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II — João e os evangelhos sinóticos
evangelista, reforçando assim conscientemente a ilusão dos leitores de que eles estariam lidando com o discípulo João. Uma acusação dessas contra o autor e os editores do evangelho segundo João teria de ser alicerçada sobre razões incontestáveis que demonstrem de modo irrefutável que o apóstolo João não pode ser o autor do evangelho. Será que existem essas razões? O fato de que elas realmente não podem existir já decorre da circunstância de que pesquisadores como F. Godet, T. Zahn, A. Schlatter e outros estão convictos de que o apóstolo João é o autor desse evangelho. Diante de provas realmente inequívocas a favor da não autenticidade do Evangelho de João eles também teriam de se curvar.
2 — O que acontece com a atestação eclesiástica do Evangelho de João? Abordemos, porém, mais de perto as perguntas e constatemos inicialmente o que acontece com a atestação eclesiástica do Evangelho de João. a) A notícia direta mais antiga sobre o surgimento do Evangelho de João ocorre em Ireneu, o mais importante pai apostólico da igreja antiga. Ireneu é oriundo da Ásia Menor e em 178 d. C. tornou-se bispo de Leão, no Sul da França. Em sua obra principal “Contra as Heresias”8 ele declara que João, o apóstolo, teria vivido na Ásia Menor até a época de Trajano (98-117 d. C.). “Depois (após os sinóticos) também João, o discípulo do Senhor, que também se reclinara sobre o seu peito, por sua vez publicou um evangelho, enquanto vivia em Éfeso na Ásia Menor.” Esse evangelho seria dirigido especialmente contra o gnóstico Querinto, contemporâneo do apóstolo, e contra os nicolaítas. De onde Ireneu obteve seu conhecimento? Ele se apoia no bispo Policarpo de Esmirna, que aos 86 anos morreu como mártir, em 155 ou 166. Ireneu conheceu Policarpo em vida. Não somente se recorda de que Policarpo mencionou João e outros discípulos de Jesus, mas ainda se recorda de detalhes do que Policarpo ouviu de João a respeito de Jesus, de seus milagres e seu ensino.9 Logo a notícia de Ireneu sobre João e seus escritos possui um fundamento sólido. Ela se alicerça sobre as informações de uma pessoa que ainda manteve contato pessoal com o apóstolo João.10 b) Acontece que a esse testemunho de Ireneu contrapõe-se uma declaração de Papias, citada por Eusébio em sua História Eclesiástica (III,39), em um prefácio à obra sobre as “palavras do Senhor”.11 O que chama atenção no comentário de Papias é que cita duas vezes um “João”. Uma vez ele aparece numa lista dos apóstolos conhecidos. Depois é mencionado um “velho João” ao lado de um Aristião, do qual não temos outras informações. Portanto, será que houve dois homens com o nome de João, que eram conhecidos dos informantes de Papias, dos quais Papias podia obter notícias seguras sobre Jesus?
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Muitos pesquisadores responderam afirmativamente a essa pergunta. Por isso fazem a distinção entre um “presbítero” João e o “apóstolo” e filho de Zebedeu. Consequentemente, pensam que deve ter sido esse “presbítero João” que viveu em Éfeso, em idade avançada, nos dias de Trajano, redigindo o evangelho. Por razões compreensíveis, ele rapidamente teria sido confundido com o conhecido apóstolo João, ao qual teria sido atribuído tudo o que na verdade apenas poderia ter valido para o “presbítero”.
8 Ireneu, “Adversus haereses”, traduzido ao idioma alemão na “Bibliothek der Kirchenväter” 2ª ed. 1911ss. 9 Cf. a carta de Ireneu ao gnóstico Florino, transmitido por Eusébio em sua história da igreja, V 20. 10 F. Büchsel opina: “Essa tradição possui em Policarpo um excelente fiduciário e somente carece desse um para ligar Ireneu a João. Por isso merece nossa melhor confiança. Apenas razões especialmente fortes poderiam contrapor-se a ela” (NTD, vol. IV, 1949 p. 22).
Contudo, mesmo que essa suposição fosse correta, não ficaria solucionada a verdadeira dificuldade, por causa da qual o presbítero João foi saudado com certo alívio como autor desse evangelho. Pois o problema não reside tanto na afirmação de que justamente o filho de Zebedeu teria escrito o evangelho segundo João, mas sim no fato de que o autor teria sido discípulo e testemunha ocular. E justamente isso não muda se o segundo João for o autor do evangelho, pois esse nem é um “presbítero”. Em Papias, o termo grego “presbýteros” não designa um cargo eclesiástico, mas a participação na primeira geração que ainda conheceu o próprio Senhor. “Quando, porém, chegava de viagem alguém que tinha seguido aos velhos (aos “presbýteroi”), sempre indaguei pelas palavras dos velhos (“presbýteroi”), o que André ou Pedro afirmaram ou o que Filipe ou Tomé ou Tiago ou João ou Mateus ou qualquer outro dos discípulos do Senhor disseram.” É exatamente dessa maneira que esse segundo João é chamado de “o velho” (“presbýteros”). Logo, também ele faz parte da primeira geração. Por isso ele também é designado, da mesma maneira que André, Pedro, etc., como “discípulo do Senhor”. Portanto ele andou, como André, Pedro e os demais, com Jesus e é testemunha ocular e ouvinte direto. Somente por isso é que os informantes de Papias podem dar valor ao que ele “diz”, e equipará-lo com o que André, Pedro, etc. “disseram”. Em outras palavras: Ainda que tenha existido esse segundo João e que ele tenha redigido o evangelho, esse livro foi composto por uma pessoa da primeira geração, por um discípulo e testemunha ocular. A “questão joanina” de forma alguma recebe, assim, uma “solução” simples. No entanto, será que Papias de fato pensou em dois homens diferentes com o nome de João? Isso se torna extremamente improvável, tão logo nos conscientizamos de que a ambos é dada exatamente a mesma caracterização. Ambos são “velhos” e ambos são “discípulos do Senhor”. Logo, ambas as frases de Papias devem estar falando da mesma pessoa. Por que, então, a dupla menção? Pois bem, apesar da igualdade da designação, há em ambas as declarações de Papias uma diferença, que deve ser considerada, a saber, a diferença no tempo verbal da declaração. Na série de apóstolos citados em primeiro lugar o verbo está no passado: “Eles disseram”. Em relação a Aristião e João, no entanto, aparece a forma do presente: “Eles dizem”. Não podemos perder de vista o objetivo de Papias. Ele visa mostrar-nos seus fiduciários, dos quais ele próprio aprendeu. E entre esses fiduciários ele distingue dois grupos. Aos do primeiro grupo ele podia perguntar o que André, Pedro, etc. lhes “disseram” no passado. Junto aos do segundo grupo ele podia se informar o que “dizem” agora os discípulos do Senhor, Aristião e João. Ou seja, ele conhece pessoas que no passado tiveram contado com todos os apóstolos, entre os quais obviamente também está João. Porém conhece igualmente pessoas que agora ainda tinham a oportunidade de falar com os últimos sobreviventes da primeira geração. Além de Aristião, esses sobreviventes incluem também o “velho João”. Justamente por ter se tornado particularmente idoso entre os discípulos do Senhor, ele recebeu o nome honorífico “o velho”, com o qual ele também se apresenta em sua 2ª e 3ª carta. A tradição eclesiástica, que por meio de Ireneu remonta ao discípulo de João, Policarpo, atribui inequivocamente o evangelho ao apóstolo João e não está sendo enfraquecida, mas fortalecida pelas declarações de Papias de que dispomos.
11 Papias foi bispo em Hierápolis na Frígia e escreveu sua obra “Explicação das palavras do Senhor” na época entre 120-160 d. C., da qual foram preservados apenas poucos fragmentos em citações por outros autores.
3 — Será que Marcos (Mc 10.39) refuta a autoria de João? Entretanto, será que a autoria do filho de Zebedeu não é refutada de uma maneira muito simples? Na realidade, em Mc 10.39 é profetizado o martírio para ambos os filhos de Zebedeu.12 Para pesquisadores críticos, essa profecia obviamente constitui um “vaticinium ex eventu”, i. é, uma profecia que foi colocada na boca de Jesus somente porque João de fato foi executado nos primeiros tempos, assim como seu irmão Tiago. Porém, será que dispomos de uma prova qualquer que seja convincente acerca desse martírio precoce de João? Não é o caso. Atos 12.2 somente fala da execução de Tiago. Por ocasião do “concílio dos apóstolos” (At 15), João ainda se encontra com o apóstolo Paulo, sendo uma das colunas da igreja de Jerusalém (Gl 2.9). E quem quer que tenha escrito o “pós-escrito” desse evangelho, jamais poderia ter apontado, em Jo 21.22, para uma vida especialmente longa do apóstolo, se todos soubessem da morte de João nos primeiros tempos.
Jesus anunciou a todos os seus discípulos que sofreriam por causa do Seu nome (Mt 10.17-22;Jo 16.1s). Em Mc 10.39 Jesus, portanto, não visa destacar o sofrimento futuro dos filhos de Zebedeu como algo extraordinário. Está anunciando a ambos a sorte geral dos discípulos, porque haviam-no interrogado sobre o lugar de honra no reino de Deus. Contudo, o caminho concreto do sofrimento de cada um dos discípulos permanece em aberto. O cálice e o batismo do sofrimento estavam reservados a todos os discípulos, ainda que para cada um deles o sofrimento tivesse uma forma distinta. Consequentemente, Mc 10.39 não comprova necessariamente uma morte precoce de João pelo martírio.13
As dúvidas sobre a autenticidade do Evangelho de João, porém, não brotam dessas observações esparsas. Há outras razões subjacentes ao fato de que tantos teólogos repetidamente contestam a redação apostólica desse evangelho. Elas se situam na diferença de João para os “sinóticos”,14 que forçosamente chama a atenção de todo leitor atento da Bíblia. É dessa questão que trataremos agora num item específico.
II — João e os evangelhos sinóticos
1 — Esquema da atuação de Jesus Há uma diferença flagrante no esquema da atuação de Jesus. Nos sinóticos forçosamente temos a impressão de que essa atuação durou apenas cerca de um ano e transcorreu completamente na Galileia. Somente uma única vez durante sua atuação pública Jesus vem para Jerusalém, para um passá que lhe acarreta a morte.15
Em contrapartida, de acordo com o exposto por João, Jesus vai logo no início de sua atuação ao passá em Jerusalém (Jo 2.13), atuando ali e na Judeia. Obviamente João também tem
12 Esse na realidade constitui o principal argumento para R. Bultmann. “Em todos os casos, o apóstolo João não pode ser considerado como autor, pela simples distância de João da tradição antiga, mas também porque João, filho de Zebedeu, já foi morto muito cedo pelos judeus, como se depreende de Mc 10.39 e é confirmado por alguns testemunhos da igreja antiga, sobretudo por um fragmento de Papias, cuja autenticidade como tal não pode ser posta em dúvida.” R. Bultmann, em RGG 3ª ed. Vol. III, col. 849. 13 O historiador da igreja Filipe de Side (por volta de 430) alega naturalmente que teria lido em Papias que: “João, o teólogo, e seu irmão Tiago foram assassinados pelos judeus.” A mesma tradição retorna num cronista do séc.
IX. Nós, porém, não temos como comprovar essa afirmação. Pode ser baseada em equívocos. Em todos os casos, essas referências tardias e impossíveis de verificar não são capazes de refutar as afirmações do próprio evangelho e a atestação eclesiástica antiga. 14 Sem considerar todo o “material exclusivo” em cada um deles, Mateus, Marcos e Lucas em boa proporção fazem uso do mesmo acervo de palavras e feitos de Jesus. Muitas vezes coincidem literalmente ou denotam apenas diferenças relativamente pequenas. É por isso que os três podem ser compilados numa “visão conjunta”, em grego “sinopse”. Em função dessa possibilidade de uma “sinopse”, eles são chamados de “sinóticos”, motivo pelo qual também se fala dos “evangelhos sinóticos”. 15 No presente livro “passá” é escrito sem ‘h’. Sobre a questão, remeto ao livro de Joachim Jeremias, p. 9 “Die
Abendmahlsworte Jesu”, EVA Berlim.
conhecimento de uma atuação reiterada de Jesus na Galileia (Jo 1.43-2.12; 4.43ss; 6,1ss). Contudo, repetidamente (Jo 5.1s; 7.10ss; 10.22ss) Jesus se encontra em Jerusalém para as grandes festas, antes de marchar solenemente para dentro da cidade para o último passá (Jo 12.12ss). Os discursos e as controvérsias decisivas com Israel16sucedem em Jerusalém. Conforme essa descrição de João, a atuação pública de Jesus deve ter durado cerca de três anos.
Nenhum dos “evangelhos” tem o objetivo de nos fornecer uma “biografia” de Jesus no sentido moderno. Também João seleciona, da plenitude do que haveria para relatar acerca de Jesus (Jo 20.30; 21.25), aquilo que poderá conduzir seus leitores de forma singular para a fé ou fortalecê-los nela. Também o seu evangelho é “proclamação”. Contudo, enquanto os sinóticos não dão valor à exatidão histórica da “moldura”, mas estão tomados pela importância de sua “matéria”, João se mostra como o discípulo e testemunha ocular direta, relatando involuntariamente o transcurso cronológico da atuação de Jesus de tal maneira como de fato aconteceu.
2 — Divergência dos sinóticos Em vista dessa diferença, não causa surpresa que João divirja dos sinóticos também no material apresentado pelo seu evangelho. É bem verdade que João informa sobre a atividade de Jesus na Galileia, descrevendo o milagre da multiplicação do pão e como Jesus anda por sobre o mar. Contudo, em João procuraremos em vão as palavras e parábolas de Jesus, tão conhecidas dos sinóticos. Muitas curas, exorcismos e atos de poder, dos quais os evangelhos sinóticos estão repletos, não se encontram em João. Pelo que parece, João pressupõe o conhecimento dos outros evangelhos na igreja.17 Não repete o que a igreja já sabia, nem sequer a instituição da santa ceia. Em troca, ele fornece atos e discursos de Jesus que os sinóticos não relatam, pela simples razão de que não dirigem seu olhar para Jerusalém. Os três grandes milagres (cura de um enfermo no tanque de Betesda, cura de um cego de nascença e ressurreição de Lázaro), que se revestem de importância especial por causa da luta de Jesus com os círculos dirigentes de seu povo, acontecem na área de Jerusalém. Do mesmo modo, os grandes discursos e controvérsias nos capítulos 5, 7, 8 e 10 são integralmente determinados pela conjuntura de Jerusalém.
Em consequência, não cabem objeções a essas partes do evangelho pela mera razão de que apenas João as traz. Da plenitude do material, apenas uma fração foi selecionada e anotada pelos evangelistas, do que justamente João tem consciência (Jo 20.20; 21.25). João apresenta em seu evangelho aquilo que servia para explicitar a atuação decisiva em Jerusalém. Na diversidade do material, pois, não se configura uma prova da “não autenticidade” desse evangelho.
3 — Os discursos de Jesus, um contraste entre João e os sinóticos? No entanto, se entendemos e reconhecemos tudo isso, será que não existe apesar disso um contraste intransponível entre João e os sinóticos nas apresentações dos discursos de Jesus? Seria possível que Jesus falou ao mesmo tempo da forma como relatam os sinóticos e assim como o constatamos em João? Em João há longos discursos que têm por tema o próprio Jesus, sua pessoa e sua importância. Lá nos sinóticos, seguindo o estilo da Palestina, ocorrem ditos
16 No comentário também utilizamos repetidamente essa designação histórico-salvífica. A expressão “o povo judeu” poderia causar a impressão falsa de que Israel seria um povo ao lado de muitos outros. É claro que Israel é isso também. Contudo, destaca-se significativamente de todas as demais nações por meio de sua eleição e destinação na história da salvação. Não é preciso mencionar especialmente que no presente livro nos referimos apenas ao
Israel do tempo de Jesus, e não ao atual Estado de Israel. 17 Isso se torna especialmente claro quando em Jo 3.23ss ele remete a uma referência dos sinóticos (Mc 1.14; Mt 4.12) e a conserta a partir do seu conhecimento. Por isso João também diverge dos sinóticos na indicação do dia da morte e do horário do falecimento de Jesus. Cf. o comentário a Jo 13.1s; 18.28; 19.14.