do Nepal é que possivelmente somos
Não é fácil convencer e reunir “equipa” para uma expedição
a primeira expedição portuguesa no Bhrikuti e a percorrer
com estas características. O mais normal é afirmar, qua-
esta zona do Khumjungar. Entre 1982 e 2002 esta mon-
se como uma garantia, que o cume está ali, que todos vão
tanha teve 14 expedições pelas diferentes vias e apenas
fazer cume. Algo que não existe mas que todos querem
dez pessoas chegaram ao cume, apenas cerca de quatro
ouvir-nos dizer. Na verdade é um efeito social forte, todos
pela via que pretendemos fazer. Ainda sem conhecimento
querem atingir o alto, o cume. É a metáfora diária da nossa
objectivo, mas nenhuma até ao momento a fez em travessia
sociedade, o que interessa é chegar ao alto, esquecendo
do Bhrikuti. São apenas estatísticas até 2002, nada disto
por vezes o caminho.
atormenta a ideia, não temos de convencer patrocinadores
O Bhrikuti não é uma expedição comercial, vamos estar em terreno desconhecido, em altitude, isolados e sem grandes apoios ou comunicações. Deixarmo-nos envolver, desco-
com chavões estatísticos. No entanto, saber que possivelmente ninguém a atravessou traz algo de fascinante, mas ao mesmo tempo maior incerteza.
brir, fazer parte, viver uma história, explorar… Processos
Quero subir o Bhrikuti, queremos! Somos já uma “Team
que fazem parte de todo um puzzle nesta expedição de al-
Expedition” de seis pessoas e vou liderar mais uma equipa
pinismo.
de alunos no Nepal. >>
Fragmentos da partida Ora estou aqui, ali ou acolá. O Nepal está para breve e mais uma vez antes da partida estou por Marrocos, a guiar um programa de alpinismo em cinco montanhas de 4.000 metros, incluindo o Toubkal a montanha mais alta do Norte de África. No refúgio do Toubkal, o meu pensamento deambula com um “ainda aqui estou e já é tempo de partir de novo”. Varrem-me a mente estes primeiros meses do ano que foram uma “loucura” de preparações, partidas e chegadas: Argentina, várias idas de alpinismo na Ubina, Serra da Estrela, Fuentes Carrionas, agora Marrocos. Ainda tenho de dar mais uma formação de montanhismo e já sigo para o Nepal. Nada de diferente do que tem sido nestes últimos anos, faltando só juntar a tudo isto a logística de todos os outros monitores que fazem equipa comigo nos mais diversos cursos, a loja, a revista online e a família, que embora apareça aqui no fim é sem dúvida o que me move. O Nepal estava a chegar a passos rápidos, tudo muito próximo e todo o tempo de preparação passou muito rápido. Os últimos pormenores: as reuniões finais em equipa, os materiais que ainda aguardo dos fornecedores, as tendas e fogões específicos adquiridos para esta expedição, os mais de 100 liofilizados, as manapolas de expedição de alguns partici08
pantes, tenho ainda de colocar os percursos no GPS, comprar mais um conjunto de medicamentos úteis, preparar os sacos de expedição, deixar os próximos cursos organizados, responder aos mais diversos pedidos de informação
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e solicitações… Nada diferente de todos os que se envolvem comigo nesta expedição. Cada um procura deixar a sua vida o mais organizada possível para seguir esta expedição de 23 dias. Parecem muitos dias mas na realidade são curtos, todas as expedições seguem para este tipo de projectos com 30 dias, mas nós vamos encurtar o número de dias. Não por querer, mas porque a vida de cada um não permite tanto tempo.
mos ir para a montanha e não temos nada de equipamento. A incógnita é tão grande que vamos ter de seguir sem bagagens e esperar que tudo vá ao nosso encontro. De avião, de carro ou com carregadores, as bagagens vão chegar até onde nós estivermos, seja em Pokhara, Jomoson ou no campo-base. Nem que andemos todo o percurso com a mesma roupa, queremos sim é o material no campo-ba-
Todos estes momentos finais, são como uma série de frag-
se para o Bhrikuti. Afinal estamos no Nepal e sabemos que
mentos, tudo passa tão rápido que fechamos os olhos e já
com os “passos” certos tudo vai correr bem.
nos vemos no avião, já nos ouvimos uns aos outros e já estamos em Kathmandu.
Kathmandu, a realidade
Seguimos do aeroporto para o hotel, em Thamel, bem no centro turístico de Kathmandu, para alguns referido como o “gueto”, mas por aqui passam todas as expedições e viagens dentro do Nepal. Ponto obrigatório no meio caótico de Kathmandu.
Chegámos a Kathmandu, capital do Nepal, já de noite e não chegaram as nossas bagagens. Referem que estão em Lisboa, que não foram colocadas no avião, mas que não têm a certeza pois foram avistadas em Dublin. Não vamos ter em conta o valor envolvido em todo o equipamento que está em cada saco, apenas nos preocupa a expedição, quere-
Para alguns de nós não é novidade, mas para outros é a primeira vez em Kathmandu e deixo que absorvam bem todo esse impacto. É mais que uma viagem para o hotel. Acima de tudo é uma pequena abordagem cultural ao Nepal. Chegamos e estamos no ponto de partida!
expedição Conversa com o assessor de Elizabeth Hawley Elizabeth Hawley é norte-americana e cronista das expedições e escaladas no Nepal. É uma das figuras mais im-
primeiro vou ainda de expedição e, se tudo correr bem, aí sim talvez tenha algo para contar. Depois de uma viagem entre diferentes escalas, de não chegarem os sacos de expedição, adormeço a pensar na “entrevista” para o database dos Himalaias.
portantes nas escaladas dos Himalaias e, mesmo sem nun-
O dia começa cedo. Temos os últimos pormenores logísti-
ca ter escalado nada, é das pessoas mais respeitadas no
cos em Kathmandu, uma ida para um briefing no Ministério
mundo do alpinismo. Tem um estilo de entrevista rigoroso
do Turismo e a “entrevista”. Não consigo escapar e, depois
e uma grande parte dos alpinistas tem medo do que possa
do pequeno-almoço, lá está sentado, no hall da recepção, o
escrever. Isto porque por vezes desmente alpinistas que
assessor de Elizabeth Hawley. Segue na minha direcção e
dizem ter subido a determinados cumes em grandes mon-
chama por mim, tanta gente passa na recepção e deixa-me
tanhas de 8.000 metros.
a pensar como sabe que sou eu.
Ocupa-se também do “Himalayan Database” onde regista
Explica-me quem é Elizabeth Hawley (como se eu não sou-
todas as expedições que escalem no Himalaia nepalês. Os
besse), que o Bhrikuti é importante, porque é significativo, e
dados abrangem as expedições para os cumes mais sig-
quer informações no início e no fim da expedição.
nificativos do Nepal. Esses dados são publicados pelo Clube Alpino Americano. Chego ao hotel e ouço o meu nome na recepção. Têm um recado para eu ligar para o assessor da Elizabeth Hawley. Penso de imediato que deve de haver engano ou “porque quererá alguém tão importante falar comigo?”. Nem me dão espaço para pensar ou reflectir, a recepção do hotel já fez a chamada e passa-me de imediato o telefone. Entendi logo que não posso fazer esperar. Marquei para o dia seguinte pelo início da manhã, mas sempre a pensar no que haveriam de querer de mim, falar do quê em concreto. Penso que não tenha nada para relatar,
Já me sinto com a pressão de que vou ter de fazer cume para não ficar mal na fotografia. Começo mesmo por aí e vou directo ao assunto, não quero rodeios e explico que expedição é esta. Tento libertar toda a pressão do sucesso de um cume, não quero deixar dúvidas e esclarecer que seguimos com humildade perante o imenso Bhrikuti. Escreve, escreve e não deixa de escrever… Observo, analiso, tento interpretar os comportamentos, as reacções, os gestos, acompanho todos os movimentos e não quero que
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nada me passe ao lado. Explico que são alunos das formações em montanha da Espaços Naturais, qual o intuito da >>
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expedição e rápido surgem perguntas e mais perguntas.
para aceder ao Bhrikuti pela zona do Mustang. Pretendem
Suscitei um feedback claro quando abordei o assunto de
que atravessemos pelos Anapurnas até Naar e daí para o
trazer alunos para o Nepal. É um database e querem saber
Bhrikuti Shail. Óptimo! Não é o cume que queremos fazer e
tudo, nomes, idades, experiência, profissões, um sem nú-
tento vislumbrar como vamos atravessar este problema.
mero de características e estatísticas. Por fim acabou por
O ministro tem de dar “palpite”, seguem ofícios e demais
ser uma conversa animadora e de grande aprendizagem.
procedimentos.
Desespero de sair
Chega a autorização para seguirmos ao longo do trekking do Mustang e daí para o cume. Briefing final com o representante do ministro, onde nos explica o código de conduta,
Seguimos de Thamel para o Ministério do Turismo. É hora
e desespero em sair rápido das burocracias para a mon-
do briefing e de levantar os permits da expedição. Senta-
tanha.
dos no terraço do ministério vemos o rodopio à nossa volta, mas não sabemos porque estamos ali há tanto tempo. Pergunto qual o problema, sabendo, e já estou habituado, que existe sempre algo a ultrapassar. Foi-me garantido que estava tudo tratado ainda estava eu em Portugal, mas afinal enganaram-se no cume. Longas horas no terraço e já sentíamos que íamos perder o avião com destino a Pokhra. Pressão das bagagens e agora mais um dilema, ou problema. Acabam por me contar que não temos autorização
Trekking do Mustang Chegados a Pokhara de avião desde Kathmandu, a única preocupação continua a ser a incógnita das bagagens, dos nossos sacos de expedição. As últimas informações indicavam que já estavam a caminho e que chegariam de madrugada, o que se confirmou horas depois.
expedição
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Estamos de partida para Jomoson em mais uma viagem dos pequenos e famosos voos nepaleses. Sempre com chumbo da segurança aeronáutica internacional.
tínhamos efectuado sobre esta zona. Aqui chega-se de jipe mas nós viemos a pé, tem boas condições, boa alimentação e água quente que permite tomar
Nada que nos preocupe, pois aqui estamos centrados em
banho. Temos de aproveitar pois pode ser o último banho
fazer passar 30 quilos por bagagem onde só podemos
de água quente destes dias na montanha.
levar 15 quilos. Há que fazer passar, estamos no Nepal e quem por aqui anda sabe qual é o procedimento.
Tenho reunião com o líder dos carregadores. São cerca de 30 quilos por saco de expedição e temos de aligeirar os sa-
Tempo de respirar e apreciar o voo entre montanhas, ao
cos. Não me parece bem carregarem às costas estes ma-
encontro dos carregadores em Jomoson e dividir os sa-
teriais, pelo menos desta forma, mas por outro lado sei que
cos. O trekking do Mustang é parte integrante do plano de
é importante para eles este trabalho. Eles precisam disto,
aclimatação. Por um lado, é um percurso para conhecer
eles querem ser carregadores, é daqui que tiram um bom
novos locais, mas tem também passagens entre diversas
rendimento. Há que aligeirar os sacos para proporcionar
altitudes superiores a 4.000 metros. Acima de tudo é um
melhores condições: material técnico para um lado, outros
percurso que nos permite aclimatar melhor para o Bhrikuti.
materiais para outro. Não quero pensar muito nisto, entre
Estava no plano desde o início e trekking faz parte de qual-
nós resolvemos rápido o problema. Há que contratar mais
quer expedição em altitude no Nepal.
carregadores e isto passa a ser funcional.
O percurso desta primeira etapa leva-nos rápido a Kagbeni.
Passámos um final de dia extraordinário com um pôr-do-
Aqui já se começa a sentir o tal ambiente do Mustang, onde
-sol entre montanhas. Foi parar, sentar e vislumbrar. Enfim,
a paisagem já é mais característica e similar às leituras que
montanha. Estamos bem melhor aqui. >>
Kagbeni para Chele
seu momento. Uns aproveitam para ler, outros para ouvir
Estamos nos 2.810 metros de altitude e vamos para Chele
as muitas diversas tarefas de logística à volta dos sacos
aos 3.050 metros. Vamos dormir aí em lodge e com jantar.
de expedição.
música, conversar, passear pela aldeia, jogar cartas, entre
O plano é sempre dormir e fazer refeições em lodge, pelo menos até Tangge. Poupar na carga, na logística das refeições, estar o mais confortável possível. Queremos guardar
Chele para Gheling
as energias para depois de Tangge. Este dia previa-se grande e longo. Vamos passar aos O percurso é feito por um estradão que está a ser cons-
4.000 metros de altitude e será importante no nosso pro-
truído e a desfigurar a zona. Claro que a paisagem que a
cesso de aclimatação. Saímos cedo na direcção do colo
rodeia é fascinante, deslumbrante, mas ficaria bem melhor
de Taklam e de Dajori. Esta primeira parte do percurso é
se o caminho fosse o que estava, o ancestral. O estradão
simplesmente fabulosa, num trilho escavado numa escarpa
desilude, mas nada que nos faça sentir mal. É tanto para
sobre Ghyakar e, mesmo não podendo ficar muito tempo,
absorver naquelas montanhas. A cor é impressionante, as
apetece parar, ficar e contemplar. Na verdade, o dia deve-
montanhas são um contraste de cor entre o laranja, o cinza,
ria terminar aí nesse sítio para termos a oportunidade de
o verde e o branco da neve na alta montanha. Depois há
desfrutar mais.
o azul do céu que se funde na linha entre a terra e o céu.
Todos seguem bem e não quero deixar de filmar este local.
Talvez exista mesmo fundamento quando falam da terapia
Quero fazer um relato da história da expedição, mas acima
da cor na vida.
de tudo quero que fiquem registadas as imagens do Mus-
Paragem em Chhusang para almoço, para conhecer mais uma aldeia e contactar com a cultura local. Vamos tão focados na alta montanha, que só entendemos verdadeiramente que esta parte nos marca com o decorrer do tempo. Aqueles momentos em que fazemos uma retrospectiva e 12
nos vêm as imagens das pessoas, as vozes, os risos e toda a alegria daquelas pessoas. Daqui partimos por um caminho entre o vale, que dá lugar a uma subida até Chele. Estes fi-
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nais do dia são de aproveitar. Cada um tem o seu tempo, o
tang. Estamos ali, estou a filmar, algo que antes de 1985 era proibido... Andar e registar imagens destes locais. Paragem em Samar para um chá e daqui para Syanboche, passando em algumas passagens já quase aos 3.900 metros. Abdicámos de passar no percurso alternativo da gruta de Chungsi. Seria mais interessante de certeza visitar a gruta sagrada, mas iríamos abdicar de passar aos 4.000 metros. Decisões que são constantes e que fazem parte de uma expedição.
expedição Syanboche não me deixa muitas saudades, confesso! Tento seguir uma alimentação equilibrada e saudável, fugindo aos habituais temperos nepaleses. Um problema hepático (sem razão aparente) que tive em 2002 não me permite abusar muito nestes países. Em Syanboche levo no meu plano de alimentação arroz e atum. Foi aquilo que pedi para me fazerem no lodge, ponto de paragem, mas entendi que algo não estava bem de imediato. A refeição estava mesmo muito má, pese embora o meu esforço para me alimentar. Pedi para ver a lata do atum e lá tomei consciência de que aquilo estava ali aberto, numa lata de um quilo há cerca de um ano. A história vem realmente a seguir...
Tsarang para Yara Saímos de Tsarang na direcção de Tangee para poupar tempo e fomos por um atalho, liderado pelo sherpa e mal direccionado. Confesso que quando se está com dores abdominais fortes, doente, o que menos se tem vontade é de andar a controlar um sherpa. Seguia atrás dele e só lhe dizia que ele não estava bem, mostrava o mapa, mas não
Bem, no momento nada interferiu e assim se seguiu para
valia a pena. Digamos que estava a 200 metros do caminho
Ghiling aos 3.570 metros de altitude. Levávamos três dias
certo mas o sherpa levou-nos para um dia desse desvio.
de trekking em terras do Mustang.
Óptimo! Sem dúvida o percurso foi fantástico e agora, pen-
Esta noite ia ficar marcada para mim pois tive uma intoxica-
sando bem, ainda bem que fomos a Yara. Mas na altura não
ção alimentar, entendi que tudo estava mal. Vómitos, dores
foi bem assim, doente não apeteceu assim tanto desviar um
de cabeça, dores musculares, tudo me levava a acreditar
dia.
que podia ter de voltar a Kathmandu. Estava a liderar uma expedição e sabia que tinha de continuar. Restava era saber se conseguia… Fiz um diagnóstico rápido e aquilo que me vinha ao pensamento era que estava com botulismo. Sabia claramente os sintomas, conhecia perfeitamente o que me podia acontecer, restava agora dar tempo e tentar que não fosse tarde de mais.
Yara é um local a visitar, entendo agora que não se pode deixar de lá ir. Podemos dizer que fomos ali ver o pôr-do-sol em conjunto. Foi assim que terminámos o dia.
Yara para Tangee 13 Acordei já com vontade de ver Yara, bom sinal! Voltei à expedição...
Ghiling para Tsarang
Que lindo que é Yara e as grutas sagradas escavadas nas montanhas.
Pese embora estivesse em más condições, sabia que tinha de seguir... A expedição não podia parar. Adaptação à logística e assim fomos de jipe até Tsarang. Não me recor-
Tempo de desfrutar de um percurso excelente que nos leva até Dhechyang Khola.
do de nada a não ser de chegarmos a Tsarang. O Plano B
Daí seguimos, sempre a subir, até ao colo de Sertang Danda
já estava definido e estava garantido que todos poderiam
aos 4.015 metros, para entramos no caminho de Tangee.
continuar até cume com um dos sherpas que liderava os
Aqui estamos no final do que podemos chamar de “primeira
nossos carregadores. Benditos electrólitos que levei de Portugal... Passei mais um dia aqui em Tsarang a beber constantemente electrólitos. Sabia que a incubação poderia demorar horas a dias, mas sou profissional e uma expedição não pode parar. Temos de continuar. Entendo que as pessoas que estão comigo já têm no pensamento a possibilidade de voltar para trás. O olhar deles falava constantemente dessa possibilidade. Tenho um plano B mas eu não estou ali para desiludir ninguém. Preocupa-me apenas a confirmação de incubação da bactéria de botulismo, os danos respiratórios e para onde isso pode levar. Mas temos de seguir...
fase da expedição”. Começa agora o acesso ao campo-base do Khumjungar. Aqui a dormida já é em tenda e aproveitámos o tempo para instalar acampamento, tomar banho num pequeno riacho e para conhecer Tangee. Este sítio é mesmo especial! >>
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Entre montanhas no meio do nada Tangee para Makar Vamos entrar, segundo dizem as estatísticas, em locais sem grande acesso a muitos ocidentais, que não andaram muito por aqui. Sempre a subir. É assim que se sai de Tangee, escolher o melhor percurso numa encosta não muito definida de caminhos. Vamos para os 4.260 metros e são 1.000 metros de desnível. A envolvência é de grandes planos, qualquer vista tem uma grande imagem. Seja na alta
de outra todos acabam por usar estes períodos de tempo para reflexões mais pessoais. A introspecção está presente em todos, mesmo por vezes naqueles que não são muito dados a esses momentos. A noção do espaço, a paisagem, o silêncio, a própria actividade, talvez sejam ímanes nesse sentido. Passámos por ruínas de uma aldeia, que nos fazem imaginar como seria lá viver há muitos anos. Uma linha de água
tão comentado. Daqui para a frente, embora seja Nepal, já
cristalina corre algures do alto, vem dar a este espaço en-
teve habitantes tibetanos.
tre o verde e o árido. Penso de imediato que deveria ter
to aos 4.100 metros de altitude. A água aqui é do degelo e obriga a uma tarde entretida entre filtragem.
instalado o acampamento aqui. Estamos nos 4.200 metros de altitude, aqui teria sido um bom local. O percurso segue para o colo do Sherlang Danda aos 5.020 metros. Temos de subir ao colo e baixar para o outro lado, procurando o melhor local para o campo-base. Só tenho
Makar fica entre montanhas. Ali mesmo do outro lado está
consciência deste local por imagens do Google Earth. Li-
Bhrikuti, Khumjungar Himal, Jomonson Himal, tantas outras
dero uma expedição totalmente no desconhecido. Este é o
e todas tão perto.
compromisso e todos os que participam têm essa cons-
Estamos no meio do nada mas entre montanhas. Nunca entendi bem a afirmação “estamos no meio do nada”, já que se
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O plano de aclimatação segue bem e todos estão bem. Deixa-me apenas intrigado o silêncio, mas de uma forma ou
montanha, ao longe os vales, ou na imensidão do tal deserto
Descida ao vale de Tangge Khola para instalar acampamen-
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Makar para campo-base
ciência. Aceitam e sabem que estou também ali pela primeira vez.
estamos entre montanhas afinal não estamos no meio do
A subida é lenta, pois estamos a fazer aproximadamente
nada... Estamos no meio daquilo que gostamos e não está
1.000 metros de desnível. As paragens são as suficientes
cheio de nada, mas sim o contrário.
para hidratar o mais possível e para repor energias. Apro-
expedição veitamos também para assistir às brincadeiras normais
vel possível, embora com tendas minúsculas. A estratégia
dos carregadores e até mesmo às chatices entre eles. Não
para poupança de peso e volume foi trazer umas tendas de
consigo decifrar bem a idade deles. Se por um lado imagino
alta montanha de um só tecido e a pesar 1.300 gramas. Ab-
que é mais do que 30 anos, por outro é tão pura a brin-
dicar de umas coisas: ganhar numas, mas perder noutras.
cadeira que me fazem lembrar um qualquer miúdo. Quan-
Não sobra realmente muito espaço para estar no campo--
do estão carregados estão em silêncio. Imagino claro que
base nestas tendas, mas são também as tendas que vamos
não dá para deixarem de estar concentrados na respira-
levar para cima.
ção, mas quando param é tempo de rir e de se divertirem. Tenho um enorme respeito por eles, principalmente porque imagino que quem ganha com isto é a agência local.
Passámos a tarde a bombar e a fazer músculo no filtro de água. Precisamos de nos hidratar e temos de filtrar muitos litros de água, pelo menos três litros para cada um, mais
A subida mesmo ao colo dos 5.020 metros parece feita em
ainda para as refeições liofilizadas. Não temos logística ne-
areias movediças e o solo está cheio de sal. No princípio
nhuma de campo-base e somos nós que fazemos todos os
achei que seria enxofre, ou magnésio, mas o líder dos sher-
trabalhos de campo e “domésticos”. Para as refeições foi
pas diz-me que estamos em terra de sal. Sim realmente
mesmo à base de pastilha para purificar a água em bidão de
já tinha lido que aqui nesta zona era rico quem tinha sal. Li
cinco litros. Depois, deixar ferver no jetboil.
apenas e não explorei o sentido destas palavras. Paragem neste colo para descansar, fotografar, contem-
Campo-base: dia de aclimatação
plar todos os diferentes cumes que nos rodeiam e ver a via de subida do nosso projecto. Aqui tudo dá a impressão de estar próximo, todos os cumes aparentemente iludem, de tão perto, a zona do campo-base vê-se ali bem junto, vemos o vale, as moreias, os glaciares lá no alto, o Bhrikuti ali mesmo. É tempo de escolher um bom campo-base, que seja um local protegido pelo vento, plano para as tendas e enfim limpeza e instalação das tendas. É um bom local aos 4.600 metros de altitude. Trabalho de campo, pois é tempo de preparar tudo. O objectivo é estarmos o mais confortá-
O plano era subir já neste novo dia, depois de uma noite em campo-base, e daqui sairmos para os 5.400 metros. Na realidade, não era o plano original, o que estava pensado em Portugal. O ideal era não nos precipitarmos embora todos estivessem a sentir-se bem. Preparámos tudo com calma, porque quando começarmos a subir não descemos mais. Por outro lado, o Edgar fazia anos neste dia e queríamos ficar ali. A festa não tem a mesma dimensão da que se estivesse
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em Portugal, mas pôde falar com as filhas através de telefone de satélite. Eu tenho um filho pequeno e sei que não é >>
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fácil estar tantos dias em expedição. No entanto, o meu filho
plana da moreia, nunca conseguindo limpar a grande quan-
habituou-se a ver o pai assim... A chegar e a partir cons-
tidade de pedras que aqui está. Não há outro local, por isso
tantemente. Não que seja bom mas é isto que faço na vida.
tem de ser aqui mesmo.
Vejo a preocupação constante do Edgar com as filhas, sem-
As pequenas tendas já contrastam com a paisagem.
pre a ligar pelo telefone de satélite para saber se foram às aulas, às explicações, se estão na avó. É um pai que está ali distante mas sempre em contacto e que não quer perder nada do que se passa no dia-a-dia das filhas. Ainda mais neste dia, celebra o seu aniversário e nota-se as saudades
gasta muito. Tudo arrumado dentro das tendas, o que pode ser lá colo-
faz mudar e estar mais sorridente… Por vezes estamos tão
cado porque é minúscula, e o material técnico fica todo fora.
preocupados com o que vem a seguir e a liderar todos es-
Alguns aproveitam para ouvir música, outros para conver-
tes projectos, que estas pequenas coisas acabam por nos
sar. Cada um procura estar bem e sentir-se bem.
chamar a atenção e focar mais nestes pormenores. Nem
No meu caso é tempo de ir até ao glaciar e procurar a en-
só de cumes se vive numa expedição.
trada para campo 2. Visto de campo 1 não parece fácil, vou
Assim se escutava os “Parabéns” no campo-base. Um dia
ter de instalar uma corda fixa e uma travessia. Lá mais per-
diferente para o Edgar!
to acabo por verificar que é possível todos fazerem pro-
los Araújo desde Portugal. O Carlos é monitor de alpinismo na Espaços Naturais. Pese embora não esteja connosco no Nepal, faz parte do projecto e eu dependo das notícias que me envia com a meteorologia. As previsões são de mudança na meteorologia e não tenho “aberta” para grandes projectos de travessia. Primeira alteração na via que que-
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liofilizados, de repor as energias, de hidratar. Também de parar um pouco, que aqui instalar um acampamento des-
que tem das filhas! Como um pequeno SMS de uma delas o
O telefone de satélite traz as notícias enviadas pelo Car-
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Depois de toda a instalação de acampamento, é tempo de
ríamos fazer. Vamos ter de apenas subir ao cume e baixar pela mesma via. Um “apenas” que não é um simples apenas,
gressão em movimento e que não tem assim tanta inclinação. Até tem, mas a passagem não estava visível. Lá no alto vejo uma linha de possível abertura de uma via que gostaria muito de fazer. Está no Sano Kailash, aos 6.425 metros. É mais técnico do que o que procuro fazer aqui e no máximo teria de ser para uma cordada de três. Requer progressão por largos, tem uns 800 metros de via e talvez uns 65 graus de inclinação sempre em neve. Chego-me mais perto da via para a conhecer melhor.
pois temos de subir ao campo 1 que está aos 5.400 metros,
Já estou aqui há algum tempo e talvez seja melhor descer
ao campo 2 que está aos 6.000 metros e por fim ao cume
ao campo 1.
aos 6.470 metros e baixar para campo 1 se der. Precisamos só para isto de uns bons quatro dias. O Nepal é isto: andámos tanto para chegar aqui num trekking em que se aproveita para aclimatar e depois temos apenas uns dias para alpinismo, apenas uns dias para tentar cume.
Baixar, baixar, e sem hesitar... Já em campo 1 ainda faço umas pequenas filmagens, e chega a hora de fazermos um controlo da saturação arterial, da tensão arterial, do batimento cardíaco e de sintomas
Se a expedição fosse com mais de 30 dias certamente tudo
que possam existir. Todos os dias, sem excepção, fazemos
seria diferente. A vida não é assim para todos e as pessoas
esse registo, duas vezes: ao início do dia e mais ao fim da
que aqui estão não são alpinistas de profissão.
tarde. Dá-nos alguns indicadores importantes para saber-
Campo-base para campo 1
mos se tudo está a correr bem. Algumas pequenas alterações mas estão todos bem, com excepção do Miguel. Assim que entro na tenda nem foi preciso fazer muito controlo:
O dia começou cedo para ultimarmos a desmontagem de
comunicava bem, tinha boa coordenação, mas não con-
acampamento e colocarmos todo o material na mochila. Va-
seguia parar de tremer e tinha as pontas dos dedos com
mos subir a campo 1 e dormir aí aos 5.400 metros.
cianose. Indicava falta de oxigénio. Coloquei o oxímetro e
O percurso promete uma subida ao longo de toda a moreia glaciar.
estava com 50 por cento de saturação. Tinha de baixar de imediato e não podia arriscar que ele permanecesse aqui mais tempo. Fiz apenas um compasso para rectificações e
Saímos do campo-base com a calma de fazermos e de des-
procurei auscultar à procura de um edema pulmonar. Me-
frutarmos de todo o percurso. Foram cerca de quatro ho-
diquei-o com Adalat para edema pulmonar e Diamox. Con-
ras até campo 1. Estamos na base do glaciar, o lago glaciar dá
fesso que ainda hesitei se deveria dar já uma injecção com
lugar a uma linha de água ao longo do vale, que desce a toda
dexametasona. A decisão foi aguardar e se realmente me
a velocidade. Vamos instalar o campo-base numa zona mais
desse a indicação de um possível edema cerebral assim o faria.
expedição Teria de desmontar a tenda, pois não tinha tendas em cam-
trolo de saturação para verificações. O Edgar está com a
po-base, preparar todo o material para que ele não tivesse
saturação um pouco mais baixa, mas nada de preocupante.
que carregar e daí baixar.
A decisão era de se ter em atenção a ver se melhorava, ou
Momento de explicar a todos o que estava a acontecer e que teria de baixar com ele. Não é fácil para ninguém eu ter de baixar, é também o risco de se ter um só monitor numa actividade de alta montanha, mas todos sabem antecipada-
se pelo menos não baixava mais. Depois, se tudo estivesse bem, subiríamos para campo 2 sem problemas. A saturação é um indicador, mas o Edgar não tinha grandes sintomas de mal agudo de montanha.
mente como tem de ser e assumem este método. Também
Entretanto a Sandra estava com os lábios e as pontas dos
é explicado que podem ter mais um monitor mas tudo será
dedos com cianose, não necessitaria de grande verificação
mais dispendioso. Preferem sempre desta forma. A deci-
de saturação. Realmente estava baixa, mas por outro lado
são passava por descer com o Miguel até ao campo-base e
chegou um novo SMS anunciando que ia haver tempestade
voltar no dia seguinte a subir. Ficariam todos os outros em
de neve depois das 12 horas. Lembro-me de olhar para
campo 1, menos a Sandra que decidiu baixar, pois poderia
o relógio e de num instante essa neve começar a cair a
ajudar também.
grande velocidade. Pensei bem. O Carlos não falhou no en-
Foi mesmo um grande dia, subir a campo 1 e baixar de novo a campo-base. A chegada foi já ao cair da noite e foi tempo de tenda e liofilizado. Entendo que com a rapidez deixei os rádios e o telefone de satélite em campo 1. Queria comunicar para saber se estaria tudo bem com os que lá estavam. Ficou a ideia de que se algo corresse mal eles baixariam de imediato, mas gostava no entanto de falar com eles.
vio das previsões e foi assertivo. Só restava descer, pois com este mau tempo tudo iria ficar muito penoso. Fazer um cume a 6.000 metros com neve pelo joelho ia ser de muita dificuldade, e com o mau tempo piorava. Restava mesmo descer e levar o material para campo-base. Precisávamos das tendas, dos fogões, do saco-cama, das colchonetes, entre outros. >>
Não vou dizer que tenha dormido bem nesta noite, acordava constantemente a observar a moreia até ao campo 1. Via-se perfeitamente com a noite, e procurava alguma luz. Como não via a luz acalmava e relaxava. Foi mesmo um estado de vigilância.
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Campo-base para campo 1 e desce de novo a campo-base
#03
O dia parece bom. Já estamos com algum atraso na subida e vamos ter de ficar mais uma noite em campo 1. O Miguel fica em campo-base e subimos para campo 1 em mais uma “volta” pela moreia. A Sandra vem lenta e está com algumas dificuldades. É normal depois de tanto esforço no dia anterior. A culpa também pode ter sido minha, pois não ia propriamente devagar. Tento evitar estar a elevar o ritmo e de alguma forma estar a influenciar o ritmo dela. Vamos seguindo na subida. Estamos quase em campo 1 de novo, fomos mais rápidos do que no dia anterior e dá para entender que a meteorologia está a mudar. À chegada a campo 1 contámos uns aos outros as histórias do dia anterior: uns do campo 1 e nós da descida. Vamos ficar em campo 1 para no dia seguinte subir a campo 2. Vamos ficar muito com timings curtos, mas queremos tentar cume. Tudo está muito cinzento e chegou um SMS a comunicar que as previsões seriam de mudança. Fazemos novo con-
O silêncio demonstrava o quanto estávamos desiludidos,
descalça, volta a descalçar. Está visto que não vamos ter
mas o mau tempo fazia-nos descer e no íntimo todos sa-
monotonia e se descemos apenas um quilómetro resta sa-
bíamos que era a melhor decisão. Sempre queremos mais,
ber como vão ser os outros cerca de 20 quilómetros.
queremos chegar lá ao alto, mas sabemos que uma boa expedição não depende unicamente de um cume. Chegámos ao campo-base num grande manto branco, res-
Até aqui o rio é baixo, por vezes alarga, mas estar sempre a tirar calçado e com água fria não está a resultar bem. Rapidamente passamos para a parte em que calçados estamos
tava dormir para acordar no dia seguinte. Quando se tem
bem. Mais água e mais água, depressa passamos a água
que descer assim tudo custa mais, esta noite e fim do dia
pela cintura. Penso que já não voltamos para trás, estamos
custaram mais.
com compromisso de envolvência nesta expedição aquática. Os carregadores parecem não gostar, mas sentem o
Hora de desmontar tudo e partir de campo-base para o regresso Organizar carregadores para novamente subirmos aos 5.000 metros, descer todo o vale, voltar a subir aos 4.260 metros e daí pela encosta até Tangge.
lo que surge. Não é só água, já estamos a falar de algum caudal e temos que procurar as curvas onde a água perde velocidade. Temos mesmo de agarrar os carregadores e temos um ou outro susto com alguns a caírem literalmente na água. Para eles está a ser uma aventura e esta é mesmo a expedição deles. Desta vez quem está ali para auxiliar so-
lizmente não se avista o Bhrikuti porque o mau tempo está
mos nós mas esta é uma aventura deles. Nós é que quere-
lá. Ainda bem, pois assim temos interiormente a “desculpa”
mos descer este rio, mas eles querem muito mais que nós.
teresse, porque existem coisas que não dependem de nós.
#03
nadar mas com a nossa ajuda ultrapassam cada obstácu-
Um dia longo e que ao olhar para trás deixa saudades. Fe-
de estar lá o mau tempo. Não dava mesmo... Não que isto in-
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espírito e estão mesmo a divertir-se bastante. Não sabem
Vejo as horas a passar e sinto que descemos ao longo do rio muito tempo, mas também sinto que não saímos nada do
Chegados a Tangge é tempo de relaxar, alimentar, dormir.
sítio, vamos ter de acampar a meio. Lá vem um dos trac-
Esta aldeia é incrivelmente bonita, acho que não prestei a
tores ao longe e resta negociar a descida para não ter de
devida atenção na subida. Estou num pequeno paraíso. As-
ficar a meio caminho. Bom negócio e experiência extraor-
sim passo um fim do dia a observar tudo na aldeia, as pes-
dinária, apelidada por nós de “tractor-raft”. A palavra não
soas, as casas, os traços religiosos, o que cultivam, os sis-
está mal escolhida por ter sido aquilo que sucedeu na des-
temas de rega dos campos, procuro estar atento a tudo o
cida ao longo do rio. Muito boa experiência e recomendável.
que consigo absorver.
Em cima do atrelado do tractor percorremos na base de
Sinto que é tempo de descompressão, não fizemos cume,
falésias, onde pela largura apenas seguia o rio e o trac-
mas procurei que fosse uma boa expedição para todos,
tor... Parecia feito à medida numa grande parte das vezes.
sendo que estarem todos bem é o que pretendo no fim.
Bastava olhar para cima para vermos paredes nas laterais com uns 300 a 600 metros. É conglomerado, e penso quan-
Kali Ghandaki Nadi O dia nasce e surge a ideia de descermos ao logo do rio... Sinto que os carregadores não gostaram muito do plano mas também não nos tentaram mudar.
do irá cair lá do alto uma pequena pedra... Foram duas horas assim até Chhusang. Fizemos bem em descer de tractor. Muito rio, muito caudal, isto ainda era longo para fazer com os carregadores. Já estamos em Chhusang com grandes conhecedores da área, aliás, pessoas que estudam a área em teses de dou-
Se sobem jipes e tractores ao longo do rio, então vamos
toramento. Entendemos que fizemos uma descida em trac-
descer até Chhusang por aqui. Assim desta forma poupa--
tor ao longo do rio não muito acessível a qualquer turista.
se um dia de trekking e sempre conhecemos o rio. Aventu-
Por exemplo, a pessoa em questão nunca o tinha consegui-
ras é aquilo que trazemos de miúdos e queremos mesmo é
do fazer. Valeu muita a pena!
explorar ao máximo. Saímos de Tangge na direcção de Nanja Docan, procurando ir ao encontro do Kali Ghandaki onde se juntam as linhas de água. A saída diz-nos que não vai ser difícil, isto é largo e dá para ir ao lado da linha de água. Isto é uma praia de pedras. Salta a linha de água, e volta a saltar, volta a saltar, isto é um labirinto de linhas de água. Ninguém quer molhar o calçado,
Regresso ao caos... Estas partes finais de regresso nunca têm muita história. Na verdade têm, porque conhecer e passear pelas aldeias, por Kathmandu, faz tudo parte de um mundo cultural e de experiência. O problema é sempre o mesmo, pois como es-
expedição
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#03
tamos empenhados numa expedição há mais de 20 dias,
sete horas de carro até Kathmandu. Só pensava nesta via-
queremos regressar rápido e acabamos por esquecer
gem e só me perguntava porque não gastei os benditos 75
esta parte cultural.
dólares do avião. Tinha demorado 20 minutos e já estava
De Chhusang fomos de jipe até ao Jomoson. Ainda tivemos uns episódios de trocas de jipes, de nos colocarem literalmente fora de um jipe pois venderam lugares em duplicado, de um furo no pneu, de discussões entre locais, de muita história em tão pequena viagem. Passámos o dia em Jomoson nos 300 metros da “avenida central” da aldeia, entre passagens de um lado para o outro, entre visitas aos cafés, pelas lojas.
em Kathmandu. Ninguém me tente convencer que faz parte da experiência desta viagem. Só penso mesmo é que seria uma experiência melhor e o tempo mais bem ocupado. A estrada não tem nada que me faça querer estar ali. Enfim no caos de Kathmandu, é tempo de passear. Ainda agora cheguei e o assessor de Elizabeth Hawley já sabe que já cá estou. Super profissionais. Ainda nem me instalei e já marcam o questionário final. Assim foi. Explico ao pormenor tudo o que fizemos, e claro tudo o que não subimos, até
Já no dia seguinte regressámos a Pokhara no pequeno
que altitude fomos, um sem número de pormenores para
avião das companhias aéreas nepalesas. Entendo sempre
estatística. Gostei muito da conversa e foi muito bom, pois
porque não dão garantias de segurança a nível internacio-
falaram-me de outros locais.
nal, na Europa certamente estariam proibidos de voar. Confesso que gosto muito de voar aqui, mais pela paisagem do que pela questão da segurança, claro. Mais um dia por Pokhara e mais um dia épico de viagem de
Fim de visita ao caos de Kathmandu e regresso às longas horas de avião para chegar a casa. >>
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#03
Sem cume, mas com mais uma boa experi锚ncia de montanha com o Miguel, a Melita, a Sandra, o Edgar e o N贸ia. Foi muito bom estar ali e espero voltar muito em breve para o Bhrikuti ou para outra qualquer montanha do Nepal. <> Pedro Guedes
BREVEMENTE em
Junho de 2014...
6 dias em Travessia BTT no Atlas em Marrocos [ de Aguergour, Ljoukak, DiLjoukak, Tinguezou, Igli, Imlil a Timzilite. ]
ascens達o
espor達o migot na chardonnet Alpes > Julho 2013
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#03
alpinismo
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#03
“Falar da ascensão à Agulha de Chardonnet pelo esporão Migot é, mais do que falar de uma ascensão isolada, falar de uma actividade que concluiu um processo de aprendizagem iniciado cerca de cinco meses antes, naquilo a que se chamou estágio dos seis meses.” texto: José Nunes fotografia: César Silva / Paulo Roxo
Esta actividade, que se iniciou em Fevereiro, não obstante as normais vicissitudes decorrentes de um Inverno demasiado rigoroso, tinha-me permitido apreender de forma mais estruturada um conjunto de técnicas das quais só tinha tido pequenos vislumbres em actividades passadas, como a escalada em gelo, em corredores de neve, ascensões em primeira cordada com montagem de pontos de segurança, entre outras.
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#03
“...uma excelente ideia.” Chegado a Chamonix para uma actividade que seria o culminar deste estágio sentia um misto de expectativa e apreensão, a que já me havia habituado noutras idas aos Alpes.
Vicissitudes diversas acabaram por nos tirar dois dias de actividade, pelo que quase naturalmente acabámos por decidir, de forma consensual, apostar na ascensão da agulha de Chardonnet, o que, pela sua espetacularidade, compensaria a falta de outras actividades.
Na verdade, era natural que o estágio nos Alpes servisse
E assim foi… Claro que inicialmente a ideia era subir a aresta
para podermos pôr em prática estas novas técnicas em
Forbes, a via mais clássica. Contudo, sem que eu perce-
vias mais longas e difíceis e como tal mais exigentes para
besse bem como, começou-se a falar no esporão Migot, o
mim enquanto praticante.
que para mim era indiferente já que não conhecia nenhuma
Assim, quando nos reunimos com o Paulo e o Pedro, os nossos monitores, para falarmos das actividades a realizar, Chardonnet foi a primeira das hipóteses, porque segundo o Paulo tinha todas as características para um final em gran-
delas. Penso que, no fundo, a ideia dos monitores era fazer uma ascensão de grande beleza e suficiente dificuldade que nos testasse em novos ambientes… Pode dizer-se que foi uma excelente ideia.
de, já que para além da sua beleza natural tinha lances de
Assim, na quinta-feira, fizemos a aproximação à via median-
neve, gelo e misto, o que nos permitia pôr em prática os
te subida ao refúgio Albert I (com a ajuda do teleférico até
novos conhecimentos adquiridos. Claro que esta via tinha
meio do caminho). A aproximação permitiu perceber que
a desvantagem de implicar dois dias, um para aproximação,
existia uma quantidade de neve anormal para altura do ano,
outro para a ascensão propriamente dita, pelo que ficámos
mas isso era algo a que esta época de neve já nos vinha
de ver a evolução da actividade para uma decisão final.
habituando.
alpinismo “...a vista era soberba.” A chegada ao refúgio permitiu também observar demoradamente o nosso objectivo, com a mais-valia de se conse-
e que desembocava num esporão de rocha. Como não queríamos esperar, a hipótese foi encontrar outro ponto de entrada o que implicava mais extensão de parede e mais inclinada (e uma zona onde a abertura da rimaya era maior).
guir observar a quase totalidade da via. Devo dizer que, ao
Com distância entre cordadas bastante longas, iniciou-se
ouvir o Paulo apontar o percurso, o meu primeiro senti-
aquele período de espera normalmente apreensivo em que
mento foi pensar que aquilo não era uma via, mas depois de
vemos os outros subirem e receamos não sermos capa-
pensar melhor simplesmente apercebi-me que estávamos
zes de repetir aqueles gestos. Contudo, todos esses re-
a falar de um nível de exigência técnica claramente acima
ceios, esses medos de falhar desvaneceram-se na altu-
de todas as outras coisas que havia já feito, daí não con-
ra em que os meus dois companheiros subiam já longe a
seguir ver nada enquanto os outros viam uma forma de
parede de gelo, a corda esticou e tive de meter o piolet na
chegar ao cume.
neve para passar o obstáculo que marcava o início da via,
Naturalmente, como acontece quando saímos da nossa
a referida rimaya.
zona de conforto, o sentimento de apreensão começou
Esta primeira parte da subida, feita com neve em excelen-
a rondar, mas como nestas coisas pensar muito não faz
tes condições foi, curiosamente também, o último troço que
muito bem, dei por mim com o pensamento habitual, como
apanhámos em condições para o resto da subida. Ao che-
quando na escola faltavam dois dias para o teste e ainda
gar à zona de terreno misto na entrada de um esporão de
não tinha estudado nada: quando chegasse a hora, e não sei
rocha a que se seguia um pequeno corredor de neve, co-
bem como, estaria certamente preparado.
mecei a notar a neve anormalmente mole para a hora, isto
Após um jantar altamente calórico marcámos os despertadores para a uma hora para sairmos às duas. Esperava-se que fosse suficiente para apanharmos o último autocarro em Tour que sairia às 18h15. Tomado o pequeno-almoço e devidamente equipados, era hora de sair. O tempo estava bom, embora bastante menos frio do que seria expectável… Um prenúncio para o que nos esperava. A aproximação iniciou-se à hora marcada. Após cerca de meia hora de marcha, o primeiro revés. Um problema na bota de um elemento da outra cordada obrigou-os a voltar para trás. Para além da enorme sensação de frustração pelo desalento sentido nos colegas, a repentina solidão de uma cordada de três para tão magnífica montanha deixou-me a matutar. Felizmente tivemos de começar a andar e assim a cabeça esvaziou-se, dando lugar à concentração exigível para uma travessia em glaciar. A aproximação demorou cerca de três horas e, ao contrário de outras vias que já havia feito nos Alpes, esta foi bastante solitária, já que os outros três grupos que nesse
numa altura em que o sol mal se via, o que augurava uma subida menos fácil. Ao mesmo tempo o corpo começava a pagar alguma falta de cuidado no ritmo imposto neste primeiro lanço. E é nessa altura que se percebe a importância daqueles que, corda acima, têm a nossa vida nas suas mãos. Sem dúvida que o constante apoio e encorajamento dos meus companheiros de cordada foi essencial para ir subindo devagar mas com um ritmo o mais estável possível. Como último na cordada, cruzei-me nesta altura com o primeiro elemento da cordada espanhola que tínhamos entretanto ultrapassado ao fazer o já referido atalho no primeiro lanço. A partir daqui fomos sempre subindo mais ou menos juntos, sendo de realçar o excelente comportamento destes alpinistas, sempre a respeitar o nosso espaço (e nós o deles, naturalmente). Esta segunda parte foi alternando entre neve e esporões de rocha que fomos contornando até chegarmos ao primeiro ponto mais complexo, um corredor de gelo com cerca de 30 metros.
dia empreenderam esta ascensão atravessaram directa-
Ver o Paulo (e depois o César) a subi-lo deu-me esperança
mente o glaciar. Enquanto isso, utilizando parte da via para
que não fosse assim tão difícil, embora a apreensão de uma
a Agulha do Tour, nós fizemos um percurso um pouco mais
formação em gelo pouco conseguida tenha começado a vir
longo mas com um desnível menos acentuado, pelo que só
ao de cima. Contudo, assim que iniciei o lanço percebi que
voltámos a ver outros alpinistas no preciso momento em
o gelo estava em excelentes condições e, com pequenos e
que atingíamos o início da via.
seguros passos e anestesiado pela adrenalina, tudo se foi
A chegada à base da via coincidiu com o início do amanhecer e devo dizer que a vista era soberba. Um pouco à nossa frente uma cordada de alpinistas espanhóis ocupou o início da via, uma parede de neve dura partindo de uma rimaya
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fazendo até lá acima sem dificuldades de maior. >>
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“Chegados ao cume, a alegria...” Assim chegámos ao ponto mais bonito e ao mesmo tempo mais delicado da subida, uma aresta de neve bastante ex-
ção longínqua do momento em que, horas atrás, o primeiro pé tocou na neve foram fontes daquela alegria inexplicável de simplesmente chegar lá acima. Ao contrário de outros que já tinha feito, este é um cume
posta, com cerca de150 metros de comprimento, que se
pequeno e bastante exposto, pelo que, após a foto da praxe
desenvolve até um colo rochoso que antecede o cume.
e com os colegas espanhóis a chegar, foi preciso começar
Nesta altura, e após umas três horas de subida, o calor fazia-se sentir bastante e a neve, em consequência, apresentava-se bastante empapada. Tornou-se assim necessário fazer a primeira parte des-
a pensar na descida. E que descida…
“...desencordados a meio da pendente”
ta travessia em ensemble, já que a neve não oferecia as
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mínimas condições para a colocação de pontos fixos (tí-
Após uma saída algo delicada do cume, em que tivemos de
nhamos apenas uma possibilidade de meter um ponto fixo
fazer uma pequena travessia em neve bastante mole até
numa zona de rocha, mas que ficava a cerca de 80 metros
uma plataforma abaixo do cume, tínhamos para descer uma
da zona onde estávamos). E como sempre acontece nes-
pendente bastante inclinada, pelo menos até ao primeiro
tas situações, com o medo a favorecer uma extrema con-
rapel (sim, nesta fase a hipótese de descer a pé já estava
centração, passo a passo (com a neve cada vez em piores
claramente fora das nossas cogitações). Demos então iní-
condições) e com calma chegámos lá acima.
cio a um conjunto de seis rapéis.
Quase no cume podíamos observar o outro lado da mon-
Para mim foi uma experiência nova, pois embora já tivesse
tanha, o glaciar de Argentiére e tudo o que o rodeava, uma
feito rapel em neve e gelo nunca tinha feito tantos seguidos.
imagem de uma beleza estonteante. Nesta altura ainda não
Nesta fase sentiu-se a utilidade dos rapéis feitos em rocha
víamos o cume mas já o pressentíamos e, embora a traves-
nos últimos meses, o que permitiu uma descida automatiza-
sia até ao dito se tenha revelado algo exposta num ponto ou
da, rápida e segura, com um pequeno percalço quando não
outro, já nada nos fazia parar.
encontrámos uma das reuniões (percebemos depois que
E foi assim que após alguns minutos pude observar o Paulo no pequeno cume de neve e o César a chegar ao cimo. Poucos minutos depois também eu lá estava. Chegados ao
#03
cume, a alegria, o sentido de auto-superação e a recorda-
era mesmo assim, da terceira para a quarta reuniões era preciso fazer uma pequena travessia) e tivemos que fazer uma passagem desencordoados a meio da pendente.
alpinismo Chegados ao fim do rapel, desembocámos numa zona plana ainda longe do glaciar mas que já permitia uma descida a pé sem dificuldades de maior. Aproveitámos para um pequeno reforço alimentar e iniciámos uma tortuosa e longa descida até ao glaciar, já que a neve estava muito mole e as pernas começavam a acusar o cansaço. Após mais de uma hora lá atingimos o glaciar que também já tinha visto melhores dias… Mas a partir daqui, com o natural cuidado com as crevasses que já se viam debaixo dos pés, lá fomos progredindo o mais rápido que podíamos, até que cerca das 16 horas atingimos o piso firme do refúgio Albert I. Após um pequeno descanso, vimos as nossas opções: tínhamos um último teleférico às 17 horas (que já não conseguíamos apanhar) e o último autocarro em Tour pelas 18h15. Tínhamos portanto que fazer a descida toda a pé (e rápido, pese embora os pés e os joelhos já se queixassem bastante). E assim foi. Depois da primeira fase da descida ainda com alguns cuidados (face à grande acumulação de neve) lá seguimos à velocidade possível até lá abaixo aproveitando o sol e o lindíssimo vale.
E tal foi a velocidade na descida que ainda tivemos de esperar 15 minutos pelo último autocarro antes de voltarmos a Chamonix para o merecido descanso (e banho). No fim, apenas uma palavra:
inesquecível. <>
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escalada
agulha charlanon Alpes > Julho 2013
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#03
“Estou novamente nos Alpes, mais concretamente em Chamonix. Esperam-me cinco dias de actividade mas a primeira de todas é um dia de escalada em rocha nas Agulhas Vermelhas, mais concretamente a escalada à Agulha de Charlanon.” texto: Raquel Carvalho fotografia: César Silva / Paulo Roxo
escalada “let the adventure begin!” A actividade e as cordadas foram parcialmente definidas à mesa, já que todas as boas decisões são tomadas em frente a uma mesa, de preferência em boa companhia e comida. Após uma breve passagem pela casa dos guias de montanha de Chamonix ficam-se a saber as condições da via e do acesso. Uma vez que este ano caiu água sob a forma de flocos de gelo como se não houvesse amanhã, o início da via e parte do caminho até à mesma encontram-se debaixo de um manto de neve. Há que fazer uns ajustes ao plano ini-
propositadamente arrancada de um livro e ao croqui que o Paulo desenhou. Vamos andando pelo meio da neve até chegarmos perto da Agulha de Charlanon. Encontrar a via certa revelou-se uma tarefa mais difícil, que rapidamente se transformou numa verdadeira caça ao tesouro. O início da via encontrava-se soterrado de neve e apenas se vislumbrava uma plaquete a reluzir no meio da rocha. Como não se encontrou mais nenhuma, decidiu-se que seria essa a via que iríamos fazer, apesar de ser a mais difícil das que estavam no croqui. Agora era altura de subir pela neve até junto da plaquete.
cial e, em vez de poder ir com os confortáveis ténis (este
A plataforma de rocha do início da via era tão enormemente
texto não foi escrito ao abrigo dos regionalismos do Norte),
gigante que preparar o material, vestir o arnês e calçar os
tenho de levar nos pés as botas de montanha, para além de
pés de gato foram tarefas “interessantes”, para além de
a mochila ir com o peso extra dos crampons e do piolet.
conterem um elevado nível de contorcionismo e malabaris-
No dia da actividade, o despertador toca cedo (a ideia é tentar ir no primeiro teleférico do dia e voltar antes do último, teoria que se revelou completamente falhada na prática) e no apartamento há no ar um misto de ansiedade e expectativa. Afinal de contas, é a primeira actividade destes cinco dias. Felizmente o dia amanheceu soalheiro, havendo apenas uma ou outra nuvem de algodão no céu, fazendo-me esquecer o dia chuvoso e frio com que Chamonix me presenteou aquando da minha chegada. Após um bom pequeno-almoço (que incluía pelo menos dois tipos de queijo diferentes, pão fresco e café) é altura de deixar o apartamento, colocar a mochila e, consequentemente, o peso nas costas. É neste exacto momento que digo a mim mesma: “let the adventure begin!”. Estamos todos animados e quase tenho a certeza que alguém expressa os seus sentimentos sob a forma de canção. Enquanto espero pela abertura do teleférico há mais que tempo para admirar as montanhas que nos rodeiam. O contraste das mesmas é igual em todo o lado, mas ali as montanhas transmitem um “je ne sais quoi” e as bases verdejantes que a certa altitude deixam de o ser, para dar lugar a cumes de rocha nua ou de neve, têm um encanto especial. À saída do teleférico sinto o sol a bater na cara de um modo muito agradável como se estivesse a dar-me os “bons dias”. Vou percorrendo o caminho que nos leva até à Agulha de Charlanon e mais uma vez questiono-me porque é que todos os acessos às vias têm de incluir subidas. Os famosos neveiros de que nos tinham avisado que havia até à base da via finalmente deram o “ar da sua graça. É altura de tirar peso da mochila, os crampons vão para os pés, o piolet para a mão e como é óbvio, ou não estivesse a escrever este texto do meu ponto de vista, é altura de comer e beber qualquer coisa. As Agulhas Vermelhas encontram-se do nosso lado esquerdo e agora é só encontrar a agulha correcta, tarefa que se torna fácil devido à folha
mo. Por este mesmo motivo ficou decidido que só teríamos acesso à mesma à medida que fôssemos escalando. Claro que como sou afortunada tive o prazer de passar um bom tempo em equilíbrio numa saliência rochosa ao mesmo tempo que segurava os crampons pelas fitas numa das mãos e verificava se o piolet se mantinha bem espetado na neve. O meu consciente alertava-me para o facto de não poder deixar cair nada (nem mesmo o meu próprio corpo) sob pena de aterrar algures mais abaixo entre a rocha e a neve. A melhor maneira de me abstrair desta situação era mesmo observar a magnífica paisagem que me rodeava. Assim que primeira cordada deixou a plataforma vazia era tempo
29
de a segunda cordada poder aceder à mesma. >> #03
Claro que agora o espaço ainda era mais exíguo, uma vez
O dia foi decorrendo e fui subindo os diversos largos de
que no início da via ficavam, em modo de acampamento ci-
maior ou menor dificuldade. À medida que a altitude ia au-
gano, mochilas, botas, crampons e piolets. Só se iria subir
mentando, o horizonte alargava-se e o vento frio ia aumen-
com o material mesmo essencial – roupa de aquecimento,
tando a sua intensidade, chegando por momentos a abafar
água e obviamente comida. Calhou-me ir em último e por
os efeitos fantásticos que o sol me proporcionava. De re-
isso, antes de começar a escalar, verifiquei o estado do
pente, estava no último largo e como não era de grande
acampamento cigano, coloquei magnésio nas mãos e siga –
dificuldade sugeriram-me que fosse eu em primeiro lugar.
o caminho é para cima!
Abrir um largo nos Alpes tem outro sabor, outro encanto, nem que seja pela altitude, pela paisagem ou mesmo pelo
“O impossível fez jus ao seu significado...” O primeiro largo era pequeno, ou não tivéssemos nós começado a escalada a meio do mesmo, mas ainda deu para aquecer, uma vez que existiam diedros engraçados a ultrapassar. No largo seguinte houve a necessidade de passarmos da via onde estávamos para a via ao lado. A ideia era boa, mas como entre a teoria e a prática vai uma grande diferença acabámos por andar no meio de rocha solta. Havia o cuidado redobrado de ver onde se colocavam os pés e as mãos, de modo a não soltar nada sob pena de lesionar alguém. Fui subindo ao meu ritmo e sem nunca descurar este facto; apesar de ser a última do nosso grupo não sabia se havia mais alguém a aventurar-se naquela via. Pelo caminho ainda tive que encetar a missão impossível de retirar 30
um friend da parede. O impossível fez jus ao seu significado e portanto a missão não teve sucesso, ficando um “amigo” vermelho na parede só e abandonado à espera do nosso
#03
regresso e de alguém que o conseguisse resgatar.
ambiente em si. A via encontrava-se equipada, mas pelo sim pelo não coloco uns friends e uns entaladores no arnês. Olho para a via e realmente não me parece ser assim tão difícil, mas as plaquetes estão bem distantes umas das outras. Vou escalando e sei que algures há um passo mais chato de fazer (o Paulo avisou-me disso). Assim que lá chego identifico-o imediatamente. A protecção seguinte ainda se encontra longe e a anterior idem aspas aspas. À minha frente há uma fissura fantástica onde decido colocar um friend. O Paulo já se encontra a fazer o rapel de descida e pára para me dar umas palavras de incentivo e “sacar” umas fotos. Há que continuar a subir e uma vez que o receio vem todo ao de cima coloca-se outro friend, e é neste exacto momento que se escreve a história da “fissura mais protegida por metro de rocha”. A reunião encontra-se perto. Sei disso porque já ouço a voz dos meus colegas que iam na cordada anterior. Subo mais um pouco e lá estão eles. Agora tenho de me auto-segurar e dar segurança aos meus colegas de cordada. Passados alguns momentos eles também chegam ao fim da via. É altura de tirar a foto da praxe e começar a longa série de rapéis que nos esperam.
escalada
31
#03
Um, dois, três, quatro… Já não me recordo de quantos fo-
No início, a descida até Chamonix não parece ser muito dura
ram, mas ainda foram bastantes, e alguns deles feitos com
e até vou por um caminho ladeado por árvores onde a incli-
cuidados a redobrar devido à elevada possibilidade de que-
nação não é muito acentuada. Mas… ao fim de algum tempo
da de blocos de rocha. Pelo caminho ainda se realiza a se-
já não posso ver o caminho, as árvores que o ladeiam e as
quela da “missão impossível”, mas mais uma vez verificou-
curvas que o mesmo faz. Os efeitos da inclinação da desci-
-se que aqui o impossível é mesmo impossível e que na via
da começam a surgir: doem-me as pernas, os joelhos e os
vai ficar um friend.
dedos dos pés. É nesta altura que começo a questionar-me se não será menos doloroso tirar as botas e continuar de
“Os efeitos da inclinação da descida começam a surgir...” Finalmente chego à base do acampamento cigano e final-
pés de gato ou mesmo descalça. Quando finalmente chego ao plano horizontal o meu corpo já nem sabe o que é andar correctamente e passo por um período ridículo e hilariante de adaptação, mas ao menos já estou em Chamonix.
mente posso trocar os já desconfortáveis pés de gatos
E foi assim que decorreu a primeira actividade dos cinco
pelas botas. Mais um ou outro exercício de malabarismo
dias que passei nos Alpes. Desta actividade ficam regis-
para a colocação dos crampons e eis que estou pronta para
tadas em mim, nem que seja no meu subconsciente, uma
o último rapel. No fim deste, parámos num aglomerado de
série de emoções e uma fantástica frase que nunca mais
rochas e já que perdemos o teleférico de descida temos
irei esquecer:
tempo para ingerir calorias e repor os líquidos perdidos com alguma calma.
“Aiguilles Rouges? Trés jolie!” <>
ascensĂŁo
vignemale
monte perdido e
PirenĂŠus > Agosto 2013
32
#03
ascensão
33
#03
“Por vales e
montanhas encantadas” texto: Sandra Reis fotografia: Pedro Guedes
Foram cinco dias de montanhismo nos Pirenéus em travessia e autonomia total, com toda a carga para uma semana: tenda, fogão, comida e equipamento técnico de alpinismo. O peso, mais do que os quilómetros e do que o desnível previsto, foi definitivamente o desafio!
“Encantei-me pelos Pirenéus.” Foi uma grande rota com início em Bujaruelo. Depois, subida pelo Puerto de Bernatuara, acampamento nos arredores da gruta Bellevue, ascensão do Pic Longue Vignemale (3.298 metros), passando pelo glaciar, descida pelo Vale D’Ossoue, passagem por Gavarnie, descida a Bujuarelo, passagem e subida pela Pradera de Ordesa e Vale de Ordesa, subida a Goriz e daí a ascensão do Monte Perdido (3.355 metros), com descida e regresso a Torla pelo percurso do GR11.
panhar os nossos passos. Marmotas aos saltos por todos os lados, na brincadeira, de pé nas patas de trás, com as orelhas espetadas à escuta, à espreita nas suas covas, deitadas, não, esparramadas ao sol nas rochas, que nem lontras ou lagartos ao sol! Boa vida, a destas marmotas! Ovelhas deitadas nos neveiros e a fazer esqui no gelo! Desta não sabia, ovelha sabe esquiar! Fiquei estupefacta. Mas bom, têm um casaco de peles cinco estrelas e com o calor que estava era deitadas na neve que se deviam sentir
mente expectante. Há dois anos que queria fazer este per-
bem! Rebanhos imensos de ovelhas e cabras em constante
curso e as expectativas eram muitas. A beleza dos Pire-
movimento, cabras em alturas e terrenos surpreendentes,
néus entrou-me pelos olhos e pelos ouvidos nas inúmeras
todos os dias a saírem e a regressarem aos currais, con-
fotos e relatos que vi e ouvi.
duzidas pela perícia e pelo incrível trabalho de equipa dos
Encantei-me pelos Pirenéus. Têm uma magia qualquer que
cães pastores... Lindo, lindo demais... Que melhor se pode
não sei bem explicar… É curioso que em muitas partes do
querer para uma semana de actividade em montanha?
percurso dei por mim a pensar no “Senhor dos Anéis”, na
Fizemos duas ascensões e a primeira foi ao Pic Longue
descrição das paisagens das terras dos Elfos. Se calhar é
Vignemale (3.298 metros): talvez mais dura e mais técnica,
isso, há algo de conto de fadas nas paisagens, talvez pela
mas foi a que gostei mais, pelo tipo de terreno, pela passa-
água abundante, pelo murmurar constante dos rios, pelas
gem em glaciar e depois pela trepada fantástica na parte
lagoas e cascatas, pelas aves de rapina nos altos, abutres,
final, em zona de blocos de rocha vermelha com um declive
gaviões, grifos e uns bandos de corvos em gritos estri-
interessante.
vales, a sinalizar a nossa passagem. Verde, verde e verde e muitas flores e árvores nos vales, num contraste abrupto mas harmonioso com a aridez rochosa, neveiros e glaciares das quotas mais elevadas.
#03
às centenas a fazerem-se ouvir ainda antes de conseguir vê--las, o tilintar dos badalos em música de fundo a acom-
Estava algo ansiosa, pelo desafio do peso, mas extrema-
dentes que batem nas altíssimas paredes e ecoam pelos 34
Animais por todo o lado, as manadas de vacas pirenaicas
Tínhamos ficado a acampar na noite anterior perto de uma cascata nos arredores da gruta Bellevue, noite de lua quase cheia a jogar às escondidas com umas nuvens no horizonte, que deram um contraste fotográfico ao pôr-do-sol
ascensão
35
#03
registado para a eternidade pelas nossas três máquinas
Mas também quem me mandou esquecer das palmilhas em
fotográficas. Bons momentos a apreciar o entardecer, a
casa?! Erro de principiante, quase parece. Mas as palmilhas
admirar e a identificar os picos circundantes, acompanha-
sempre estiveram nas botas (ainda estou para saber o que
dos por um belo esparguete à bolonhesa liofilizado. Estou fã
lhes fiz, onde foram parar!) Como é possível algo tão pe-
desta bolonhesa!
queno ser tão incómodo e doloroso? As dores começaram
E depois de uma noite bem dormida, com a suave cascata como som de fundo, saímos de manhã cedo com a alvorada e a ascensão foi muito boa e muito rápida. Diria, aliás, divertida porque este é o tipo de terreno que mais gosto: trepe e destrepe e glaciar. Adorei a subida, adorei a descida! Descemos novamente ao sítio onde tínhamos montado acampamento, já lá iam algumas horas, e comemos qualquer coisa, descansámos um pouco, desmontámos e arrumámos tudo. Mochilas novamente às costas e lá fomos nós por ali abaixo. O mais difícil acabou por ser esta descida quase até Gavarnie logo de seguida. O joelho queixou-se e foi ao fim dessas dez horas que as bolhas apareceram…
de facto a apertar e ao fim de dez horas de actividade andava muito lentamente. E Gavarnie ainda estava a um par de horas de caminho… O fim de dia aproximava-se e algumas nuvens apareceram ameaçadoras no horizonte. O meu ânimo estava em baixo, cerrei os dentes, contive as lágrimas de dor que irritavam os olhos e pensei: “se os peregrinos a Santiago aguentam as bolhas eu também aguento!” Mas felizmente despontou no horizonte uma cabana de pastor miraculosamente... vazia. Que cansaço! E que bem soube ter um tecto nessa noite. Porque a chuva resolveu dar o ar de sua graça… Deu para descansar os pés e, apesar da noite mal dormida, com os músculos cansados a não darem descanso ao corpo, no dia seguinte acordei toda en-
Quase 14 quilos às costas, para 53 quilos de peso, a faze-
tusiasmada. E só não digo fresca que nem uma alface, por-
rem mossa nos joelhos e nos tornozelos. E nem das bolhas
que as bolhas não tinham miraculosamente desaparecido,
escapei desta vez. Com tantos quilómetros de montanha
ainda lá estavam a fazer mossa. >>
nas solas das botas e tal ainda não me tinha acontecido!
Mas enfim, ao fim de duas horas de percurso chegámos fi-
alguns mais afoitos e menos friorentos atreviam-se a dar
nalmente a Gavarnie. E um “pequeno” desvio a uma farmácia,
uns mergulhos na zona mais funda! Fico sempre impres-
uns Compeeds, 35 euros numas palmilhas super especiais
sionada com a quantidade de turistas de montanha e mon-
de corrida e outra mezinhas resolveram todos os males,
tanheiros que existe em Espanha e França. Tantas crianças,
que foram de pouca duração e curta memória. E com as
pequenas, algumas de sete anitos, ou por aí, a fazerem es-
palmilhas e os compits já foi possível continuar!
tes trilhos, alguns bem exigentes, vários quilómetros, acidentados, com desnível! Famílias inteiras em férias de mon-
Pequenos “luxos, grandes prazeres!
tanha, pais com bebés nas cadeirinhas às costas, crianças pelas mãos, uns mais afoitos, outros ficam pelos parques e
36
A outra ascensão já foi no lado espanhol, mas só depois
por alguns passeios mais curtos, aldeias cheias de gente,
de uma passagem em Gavarnie e pelo grandioso circo de
animação e flores vermelhas nas varandas. Que diferença
Gavarnie, com a sua imponente cascata e não menos bru-
em relação a Portugal... Será que algum dia verei tanta gen-
tais e gigantes paredes, vias épicas da escalada em gelo.
te a fazer férias nas montanhas e a alegrar e a encher as
Para além das palmilhas salvadoras, Gavarnie foi sinónimo
nossas aldeias?
de esplanada na manhã soalheira, a deliciar-me com uma
Bom, mas voltando aos “luxos”... De facto, tenho de agra-
tarte de maçã e um cappuccino, de conversa descontraída
decer às bolhas e ao pé torcido que determinaram uma al-
e de decisão dos planos seguintes. Uma pausa de conforto
teração do trajecto inicial e uma descida extra à civilização.
para estes montanheiros. Talvez por isso, por ser rara e
Além da tarte de maçã e do cappuccino, dos banhos re-
inusitada numa semana de montanha, tenha sabido tão bem.
frescantes na praia fluvial, salivo só de recordar o frango
Pequenos “luxos”, grandes prazeres! Mas não foram os
assado em forno de lenha ao almoço em Broto e o chuletón
únicos…
extra no parque de campismo. Desta vez pedimos um quilo
Regressámos a Bujaruelo, depois de mais umas horas de
de carne para os três, para dividir, mas como não tinham
caminhada por prados cada vez mais verdejantes à me-
uma peça única de um quilo deram-nos três de 400 gramas
dida que íamos perdendo altitude, sob um sol tórrido e um
pelo preço de um quilo… E comemos tudo!
calor asfixiante, só atenuado pelas últimas horas de passa-
E bem precisávamos de todas estas proteínas e calorias
gem no bosque. Chegámos enfim ao parque de campismo. E
nos restantes dias. A ascensão ao Monte Perdido... Outros
aí corri, corremos para o rio – lá tem uma pequena praia
dois dias de actividade intensa!
fluvial maravilhosa – para mergulharmos as pernas e os #03
pés na água fria. Miúdos e graúdos a chapinhar na água e
ascensão “... começou o trilho a sério...” O primeiro dia, mais suave, com a passagem pelo belíssimo e inigualável Vale de Ordesa. Os adjectivos são insuficientes para o descrever. Como disse, de conto de fadas! Aconselho todas as pessoas a visitarem esta maravilha da natureza. E ter filhos e crianças pequenas não é desculpa,
sopé no vale mais abaixo. Mal as víamos, eram pontinhos brancos ao longe, mas ouvíamos bem o cadenciar tranquilo dos badalos, tal qual o som dos espanta-espíritos, que embalavam num agradável “deixar ir” e relaxavam os músculos. Uma boa meia hora presa nesta magia ao pôr-do-sol, eu e muitos outros que por ali acampavam, todos nós com o olhar perdido no mesmo horizonte, em merecida indolência.
pois vi dezenas e dezenas, se não centenas, de pais com
E a provar que na montanha tudo muda a qualquer instante
crianças pequenas, a passear, a fazer piqueniques, a meter
e muito rapidamente, o plácido fim de dia terminou, pouco
os pés nas águas... Camionetas saem de Torla de 15 em 15
antes do sol se pôr completamente, quando estávamos nós
minutos, cheias de gente, para as deixar à entrada do par-
a terminar o nosso belo jantar de liofilizados, com a chegada
que. E têm a mesma frequência no regresso a Torla, com a
de uns grossos pingos de chuvas que, num ápice, se trans-
última camioneta a regressar às dez da noite. Um exemplo
formaram em chuva contínua acompanhada de relâmpagos
de parque natural de facto (mesmo com tantos visitantes
e trovões! Medo… Isto de estar numa tenda super reduzi-
consegue ter taxas muito bem sucedidas de aumento de
da, com uma mera colchonete de meio corpo a isolar-me
população em muitas das espécies protegidas!) e que nós
do chão tem que se lhe diga… Havia sempre a possibilidade
em Portugal deveríamos seguir…
de correr para o refúgio com as tralhas atrás (ideia nada
Passado o Vale de Ordesa, terminou o passeio e começou o trilho a sério, por assim dizer, com a subida até Goriz, muito agradável, com as vistas do Vale de Ordesa aos nossos pés, distanciando-se aos poucos e escondendo-se finalmente por trás das montanhas. Montámos acampamento perto do refúgio de Goriz, com uma vista deslumbrante para os vales aos nossos pés e cumes nas nossas costas. Lembro-me com prazer de estar numa sonolência agradável ao fim do dia, meia sentada, meia deitada à porta da minha tenda a apreciar o movimento do re-
agradável), mas a tormenta, apesar de sonora, passou ao largo, os trovões estavam relativamente afastados e em menos de uma hora, tal como veio, voou para longe! E as estrelas foram despontando no céu. Que sorte! Tínhamos conseguido “driblar” o mau tempo que já estava previsto para o dia seguinte e que podia pôr em perigo a nossa ascensão do Monte Perdido! Mas passou sem danos. E no dia seguinte de madrugada, ao sair para a ascensão, tínhamos céu limpo e condições perfeitas!
37
>>
banho, enorme, que descia da montanha em frente, para um #03
38
#03
“... a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é soberba.” Por volta das 6h30 já estávamos de mochila às costas, com o material necessário para a ascensão e comida para o dia. Decidimos começar cedo porque ia ser outro dia muito comprido e porque as previsões eram de mau tempo para a parte da tarde. Não queríamos ser apanhados por mau tempo na ascensão, nem na descida do Monte Perdido. Aqui não havia passagem de glaciar. O desafio maior foi a passagem de “La Escupidera”, uma pendente de cascalheira, de uns 300 metros a 45 graus... Tivemos sorte. Não havia gelo nem neve e não foram precisos crampons, mas de qualquer forma é uma última subida “agressiva” a requerer bom trabalho de pés e muito cuidado! Fizemos bem e rápido e a vista no fim desta rampa de pedra solta e cascalho é soberba. Conseguimos ver ao longe o Vignemale, que tínhamos subido há dois dias, e a Lagoa de Marmores. Mais uns metros e atingimos o cume, onde já estavam dois atletas de
ultra trail que fizeram o percurso todo desde a entrada do parque em... 3h40! “Uau!”, é o que se me apraz dizer! Acho que estes ultra trail runners são seres do outro mundo, definitivamente! A descida foi a correr, ou passo de semi corrida, pela cascalheira abaixo, porque acaba por ser mais fácil deslizar assim pelas pedras rolantes! Difícil é quando não dá para deslizar e o esforço de travar começa a fazer pressão sobre as articulações. E assim descemos e regressámos a Goriz, directos para umas apetecidas coca-colas e batatas fritas no refúgio, ao fim de 6h10 de actividade. Muito bom para nós. Outro campeonato, diferente das marcas daqueles super atletas! E assim se estava a aproximar o fim de uma semana fantástica. Faltava ainda descer tudo, de regresso pelo belíssimo Vale de Ordesa, com toda a tralha às costas, mas a perspectiva de um bom banho e de uma boa refeição alimentaram as forças para os últimos quilómetros e as últimas horas deste último longo dia. Foi mais uma descida
ascensão intensa e só relaxei quando cheguei ao vale. Aí entrei em passo de passeio, mais descontraído, a apreciar a paisagem, mais umas fotos aqui e ali. Não há como resistir, por muitas fotos que já tenha tirado de todos os ângulos, deste lugar encantado! Foi literalmente a arrastar os pés que cheguei ao fim do percurso, dez horas depois, à entrada do parque, para apanhar o autocarro para Torla, mas com a satisfação de uma grande semana de actividade!
Foi uma semana intensa, uma actividade brutal, numa das mais belas paisagens de montanha que conheço. Superou em muito as minhas grandes expectativas e ficou a vontade de regressar! <>
39
#03
estágio
pico
Salvaguardia, 40
#03
pico de
Alba,
Mulleres e Aneto
“Não há duas sem três...” texto: Sandra Reis fotografia: Pedro Guedes
Pirenéus > Setembro 2013
Lá diz o ditado e com razão… Duas actividades nos Pirenéus no espaço de poucas semanas: a primeira na zona de Torla/Ordesa e desta vez rumo a Benasque, Pirineo Aragonés, no Parque Natural Posets-Maladeta. Uma terceira vez é agora obrigatória para confirmar o ditado! E está no plano futuro, mais próximo que distante, assim o pretendo.
ascens達o
41
#03
“Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de aquecimento.” A vida dá voltas, os planos mudam e esta semana pirenaica esteve para ser alpina. Mas constrangimentos vários de última hora impossibilitaram a travessia prevista, nada que tenha sido um grande problema de acomodar. Com um grupo pequeno foi fácil reajustar os planos e concordar com um programa alternativo de cinco ascensões na zona de Benasque, que preenchia os objectivos e as expectativas de todos. O Parque Natural Posets-Maladeta, assim declarado em Junho de 1994, alberga 13 glaciares, todos considerados Monumentos Naturais, sendo o de Aneto-Maladeta um dos mais bem conservados e o de maior extensão dos Pirenéus. A passagem por este glaciar na subida ao Aneto é um dos pontos atractivos. Esta é uma área que alberga o maior número de cumes de 3.000 metros dos Pirenéus e ainda 95 lagos, o que faz desta zona uma das mais concorridas e visitadas por montanhistas, alpinistas e amantes de esqui. Estabelecemos “campo-base” no Camping Aneto, mesmo à saída de Benasque pela A139 rumo a Norte, nas margens do rio Esera, e daí saímos todos os dias para os cumes previstos, regressando ao final do dia para um bom descan42
so. É uma óptima solução, em conta e bastante confortável – duche reconfortante todos os dias, tempo para relaxar depois das actividades, refeições em Benasque, quentes e bem mais saborosas que liofilizados, massa Koka e atum,
#03
não ter que montar e desmontar acampamentos todos os dias. Principalmente permite aligeirar consideravelmente o peso nas ascensões. Naturalmente aumenta um pouco os quilómetros e desníveis a fazer todos os dias e as horas de marcha, mas há que optar e desta vez o objectivo era ir mais ágil, mais leve, mais rápido na progressão. Tínhamos cinco cumes no plano, alguns emblemáticos da zona de Benasque, todos com diferentes características: Salvaguardia (2.738 metros), Posets (3.371 metros), Alba (3.108 metros), Mulleres (3.010 metros) e Aneto (3.404 metros).
que requerem, nessas circunstâncias, alguma segurança adicional com cordas. Estávamos prevenidos para essa possibilidade, mas não foi preciso. O dia estava maravilhoso, seco e com muito sol. O percurso começou perto do parque de campismo do hotel “Hospital de Benasque”, no Vall de Benás, vale típico dos Pirenéus, um bálsamo para a vista e para a alma, verde, aberto, com quedas de água de vários metros de altura, riachos que acompanham os passos enquanto vamos no
Na realidade, o Mulleres não estava previsto no plano inicial.
vale em aproximação à via, paredes e picos imponentes em
Mas ao aperceber-me que nas redondezas havia um pico
volta a prender o olhar, os mais elevados com neveiros e
“feminino”, digamos que persuadi os meus companheiros de que não poderia passar-lhe ao lado. Eles foram bastante compreensivos com esta homenagem ao género!
glaciares. Vamos ziguezagueando na pendente, com o vale sempre em vista, ganhando altitude tranquilamente, entre pinhei-
Começámos pelo Tuca de Salvaguardia, uma ascensão de
ros e verde, e admirando alguns dos cumes sobranceiros
aquecimento. É definitivamente um pico fácil e muito agra-
e as vias de acesso ao cume. Vários caminheiros fazem o
dável de se fazer, tem somente um ou dois pontos de pas-
percurso, vamo-nos cruzando várias vezes e alternando
sagem mais traiçoeiros pouco antes de chegar ao cume,
posições, umas vezes nós à frente outras vezes outros,
com lajes mais escorregadias com tempo húmido e chuva,
com um ritmo determinado muito pelas paragens para tirar
ascensão
43
#03
fotos ou para apreciar uma ou outra perspectiva do vale e
cam a paisagem e prendem o olhar... Lac de la Montagnette,
das montanhas em redor, nomeadamente do Pico de Alba,
Lac do Maille, Borns du Port. O Refuge de Venasque está
do glaciar e Pico de La Maladeta.
estrategicamente posicionado nas margens de um dos
Assim pelo Canal de la Pena Blanca, trilho do GR-T-46, subimos até ao Puerto de Benás onde invertemos para a esquerda, saindo em direcção ao Tuca de Salvaguardia num trilho que corre quase em cima da linha de fronteira, um passo em Espanha, um passo em França. E aqui nos cruzámos com um grande grupo de franceses, que vinham do lado francês, a fazer a ascensão. O trilho aqui é mais estreito e exposto, paralelo ao vale em baixo, mas que fazemos com facilidade e rapidamente, passando com tranquilidade os tais pontos mais expostos onde a ajuda de uma corrente na parede confere alguma segurança.
lagos. Imaginámos que seria uma boa opção de estadia e conseguimos identificar alguns dos bonitos trilhos que dali se podem fazer. Chegaram alguns espanhóis e finalmente o grande grupo de franceses. A tranquilidade foi-se e quase não há espaço no cume para todos. Hora de regressar! Depois de comer alguma coisa e hidratar, retomámos caminho, regressando pelo mesmo trilho e fomos seguindo as voltas, idas e vindas de um helicóptero que parecia fazer passeios panorâmicos, passando /aterrando no Refúgio de La Renclusa, donde se pode aceder ao Mulleres, ao Alba, ao La Maladeta e ao Aneto. Tentámos descobrir onde andava o helicóptero pelo som, num jogo de esconde-esconde com os cumes e vales. Assim distraídos e na conversa, não tar-
Chegámos ao cume na “hora H”... Ainda não estava ninguém
dou nada estávamos novamente no vale e no parque. Cedo
e por alguns momentos pudemos apreciar o silêncio e ob-
terminou este primeiro dia, umas cinco horas de actividade,
servar tudo em redor. Daqui conseguimos ver também o
coisa soft. Depois de uma passagem rápida no parque de
lado francês, e os grandes lagos no sopé e no vale mar-
campismo para um duche e muda de roupa, seguimos para >>
44
#03
a vila de Benasque, onde, para além da incontornável visita e do tour pelas lojas de montanha, acabámos por terminar o dia a aproveitar o pôr-do-sol e a temperatura amena numa esplanada, a ver a banda a passar e a comer umas tapas. Ou não estivéssemos nós em Espanha. Jantámos cedo e cedo regressámos ao parque, porque no dia seguinte a alvorada era cedo e o dia ia ser longo. Acabou o aquecimento, a partir de agora é a sério!
alguma altitude, para início do trilho. Até lá é um trilho de montanha algo difícil, para o carro… É um pouco exposto e estreito, com algumas subidas a porem o carro à prova e eu só agradeço por ser noite e assim não ver a pendente. Andar a pé em trilhos expostos é uma coisa, de carro assusta-me muito mais! Enfim chegámos, ainda era noite como breu e só havia um ou dois carros por ali, mas que mal se viam. Tirando a luz
“Posets (3.371 metros)...” Dia 2: Alvorada ainda de noite, hora de saída marcada para as cinco da manhã e nos planos está um dos clássicos dos Pirenéus – Posets (3.371 metros), o segundo pico mais elevado dos Pirenéus, a seguir ao Aneto. Saímos à hora combinada do parque de campismo e ainda tínhamos algum percurso de carro até ao parque de estacionamento, na zona da queda de água Espigantosa, já a
do frontal, a noite é total, nem a lua se mostra e só vemos mesmo os poucos metros que os focos iluminam. O céu parecia ter nuvens, a previsão era de chuva para a tarde, mas parecia que poderia surpreender-nos mais cedo. Esperávamos que não atrapalhasse os nossos planos. O dia era longo, com muitos metros de desnível e muitos quilómetros, e a chuva não seria uma boa companheira! Começámos o trilho com o som da água, de resto o silêncio era total e íamos sozinhos na escuridão. Pressenti a queda
ascensão de água à nossa esquerda, o som ribombava e o rio acom-
foram guardados, mas já havia muitas nuvens no céu a es-
panhava-nos. Parecia muito perto, à nossa direita em baixo.
preitarem por trás dos cumes à nossa volta. O percurso é
O trilho ia sempre em subida contínua pelo meio das árvores e sabia-me bem esta caminhada nocturna pela fresca da aurora. Comecei imediatamente a aquecer, o ritmo cardíaco aumentou rapidamente e tive de tirar logo algum agasalho, mesmo com as temperaturas baixas que estavam. Entrei no meu ritmo, o torpor da sonolência matutina desapareceu completamente, os sentidos estavam aguçados, a mente clareou. Sabe mesmo muito bem este esforço físico num quase isolamento de tudo. A escuridão mostrava-me só os poucos metros à minha frente iluminados pela luz té-
muito cénico e o trilho fácil. Subimos uma encosta de pendente suave e verde, fomos cruzando ou acompanhando um riacho e comecei a ver já não muito longe o canal gelado (Canal Fonda) por cima do rio e cascalheira, o acesso a uma moreia glaciar, por onde íamos progredir. Já íamos a mais de metade do nosso percurso quando as nuvens se aproximaram definitivamente. O dia tornou-se cinzento, os contrastes diminuíram e a paisagem ficou mais agressiva: o castanho avermelhado da cascalheira e o branco mate da neve num fundo de nevoeiro e neblina.
nue do frontal, a luz perdia-se nos ramos das árvores e
Tivemos muito cuidado ao passar a pendente de gelo por
na noite, o som da água e o cheiro do bosque dominavam
cima do rio, pois estávamos sem crampons, e uma queda
a consciência. Os meus companheiros iam só uns metros
ou resvalo seria perigoso, uma queda directa ao buraco na
à frente, mas entre as curvas do caminho e os vultos das
água gelada do rio que passava furioso por baixo da gros-
árvores mal os via, aqui e ali via um foco branco que asse-
sa camada de gelo que atravessámos para apanhar o trilho
gurava que os seguia no trilho correcto. Não que houvesse
colado à esquerda do canal. Trilho instável, de cascalheira,
mais... ou não os via! A luz do dia começava a despontar e a clarear a paisagem ao nosso redor. À medida que subíamos, saíamos do bosque para espaço mais aberto e foi com a luz da aurora e acompanhados pela sinfonia dos balidos e os “muuuus” das
e agora húmido da chuva que começava a cair. A progressão tornou-se mais difícil, mas admito que gostei! Havia um certo nervoso miudinho, tive de me focar, pôr os sentidos mais alerta e redobrar a atenção, que eu que sou dada a quedas e a torcer pés.
vacas que chegámos ao Refúgio Angel Orús, aos 2.095 me-
Mas era uma chuva miudinha, estávamos confiantes e con-
tros, para uma pequena paragem: comer e hidratar. O refú-
tinuámos. Se continuar assim, se não piorar, devia dar para
gio ainda dormia, não havia muitas pessoas visíveis, um ca-
fazer. A preocupação maior era a passagem da aresta final,
sal que se equipava, um francês que procurava a carteira…
já a chegar ao cume, depois de subir a Moreira glaciar e
Voltámos ao nosso percurso, já com luz de dia, os frontais
45
passar o Collado del Diente e a Espalda do Posets. >> #03
E assim, passo atrás de passo, cuidadosamente, fomos su-
Retornar era a decisão que se impunha, não sem frustra-
bindo e quando olhei para trás o manto gelado sobre o rio já
ção e desânimo, mas o bom senso e a segurança prevale-
tinha ficado bem para trás. Vejo uns pontinhos pequenos a
ciam. Estávamos próximos, na recta final, mas havia uma
iniciar o mesmo trilho, mais alpinistas confiantes que a me-
passagem perigosa e ainda tínhamos de fazer toda a des-
teorologia não lhes vá dar a volta aos planos.
cida da moreia, no regresso. O Posets ainda vai cá estar!
Chegámos aos 3.100 metros na Espalda do Posets e decidimos parar uns minutos, comer alguma coisa e descansar antes do assalto final ao cume. Faltavam agora ainda 370
Iniciámos a descida debaixo de chuva e com muito cuidado
metros, sensivelmente, e uma passagem muito exposta.
descemos o canal, que exigia ainda mais atenção e cuidado
Observámos as condições para cima. O nevoeiro era for-
que na subida. Com segurança, mas chegámos rapidamen-
te e não havia visibilidade, o que nos deixou algo pensati-
te à base do canal e ao manto gelado sobre o rio, que tínha-
vos. Aumentou o vento e estava mais frio, estávamos ago-
mos de atravessar novamente, agora já mais marcado pe-
ra com os agasalhos todos, enquanto estávamos parados,
los passos de quem vinha atrás de nós, mas nem por isso
se bem que abrigados pelas rochas onde nos encostámos.
menos perigoso. Os passos e a chuva derreteram o gelo e
Mas a chuva continuou ligeira, embora persistente, e de-
a camada não era estável…
cidimos que íamos continuar. Passou por nós um trekker solitário, em grande ritmo. Trocámos algumas palavras e ele também estava um pouco preocupado com as condições, mas disse que ia subir e ver como estava um pouco mais acima… Acabámos de comer, estávamos a arrumar as coisas nas
46
#03
Não foi desta e fica para uma próxima! Quiçá a justificar a tal terceira vinda aos Pirenéus!
Passando o canal e descendo de altitude, a temperatura aumentou e a chuva parecia menos ameaçadora. Neste terreno a progressão era novamente tranquila. Fizemos uma pausa no refúgio, esperando algum tempo para a chuva abrandar. Não havia necessidade de fazer as horas seguintes debaixo de chuva contínua! E tivemos alguma sorte,
mochilas e a prepararmo-nos para sair quando a chuva
pois a chuva abrandou, embora continuasse a ver as nu-
aumenta substancialmente, passando daquela chuva de
vens negras a cobrir os cumes. Descemos, agora de dia, a
“molha-tolos” para chuva forte e contínua! Estávamos a
apreciar a paisagem onde havíamos passado na escuridão,
discutir as nossas hipóteses e qual seria a melhor decisão,
e foi engraçado ver como a realidade era algo diferente
quando passa por nós a descer o espanhol a dizer que ia
do que imaginei… O bosque era muito menos denso e o rio
descer, porque estava tudo muito escorregadio e que não
estava bem mais abaixo e longe do que soava aos meus
havia condições para fazer a aresta final. Não valia a pena
ouvidos! A cascata era ainda maior do que a imaginei, com
continuar.
ascensão
47
#03
muitos metros de altura e a exigir uma foto para a
três carros parados, mas sem vivalma aparentemente! Uma
posteridade. E assim chegámos ao início, ao parque de
porta abriu-se e vimos uma luz de frontal a uns metros de
estacionamento. E nem pelo facto de não termos feito cume,
distância. Saiu um vulto de um dos carros e encaminhou-se
esta deixou de ser uma óptima actividade!
para junto do refúgio, fechado, sem vida. Eramos só nós e o vulto, uma rapariga sozinha, apercebemo-nos quando nos
“... rumo ao Pico Alba...”
aproximámos. Também ia fazer o Aneto. Sozinha! Coragem ou loucura? Muito normal entre os espanhóis, sem dúvida,
Dia 3: Alvorada madrugadora novamente. Nos planos esta-
mas uma mulher sozinha não deixa de ser surpreendente.
va o grande Aneto, jornada Alpina, o prato-forte da semana.
Desde pequena que “vive” nas montanhas, disse, e pelos
Saímos muito cedo para estarmos no parque do Plan de
vistos está muito habituada e à vontade nestas andanças!
Senarta a tempo da camioneta das seis da manhã que nos
Não deixei de a admirar em silêncio, mas perguntei-me se
levaria montanha acima até ao Refúgio do Pescador ou Re-
ousaria fazer sozinha algo como isto, mesmo conhecendo
fugio Coronas, num percurso acidentado e exposto. Uma
já o percurso… Exerce um certo fascínio, mas não me con-
aventura de camioneta nas montanhas, um “autobus de las
sigo imaginar. Sou medrosa.
nuvens!”
Bem, esperámos, esperámos, esperámos… e nada de ca-
Chegámos a tempo ao parque de estacionamento, a noite
mioneta. Começámos a ficar impacientes, nós e ela, e es-
ainda estava escura, faltavam ainda algumas horas para os
tava um frio gélido. Decidimos aguardar no carro, não valia
primeiros raios de sol. Estava ainda em fase de sonambu-
>>
lismo e em modo automático. Não se via nada. Havia dois ou
a pena continuar ali de pé ao frio, a camioneta estava bas-
O refúgio estava muito bem enquadrado num Collado, no fim
tante atrasada e não sabíamos quanto tempo ainda poderia
de dois vales por onde descem dois rios, de Sul o Torren-
demorar. Cochilámos no carro e passou-se mais meia hora.
te de La Maladeta, vindo do glaciar com o mesmo nome, e
Já estava atrasado uma hora… O dia começou a nascer e
de Sul/Oeste o Torrente del Diente, alimentado certamente
uma hora e meia depois decidimos que o melhor era alterar
pelo mesmo glaciar e pelo de Alba. Foi em direcção a Oeste
os planos. Fazia-se tarde para cumprir o horário ideal para
e seguindo em paralelo ao curso deste último rio que reto-
a actividade.
mámos a subida, mais pronunciada nos primeiros 150 me-
E assim, do Aneto decidimos ir rumo ao pico Alba, a 3.108 metros, que estava previsto para o fim da semana, a fazer a partir do Refugio de la Renclusa. Fomos novamente de carro até ao parque do Hospital de Benasque, onde estivé-
entre picos de 2.300 metros à nossa direita e a vista dos glaciares La Maladeta e Alba à nossa esquerda. Havia alguma neblina, talvez da evaporação da água do lago
apanhámos a camioneta que percorre o vale ao longo do rio
e dos muitos rios que cavam estes vales, processo acen-
Esera até ao parque de La Besurta, uns cento e tal metros
tuado com o avançar da manhã e o aumento da temperatura.
mais acima, aos 1.896 metros, ponto de partida do nosso
Era uma névoa pouco densa, parecia que víamos fotogra-
trilho para chegar ao Refugio de La Renclusa e daí iniciar o
fias desfocadas, que esvoaçava e se deslocava com a brisa.
percurso em direcção ao Pico Alba. Eram 1.300 metros a
Íamos vendo e deixando de ver os pormenores à distância
subir e retornaríamos por um percurso muito variado em
e a luz rasgava espaço entre a neblina numa visão quase
termos de terreno e paisagens! Gostei muito deste percur-
surreal da paisagem. O vale, fechado pelas encostas altas,
so, variado e exigente, embora me tenha custado em algu-
era todo ele um espelho de água lindíssimo e irresistível. E
mas partes. Os joelhos chatearam um pouco, acusaram o
foi devagar que fiz o trilho suave que circunda o lago, antes
acumular de desnível dos dois dias anteriores.
de começar uma nova subida em direcção a uma parede
marcado, em ziguezague suave até aos 2.140 metros. Só parámos para beber alguma coisa e continuámos. Perto do refúgio, havia um portão lindíssimo de uma capela incrustada na montanha edificada à Virgen de Las Nieves, que apreciámos ao passar. Merecia uma visita, havendo tempo no #03
colo largo dominado por um lindo lago, o Ibon de La Renclusa,
ramos no primeiro dia para fazer o Salvaguardia. No parque
Chegámos rapidamente ao refúgio por um trilho muito bem
48
tros de desnível nas margens do rio, até chegarmos a um
regresso.
de grandes blocos esverdeados, que fomos saltando em trepada suave, encontrando um caminho natural entre os monólitos. Cruzámos o rio, virando à direita em direcção a Oeste a uma quota de cerca de 2.550 metros, e passámos a subir uma cumeada, subida constante em caminho quase recto na direcção Sul/Sudoeste em ziguezagues curtos. A neblina esvaiu-se e de repente descobriu-se o céu azul.
ascensão Vemos de cima o vale e quase em frente as paredes cinzentas do Maladeta e as cores alvas do Alba. Já tínhamos subimos bastante, devíamos estar nos 2.800 metros quando decidimos enfim parar para descansar e comer, aproveitar o sol e o calorzinho súbito que se fazia sentir e que não esperávamos! Como o sol faz a diferença! Tudo era ainda melhor com um céu azul, contrastes, horizontes abertos e luz... Fiquei ainda mais animada, estava a gostar muito do percurso, mas a vista dos vales glaciares e dos cumes aumentava a expectativa e a pura alegria de estar ali e em mais nenhum lugar. Tínhamos de ultrapassar novamente uma área de pedras e grandes blocos caídos em derrocada milenar e eram muitas as opções de trilho. Havia várias mariolas a indicar as opções de percurso. Neste tipo de terreno temos de nos manter orientados, porque rapidamente podemos seguir um trilho um pouco mais ao lado e progressivamente, sem nos darmos conta, afastarmo-nos do percurso e do objectivo e irmos dar a outro lado qualquer. Ia mais atrás que os meus companheiros e nem sempre os via, entre “esses” e “erres” do percurso e o sobe e desce dos blocos, mas estava atenta para os vislumbrar entre um bloco e outro e ter a certeza que seguia na direcção certa, mesmo que não fizesse exactamente o mesmo percurso. Procurava seguir o trilho que me parecia mais natural e fácil entre os blocos, a não obrigar a demasiados saltos.
49
Chegámos finalmente à base da parede final do Alba e procurámos a melhor forma de acesso ao cume, não muito >> #03
50
#03
evidente mas a exigir certamente alguns passos de esca-
mos os planos e decidir quando ir a Aneto!
lada que, não sendo complicados, iam requerer a máxima atenção e cuidado porque estávamos sem cordas. Mas de-
“Assim, o dia foi de Mulleres.”
pois de avaliarmos algumas possibilidades, lá decidimos por uma zona que nos parecia mais segura para transpormos
Dia 4. Decidimo-nos por um dia mais soft, para acordarmos
esses 20 metros de altura, passo que me deu muito prazer
um pouco mais tarde, descansarmos do esforço dos dias
fazer. Depois apanhámos um trilho evidente na pendente
anteriores e nos resguardarmos para o Aneto, que deci-
final de acesso ao cume, na face virada a Oeste, e minu-
dimos deixar para o fim, depois de validar no Turismo em
tos depois chegámos finalmente ao cume do Alba, com um
Benasque que a camioneta estava a funcionar e que não
céu azul, sol resplandecente e vistas brutais 360 graus em
se iria atrasar de novo! Assim, o dia foi de Mulleres. Ou Tuc
volta! O espaço no cume era pequeno e algo exposto, com
de Molières, na versão francesa – provavelmente o nome
pendentes abruptas de ambos os lados. Sentámo-nos um
oficial, já que o cume fica do lado francês. Mas eu fico-me
pouco para apreciar a vista soberba e tirar fotos, evitando
pela forma discriminatória. E a atestar que a fama vem de
andar a deambular para trás e para a frente, não fosse o
longe foi sem dúvida o facto de ter sido o percurso onde
diabo piscar o olho! Foi uma subida e um percurso longos
vi mais mulheres, em grupos ou “standing alone”! Uma fran-
e cansativos mas que me deu um grande prazer fazer! E
cesa, que vinha já há muitos dias sozinha e em autonomia
como tudo o que sobe desce: regressámos pelo mesmo
total a fazer uma das rotas pirenaicas, cruzou-se connos-
caminho, parámos no refúgio para um merecido descanso
co quando já vínhamos a descer. Ela estava a subir tranqui-
e um chocolate quente antes da descida final até ao parque
lamente e como se nada fosse, com a sua pesada mochila…
e dar por finalizado mais um longo dia de boa actividade, an-
Uma inspiração!
tevendo uma boa refeição e descanso para depois refazer-
ascensão “Sexismos” à parte, este foi sem dúvida mais um belo percurso, a iniciar também no nosso já conhecido parque de La Besurta, e seguindo vale fora ao longo do Rio Esera. Tudo muito tranquilo e plácido àquela hora da manhã, mas estaria cheio de gente, a caminhar ou estendida nas margens do rio a apreciar o calor, quando regressássemos ao fim do dia. Mais uma vale-paraíso dos Pirenéus a convidar à contemplação e à languidez. Mas não para nós… Fomos durante algum tempo no vale, sempre à mesma quota ou em subida progressiva e suave, até chegarmos perto da Cas-
melhor as encostas glaciares desse lado e os lagos e vales do lado francês. Foi um percurso muito agradável, menos exigente que os dois dias anteriores, o que foi perfeito para recuperarmos algumas forças para o dia seguinte, a sobremesa da semana: o Aneto, o maior dos Pirenéus, no alto dos seus 3.404 metros, a exigir uma passagem em glaciar e um passo famoso, algo assustador! Havia muita expectativa… O último dia fechava com “chave de ouro” uma óptima se-
cata d’Aiguallut, onde o terreno empina muito e temos uns
mana, muito intensa e variada. Acordámos novamente mui-
passos de trepada íngreme. Ganhámos altitude rapidamen-
to antes do galo cantar, devia ainda estar no terceiro sono!
te, passando aos 2.050 metros. Continuámos ao longo da
Saímos das tendas prontos para este último dia, com mui-
Valleta da Escaleta, quase sempre paralelos ao rio Aigueta
ta expectativa. As previsões meteorológicas eram muito
de l’Escaleta que corre no vale em baixo, em subida suave e
boas: um dia de sol, o que nos animou ainda mais.
paulatina até chegarmos a uma linda zona de lagos, os Ibons
Lá fomos, mais uma vez esta semana, rumo ao parque do
de L’Escaleta – água omnipresente nos Pirenéus a estas
Plan de Cenarta para apanharmos, esperávamos, o “auto-
quotas! Devíamos andar pelos 2.500 metros. Fomos pas-
bus de las nuvens” e fazer os primeiros quilómetros e me-
sando uma sucessão de lagos à medida que subíamos, nes-
tros de desnível em cima de grandes rodas. Mais uma vez
ta altura de forma mais rápida e pronunciada. Chegámos ao
fiquei contente por ser noite e não conseguir ver bem as
Ibon Alto de lá Escaleta e o terreno passou totalmente a
rodas da camioneta a rasar o precipício nas curvas… Não
rocha, grandes lajes claras que devem ser manteiga quan-
teria a mesma sorte no regresso, umas longas horas de-
do chove, mas de fácil e prazerosa progressão neste dia.
pois, já que tive o “azar” de me sentar à janela, no lado es-
As vistas eram desafogadas e amplas e tínhamos uma óp-
querdo do autocarro. Houve momentos em que pura e sim-
tima perspectiva do Pico de Tempestades, do Pico Russel e
plesmente fechei os olhos…
da Espalda do Aneto, no horizonte à nossa direita à medida que íamos subindo. Do cume, onde chegámos sem grandes histórias, tínhamos ainda melhor vista. Apreciámos ainda
O “bus das nuvens”, assim chamado, percorre o Vall de Va-
51
libierna, parte do percurso do GR11. Deixou-nos no Refugio >> #03
52
#03
do Pescador, um pequeno refúgio/cabana onde se inicia
o terreno deixou progressivamente de ser campo verde-
o percurso, na ponte Puen de Corones onde confluem o
jante e passou a ser um terreno mais inóspito de pedras e
Rio de Valibierna e o Barranco de Corones. A água sempre
cascalho, numa subida mais cansativa.
presente! Estávamos ainda completamente imersos na noite quando
Estamos em subida constante há horas até que atingimos a zona dos lagos, o primeiro a ser o Ibonet de Corones, ainda
iniciámos o trilho, mais uma vez colados ao rio, ao Barranco
parcialmente deitado à sombra. O sol começou a lamber as
de Corones, no meio do bosque, com os frontais a ilumina-
cumeadas a Oeste num tom laranja, um cenário lindíssimo,
rem parcamente o percurso. Saímos acompanhados de um
um circo grandioso de rocha a bloquear a vista mais além.
alpinista solitário, com quem nos fomos cruzando, no início do percurso e, depois de o termos “perdido”, lá o encontrámos de novo na descida… Afinal não se tinha perdido! Prosseguimos no bosque ainda por um bom tempo, sem-
Subimos muitas centenas de metros, continuamente. O terreno aumentava em exigência e dificuldade de progressão, mas isso foi amplamente compensando pelas paisagens e pelo dia luminoso, límpido e de cores fortes com que fomos
pre a subir, e finalmente saímos do meio das árvores para
brindados neste último dia. Estávamos nos 2.650 metros e
uma encosta, pendente acima, ao longo do Vall de Coronas.
ainda faltavam uns 750 metros de desnível. Íamos mais ou
O dia nasceu suavemente, dando contornos e distância ao
menos a meio.
horizonte, e assim além dos frontais já conseguimos ver os vultos um dos outros e encontrar com mais facilidade o percurso, agora já não tão óbvio pendente acima. Fez-se dia e desligámos os frontais, continuando sempre a subir,
A subida suavizava aos 2.750 metros quando passámos nos Ibons de Corones, um planalto de lagos a convidar a uma pausa mais do que necessária e merecida. Era o local
ascensão
53
#03
ideal para parar e sem dúvida uma óptima opção de pernoi-
bastante vertical e obrigava a encordoamento e progres-
te e bivaque. Grandes lajes deitadas e planas, um bálsamo
são em ensemble, trepando bastante até ao pequeno Colla-
para as pernas, que descansavam neste progresso macio
do de Coronas, aos 3.292 metros. Chegados a este pon-
e plano. Um pequeno interregno bem-vindo para preparar
to tínhamos vista para os dois lados da Espalda do Aneto
as pernas a voltar à carga da subida agressiva em cas-
e, atravessando para o outro lado da vertente, entrámos
calheira, na moreia glaciar, que se seguiu por mais algum
finalmente no glaciar. Dia soberbo, vistas deslumbrantes!
tempo! E foi com enorme alívio e satisfação que vi a neve. Atravessámos os primeiros neveiros, a princípio sem crampons, depois calçámo-los e fomos progredindo em terreno misto de rocha e neve por mais umas centenas de metros, sempre a subir. Que bom voltar à neve, a este tipo de progressão! Já estava com saudades e este é o ambiente que mais gosto. Que bom ouvir o som da neve debaixo dos nossos passos, num andar suave e amortecido! O terreno estava gelado, mas não demasiado, a progressão era fácil e des-
Céu azul, neve branca brilhante e pontinhos de cor na neve, cordadas de alpinistas que se aproximavam pela rota que vem do Refugio da Renclusa. E destes sobressaía um grupo diferente: uma equipa de filmagem (não sabemos com que propósito nem quem eram) aparentemente a acompanhar e a filmar uns quantos guias profissionais, um grande aparato! Passaram por nós, quando estávamos no Collado a comer qualquer coisa, a passar para encordoamento para glaciar, e foram-se mantendo à nossa frente até ao cume. Fomos acompanhando as suas andanças e filmagens.
contraída, os crampons fixavam-se bem e facilmente, sem
Entrámos no glaciar e subimos com entusiasmo pela espalda
grande exigência física ou difícil trabalho de pés…
do Aneto, uma boa subida, algumas rochas e blocos na par-
Aproximámo-nos da parede. A pendente era pronunciada,
te superior. Saindo do glaciar, novamente terreno misto, >>
divertido. Não deixo de me surpreender contudo pela quan-
Passámos sem dificuldades e chegámos finalmente ao
tidade de trekkers que, chegados a este ponto, abandona-
cume mais alto dos Pirenéus, encimado por uma cruz gi-
vam os crampons e subiam só em botas. A neve estava
gante, toda engalanada de cor, bandeirinhas e laços. Estava
mais gelada em alguns pontos, a pendente continuava a
muito satisfeita! Que bem me soube esta ascensão e que
subir e uma queda (bastava um pé mal colocado, um dese-
grande final para uma semana de actividade fantástica. Cla-
quilíbrio) poderia ser aparatosa e vertente abaixo, para o
ro que ainda tivemos que descer tudo, mais umas horas
glaciar. Seria o excesso de prática e de confiança? Ou não
de actividade, mas para baixo todos os santos ajudaram e
haveria risco? Como acho que os crampons ajudam e não
chegámos mais do que a tempo de apanhar o “bus das nu-
me incomodam nem é opção que me venha à cabeça.
vens” montanha abaixo!
Chegámos ao pré-cume, uma plataforma larga que antecede o Passo de Mahoma. Havia muita gente no cume, para além do grupo de filmagem. Há umas quantas duplas a passar o passo para regressar do cume. Aproveitámos para fazer uma pausa, para apreciar o momento, o sol a aquecer o corpo e a alma, e para comer e beber. Agora sim, os crampons eram totalmente desnecessários! Ver as vistas, tirar fotos e simplesmente estar, depois de tantas horas – umas seis horas a subir –, soube muito bem! O grupo de filmagem regressou, as duplas transpuseram o passo, e agora era a nossa vez. Deixámos crampons e mochilas, vamos encordoados, claro, pois este é um passo bastante aéreo e exposto. Uma espécie de ponte natural com um passo curto no vazio e uma trepada ligeira, não difícil tecnicamente, mas exposto ao abismo de um lado e do outro. Uma passagem psicológica por assim dizer… E de 54
facto senti umas borboletas no estômago, tanto de excitação quanto de medo!
#03
Foi uma semana muito intensa, bastante variada, com chuva, com sol, com percursos longos mas de beleza imensa, como já me estou a habituar nos Pirenéus. Anseio por uma próxima actividade nestes maciços! Faça chuva, neve ou sol! <>
ascens達o
curavacas
pe単a prieta
e
espiguete Fuentes Carrionas > Outubro 2013
56
#03
ascensão
57
#03
“A Montanha Palentina constitui a vertente meridional da Cordilheira Cantábrica, ocupando uma área de quase 1.000 quilómetros quadrados.” texto: Álvaro Reis fotografia: Pedro Guedes
Aqui situam-se alguns dos picos mais altos de toda esta cordilheira. Os 2.536 metros da Peña Prieta e os 2.525 metros do Curavacas superam mesmo a maioria dos cumes dos Picos de Europa. É uma das zonas de alta montanha mais bem conservadas e menos conhecidas da Península Ibérica, cheia de contrastes, com lagos, circos glaciares, vales e cumes incríveis. Sempre achei que percorrê-los seria uma jornada inesquecível. E foi!
58
#03
“...Curavacas, pelo Callejo Grande” O nosso projecto inicial era o de fazer a Integral de Fuentes Carrionas. Esta consistia em percorrer uma linha imaginária que une todo o maciço montanhoso, começando por escalar o Curavacas, seguindo pela Curruquilla, Hoya Contínua e atingindo o cume de Três Províncias pelo Alto de Ves. Daqui, seguir até ao cume da Peña Prieta, baixando depois até
meteorológicas para o primeiro dia eram desanimadoras: céu nublado e alguma chuva. Tendo que carregar sacos-cama, colchonete, fogão, gás, comida para três dias e material de escalada, tornou-se rapidamente evidente que poderíamos ter que alterar os planos. O plano B seria fazer os três cumes mais emblemáticos deste maciço (Curavacas, Peña Prieta e Espiguete), nos três dias disponíveis, pelas suas vias normais.
às Agujas de Cardaño. Depois continuar até ao Pico Lomas,
A ascensão do Curavacas, pelo Callejo Grande, é uma as-
Pico Cuartas, Peñas Malas, Zahurdias, Pico Múrcia e final-
censão dura, sobretudo pelo desnível que é preciso vencer
mente até ao Espiguete. São 35 quilómetros de itinerário
(2.408 metros de acumulado). São cerca de dez quilóme-
e um desnível de 3.500 metros, sem baixar praticamente
tros de percurso (ida e volta) e quase sete horas de acti-
dos 2.000 metros de altitude, tendo como ponto mais alto
vidade. Deixámos o carro na bonita povoação de Vidrieros,
a Peña Prieta.
numa pequena praça e seguimos por um trilho, bem evi-
Era um desafio de grande dureza e muito ambicioso. Decidimos fazê-lo em três dias, com dois bivaques pelo meio e todo o material às costas. Contudo, para ter sucesso, necessitávamos de bom tempo, muitos líquidos (quase não há pontos de água no percurso) e ir ligeiros. As previsões
dente, na direcção NO. Pouco depois, mudámos para outro trilho, na direcção N, rumo à base da montanha, cruzando algumas linhas de água. É uma aproximação lindíssima e a visão da face Sul do Curavacas, à medida que nos aproximamos, impressiona bastante. Parece inacessível, quase
ascensão vertical. Tem um tom esverdeado, “patine”, como diz a San-
em puro divertimento. Demorámos menos de 30 minutos
dra, com um tipo de rocha a que chamamos de conglome-
a descê-la. Pouco depois estávamos em Vidrieros, no café
rado, igual à dos Picos de Europa. São 9 horas e surgem as
da aldeia. Nessa mesma tarde, decidimos viajar para Car-
primeiras nuvens no céu, tal como indicavam as previsões
daño de Arriba, pensando já na ascensão da Peña Prieta,
meteorológicas. Olhando para o canal Sul, imaginei como
planeada para o dia seguinte.
seria escalar aquela via de Inverno, com neve e gelo, de crampons e piolets. Deve ser brutal! Lentamente, começámos a ganhar altura, até desembocar no Prado de Cabriles. Mais à frente, uma suave pendente cheia de pequenos blocos escorregadios retarda um pouco a nossa progressão.
A ascensão da Peña Prieta não apresenta qualquer dificuldade técnica mas é um percurso de longa duração e exige por isso um grande esforço físico. São quase 20 quilómetros de marcha, oito horas de atividade e um desnível acumulado de 1.710 metros. Deixámos o carro em
A visão do Curavacas, aos poucos, parecia menos ameaça-
Cardaño de Arriba pelas 16 horas e iniciámos a subida, por
dora. Senti-me mais confiante. Agora, era bem evidente a
um trilho bem sinalizado, a Senda de Lomas. Passámos pelo
via do Callejo Grande, que nos levaria ao cume. Percorre-
Refúgio de Montanha Espiguete e pouco depois cruzámos
mos uma pedreira que parecia não ter fim e que era algo
uma ponte, iniciando uma longa marcha, em contínua
difícil de ascender, com pequenas rochas brancas de vá-
ascensão, mas com vistas maravilhosas sobre um vale
rios tamanhos. Quando por fim ultrapassámos a pedreira,
bem vincado e agreste, com o Espiguete nas nossas
encontrávamo-nos já no meio da face Sul, abrigados entre
costas a receber as últimas carícias de um magnífico sol
imponentes escarpas rochosas e fomos trepando até ao
alaranjado. Não se via viva alma. Apenas nós nos movíamos.
ponto onde começa o Callejo Grande. Aqui o terreno é mais
Nós e as sombras destas montanhas que nos rodeavam.
cómodo, com degraus de rocha, terra e erva, embora mais
Aos poucos, as Agujas de Cardaño iam-se tornando mais
empinado. A via continua em direcção a um enorme monó-
definidas e percebi então a sua imponência. São quase 20
lito conhecido como o “Dente del Oso” que já vi em fotogra-
horas quando decidimos fazer bivaque junto a uma fonte,
fias. Apenas uns 200 metros nos separavam do passo mais complicado desta ascensão, que nos conduziria à face Norte. Fizemos um último esforço, uma trepada pequena, com muita cautela e concentração. Depois deste passo estreito, pudemos contemplar a face Norte da montanha e toda a paisagem de Fuentes Carrionas que se estendia aos nossos pés. Continuando, destrepámos alguns metros para logo depois continuarmos a nossa ascensão, por um corredor de cerca de 30 metros. Nesta fase, as nuvens que ameaçavam a nossa jornada há um par de horas, começavam a ficar mais escuras. Senti algumas gotas de chuva a cair no corta-vento e uma brisa desagradável. Esta passagem era um ponto-chave da nossa ascensão e a nossa única escapatória, em caso de mau tempo. Convinha por isso memorizá-la muito bem. Já só nos restava percorrer um trilho muito empinado, chamado “La Llana”, até ao cume. Pouco depois, atingimos os 2.525 metros do Curavacas. Nessa altura, o clima não era muito favorável aos nossos planos. Para o lado Sul, apenas nevoeiro. Para Norte, nuvens e algum sol. A passagem para a Curruquilla parecia muito complicada de se fazer, com mau tempo a ameaçar, aquela visibilidade e com as mochilas carregadas. Depois das fotos habituais e de alguma vontade para percorrer a aresta, decidimos baixar novamente a Vidrieros, pela mesma via da subida, abandonando em definitivo a ideia de uma Integral de Fuentes Carrionas. Ao chegar à parte mais baixa do Callejo Grande, a pedreira que tanto nos custou a subir transformou-se
na base do Pico Lomas, num local abrigado do vento. A fadiga era muita e as falas poucas. Depois da sopa e dos liofilizados, aterrámos literalmente nos nossos sacos-cama para um desligar quase automático. Dormi mal. Devia ter enchido melhor a colchonete. Por várias vezes acordei
59
nessa noite, comtemplando um dos mais belos céus que já vi na vida. Sinto pena de não perceber nada de astronomia. Poderia nessa noite ver todas as constelações da Via Láctea e maravilhar-me ainda mais com o que via. >>
#03
Aquele bivaque foi um hotel de mil e uma estrelas.
de Europa, o inconfundível Naranjo, a Peña Vieja, Torre de
Peña Prieta
a Cardaño de Arriba, pelo mesmo trilho. Ainda tínhamos al-
Cerredo e muitos outros. Era hora de descer e regressar gumas horas de marcha até ao carro.
60
Despertámos pelas 6 horas e com os primeiros raios de
O dia seguinte era dia de Espiguete. Já tinha escalado esta
sol, começámos a percorrer um trilho bem empinado, ser-
montanha em 2012, no Inverno, com muita neve, pela Ares-
penteando em direcção a um colo que nos iria permitir mais
ta Este (1.000 metros) e tinha sido magnífico. Desta vez, ía-
tarde a passagem para trás das Agujas de Cardaño. A uma
mos seguir a Via Normal ou Via Sul ou Via da Pedreira, des-
boa centena de metros de nós vimos dois veados. Estavam
de Cardaño de Abajo. São 12 quilómetros (ida e volta), 2.430
imóveis e pareciam não compreender a dificuldade que
metros de desnível acumulado e cerca de seis horas de
sentimos em progredir. Para eles, esta ascensão é uma
atividade. É um itinerário de uma dureza considerável, pelo
simples brincadeira. O Pedro tirou uma série de fotogra-
desnível, mas sobretudo por apresentar vários troços de
fias para gravar este momento único. Nesse colo deixámos
pedras soltas que dificultam muito a ascensão e tornam a
as mochilas e lançámo-nos numa penosa descida, por uma
descida algo complicada. Levámos uma corda, arnês, ca-
pedreira (mais uma), com o máximo de cuidado, para logo
pacete e uns mosquetões para termos mais segurança
depois fazer mais uma longa subida em direcção ao cume
na aresta final. Saímos de madrugada de Camporredondo
de Três Províncias (2.499 metros), a divisória natural en-
de Alba, onde dormimos, e deixámos o carro em Cardaño
tre Palência, Léon e Cantábria. Daqui já se avistavam os dois
de Abajo. Fizemos a primeira hora da nossa aproximação à
cumes da Peña Prieta, também conhecida como Pico de los
base do Espiguete por uma estrada de terra batida, a Nor-
Infiernos. Já estávamos bem perto! Meia hora mais tarde,
te da povoação, deixando-a a dormir tranquilamente. Esta
estávamos no cume da mais alta montanha deste Parque
estrada liga uma pequena localidade chamada Valverde de
Natural. A panorâmica é impressionante. Parecemos dis-
la Sierra. Depois de cerca de uma hora de marcha, noite
tantes de tudo. Havia um silêncio no ar fora do normal, ape-
cerrada, frontal ligado, caminhando por um denso bosque,
nas quebrado pelo correr de um fio de água que partia de
saímos para um pequeno prado que nos conduziu ao início
uma pequena lagoa lá em baixo e desaparecia no horizon-
da pedreira Sul, onde assistimos a um magnífico nascer do
te, junto à face Norte do Curavacas. Talvez o rio Carrión,
sol que revelou toda a beleza da face Sul desta montanha
penso eu. Estávamos os três mudos e quietos, pasmados
piramidal. É preciso prestar muita atenção às mariolas, nem
perante tamanha beleza. Esta montanha é única e vale mes-
sempre bem visíveis, para ganhar altura mais rapidamente.
mo todo o esforço realizado. Ao longe vêem-se os Picos #03
ascensão A pedreira é um verdadeiro desafio. São toneladas de pedras soltas, dois passos para cima, uma escorregadela e assim sucessivamente. Estamos constantemente à procura de solo firme evitando resvalar pela pendente. É uma ascensão penosa. Era inevitável pensar na descida e na dificuldade que nos esperava. Aos poucos iam-se definindo melhor o cume principal e o cume secundário. Já tinham passado quase três horas desde que saímos de Cardaño de Abajo. Parámos para descansar e hidratar à sombra de uma enorme parede de rocha de pedra branca. Fomos trepando por um canal com rocha mais firme e finalmente chegámos ao colo que separa os dois cumes. Daqui a vista da face Norte do Espiguete é impressionante. Mais ao fundo via-se bem o Pico Múrcia, a Peña Prieta e finalmente o Curavacas. Foi a visão mais bela da Integral de Fuentes Carrionas que eu poderia imaginar. Decidimos encordoar neste colo, junto a uma gigantesca mariola, para fazer a aresta final em segurança. São cerca de 200 metros de uma aresta muito aérea, com pendentes vertiginosas de ambos os lados mas que fizemos sem dificuldade, até ao cume.
O Espiguete é diferente de todos os cumes de Fuentes Carrionas. É um pico isolado de todos os outros e por isso parece ter algo de especial, exercendo sobre os montanhistas uma atracção e um fascínio difíceis de explicar. Já na descida, ao percorrer o prado na base da montanha, um enorme bando de águias veio despedir-se de nós, desenhando no ar voltas e mais voltas, num adeus que nunca esquecerei. A natureza é sempre bela e infinita e para mim, deixá-la intacta e pura, depois da nossa passagem, é o que mais importa. Serei assim digno de voltar um dia e de sentir de novo todas estas emoções.
Até breve, Montanha Palentina! <>
61
#03
62
#03
escalada
escalada
peña prado
via lago de la luna Barrios de Luna > Junho 2013
63
#03
“No sábado, dia 2 de Março de 2013, preparávamo-nos para mais um fim-de-semana de aperfeiçoamento técnico de Alpinismo.” texto: Maria Carronda fotografia: Carlos Araújo
Desta vez, o objectivo era a escalada do Esporão Oeste da Peña Ubiña. Reunimo-nos como já era habitual no Porto e fomos rumo a Espanha. Como sempre eu estava radiante, eufórica, pois ia poder estar no meio das montanhas e pôr em prática todo conhecimento adquirido num ambiente belíssimo e com companheiros fantásticos, cuja amizade se ia desenvolvendo com o decorrer do tempo.
“...sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar...” Chegando a Peña Ubiña fomos de imediato ver como estava o esporão, se apresentava condições para uma escalada em segurança. Não apresentava condições, conferenciámos e resolvemos ir para as Peñas Del Prado treinar técnicas de escalada de aderência, mas não sem antes passar pelo parque de campismo para fazermos o check-in.
revelava-se cada vez mais encantador a cada lanço que nos conquistávamos. Numa das reuniões apercebemo-nos do porquê do nome daquela via: “Via Lago de Luna”. É que daquela parede se avistava o Lago de Luna que ia aparecendo conforme íamos ganhando altitude, quase como se de um jogo de sedução se tratasse. Ora, uma vez que estava virada para a parede a escalar só a cada reunião se dava o reencontro de olhares entre mim e o lago. Não resisti a nenhum momento e deixei-me seduzir, encantar, apaixo-
até Peñas del Prado. O nosso objectivo era fazer o Via Lago
nar por aquelas montanhas de cada vez que parava. Mas
de Luna, uma parede com cerca de 240 a 250 metros, um
nem sempre foi sedução e, como qualquer ser apaixonado,
desafio que, confesso, nunca imaginei alguma vez fazer. Pa-
também eu senti respeito quase no limiar do receio. Mas os
rámos o carro, carregámos as nossas mochilas, o Carlos e
meus colegas estavam por perto e a força que me deram
o Pedro – os nossos instrutores – tiveram todo o cuidado
ainda hoje a recordo, as palavras de coragem foram ines-
em dividir o material todo entre nós e lá fomos até ao colo
quecíveis. Recordo que num dos lanços em que a parede
de Arralla. Chegando ao colo, lá estava a via à nossa direita.
ficava cada vez mais na vertical e lisa, mesmo a meio, a mi-
Eu sentia-me feliz, sentia que a montanha estava a aprovar
nha perna começou a tremer de forma incontrolável. Nunca
os meus passos. Não me perguntem porquê, só sei que sin-
tinha sentido isso. E gritei: “Carlos não me consigo contro-
to quando ela me quer por lá… Equipámo-nos e começámos
lar…”. Calmamente, ele respondeu: “Calma, pára, respira fun-
a nossa escalada. Eu ia na cordada do Carlos Araújo e do
do, acredita em ti, faz força na perna, tu consegues…”. E as-
Zé Nunes, observava atentamente todos os passos dados
sim fiz, respirei bem fundo, fiz força na perna e, meu Deus,
pelo meu instrutor, memorizava cada movimento, cada sa-
consegui. Passei… Cheguei à reunião. Não queria acreditar…
liência na parede, cada fissura, na tentativa de repetir logo
#03
revelava à nossa frente era de uma beleza incalculável e
No domingo de manhã levantámo-nos bem cedo e fomos
cada passo, pois a seguir ao monitor era a minha vez. 64
nião aproveitava para apreciar a paisagem, o vale que se
Enquanto via os meus colegas a escalar ficava cada vez mais encantada, eu estava a conseguir! Recordo também
Passei o primeiro lanço. Correu muito bem, a minha con-
de numa das passagem perguntar à minha colega Raquel:
fiança ia aumentando, pensava eu que se tinha conseguido
“Mas como é que vou passar aqui? Não tenho onde pôr os
até ao momento também conseguia o resto. A cada reu-
pés!”. E ela respondeu: “Olha, podes pôr aqui, aqui e aqui”.
escalada
65
#03
“Só falta dizeres que a parede é toda ela um apoio!!!”, respon-
assim que a sinto. Durante a descida ainda quis parar e ficar
di eu, ao que ela diz: “E é!”. Era mais uma pequena dificulda-
um pouco ali, mas seria pouco sensato e agi como o previs-
de, mas passei. Estava fora de mim. A partir dali os lanços
to, aplicando todas as técnicas de segurança que os meus
já eram mais fáceis, mais um pouquinho e chegávamos ao
instrutores me ensinaram. Chegando ao solo fui descendo
cume. Maravilha, fantástica a paisagem vista dali, parecia que as montanhas se erguiam à nossa frente para celebrarem connosco o cume. Chegaram um a um e a alegria e satisfação invadiam os nossos corações, as nossas almas. Eternizámos o momento com algumas fotografias, abraços e sorrisos e depois toca a preparar para a descida. A descida… Mais uma aventura se deparava à nossa frente, mais um desafio, já que desta vez era um rapel pendular de cerca de 60 metros. Confesso que senti um nervosinho no fundo da barriga, mas uma vontade enorme de descer… Embora sentisse o respeito pela montanha, sabia que ela me entendia e que sabia da paixão que lhe tenho. De alguma forma sabia, sentia a sua proteção e aprovação. Talvez seja uma forma muito sonhadora de ver a montanha mas é
lentamente enquanto os meus colegas iam descendo também. Aproveitei para tirar algumas fotografias, eternizando a paisagens e os momentos. Vinha feliz da vida, tinha feito algo que nunca tinha imaginado algum dia fazer e, melhor ainda, adorei. Na minha descida para os carros e no meu silêncio, declarei à montanha a paixão que lhe tenho, o prazer e alegria que sinto quando lá vou e prometi um dia lá voltar…
Regressámos ao parque de campismo, recolhemos as nossas tendas e voltámos para Portugal. O sorriso e satisfação estampados nos nossos rostos eram flagrantes, reflexo de um fim-de-semana fantástico com os objetivos alcançados. Foi inesquecível. <>
66
#03
escalada
escalada
frecha da
mizarela via do monitor Serra da Freita > Junho 2013
67
#03
“O montanhismo com corda, a progressão em arestas e a escalada clássica são algumas das actividades mais fascinantes que se podem viver na montanha.” texto: Álvaro Reis fotografia: Pedro Guedes
68
#03
“Aqui, a escalada clássica ganha o seu verdadeiro significado.”
dos e viver cada minuto como um momento irrepetível: uma dádiva imensa da natureza. Na Freita, vários picos ultrapassam os 1.000 metros de al-
De todas, a escalada clássica é a minha favorita. Para escalar em desportiva basta uma corda simples, uns expresses, um aparelho de segurança, dois ou três mosquetões com fecho de segurança e uma fita. Na clássica, carrega-se ainda toda uma panóplia de entaladores, friends, fitas, cordas e cordinos. A verdade é que todo este material torna-nos mais pesados e lentos. Em geral, o grau de dificuldade téc-
titude e para os escaladores, a Mizarela exerce uma atracção irresistível. A sua dimensão não é descomunal, mas impressiona qualquer um. As vias de escaladas são das mais bonitas e acessíveis da região, têm uma dificuldade máxima de 6a e decorrem ao lado de uma das mais imponentes quedas de água da Europa. Para mim, a grandiosidade deste espaço natural é brutal. Aqui, a escalada clássica ganha o
nica atingido é mais baixo do que nas vias desportivas, mas
seu verdadeiro significado.
há a dificuldade de carregar todo o material e estar longas
O trilho que nos leva ao início da Via do Monitor é das aproxi-
horas na parede, por vezes sem escapatória. A escalada
mações mais bonitas que já fiz. Vamos sempre a descer, no
clássica é a que se mantém mais fiel às origens da escalada
meio de densa vegetação, emaranhados por entre um caó-
e a sua pureza exerce em mim uma atracção profunda, há
tico arvoredo nas encostas da serra e, por fim, deparamolargos anos. Grandes vias desequipadas, ambientes natu- -nos com aquela que é uma das paredes mais emblemáticas rais fantásticos, cordadas em movimento, proteger a via, do nosso país. A via que vamos escalar tem aproximada-
colocar pontos de segurança, sentir a dificuldade da pro-
mente 100 metros, uma dificuldade máxima de V grau e pode
gressão, o desafio psicológico nos momentos mais arrisca-
ser escalada em dois ou três largos. Nós fizemo-la em dois.
escalada O primeiro largo começa à direita da cascata, numa plataforma onde cada um de nós espera pela sua vez e vai observando as dificuldades da via. A cerca de 15 metros do sítio onde me encontro, vejo logo uma grande laje incrustada na parede. Parece que se vai tornar a “crux” da via para toda a gente... O Pedro escala à frente, colocando vários pontos de segurança e rapidamente deixo de o ver. Vou comunicando com ele via rádio e ouço por fim a mensagem que esperava: “reunião!”. Começam então as duas cordadas a escalar e vou relatando as dificuldades sentidas por todos, via rádio. Depois dessa passagem mais difícil, uns metros mais acima, encontra-se a primeira reunião, numa pequena plataforma. Como sou o último dos escaladores, vou retirando o material fixado pelo Pedro e, claro, já sei que vou chegar ao final da via carregadinho como um pinheirinho de Natal. Já todos estão de pé numa estreita plataforma junto à reunião, onde cabem mesmo à justa, quando chego ansioso por dar aquele pulo final que me coloca junto aos meus companheiros de cordada e dar finalmente descanso aos meus pezinhos. Naquela hora, amaldiçoo aqueles que me disseram para comprar pés-de-gato dois números abaixo do que eu calço habitualmente! São 11 horas e já está muito calor. Felizmente, sentem-se na cara os salpicos gelados da magnífica queda de água. Descalço, sentado na plataforma, procuro o meu cantil para beber água e observar a paisagem incrível que nos rodeia. Deve ser esta a magia que fascina toda a gente na Mizarela, penso eu. É chegar a uma reunião, entalados naquele
desfiladeiro escarpado, tão minúsculos ao lado da imponente cascata que assume todo o protagonismo desta serra e sentir um arrepio ao ver a força das águas que se precipitam violentamente em direcção ao vazio lá em baixo… E ali, pendurado na parede, tenho a melhor panorâmica da região que se pode imaginar. Daqui vejo a serra como ninguém vê,
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com os seus enormes blocos de granito, as várias linhas de água a correr para o rio Vouga, trilhos antigos de pastores, rodeados de pinheiros, carvalhos e medronheiros e um manto de plantas e arbustos rasteiros, urze, giestas, carqueja, um intenso colorido que transforma estas encostas numa paisagem de sonho. Foi a procura destas sensações, que não consigo traduzir neste texto, a procura deste deslumbramento que me trouxe aqui… O segundo largo é bem agradável. São muitos metros de escalada, mas sem grande dificuldade técnica. Uma série de lajes, blocos, alguma pedra solta e suja, uma série de degraus com muita terra e ervas cheias de picos. A queda de água é uma presença constante e a altura começa a sentir-se, bem como o abismo nas nossas costas e a força da gravidade que parece querer empurrar-nos para um terrível mergulho. Embora a comunicação da cordada fosse bastante difícil, pelo barulho da água, o vento e a distância, lá nos entendemos e chegámos por fim a uma reunião montada num pinheiro e em friends, no fim da via. Juntaram-se nessa altura a fome e a fadiga e por isso foi só tempo de dobrar as cordas e procurar uma sombra para a merenda.
A Via do Monitor na Mizarela é sem dúvida uma via obrigatória. Foi para mim uma via de grande aprendizagem. Muitas outras se seguirão. Quem alinha? <>
#03
70
#03
ascensão passada
ascensão
agulha do tour,
tete blanche e
petit fourche Alpes > Junho 2010
“Escrever um texto sobre uma actividade que ocorreu há já bastante tempo tem o seu quê de piada.” texto: Raquel Carvalho fotografia: Oldemiro Lima
Esta em concreto passou-se há cerca de três anos e é giro verificar que a minha memória guardou mais informação do que eu estava à espera. Regresso agora a 2010.
71
#03
“... e agora não há volta a dar...” É a minha primeira actividade nos Alpes. Após ter feito o curso de alpinismo nunca pensaria em embarcar numa aventura destas assim tão cedo. Mas aconteceu e agora não há volta a dar… É a primeira actividade nos Alpes e há muita (mas mesmo muita) ansiedade; é a primeira actividade nos Alpes e surgem mil e uma questões que teimam em colocar os meus neurónios em actividade extrema; é a primeira actividade nos Alpes e não sei o que hei-de levar; é a primeira actividade nos Alpes e não sei o que pensar; é a primeira actividade nos Alpes e esperam-me três dias num refúgio; enfim, é a primeira actividade nos Alpes e há toda uma panóplia de emoções à flor da pele.
72
ma e não ser o primeiro a fazê-lo. Vou fazendo paragens pelo caminho para descansar, observar a paisagem, comer e beber qualquer coisa. O trilho que inicialmente não despertara qualquer interesse sobre a minha pessoa começa a agradar-me à medida que a altitude sobe e o ar se torna mais fresco. O horizonte começa a alargar-se e a vista das montanhas é fantástica. Há campos verdejantes, há neveiros, há montanhas, há neve, há uma moreira glaciar, há um rio a correr lá em baixo, enfim, observo tudo o que uma pessoa pode imaginar que existe nos Alpes. Passado um bom bocado de tempo (que de distância percorrida até nem deve ser muita) vislumbro o refúgio. Ainda está muito longe e está rodeado de neve. Estou cansada, penso que ainda falta muito para lá chegar. Apetece-me descansar por
Dormi mal e questiono-me se terei sido a única a tocar ao
um bom período de tempo mas não tenho outra alternativa
de leve no mundo dos sonhos. Mas agora é tempo de me
se não continuar a caminhar e a fazer pequenas paragens
despachar de modo a estar pronta à hora marcada. O ponto
para descansar, comer e beber. Finalmente chego ao re-
de encontro é na porta do prédio, de modo a podermo-nos
fúgio e no meio daquela gente toda, da confusão para ir ar-
dirigir para a paragem do autocarro que nos ia conduzir a
ranjar um caixote onde tenho de deixar as minhas coisas e
Le Tour. A primeira “aventura” seria a subida até ao refúgio
de encontrar um par de chinelos que me sirva para trocar
Alberto I. Claro que o Homem inventou uma coisa fantástica
pelas minhas botas, sinto-me completamente perdida. Ago-
que dá pelo nome de teleférico, mas para nosso azar está
ra a prioridade é descansar e hidratar até à hora de jantar,
fechado e não há mesmo outra alternativa para subir a não
pelo que uns se vão deitar enquanto outros aproveitam as
ser ir na carrinha do Armando: um pouco a pé, um pouco
mesas da “esplanada” do refúgio. Talvez por estar ali pela
andando. Está calor, o peso da mochila parece puxar-me no
primeira vez há uma série de coisas que hoje me recordo
sentido oposto ao da marcha e estou pela primeira vez na
bem. Uma delas foi mesmo o que comi ao jantar: sopa de
vida com botas de alta montanha nos pés e ainda me estou
cogumelos de pacote (há quem diga que era caseira mas os
a habituar a andar com elas. Por tudo isto vou indo devagar, #03
devagarinho. Temos tempo e o objectivo é chegar lá aci-
ascensão passada grumos de pó que encontrei na mesma não me deixam
fronteira suíça. A Agulha do Tour não se encontra já ali ao
partilhar dessa opinião) e um empadão de carne (que es-
virar da esquina e portanto há que meter mãos (neste caso
tava mais frio que quente). Outro pormenor interessante e
pés) ao caminho e continuar. Seguimos por um trilho entre
que ficou retido na minha memória é o facto do padrão dos
as pendentes de neve e o glaciar do Trient até chegarmos
edredões ser igual às fronhas das almofadas (e ainda hoje
a um maciço rochoso. Agora é necessário subir por ali
é). Deixo a mochila arrumada de véspera: o que é para levar
para se chegar ao cume. Na altura tinha medo de escalar
vai na mochila; o restante fica dentro do “tal” caixote no re-
e observar o aglomerado de rocha que se encontrava à
fúgio e deito-me cedo. Aqui o provérbio “deitar cedo e cedo
minha frente causou em mim algum receio. Pensei que
erguer” é levado à séria! Dormir numa camarata tem sem-
era algures ali no meio que iria ter um ataque de pânico
pre o seu “quê” de interessante: há sempre um concerto
e que as lágrimas me iriam cair. Respirei fundo e avancei;
de “ressonares” (uns são quase imperceptíveis e outros
o caminho era para cima. Há quem diga que o que custa
vêm directamente do inferno, sendo capazes de provocar
é começar e talvez seja mesmo isso. À medida que ia
avalanches); há sempre quem esteja a falar e há quem leia.
progredindo na rocha e me ia sentindo mais confiante fui
Assim sendo, para se dormir nada mais fácil do que possuir
esquecendo os receios que me assombravam ainda há
uma capacidade de abstracção fora do normal (e uns bons
uns momentos. Fomos subindo e finalmente chegámos ao
tampões para os ouvidos).
cume. Era o primeiro feito nos Alpes e encontrava-me à maior altitude que alguma vez tinha estado. A sensação de
“A subida até ao Col Superieur du Tour...”
ser uma formiga persistia em mim mas agora sentia-me uma formiga a 3.544 metros de altitude. O horizonte era bem largo e conseguia observar uma série de cumes; uns mais perto, outros mais longe. Encontrava-me por cima de
Já não me recordo das horas a que me levantei mas uma
algumas nuvens e havia um manto branco de neve lá em
coisa é certa: ainda era de noite. Quando saio do refúgio
baixo. Conseguia observar o glaciar do Tour de um lado e
não consigo perceber se vai estar frio ou não. Decido que o
o glaciar do Trient do outro. Tiram-se várias fotografias e
melhor é ir agasalhada e caso seja necessário tiro ou visto,
até eu, que odeio andar com máquinas atrás e carregar no
consoante o caso, camadas de roupa. Vou caminhando
botão de modo a captar certos e determinados momentos,
pela neve e devido à matinal hora ainda me encontro um
resisto ao meu instinto natural e registo em modo digital a
tanto ou quanto adormecida. Está escuro mas consigo ter
paisagem que me rodeia. Temos de esperar pelas outras
a percepção de que do meu lado esquerdo estão várias
cordadas e enquanto o fazemos aproveito para comer e
montanhas e que do meu lado direito está o glaciar do Tour.
beber mais qualquer coisinha. Quando chega toda a gente
Ao longe vêem-se as luzes de vários frontais das pessoas
é altura de se tirar a fotografia da praxe para depois se
que andam por ali. Caminham umas atrás das outras e ainda
começar a descer. Fui das primeiras a chegar e vou ser
são umas quantas; poderia dizer-se que é hora de ponta
das últimas a sair; e para sair vou ter de destrepar tudo
naquele local. O caminho que inicialmente era pouco inclinado
o que subi até ali. Penso para mim que se consegui subir
passa a ter uma inclinação mais significativa (ou então
sem “panicar” também vou conseguir descer. Dito e feito.
sempre foi assim e agora estou mais desperta e apercebo-
Passado um tempo encontro-me novamente na neve e
me melhor da realidade). Vamos fazendo pequenas paragens
não houve lágrimas a saltarem-me pelos canais lacrimais.
onde aproveito para beber água pelo tubo do camelback e
Agora é descer sempre pela neve até ao refúgio. Graças a
comer as barras que inteligentemente coloquei nos bolsos
uma aposta sobre as horas a que chegaríamos ao mesmo,
antes de sair do refúgio. O dia vai amanhecendo e como não
a descida foi realizada a um ritmo deveras interessante.
há nuvens nem nevoeiro consigo observar a paisagem que
Sei que vencemos a aposta mas a única coisa que me
me envolve. Estou rodeada por uma imensidão de neve e
recordo de ter ganho foi mesmo cansaço, umas bolhas nos
as montanhas que se encontram mais ou menos longe são
calcanhares e – a parte mais importante – a felicidade de
imponentes; no meio daquilo tudo sinto-me uma formiga.
ter superado a minha primeira ascensão nos Alpes. Agora
A subida até ao Col Superieur du Tour é mais acentuada
é tempo de arrumar material e descansar, já que no dia
e é altura de mudar os encordoamentos. Vamos subindo
seguinte há mais um cume para fazer. >>
a um ritmo mais lento. Quando acaba a subida é tempo de descansar e comer algo mais substancial. Fazemos uma paragem mais prolongada, o sol da manhã já se encontra mais alto dando à paisagem uma tonalidade completamente diferente, tornando-a ainda mais apelativa. Neste exacto momento estamos algures entre a fronteira francesa e a
73
#03
“Já estamos perto do cume...” Na segunda noite devido ao cansaço acumulado e à adaptação ao ressonar dos outros acabei por dormir muito melhor. Mais uma vez acordo cedo e constato que ainda é de noite. O ritual do dia anterior repete-se: a mochila já estava preparada de véspera, tomo o pequeno-almoço, lavo a cara e os dentes. Hoje o objectivo é o cume da Tete Blanche e da Petite Fourche. O caminho inicial é igual ao do dia anterior. O dia começa a clarear e quando as nuvens o permitem é possível observar o cume que iremos fazer e o glaciar que teremos de
74
#03
meus pés enterram-se na neve a uma maior profundidade do que o expectável e há um glaciar para atravessar. Talvez por inconsciência ou por estar a absorver tudo o que me rodeava e todas as sensações novas que estava a viver naquele momento, a passagem pelo mesmo não me causou grande preocupação. A descida foi feita com a celeridade que era possível, mas antes ainda subimos ao cume da fácil Tete Blanche. Quando finalmente coloco os pés no já conhecido trilho que nos leva até ao refúgio sinto-me aliviada. A actividade estava a terminar e poderia finalmente descansar nem que fosse por breves momentos.
atravessar. As crevasses encontram-se cobertas pela
Chegamos ao refúgio e, antes de arrumar tudo na mo-
neve e seguimos pelo trilho já marcado. Ao mesmo que
chila e preparar-me para a descida até Le Tour, bebo
me desloco sobre o glaciar, vou olhando para o cume
uma coca-cola de modo a ganhar energia. A mochila
e traço uma linha recta até ele, dando-me a sensação
agora pesa um pouco menos pelo facto de ter ingeri-
que talvez não esteja assim tão longe. No entanto, como
do a comida que levava para os três dias de actividade.
há obstáculos a contornar (nem que seja uma pendente
Vou descendo pela neve ao mesmo tempo que pensava
de neve mais inclinada), o caminho torna-se muito mais
que agora ia custar menos. Mas os meus pensamentos
longo e a linha recta traçada ingenuamente transfor-
revelaram-se completamente falhados: enquanto des-
ma-se num trilho de curvas e contracurvas. O cansaço
ço pela neve tudo bem, mas assim que coloco os pés
acumulado dos dias anteriores começa a fazer efeitos
em solo firme começo a sentir as bolhas que tenho nos
e vou caminhando ao ritmo que o meu corpo me per-
calcanhares e que entretanto já rebentaram. Cada vez
mite. Mais uma vez as pequenas paragens fazem com
que dou um passo sinto dor e a prova de que me cus-
que consiga descansar um pouco, beber água e, lá está,
ta a andar é que a determinado momento escorrego e
comer. Já estamos perto do cume e falta “apenas” ul-
não me consigo equilibrar, pelo que caio. Pronto, tenho
trapassar uma pendente de neve e uns blocos de rocha.
dores nos pés e ainda há muito para andar (e um auto-
Vou subindo e ao mesmo tempo que me vou aproximan-
carro para apanhar), ameaça chover e já tenho o imper-
do vou interiorizando que “se consegui ontem, também
meável vestido, e agora a cereja no topo do bolo é ter
vou conseguir hoje”. Já me encontro junto aos mesmos
caído em cima de água e sentir o rabo e as pernas mo-
e sem hesitar começo a subir. Há uma passagem de
lhadas – que bom! Vou andando ao mesmo tempo que
maior dificuldade e, por muito que coloque os pés nos
tento abstrair-me da dor que sinto. Para tal, vou obser-
sítios que desejo, escalar de crampons também não é
vando a paisagem que me rodeia e penso na panóplia
tarefa fácil. No entanto, e graças à minha persistência,
de sensações e superações pessoais por que passei
consigo vencer o obstáculo e chegar ao cume. É nes-
durante estes dias.
te preciso momento que os meus sensores olfactivos detectam um cheiro familiar – cheira, e muito, a cerveja. Parecia que tinha acabado de terminar ali mais uma noite da Queima. Ultrapassado este impacto inicial é tempo para apreciar a paisagem que me rodeia. Infelizmente neste dia o sol encontrava-se atrás de um manto de nuvens e só de vez em quando é que consigo dar uma espreitadela por entre as mesmas. Quando isso acontece observo por breves momentos a paisagem que se encontra mais distante. Mais uma vez sinto-me uma pequena formiga; estou naquele cume mas há outros mais ou menos imponentes à nossa volta. Após toda a gente chegar lá em cima, repete-se mais uma vez a foto da praxe antes de regressarmos ao refúgio. Durante a descida, o sol já ia alto e a neve encontrava-se fofa. Os
Continuo a descer, mas agora também já me começam a doer os joelhos pelo que ando cada vez mais devagar. Faço uma pequena paragem junto ao teleférico (que obviamente e para meu azar continua fechado) antes da última descida e só me apetece continuar eternamente sentada e dizer: “Desisto! Venham-me buscar”. Para ajudar à festa começa a chover. Como sei que não posso ficar ali e não me surgem outras alternativas, levanto-me e sigo caminho. Perante as condições adversas, a minha força anímica cai drasticamente e começo a questionar o que é que estou ali a fazer, que o alpinismo afinal não é coisa para mim, que não precisava de estar ali a sofrer, que podia estar mais confortável e passar esta semana de férias de modo diferente. Mas não… Fui
ascens達o passada
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de livre arbítrio para ali e agora tinha que arcar com as consequências, sejam elas quais forem. Assim que vislumbro o fim da descida, foi como se tivesse visto a luz ao fundo do túnel (e não, não era um camião que vinha na minha direcção) e ganho novamente ânimo. Começo a interiorizar tudo o que se tinha passado durante aqueles três dias. Tinha feito duas ascensões: as minhas primeiras nos Alpes. Durante as mesmas tinha sentido cansaço, receios e alguma adrenalina, tinha superado obstáculos que nunca pensaria que iria superar e sentia-me muito contente por isso.
Finalmente estou de regresso ao apartamento, estou encharcada, estou cansada, tenho uma fome do tamanho do mundo e preciso de um banho relaxante. Tenho os calcanhares em carne viva devido às bolhas que rebentaram e que me irão incomodar nos restantes dias chegando mesmo a dar-me um andar à Robocop. Mas, por muito incrível que pareça, estou feliz. 76
O bichinho do alpinismo já tinha sido despertado em mim aquando do Curso de Iniciação, mas depois destes três dias de actividade acordou mais um pouco. As sensações que tenho durante estas actividades são indescritíveis e só quem passa por elas é que sabe do que estou a falar. Custa sair da nossa zona de conforto mas assim que o fazemos não queremos outra coisa. Assim sendo, venham mais dias de actividades como esta! <>
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