[ poesia vinte e um ] uma antologia portátil de vinte e um novos poetas para vinte e um de março, dia mundial da poesia MIGUEL-MANSO VASCO GATO ANTÓNIO CARLOS CORTEZ CATARINA NUNES DE ALMEIDA DANIEL JONAS FILIPA LEAL JOÃO HABITUALMENTE JOÃO NEGREIROS JORGE SOUSA BRAGA JOSÉ MIGUEL SILVA JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA LUÍS QUINTAIS MANUEL DE FREITAS MIGUEL CARDOSO PEDRO AFONSO PEDRO MEXIA RUI CÓIAS RUI PIRES CABRAL TIAGO GOMES TIAGO NENÉ VALTER HUGO MÃE
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Selecção, organização e nota introdutória | Paulo Pires [no âmbito do projecto de continuidade de promoção interdisciplinar da leitura para o ensino secundário “A outra face da lua”] Março de 2011
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| NOTA INTRODUTÓRIA Estás só, por isso estás comigo. Jorge Roque A poesia de cada dia nos dai hoje Adília Lopes A poesia moderna, no nosso tempo, não é de acesso mais difícil do que a poesia de qualquer outra época. Eugénio de Andrade Realmente es muy parecida la forma que todos tenemos de sentirnos originales. Luis García Montero
Hesitei bastante, por razões várias, em relação ao tipo de introdução a redigir para esta antologia. Empurrando para longe a minha tendência mais imediata e epidérmica, nestes casos, para abordagens detalhadas e prolixas, que não me parecem fazer sentido no presente formato (que se pretende tanto quanto possível portátil e panorâmico, q.b.), decidi-me por uma nótula inicial mais breve e sistemática, que se pode resumir em cinco tópicos essenciais: I A ideia de elaborar esta antologia prende-se com duas questões fundamentais: a existência de um projecto de continuidade de promoção da leitura denominado “A Outra Face da Lua”, que a Biblioteca Municipal de Silves vem dinamizando na Escola Secundária de Silves desde o ano lectivo de 2009-2010, com o apoio incansável e precioso dos respectivos docentes da disciplina de Português, e que se destina aos alunos do 10.º ano de escolaridade (ensinos regular e profissional) daquela instituição, o qual pretende, apresentar, em moldes dinâmicos e atractivos para um público jovem, diversos instrumentos, estratégias e perspectivas, mormente interdisciplinares, de abordar, alargar e complementar os conteúdos dos programas oficiais ao nível da Literatura. Nesta linha, a acção 4 do referido projecto (a realizar em Março/Abril de 2011) contempla precisamente um enfoque na nova poesia portuguesa, daí, a nosso ver, a pertinência de facultar a docentes e alunos uma ferramenta de trabalho (e de lazer) que possa fornecer uma visão diversificada, abrangente e actualizada do panorama poético mais recente em Portugal, somando-se ainda a circunstância de, no âmbito do mesmo projecto, os poetas Vasco Gato e Miguel-Manso virem a Silves
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participar quer no concurso de leitura em voz alta organizado pela Escola Secundária, quer no Sarau Instável promovido pela Biblioteca Municipal; o segundo motivo tem a ver com o facto de não estar disponível, no actual mercado livreiro, nenhuma antologia poética dedicada exclusivamente aos principais poetas portugueses que começaram a publicar nas últimas décadas, visto que a compilação feita por Jorge Reis-Sá em 2004 (Anos 90 e Agora) encontra-se fora de mercado devido à extinção da respectiva editora, a Quasi, e a antologia organizada por Manuel de Freitas em 2002 (Poetas sem Qualidades), pela editora Averno, está há muito esgotada. II A presente antologia incide privilegiadamente sobre poetas que começaram a publicar a partir dos anos 90 do século XX, exceptuando-se o caso de Jorge Sousa Braga, que remonta aos oitentas. Foram escolhidos 21 autores, por uma questão de coerência e coincidência numéricas em relação quer ao Dia Mundial da Poesia (21 de Março), quer ao novo século (XXI) em que vivemos e que vê nascer esta compilação. Daí também o título genérico deste trabalho: poesia 21. III Os leitores mais familiarizados com a poesia que se vem publicando em Portugal poderão sempre interrogar-se: porquê estes e não outros autores/textos? Há várias respostas, que, no fundo, se complementam entre si. Em primeiro lugar, terei de invocar um lugar-comum: qualquer intuito de seleccionar textos destinados a outro(s) não consegue (nem deve, penso eu) ficar completamente imune ao gosto pessoal do organizador, que, na minha opinião, deve ser plenamente assumido. Sou um ávido e compulsivo leitor de poesia, quer pessoalmente, quer, em termos profissionais, como programador e mediador de leitura, e as escolhas aqui patentes (ao nível dos poetas, dos textos e de uma maior ou menor quantidade de poemas apresentados de cada autor) reflectem também mas não só a minha predilecção por certos estilos, temas, mundividências e musicalidades do texto poético mais recente. A esta primeira condicionante soma-se um outro factor, ligado ou não ao primeiro: o reconhecimento isento e, tanto quanto possível, objectivo da qualidade literária intrínseca de certos poemas e da originalidade e versatilidade dos respectivos autores textuais (e não empíricos/biográficos), independentemente de integrarem ou não o meu universo de preferências. Um terceiro aspecto crucial: a necessidade de escolher textos adequados, no sentido de atractivos (porque lúdica ou criticamente desconcertantes e/ou emocionalmente “desarmantes” ao nível das temáticas, perspectivas e linguagem empregues), para um público jovem a partir dos 15/16 anos, com tudo aquilo que isso acarreta de subjectivo e complexo, tendo em conta os perfis e interesses relativamente diversos e ecléticos dos actuais estudantes. Refira-se ainda que outros autores, como Adília Lopes (pela sua criatividade parodística face às convenções do poético), Helder Moura Pereira
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(atente-se na narratividade da sua poesia) [ambos iniciados ainda antes dos anos 90], Maria do Rosário Pedreira, Ana Luísa Amaral ou Daniel Faria – só para citar os que me parecem mais interessantes para trabalhar com público juvenil –, caberiam igualmente numa selecção com estes propósitos. Por outro lado, sabendo de antemão dos diversos preconceitos/estereótipos que ainda grassam junto de muitos jovens relativamente ao texto poético em geral e à sua maior ou menor facilidade de descodificação semântico-ideológica, também tentámos eleger poemas que primassem, nas suas estruturas temática e formal, por um equilíbrio tanto quanto possível razoável entre um imperativo, incontornável, de qualidade estética (sem ceder a facilitismos redutores e atrofiantes) e uma transparência discursiva ao nível da mensagem veiculada. Aliás, como já apontaram vários estudiosos, a partir nomeadamente do 25 de Abril, e com a emergência de uma nova geração que é produto de uma educação já sob o auspício de parâmetros democráticos, tem-se caminhado para uma poesia mais directa, ligada a um novo sentido de realismo que, no limite, será apenas o uso da linguagem na sua literalidade (confundindo-se quase, em certos casos, com o prosaísmo), sem influência de filtros simbolístico-metafóricos ou ficcionalmente alegóricos. De facto, mais recentemente assistimos mesmo ao gradual florescer de uma escrita poética despida de formalismos ligados à Tradição, a qual parece querer afirmar-se “limpa” do ponto de vista retórico (mais preocupada em afirmar do que em sintetizar ou visualizar, como notou em tempos Joaquim Manuel Magalhães), indo assim ao encontro de um objectivo de transparência – isto ainda que, por outro lado, alguns autores da nova geração continuem, de facto, a dialogar (e reinventar), em registos diversos, com a tradição literária anterior aos anos 70. Relativamente aos autores contemplados nesta antologia, há que sublinhar ainda alguns aspectos que me parecem relevantes: – incluí poetas já reconhecidos e mais ou menos consagrados pela crítica especializada (António Carlos Cortez, Daniel Jonas, José Miguel Silva, José Tolentino Mendonça, Luís Quintais, Pedro Mexia ou Rui Pires Cabral), vários deles detentores até de importantes prémios literários nacionais, bem como, paralelamente, outras vozes em emergência e em processo de afirmação e maturação identitárias e estéticas (João Negreiros, Miguel Cardoso, Catarina Nunes de Almeida, etc.); – a selecção de nomes como Catarina Nunes de Almeida (autora que privilegia o diálogo com a poesia medieval e que recorre frequentemente à linguagem física, corporal) e Filipa Leal (que gosta de citar, como mote para/da sua escrita, o verso drummondiano “Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase” e cuja poesia deambula liquidamente pelas texturas da cidade, num processo de libertação individual em deriva constante, desapegado das amarras do sedentarismo e de um inexorável destino comum) prende-se com a assunção e vitalidade crescentes, na linguagem poética, de um conjunto de novas vozes femininas, de influências e estilos
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diversos, a que importa estar atento, às quais se poderiam juntar os casos de Margarida Vale de Gato, Margarida Ferra e Renata Correia Botelho, entre outras, também elas nascidas entre o fim dos anos 70 e os inícios dos 80; – também foi minha intenção convocar alguns “representantes” do Algarve, sendo que os poetas Pedro Afonso e Tiago Nené constituem dois dos mais promissores exemplos da novel lírica nascida em terras algarvias, aguardando-se com expectativa os futuros trilhos das suas poéticas; – pareceu-me também pertinente a inserção do poeta e crítico Manuel de Freitas (uma espécie de patrono de alguma orfandade autoral actualmente reinante), figura cuja produção literária e reflexão teórica se têm revestido de uma forte influência no campo poético, sendo que o seu prefácio, intitulado “O Tempo dos Puetas”, à polémica (e provocatória?) antologia Poetas sem Qualidades (em que se reúnem poemas de nove autores contemporâneos, vários deles presentes nesta compilação) constitui, muito provavelmente, o único manifesto/texto de recorte programático poético vindo a público depois dos anos 70/80 do século passado; – a excepção à regra nesta antologia chama-se Jorge Sousa Braga, visto que começou a publicar ainda nos anos 80 (ao contrário de todos os outros autores aqui revisitados), mas neste caso tratou-se claramente de uma concessão ao meu gosto pessoal e do facto de ser uma voz que é geralmente bem recebida pelo público jovem devido quer ao tipo de temas que aborda (a maturação sexual, o amor, a portugalidade, etc.), quer à(s) forma(s) como os molda poeticamente, em que a feliz conjugação entre uma ironia e paródia desconcertantes e um profundo sentimento de ternura perante o mundo se assume como traço mais saliente, acrescendo o facto de ser um explorador exímio do poema curto/telegráfico (com clara influência dos haikus, que bem conhece devido aos seus trabalhos publicados enquanto tradutor), muitas vezes de pendor narrativo – tendência que tem vindo a ser adoptada por várias vozes da nova poesia; – a mais inesperada e, porventura, discutível entrada desta antologia dá pelo nome de “João Habitualmente”, pseudónimo do reconhecido professor universitário portuense (na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação daquela cidade) e cronista jornalístico José Luís Fernandes. A sua poesia possui um carácter, a vários níveis, peculiar, primando pela celebração explícita do desejo sexual e por um humor repleto de sátira social e provocação descarnada, numa espécie de versão bocagiana actualizada para os nossos dias; – uma palavra, por fim, para a obra de Daniel Jonas, na nossa opinião uma das vozes mais originais e surpreendentes (e simultaneamente criativas no que toca à forma como assimila e recria a tradição literária, nomeadamente uma indesmentível herança pessoana, ao nível do ortónimo e de Álvaro de Campos, e camoniana, no que toca à lírica em forma de soneto) da nova poesia portuguesa. Um ícone maior, sem dúvida…
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IV Uma penúltima nota, mais reflexiva, sobre os caminhos da chamada nova poesia portuguesa. Num texto datado de 2003, José Mário Silva, poeta e crítico, expunha porventura a ideia mais consensual relativamente a este tema, curiosamente pela negação: a consciência da não inclusão da ampla galáxia de novos poetas numa “geração” ou num “movimento”. E prosseguia com a definição pela negativa: “Não somos modernistas, nem presencistas, nem neo-realistas, nem surrealistas.” Outros estudiosos e teóricos da nova poesia, não obstante constatarem o inegável ecletismo, heterogeneidade e versatilidade das poéticas actualmente existentes, insistem em identificar várias linhas comuns aos autores que têm surgido nos últimos vinte anos, mormente: uma certa recorrência para abordar descritiva e realisticamente o presente e a contemporaneidade, um registo mais diário/diarístico e quotidiano sobre um (micro-)real urbano mais ou menos concreto – em que o olhar constitui o gatilho central na narração dos confrontos do indivíduo com a ordem do lugar –, um acentuado revivalismo melancólico e evocativo, uma declarada propensão emotiva, uma explicitação dos lugares do corpo e uma afirmação dos desejos e das intenções mais pulsionais, uma descrença e diluir das ilusões, utopias e certezas milenares, uma reflexão fria, caústica e desencantada sobre a banalização mediática e massificação da vivência citadina pós-moderna, entre outros traços. Neste autêntico melting pot de mundividências, há, de facto, temas claramente recorrentes e até em reformulação diacrónica constante dentro da obra de cada poeta, alguns dos quais são mesmo transversais a vários autores, ainda que com elevadas doses de originalidade individual. Se olharmos para a presente antologia, verificamos por exemplo que as derivas, os espaços e a religiosidade são tópicos incontornáveis da escrita de José Tolentino Mendonça, ao passo que Rui Pires Cabral privilegia visões diversas da cidade doente, denotando uma clara influência da herança de Cesário. Pedro Mexia, por seu lado, insiste nas ideias de mal-estar civilizacional e do poético como exercício diarístico, enquanto Rui Cóias vê na poesia uma interpelação da palavra perdida e uma afirmação de geografia sentimental, enfatizando a ideia de deslumbramento. Note-se ainda a singularidade da obra de Luís Quintais, encarando a poesia como estudo antropológico e realçando a ideia de não-futuro do poema; ou a visão de Tiago Gomes, que adopta claramente um registo satírico e neo-melancólico, ao passo que Miguel-Manso preconiza uma ideia de não-poesia, de interacção entre o poético e o filosófico, de como na poesia o pop é bom. Em termos gerais, é forçoso verificar que existe um quadro de mudança na poesia portuguesa, o qual se encontra em processo desde os anos 70 e foi particularmente visível na década de 90. Assim, nestas últimas três décadas verificou-se uma evidente diluição dos movimentos literários, um eclipsar das tertúlias e um claro esvaziamento ideológico de conteúdos
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ou directrizes programáticos por parte das revistas de literatura, fruto dos tempos pós-modernos e da manifesta globalização dos percursos estéticos. Nesta medida, há três aspectos que se nos afiguram essenciais relativamente aos novos rumos da poesia portuguesa contemporânea, os quais podem inclusivamente ser identificados, por uma leitura mais atenta e metódica, nas muitas entrelinhas desta antologia (a qual também teve a preocupação de escolher textos que evidenciassem essas mutações e inovações): a) a opção (de)clara(da) pela revalorização da enunciação lírica, ou seja, pelo recolhimento nas fronteiras de uma experiência do mundo assumidamente filtrada pela subjectividade, esvaziada de conotações políticas e de intentos de intervenção social; b) o estabelecimento de um contrato de leitura de tipo realista, no sentido estrito de se constituir sobre a pressuposição do reconhecimento, por parte do leitor, do seu mundo habitual. Fruto de uma renovação do desejo de comunicar, desenvolvem-se novas modalidades de cumplicidade discursiva com o leitor e com o seu mundo. Como frisou Nuno Júdice num importante ensaio publicado em 1997 (intitulado Viagem por um Século de Literatura Portuguesa), verifica-se a “exploração de uma plurissignificação que não se esvazia na entrega ao leitor da decisão sobre o sentido, antes coloca esse leitor no centro de um percurso por entre sentidos diversos”; c) a ausência de referenciais ou figuras centrais que se assumam como epicentros de influência estética (como ocorrera em épocas anteriores, nomeadamente até aos anos 60 do século XX), por contraponto a uma clara disseminação de muitos autores de inegável talento. Soma-se a isto, por outro lado, a presença de um grupo de poetas não necessariamente jovens que partilha a emergência da poesia nas últimas décadas, revelando assim a filiação num mesmo período cronológico e em moldes transgeracionais. V A produção desta antologia pressupõe, entre outras ideias, o facto de se valorizar o papel da poesia ao nível do ensino e, assim, o lugar da poesia na escola. Sabemos bem como este tema suscita opiniões (e paixões, polémicas…) muito diversas, tendo em conta quer a inserção obrigatória do texto poético nos conteúdos programáticos, quer a existência de processos e estratégias de leitura, ao nível da pedagogia, nem sempre muito estimulantes para os alunos, porque demasiado convencionais/ortodoxos e pouco imaginativos/criativos. A questão do cânone literário oficialmente definido e da sua articulação com a apresentação de novas vozes da literatura contemporânea ao nível do ensino também se reveste de manifesta importância para uma formação mais global, eclética e dinâmica dos alunos. Nesta linha, a inclusão das gerações mais recentes de poetas no
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universo escolar pode fazer-se por via dos contratos de leitura periódicos coordenados pelos docentes e também das sugestões de leitura disponibilizadas pelos serviços de biblioteca (escolar, municipal) à comunidade estudantil. À escolha dos textos escolhidos desta antologia também presidiu a ideia de que o objectivo último dos mesmos é o de serem pensados, discutidos e lidos em voz alta. Também aqui não reina o consenso no que toca ao ensino da leitura de poesia e da aprendizagem da leitura de poemas. Recordo-me, neste passo, das sábias palavras de Eugénio de Andrade: Claro que deve ensinar-se a ler poesia. E quem a ensina pode começar por prevenir que não se comem sílabas aos versos, porque são altamente venenosas. Um poema, como Paul Valery escreveu, é uma longa hesitação entre som e sentido. […] Portanto, a sua leitura deve fazer-se em voz alta, porque todas as palavras aguardam uma voz para tomarem forma e figura. Mas também me lembro que num número especial da revista de poesia Relâmpago, de 2002, dedicado precisamente às relações entre a poesia e o ensino, o reputado professor e crítico Carlos Reis sublinhava, de uma forma bastante feliz porque realista, algo particularmente pertinente sobre esta mesma questão: 8
[…] julgo que não pode ensinar-se a ler poesia, como julgo também que não pode aprender-se a ler poesia. Que fazer? A resposta parece paradoxal: ler. Quer dizer: ler para os alunos, ler expressivamente, ler bem, ler o corpo do poema, ler com critério, ou seja, não ler qualquer poema, mas aquele que, em trajecto iniciático, permitirá fazer realçar a música do poema, o som oculto de palavras correntes. Só depois disso, só depois dessa experiência dos sons, as coisas ficam mais claras. Só depois disso percebemos quais são os alunos que, por sua conta mais do que por obrigação imposta, podem ir mais longe: até isso a que [se] chama “plena fruição do poema”. Aqueles que lá não chegarem conseguirão outras coisas que eu não sei fazer: por exemplo, resolver equações a duas incógnitas. Se nem toda a gente tem disposição para aprender matemática, física ou biologia, por que razão se há-de pensar que toda a gente tem disposição para ler e fruir poesia? Bom será, contudo, que o professor de Português tenha uma tal disposição… Duas visões que em parte não deixam de se irmanar, apontando ambas para uma questão fundamental: a extrema utilidade da leitura em voz alta para uma transmissão e partilha mais plena do texto poético pelos docentes, e, assim, para um maior contágio saudável e duradouro junto dos seus alunos. Daí que muitos dos poemas tenham sido seleccionados precisamente a pensar na possibilidade (e necessidade) de serem reditos/relidos e, assim, reinvocados e reinventados por som(ns) e silêncio(s), pela dicção, entoação, ritmo e musicalidade das palavras, isto quer em contexto de
aula, quer em recitais de poesia, performances, encontros com poetas, concursos de leitura em voz alta e em espaços não convencionais de leitura. A fechar, a voz intemporal de Jorge Luis Borges: [...] quando lemos versos que são realmente admiráveis, realmente bons, temos a tendência para o fazer em voz alta. Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.
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MIGUEL-MANSO | insisto no escusado, mal pago, fantasioso exercício da beleza
NOCTURNO o texto assemelha-se à grave ladainha deste Agosto o mar a noite a solidão
(repete)
§ BOTÂNICA Backster decidiu utilizar um detector de mentiras para medir a velocidade com que a água sobe da raiz de um filodendro até às folhas apercebeu-se então que o desenho era em tudo semelhante ao que acontece quando se submete o mesmo aparelho a uma pessoa e mais espantoso ainda verificou serem as plantas capazes de adivinhar o pensamento humano pois só assim se explica a dramática subida do nível gráfico apenas por ter passado pela cabeça de Backster a hipótese de queimar uma das folhas
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entende-se melhor agora a insistência de alguns botânicos na necessidade de se dar mais atenção aos letreiros “É favor não pisar a relva” § CONTINUAÇÃO DE JEAN NICOT sou dentro de mim o que quer fugir embora vá recusando a cada bafo o panorama dos astronautas tiro notas dos calendários gigantes das marés e do sol e da lua do rasto agrícola das nossas mãos sobre a mesa 11
de madrugada remo como exilado inca em direcção à luz se ainda me for fácil mentir direi é afinal a única substância do poema este cigarro entre estrofes § DO LADO DO ARCO DO CEGO teço um verso de aquém Caetano no extenso haiku da Estefânia § NAVIO ESPIRITUAL DE IGOR AYÂZ trago em a cabeça undívagos relatos
PASSAGEM DO AUTOR a manhã abriu à primeira gaivota decidiu mais uma vez largar o mundo tentar a cicatriz litoral do êxito mar do lado direito do carro o frio nos dedos agora limpos de tabaco a primeira luz mãos oceânicas seguram o negro volante amanhecido 12
pensa no mais argênteo comércio do peixe é dos que choram no cinema e depois saem dissimulando o rosto § MADRIGAL gosto quando pões a quinta porque me tocas na perna com o nó dos dedos § DOS AMANTES do istmo das suas mãos ergue-se a embocadura do silêncio
NO NÚMERO DE OUTUBRO DA REVISTA WIRE para o Nuno Moura
frente ao fotógrafo e ao leitor o homem envelhecido parece que já não olha Mitra o deus sol dos psicadélicos noutra foto no interior da revista o poeta está sentado a uma pequena mesa de frente para a janela onde as cortinas brancas filtram a luz e o ruído da rua sentado na cadeira de rodas ele espera dentro da claridade delicada da manhã e depois durante a noite 13
assiste ao que resta do mundo junto à máquina (a soft machine) de escrever pousada no tampo (eu ia escrever no tempo) da mesa não sei se caem pétalas dentro do olhar de Robert Wyatt não sei o que escreve agora na tábua das constelações essa realidade desabitada dos versos e dos jardins § DESDE ARTAUD: UM E-MAIL à décima noite em Paris sonhei que viajava enfim para Paris
chove a noite entra na casa na mesa de trabalho dois copos vazios de Suze à frente de um poster de Artaud que demorei a decifrar à direita um desproporcionado mapa-mundo onde quase só há oceano (custar-te-ia crer também no intricado jogo de palavras de um cartaz na parede do lado esquerdo) a imaginação pode ser fatal lembro a primeira frase de Os passos em volta onde querendo se enlouquece a estranha posição de um homem fotografado junto à Torre de Saint-Jacques que se apresenta há muito tapada em lento trabalho de restauro há uma baleia perdida subindo o rio Amazonas em direcção a quê uma multidão em Bagdad rising from the typewriter of William S. Burroughs é tarde a noite tomou esta sala de silêncio como se fosse crude devagar pelo casco de um navio no fundo do mar escrevo-te desde Artaud até à saudosa casa nos arredores de Amesterdão onde terás chegado hoje uma casa que conheces bem onde sabes o lugar dos pratos dos talheres a tonalidade das estações nas janelas
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a casa já não é tua mas reconheces o conforto dos sofás o prazer antigo de estar na sala o avançar tímido da luz no soalho como dizia sonhei que viajava enfim para Paris falo de um tempo de espera de um delay entre a matéria e a consciência o éter o tempo em que vão cair as pétalas a todas as palavras a todas as palavras a todas as palavras § 15
BALADA DA RUA DAMASCENO MONTEIRO ardia de amor pela casa numa confusão de silêncios ou dizendo de outro modo afundava-se numa líquida recordação cardíaca ocultos pólen pólvora fósforos a má reputação dos dedos paixão cartografada remota toponímia de enganos braço a braço crescia alto o incêncio no interior do peito deliberado ritual de lâminas e pele a transparente certeza da cicatriz
mas ardia de amor pela casa soturna silêncio dando para o saguão luz muitíssimo extinta por sobre a larga extensão destruída morrer, principalmente de amor, é uma compendiosa tarefa doméstica dentro do coração antigo serei breve § POEMETO o paradoxo de fermi a hipótese da terra rara o poeta trabalha com o que tem um muro com hortênsias ao fim da tarde um punhado de estrelas sobre a baía
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ainda assim a poesia é aquilo que neste desalinho todo se apresenta tão exacto como a morte § NA MORTE DA AVÓ não bastasse a humilhação pública de morrer espera-se do corpo que cumpra com indiscutível pompa o intolerável protocolo de ausentar-se a penosa execução circular e nocturna do velório a presença inconveniente dos agentes funerários os adereços lutuosos a obscena maquilhagem
no dia seguinte, o inventário das orações, a concisa cerimónia (não há muito a dizer, sejamos honestos e soa até a insulto que se pronuncie o nome de Lázaro) o caixão é fechado, o dia põe-se bonito – é quase tão imoral como alguém ter trazido uma gravata com motivos facetos, uma camisa florida – depois, em casa, parece que as vozes ressoam como numa sala a que tivessem subtraído os móveis e houvesse, por isso a estranheza de uma extensão desprovida, dissemelhante o avô vai buscar as memórias da infância (por que razão obscura omite ele as lembranças de casado?) há na sua voz qualquer coisa de paciente melancolia como se aceitasse, com constrangedora submissão, que o tempo não se detenha nunca, que os anos nos empurrem para um buraco na terra, nos sujeitem a tão bruta descortesia 17
a prontidão da morte, a ligeireza do tempo, a estupidez da vida que nunca vai encontrar cura e razão para ela própria contra tudo isso eu alardeio o poema, antecipo a derrota § PEQUENOS TRABALHOS DE DOMINGO não saio antes que tudo esteja pronto a loiça a escorrer na cozinha o aspirador cheio a varanda lavada pelo dia o rádio em off nessa hora em que a noite se aproxima devagar do meu rosto escrevo poema nenhum falta-me língua
sento-me num banco do jardim mais próximo onde (que perfeição) nada acontece § CADERNO DO PORTO VELHO escrevo o espaço que vai das tuas mãos ao renque das alfazemas sombra aprendida em aromáticos versos desconheço ainda esta cidade depois de tantos anos mas aprecio pela tarde o lento rir das áleas avenidas de timbre meridional casas onde ainda se pode descascar a fruta
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atirar a casca para um alguidar partido e onde na trégua do calor maior as crianças costeiras tomam o alcatrão das ruas a areia das praias rompem este silêncio de vagar portuário de palavras como ruína que envolvem o sentido do que escrevo as tuas mãos ou o espaço que vai das tuas mãos ao renque das alfazemas § A QUEDA para a Catarina Barros
resta, de Agosto, esta fotografia iluminada
onde tudo permanece ainda no lugar: a boca no artifício dos sabores a lentidão dos açúcares mãos suadas dissipando pântanos interiores pernas brancas, vestido colado ao clima dessas pernas o cio vibrante do Astro, por cima por baixo, umas sandálias às primeiras evidências outonais levantaram as esplanadas § POETA para quem aspira – breve utopia – ao fenómeno ajuizado da decriação, este texto já vai longo 19
e o erro será, uma vez mais, continuar não vale peva o transtorno dos ensaios tentear perfeições geométricas, filosóficas, de estilo a vida colocar-nos-á no devido lugar a grande lição aprendi-a hoje ao ouvir uma bem intencionada asserção que resultou num alto (e honestíssimo) deslize idiomático: “o miguel é pateta” (joão diogo, 4 anos) § MEDITAÇÃO o amor é como o trigo a alguns já lhes chega em pão mas se no momento antigo o amor é sol vento e chão
esses sabem-no pela televisão § O PREC EM 2008 o deus Silêncio ostenta as Inumeráveis águas nesta apertada livraria de Lisboa também ainda o primeiro título (poesia) de Manuel António Pina em ano de revolução que nesse tempo eram mesmo a sério as revoluções e podíamos acrescentar-lhes pela rua o nosso carme as madrugadas flores agora um amigo diz-me: “esta revolução não dá um passo!” concedo, mas não desisto 20
incorro em certos delicados actos de guerrilha por exemplo deixo poemas em cafés ou em pequenas livrarias que ainda apoiam em segredo esta causa revolucionária depois mando as coordenadas sigilosas à amada que no dia seguinte quase sempre pela tarde os vai buscar § II. ORLANDO PANTERA I am a Professional e dançámos lentos & digestivos mas tentemos antes passar o dia a limpo:
o Peugeot 205 vermelho embalado no auto-rádio a praia pequena a seguir ao Guincho deserta o teu peito nu mulato contra as ondas o riso ladrado da cadela entrando e não entrando no mar as rochas o mexilhão a navalha o regresso aos poucos a tua casa coentros água doce tachos o lume onde cozeste o pão e que ateaste usando as páginas da lista telefónica – queimando toda a rede fixa de Carcavelos – o pássaro 21
morto na escrivaninha o desenho a meio depois a noite a lua o alpendre onde já não se ouvia o mar a cadela fingia o sono no tapete suspirava no fumo dos cigarros ao fundo do jardim sobre a relva deixámos várias caixas de bolachas adaptadas para a fotografia pinhole abríamos o obturador e o tempo de exposição era toda a madrugada § KARL MARX (1818-1883) — FRIEDRICH ENGELS (1820-1895) não pedirei que entrem, desta vez, numa taberna soturna em Antuérpia
inundada de marinheiros e prostitutas sentemo-nos antes em diurna e asseada casa de chá, num bairro inocente de Bruxelas as personagens destes versos são os autores de um manifesto publicado, com razoável sucesso em mil oitocentos e quarenta e oito, em Londres e um ilustre pirata americano de nítida inclinação socialista que, anos antes terá aí conhecido e feito amizade com os dois filósofos e pago, mais tarde, do seu erário as despesas da primeira edição § ÚLTIMO CIGARRO 22
o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco a claríssima insuficiência é este o incêndio da tarde o fim do almoço a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta reclusas na sombra azul dos quartos mãos sem sentido arroz na folha de videira muro caiado de branco e roseiras gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios aquela noite grega que não soubemos redigir vespas bebendo da boca das torneiras escrevo o poema que não lerás nunca sobre a toalha de plástico da mesa suja de azeite
a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha as crianças dormindo na nitidez esquecida da telefonia § PASSAGEM DE ABDULLAH IBRAHIM pela concha da orelha pela membrana do tímpano a melodia negra invade o meu coração ímpio não sei o nome da flor que orna o cabelo dela um distinto perfume flutua no estio que o seu corpo exala 23
mas sejamos honestos isto não é uma loa de al-Mu’tamid no séc. XI em Silves num palácio de varandas são talvez demasiadas cervejas em copo de plástico na Travessa da Espera § “DIZIAS QUALQUER COISA? ESTA MANHÃ? PERFEITAMENTE” ( toda a vida ) leva o teu levar até ao esquecido gesto de trazer eleva ao sopro a sombra do aceno morrer é mudar de prioridades a minha pátria é de nuvens resta pouco de mim nos lugares podia estar morto podia morrer ao princípio de agosto de um ano qualquer
ou de muito andar os pés seriam capazes de chegar a algum lado a lado nenhum à superfície do que de mais profundo é de mais profundo foi e as mãos de unhas transparentes segurariam as paredes brancas a cal moura de outras convicções ao ano de 1978 as crianças nem souberam nem nasciam quando o lugar se encimou de terra o eu olhou o que antes estava disfarçado no visível o corpo era pequeno para tanta morte para tanta vida as mãos foram buscar a imobilidade fria do fundo dos mares mãos de pele e unhas mãos de poeta e brilho mãos de figura morta na tarde mourisca da aldeia afinal inútil reabro o céu redobro o prazer do mar uma tarde uma manhã no cabo carvoeiro eu tinha nomes para as coisas eu ficava sentado frente a um pedaço de papel com as notícias do mundo lia relia a planetária certeza do mar e do país eu tinha amigos gente eu ouvia eu tinha onde pôr as mãos redobrava o amor olhando a água o meu peito ressumava ponta do sol peito aberto fim de dia barco barco barco afinal eu era um homem afinal eu já era um homem quando compreendi alguma coisa acerca da respiração era tarde demais eu era um homem um primeiro homem outra vez um homem sobre o chão os marítimos de pé contra as marés os afogados eu era um homem as ondas galgavam os pescadores de lágrimas o cansaço eu era um homem os remadores lutavam contra o vento e a morte eu era um homem descendo à condição altíssima de poeta desarrumando a infância desordenando a memória escrevendo naufrágios dando-vos à boca
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o meu inferno o assunto do meu passado o esboço prometido do país do futuro e toda a terra península contrária ao verão santuário e seara tristes as nossas cabeças estuarinas contemplam as extensões coreografias de roazes não digo deus nos palustres nem nos sapais trocá-lo-ia pela corda atlântica do teu rosto ou pelas aves ou pelas praias ou pela forma como tu eras o amor e serias a amada dentro dos muitos limpos lençóis (primeiro depois amarrotados o “cheiro-maçã de esperma nos lençóis” que o o’neill escreveu e já não li) não tenho tempo para remigração e urzes não tenho tempo para contemporâneos anacronismos o tempo da semeia gastei-o na apanha tenho como tinha as mãos vazias e o mar é muito mais agora estou sentado na cadeira de pano olho o mar que é muito mais agora estou no tempo dos mudos estou no tempo dos mudos tempo em que as mãos reaprendem o primeiro gesto desenham cegas a primeira face para irem depois pela vida à procura por outras faces maneando outros gestos estou no tempo de um gesto só sem nenhuma das palavras que vos tinha dito sem ter sequer o rosto com que vos tinha olhado sem o trabalho de ter morrido
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os nomes os navios as águas desde que choraste as eternas esplanadas dos subúrbios das cidades as manhãs limpas a amizade sensível o grupo de crianças vestidas de bibes gargalhadas desde que choraste a bondade das raparigas das flores que têm nomes que valem outras flores desde que choraste devagar as próprias lágrimas desde que choraste palmo a palmo a minha ausência eu regressava primeiro na líquida lembrança do mar depois na forte ventania das madrugadas com a chuva com a geada depois com as primeiras aves da primavera eu era quase chão quase tronco com o verão eu ia nas aves eu era as ramadas e a música para depois nascer depois desencadear de novo o diálogo obscuro da vida de estio em estio a invernia velha dos dias a desgraçada liberdade do amor e da força o aprimorado beijo da amada outra vez e sempre regressada namorada quente fria como os lugares são a itinerância a nossa biografia é feita de amadas e de prazer e de linhagem e de algumas tantas demasiadas alegrias suspiradas acontecidas mesmo quando menos esperávamos quando menos éramos e ermos estávamos e depressa acontecia uma espécie de assombro à nossa volta à volta do nosso lugar o encanto grave de um acontecimento de uma voz desconhecida deixando de o ser aproximando-se da nossa escuta da nossa esfera de nós em estuário recebendo gente que fica que se estende em nós que permanece na ansiada enseada da nossa praia misteriosos seres vindos de outra misteriosa laia seguindo pelo mesmo caminho que nós desaparecendo mais à frente todos os outros são nós aparecemos e abalamos da nossa própria beira somos ao mesmo tempo o que foi e o que ficou assente ( todos os poemas )
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“UMA ABELHA NA CHUVA” chovia muito éramos num restaurante esperando o jantar quando uma abelha veio adejar entre os copos sobre a toalha um dos Joões (o Rodrigues? o Pacheco?) pô-la lá fora munido de um guardanapo só depois reparámos no plágio § OS CARIMBOS DE GENT há maneiras bem piores, mesmo assim de queimar a juventude faltam ainda, no momento em que escrevo sete carimbos até ao final – sete anos de pastor Jacob servia – ou seis, caso o leitor me confirme que tem na sua frente este poema sinal de que o mesmo terá sido, também ele um dos escolhidos para definhar junto dos outros no esmerado lote do terceiro livro o livro beat – de beatitude, assentemos assim – se está a pensar, eventual leitor, acompanhar-me mesmo que de modo fortuito, neste escusado exercício saiba que nunca estive tão perdido como agora duvide de tudo o que lhe parecer escorreito não se deixe enganar sequer pela imprecisa citação dos clássicos
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MARGINAL roda a chave da ignição, primeiro pisa depois o enredo dos pedais articular a embraiagem avançamos contorna a falésia, leva a mão do cigarro ao clic do auto-rádio põe a quinta – afasto o joelho da ponta em brasa – a amada marginal, translúcida manivela com a mão que não fuma o panorama do lado índigo acende a agitação dos cabelos distraído desta incomum cortesia cósmica avança ligeiro o nosso amor em combustão interna, tão caro – o preço da gasolina –
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se a amada capitulasse agora cairia lá em baixo o automóvel seria aborrecido ter que reunir outra vez os destroços de um coração insulado no meio da compulsiva rebentação § À MEMÓRIA DE MIGUEL-MANSO não quis ser claro mas declarou, evitou ser escuso mas encobriu o atributo colocou quase sempre depois do nome (assim: um perfume de rosas lentas insistiu no silêncio da casa) mas meu deus meu deus a sua obscuridade era afinal curto-circuito
VASCO GATO | a minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos
[…] Vou contar-te a minha história: tinha 17 anos e lancei a cabeça a um poço, fiquei à espera. Se existe uma chave, se existe uma chave que não derreta na boca, se existe uma boca capaz de se abrir para outra boca, então eu amo, eu beijo, eu deixo de esperar. Então tu saltas e arrastas contigo toda a terra. Convidas-me para o teu corpo no gesto sem mágoa de um ombro que se expõe. Tens anos de combustão solar, e moves-te assim: tocando simultaneamente o resgate e o perigo. Ah forte como a loucura é O amor, o amor como a electricidade dos campos. O amor-pirâmide, o amor trevo-de-quatro-folhas, o amor-moeda-achada-no-chão. Não digas sorte, diz privilégio. Não peças perdão, pede chuva. Não recues, assombra-te. […] A minha casa, horóscopo que não decifro, sítio de paredes, novembro e tejo. A minha casa como uma vértebra iluminada, suportando tudo metendo tudo no seu lugar lançando tudo para o turbilhão de dois olhos animais. Eu sei que o tempo se desfaz em areia e vidro, eu sei que o cenário se desmontou há muito e, porém, o nosso teatro continua. Eu mascarado de caixa de segredos, tu numa camisola de trapos, atirando um pião, um dedo meu. Os meses lentos.
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A minha alegria é um aroma de tangerina nos dedos, comer aos gomos a paisagem e limpar depois a boca à manga do espanto. Tu puxas-me e somos duas crianças num trilho de mata, num banco de pedra, num portão verde dividindo o aqui e o ali. Porque nós estamos aqui. Aqui onde te entrego os meus bolsos, e – repara – as tuas mãos cabem. Nós estamos aqui. […] § ÉDIPO RECUPERANDO A VISÃO Não me escutes. Eu passo através das salas como uma noite violenta. Atravesso e não sou senão essa noite peremptória, que bate nos claustros inebriados, onde tu procuras escutar-me. Onde digo noite, digo a inesperada muralha materna. E digo: somos o eco de vozes mais simples. Que um fruto é cego para dentro, e toda a terra está ameaçada pela cauda de um cometa. Não me escutes. Este é um labor devastado pelo frio, vontade de um gesto esplêndido para erguer cada coisa dentro de si mesma. Surpreender o outro a meio da sua morte
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e tocar-lhe as pálpebras, os lábios, as mãos silenciosas. Tantas vezes regresso para contemplar a ressurreição nos campos. Então a casa é como uma tocha enraizada, um ser exemplar que domina o horizonte e no corpo quebra a difusão da luz, gerando sombras inacessíveis, nomes que se entregam devagar a crianças vivas e súbitas. O tempo exaltado das crianças. Se alguém dorme, é porque se perdeu no labirinto da sua própria força. Lá fora, os frutos tombam e cedem. O sono expande-se como uma imagem inquietante, infiltrando-se no segredo das sementes. Sementes atingidas pelo relâmpago, metidas em água fria e memória: estalam. São nervos que estalam. Não me escutes. Um crime lento, pedras transidas debaixo da fala. Quando alguém dorme, o seu nome é tomado de assalto. E os seus pulsos rebentam de lado, e a boca enche-se de uma pura intenção de palavras, e cria as palavras, e cria celularmente o próprio corpo num furor gramatical, um imenso texto orgânico. Quando alguém dorme, lê-se em absoluto silêncio. Quando alguém dorme, o seu verdadeiro nome é-lhe restituído. A terra cresce sobre a paisagem. Os frutos operam a sua loucura, levantam a terra. Levantam a falésia central, a lâmina invisível. Os claustros respiram a cauda de fogo do cometa. E eu vejo-te, ao fundo das salas atravessadas vejo-te, e deslumbro-te com a noite entoada, e surpreendo-te a meio da tua morte
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– e amo com os dedos o silêncio em que estás. § UM DIZER AINDA PURO imagino que sobre nós virá um céu de espuma e que, de sol em sol, uma nova língua nos fará dizer o que a poeira da nossa boca adiada soterrou já para lá da mão possível onde cinzentos abandonamos a flor. dizes: põe nos meus os teus dedos e passemos os séculos sem rosto, apaguemos de nossas casas o barulho do tempo que ardeu sem luz. sim, cria comigo esse silêncio que nos faz nus e em nós acende o lume das árvores de fruto.
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diz-me que há ainda versos por escrever, que sobra no mundo um dizer ainda puro. § [SELECTA AFORÍSTICA]
Somos apenas um contratempo no repouso geral das coisas. A questão é: teremos vergonha disso? Um país em segunda fila. À espera de ser sacudido. Emblema ofuscado pelo contrário horário. Espólio infecundo do nosso orgulho. Se fugi? Mas quem se ausenta das suas imagens, da sua febre? Calar, escalar: prometer levar até ao fim. No tempo em que. Pronto. Já disse. Já não possuo a dignidade dos mudos. Estou obrigado a recontar os intervalos da minha boca. A noite é o comentário cruel do mundo ao nosso afã quotidiano. Deitamo-nos na obscuridade, sorvendo o aroma do nosso sono, sem que o mundo contribua com algo
mais que o nosso próprio sangue. Fizeram-nos respiratórios, esquinados pelo desejo e pela fome. Corpos fracturados – presa fácil. A força com que cada um de nós, reduzido às braçadas, abre caminho na gordura da experiência. Olhar em volta e sentir que tudo é contrafeito, que parte de nós se falsificou por cumplicidade. Agora há que denunciar tudo, fazer um auto, livrar-se dos espelhos automáticos. Sofro o desejo de uma droga cuja flor ardeu. Não existe mais, não há substitutos. Resta-me tremer. Ouvir a minha própria voz. Usar para esse efeito carruagens de comboio. Arrecadações. O interior de uma lanterna. A destruição é uma prerrogativa do desejo. Esta fúria de puxar um corpo e resumi-lo à sua posição. Isto é, abrandá-lo aos repelões. Segurar o bisturi da minha própria sombra e não falhar. Como um veneno, a minha vida começa a actuar. Não é de repente. É ir perdendo os dedos, os braços, cada vértebra – a ortodoxia do corpo. O que eu habito é a minha vulnerabilidade. Em poesia, o sentido é o corpo intacto dentro do veículo sinistrado. Ferro contorcido e carne verbal, guardada em segredo. O poema é desencarcerar-se. § DO PRINCÍPIO E DO FIM é uma fala reduzida, quase silêncio: quando as primeiras nuvens habitaram o céu, os animais reuniram-se nas margens dos rios e esperaram até que a água reflectisse o rosto da mãe fundamental que os iria ensinar a sobreviver às chuvas o mistério não pede que o expliques o mistério pede que sejas misterioso
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HAVERÁ TALVEZ UM POEMA haverá talvez um modo de amanhecer que revele nos olhos o secreto ardor com que se levanta o trigo enorme. haverá talvez um lago que a noite não toque e de dia em dia, como ontem, como amanhã, cante a mulher que ali foi ver nascer o filho. haverá talvez um suor que não o do sacrifício e com o qual a pele cintile como uma borboleta que vem descendo o céu até à flor dos teus lábios. haverá talvez uma fala onde nos poderemos encontrar sem que a tua mão esqueça a minha, sem que o sorriso esconda o vazio, uma fala que só possa e saiba dizer nós. haverá talvez um poema em que o soluço aperte as veias como o rio aperta o mar, um poema em que eu e tu dormimos sobre o luminoso esplendor do universo. § DEDOS E DEDOS voa comigo nos ombros da noite enlaçados como dedos e dedos na ternura completa das mãos. inventemos asas até que nos tenham como irmãos os pássaros e as crianças nos persigam pelo areal – o voo que é delas também. acredita que o nosso olhar tocará um dia o horizonte com tal força que a nossa palavra ficará redonda, redonda como os ombros desta noite em que te convido a descobrires comigo o amor enorme que a maré nos tem
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quando nos cobre os pés e nos obriga a nascer. § PRIMAVERA PRIMEIRA estremeço desde o princípio do meu rosto desde o momento em que sorri e me sorriram e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera é a primeira primavera de todos os outonos é aqui que em silêncio se bordam os calendários dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam e não mais se alcançam se não nos tornamos menores – no futuro não há esquecimento nem segredos cada coração guarda apenas o que for mais comum § UM NO OUTRO imensamente nos deitamos um no outro e não mais nascemos para a mão escura que tapa o sol e afoga a lua estamos como se tudo estivesse connosco e connosco estivessem os nomes que primeiro se deram flor rio azul estrela terra § INVOCAÇÃO por ti deitei o meu corpo ao mar sem cuidar que a maré me esquecesse por ti aprendi como as coisas se tocam como o trigo estende o vento e a terra como amanhecem as crianças sobre as mães
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por ti dormi no sobressalto dos vales entre sossegos mudos e noites espessas por ti toquei a gravidez das nuvens toquei os filhos semeados no inverno toquei a mulher que espanta o frio e imaginei que me ouvisses na distância que me lembrasses a meio do mês branco quando nos campos as pétalas escrevem o teu nome quando a mão anuncia a ternura que é quando os meus olhos procuram os teus § ANTES DA PALAVRA hesito muito antes da palavra. porque um precipício se abre nela e não tem sentido, vibra apenas. porque pode ser a morte ou o nascimento para um lugar de cores e fadas e barcos de sol. porque me doem as mãos cada vez que tento segurar o mundo em traços redondos quadrados.
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por isso te digo: hesito e morro e nasço. e corro para a rua com a força de quem vai anunciar gritar chamar dizer. mas lá fora sorrio apenas enquanto caminho para um banco de jardim, devagarinho, como se por um momento eu soubesse o nome de tudo e tudo tivesse o mesmo nome. §
SÓ ESSA repito, de mim para mim, vezes sem número a promessa que fomos entre as primaveras abraçadas e o fio de luz que escoava nos plátanos, já noite. recordo o aroma doce que, misturado nos teus lábios, abria vento fora o corpo e o carinho do corpo e a voz de mel que vinha dormir junto de mim, o teu nome. lembro também o ano em que habitámos o frio, no inverno vertical que caía sobre nós com os dias e os minutos em que o lume se internava na madeira e, por momentos, nos deixava a sós com o estrondo da casa quase vazia, a maneira como nos tocávamos. “e se as esquinas não dessem para outra rua e tudo se abismasse de súbito: como saberias de mim? “ perguntaste-me quando os teus pulsos acharam o azul e redondos espreitaram no mar a constelação de búzios onde dizes ter nascido – como podia eu saber de ti? compreendo por que te deitaste para dormir, em silêncio, sem te demorares na varanda, sem escutares a floresta, assim como quem descobre uma palavra nunca ouvida e sabe que só essa valeria o dizer – e fui eu o poço. vou uma vez mais até ao extremo desta terra estremecida e encontro o lugar vazio onde a bruma anuncia o que talvez não retorne por não haver sangue entre nós, um segredo que leve a tua mão à minha, uma volta de planeta que devolva as ruas e as esquinas em que sei de ti. § A rapariga da muleta deixou cair a muleta. O fogo espalhou-se, abriram-se as borboletas num susto evidente, fizeram fila os táxis. Os prédios mais altos, tão francos, tão estruturalmente com varandas, tão soprados
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pelo soluço dos que nascem. As borboletas cada vez mais altas, as borboletas sem táxi, a varanda que caiu com as flores intactas da tua febre. Tenho agora o desastre da tua roupa no meu chão, o sangue feliz. § ABRAÇADO AO TEU NOME recolhe o frio ao nó dos dedos e a noite se embrulha de estrelas uma breve leve carícia na minha pele quando fecho os olhos e escuto o teu corpo “curei um homem”, dizes-me a medo o quarto inclina-se como se entendesse e subitamente eu não posso evitar choras, escondes as mãos e eu não posso evitar amar-te
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lá fora, o homem curado deita-se à beira-mar abraçado ao teu nome a espuma vem morrer à nossa cama para buscar as tuas lágrimas abro os olhos e digo-te: ensina-me de novo a ter mãos § se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu, escuta a noite e recolhe o meu corpo da espuma dos planetas. não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos, insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca. e de luar em luar celebra o coração que fiz teu, mudamente, como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue.
§ Falo de um homem que possuía livros de poemas. Foi talvez o único real leitor. Ele abria os livros, um livro. Escolhia um poema. Era um ritual misterioso. Porque ele raspava as letras da página, cuidadosamente, como para conservar a integridade do papel. Raspava e reunia os pedaços negros. Aquecia então água com o vagar próprio da vertigem. Uma estranha ciência de vapores. A infusão sucedia: a escura substância do poema misturava-se mais e mais com o fervor da água, até ao ponto em que tudo aquilo era vivo. O homem bebia então o poema e o poema flutuava no sangue, atingindo todos os lugares do corpo, reclamando todos os lugares do corpo. Não era previsível o efeito do poema. Cada poema dissolvido, sorvido, feito homem, trazia consigo uma possibilidade própria. O homem crescia com o poema, crescia mais para si, mais para o poema. O homem que possuía livros de poemas possuía uma biblioteca em branco. Páginas e páginas de poemas arrancados sem vestígios, um crime perfeito. Era uma biblioteca poética. Uma biblioteca que podia arder. § DENTRO DE UM CORPO Pôr as mãos dentro de um corpo seria invadir um calor sagrado Porque um corpo é como um astro implícito, frágil, cuja órbita intersecta a pureza, descaindo de sombra em sombra até à memória tangível em que aparece Um corpo desenhado a giz, arrancado ao ar, agora táctil, vivo, furtando-se ao precipício frio que ameaça os flancos do espaço, dançando nas muralhas da noite Corpo que não se deve possuir, mas escutar, escutar
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Deve haver música no interior de um corpo § A PRISÃO E PAIXÃO DE EGON SCHIELE.2 Farei a noite, a vertigem dos corpos, até que a exaltação atinja um lugar extremo e tudo seja iniciado. A punção da noite abrirá espaço para uma estrela. E a luz derramar-se-á. O mundo será o meu oráculo. Preciso começar-me. Vejo a nítida falésia de sombra estremecer e estrelas entrarem pela cabeça do morto. Ilumina-se o crânio, por dentro, e aos poucos o corpo recomeça a fluir. Vejo o morto correr, nu, cintilando pela noite. Corre de um instante impossível. Mas ouve: a borboleta que ressuscita os mortos não deve ser cativada. É perigoso conter essas forças vivas como pulsos. É perigosíssimo o fogo. Sei como é voluntária a encenação da minha queda. Porque a cada grito no abismo corresponde uma sabedoria no canto. Que entra na voz, na voz que grita, na voz que canta – é um estranho jogo de ecos este, escavando fundo na treva, ouro que irrompe, musical. E é tão inesgotável esse árduo filão do mistério. É importante manter os obstáculos no caminho, e fazer o caminho. Que seria do caminho senão os obstáculos, senão uma prática de superação? Há uma casa mais abaixo. Desço, entro na câmara escura dessa casa, fecho a porta,
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e revelo, revelo, não paro de revelar – o meu rosto. Porque quando sobreponho as imagens, vejo acender-se a invisível malha do espaço, ardendo, expondo os alicerces do tempo. E o morto regressa à visão. Reuniu os ventos e ameaça derrubar o céu. Diz: não desistirei de exercer a minha ignorância, preparar-me para outros saberes: não abdicarei de uma vida copiosa – é um manifesto feroz. Irei para a floresta ou para o deserto, para um qualquer lugar inóspito onde possa experimentar, aterrorizado, a pureza da minha voz. Há muito que desejo romper este cordão umbilical, ampliar-me, e agitar as esferas, os campos, as possibilidades de transparecer um poder obscuro, terrível, o poder da minha própria morte. Porque: que é uma coisa senão o lento acordar da sua morte, das suas mortes? Digo que cada coisa é um caminho para fora de si mesma. Que são intermináveis as coisas sucessivas. Digo que a voz do morto soava assim pelo corpo de dedos fulminados. Batia na perfeição, como a cadência precipitada da chuva – um som perturbador e insistente, belíssimo. E eu estava aterrado, dominado por fúrias, e fiz erguer o meu braço. Era um gesto, um movimento deflagrado por clara inocência. E a sabedoria moveu-se da boca para o sangue.
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§ Era apenas um livro. Teria forçosamente que ser um livro: a aparência era de livro, o comportamento era sem dúvida de livro. Todos sabiam, porque sempre fora assim, que mais um livro não traria nada de extraordinário: letras, vírgulas, alguma gramática. É isto um livro. Porém, quando abriram aquele livro, e era de facto um livro, notaram uma qualquer presença estranha, algo que não souberam definir. Fechavam-no, abriam-no. Olhavam atentamente a capa, interrogavam. Lançavam-no ao ar numa última tentativa de desmanchar o truque: mas ele caía como um livro, desprezando as suas páginas como todos os livros. Sussurravam de uns para os outros: o que se passa com este livro? Trocavam olhares cúmplices quando entreviam num rosto alheio o efeito da mais breve leitura que fosse daquele livro. Os sintomas eram claros para quem já lera uma parte. Um tremor subtil na pele, um desajeitado modo de ter mãos, ora no bolso, ora na cara, ora rodando no ar, um passo levemente incerto, uma tensão nas sobrancelhas. Para quem não lera, porém, tudo corria calendariamente. Os leitores daquele livro inquietante aproximavam-se, trocavam hipóteses de solução, procuravam desesperadamente calar o desconforto que a leitura lhes ia gradualmente instalando. As suas vidas pareciam irremediavelmente suspensas perante a urgência do fenómeno. Olhavam, liam: letras, vírgulas, gramática. Tudo aquilo ressoava na memória. Eu sei o que isto é!, diziam. Não existia nada de desconhecido naquele livro. Porém, revelava-se absolutamente incomparável. E nisto consistia o mistério. O olhar passava pelas palavras no mesmo gesto mecânico de sempre, da esquerda para a direita, atento às pausas, descendo suavemente a página. E, no entanto, assomava ao cimo desse olhar treinado uma sensação de tontura que depois alastrava por todo o corpo. O livro era insuportável, excessivo. Era preciso fechá-lo abruptamente para não se cair ao chão. Mas por quê? Que subtil e raro poder circulava na normalidade daquele livro? Era isto que traziam para a rua. Alguns paravam subitamente no passeio, ou acordavam em sobressalto durante a noite, como se houvessem decifrado o problema. Escapava-se-lhes. Regressavam ao livro contrafeitos, mas num estado de profundo encantamento. Umas palavras mais, mentalizavam-se. Mas liam sempre mais do que podiam e a tontura assinalava-lhes de imediato a transgressão. Começavam a desenvolver um agudíssimo sentido dos detalhes. Viviam mais lentamente. Cuidavam do livro como se se tratasse de uma matéria preciosa, a mais preciosa. As suas vidas cresciam em intensidade.
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Era um livro único, excepcional. § DEPOIS DO FRIO, AINDA um. pisamos no chão o outono e numa inspiração principiamos o tempo que há-de vir: as falésias, os lagos inundados de sol, a casa habitada entre as árvores, o silêncio essencial de todas as pedras. pisamos como se bebêssemos o sentido, como se em dez dedos coubesse o corpo de uma mulher altíssima, sábia dos dias, e a cama escutasse de noite a geração das coisas sem que as paredes contivessem o ventre oculto. dá-se em mim o sangue desse amor tão impensável — na palavra que me leva os lábios o calor dos pulsos, depois acendo as lágrimas e desenho no ar as tuas mãos. dois. nunca vi mexer-se o segredo dos planetas: noites olhando a noite, enquanto me fazia homem e despia de mim a leveza dos pequenos pés. contava através da janela as constelações muito antigas, imaginava episódios de neve nos campos que nunca tive, desejava incontidamente que um anjo me abrigasse em suas asas e me levasse até à aparição da flor original. não dei conta que me debruçava, que me esquecia da mesa onde os pratos prolongavam o amor da minha mãe, o pão que se abria sem ruído — concreto e cheio. desaprendi como se lavam as mãos, sabes. não sei mais como a mão toca o ombro ou como se dorme abraçado.
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e penso que há um altar vazio, uma oração que só a minha boca pode dizer. três. ela traz na mão direita as ondas que o mar não quis: enterra-as nos meus poemas, diz-me que assim eu posso lembrar a mão que ficou na areia, pequena. o deserto procura-nos. há um caminho que é só morte. ela fica junto de mim. mil lágrimas e os meus olhos começarão a ver. ela diz-me que vai ser assim. § Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos. Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio, linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da devolução. Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar tudo numa árvore. Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a medida exacta do meu desejo. Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma enorme quantidade de calor. Tocas-me? § Não apagues a tua boca agora. Quero desenhar-me rosa-dos-ventos na vela do teu peito e sairmos de olhos fechados para a aventura sem âncoras de circumnavegação terrestre. Neste quarto, as mãos perdem a razão. Neste quarto, as mãos são meramente mãos. Não apagues a tua boca agora. É quente a noite dos nossos corpos. Por isso dormimos sobre
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a água. Por isso nos evaporamos como se uma canção antiga. Por isso a terra inteira. § PRIMEIROS SOCORROS A ferida por baixo da cicatriz – quem cura? Por vezes são estrelas que sobem quando a água ocupa o espaço e um brilho esquivo tropeça no cansaço do dia No chão ainda morno ardem pétalas sossegadamente e há a melancolia de um pássaro 45
Na varanda esquecida por trás de toda a magia da noite (há tanta solidão em quem repara) dura um homem que diz baixinho assim quase para fora A ferida por baixo da cicatriz — quem cura? §
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ | LIVROS A lenta volúpia reservada aos livros prateleira labiríntica arrumada a esta hora da noite arrumação da vida Dispõe-se por ordem alfabética a dor o aguilhão o estilete da escrita A metáfora não escapará à dolorosa matemática § RESPOSTA A DRUMMOND É sempre no meu sempre aquele nunca é sempre nesse nunca aquele agora é sempre nesse agora aquele nada 46
No mesmo nada encontro sempre tudo mesmo se o mundo é nada sempre assim mesmo se assim tudo me desperta e eu me desperto a adormecer no fim de cada dia de trabalho errado em cada hora de um amor mal feito e digo mesmo se este mundo vale a expectativa de querer ser sempre aquela esp’rança onde o bem o mal se aliam sempre para quem conserva o sonho ou a fúria de não estar sonhando Mas novamente dói a dor no peito e dói no corpo o que nos vai passando mágoas ou risos ou o grito dado e logo atirado para um vale escuro
onde não oiçamos a revolta infinda de vivermos os dias nesta escura selva a que nem Dante chamou talvez de vida a que chamamos coisa e porém amamos Sempre este querer de violência tanta e esta crença de que o canto estale e o dia venha porque nós lutamos para além das forças que supomos nossas para além dos sonhos que já não esperamos para além do verso e do corpo gasto Sempre este homem que se vai cansando sempre estes ossos em que equilibramos esta carne frágil este dia vasto esta vida feita no que é morte nela este amor sujeito ao que é sempre efémero 47
este ódio ao mundo que é amor eterno § CLOSE READING Com as mãos fechadas tropeçamos nas palavras que nem chegam à boca inteiras Serão elas verdades ilusórias ou ainda as coisas verdadeiras: Objectos presentes do passado em que molhamos as mãos primordiais Objectos tão abjectos quando somos o único presente e nada mais Vertiginosamente recordamos como foi beber do amor a sua água Mas por que é que cerramos as mãos como quem fecha os olhos?
Porque nos fascina o vidro do Inverno os livros as roupas os corpos já ardidos assim que novamente respiramos o tempo em que fomos iludidos Como fechamos as mãos ao amor quando ele vem de madrugada e reacende o tempo que era o nosso e o tremor do instante em que tudo se concede § AS PERDAS OS GANHOS Este não é o poema que eu gostaria de ter escrito: tudo no fundo se resume no poema à soma dos ganhos e das perdas afinal tão semelhante à vida é esse jogo de querer um verso que dissesse tudo e nada mais dissesse § VARIAÇÃO Regressas sempre aos versos A arte torpe das palavras A fala o fingimento de verdade A arte a canção dos mais pobres de todos os sobreviventes Calas quanto sabes mas escreves Por metáforas e símbolos as ruínas do corpo e do palato essa hostil lâmpada sabes que corremos como cortina escura o sentido literal da palavra Arda no siêncio com que nos afastamos ou morremos a palavra da esperança No longo silêncio que se arrasta nenhuma flor nos basta
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CATARINA NUNES DE ALMEIDA | ENTARDECER Hoje entardeci mais despida do que antigamente. Não sei se pelos bosques tão devastados se pelas bagas que colheste do meu dorso. À tua sombra todos os amores são silvestres, só as amoras são frutos impossíveis. § HÍMEN Desenho as palavras no lento desabraço das nossa pernas. Esta noite compreendi que o meu corpo é leve onde o teu estremece que o teu nome acaba nas entranhas onde o cheiro tem o meu nome e queima. § CERES Soubeste esperar por mim embalada na carne o teu hálito no meu hálito alimentando os deuses e as raízes que sustêm as almas. Havia já um poema encravado no caule duas notas da sinfonia escorrendo para os beiços da terra. Escavei-te e bebi do teu incêndio o meu incêndio e nasci.
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TODAS AS SERPENTES Se me engasgar com o teu sangue algum dia a minha língua será uma pétala? Apenas um lago onde a terra derrama todas as serpentes. § Irei eu se ele for na cavalgada. Irei eu a galope em meus pés veloz por entre as avezinhas do fundo das águas-furtadas em águas de lábios furtadas veloz e espessa como a torrente de um parto. 50
Irei eu em todas as minhas mãos pégasos e ventanias o corpo preso por um frio gentil o corpo a tilintar de sonhos. Serei eu o que ele for na cavalgada. Irei eu sem música sem mesa posta dar-lhe prato verde onde caibamos os dois dar-lhe este emudecimento este abatimento cardíaco da floresta. § CÂNTARO DOS CÂNTAROS Voltando um pouco atrás à costura das fotografias àquela escuridão pulmonar onde te vi
pela primeira vez onde eras mais que certo quase cavalo quase branco a galope nos meus dentes. Fotografias do tempo em que chamavas árvore de rapina ao instrumento que te educava os dedos. Um dedilhar de amigo à beira do vinhal. Um encantar de amigo. Se te deixasse ficar à sombra haveria ainda as linhas da tua mão tão irregulares tão imponderáveis como a chuva nas boas noites. Haveria ainda o perfume das grainhas na primeira curva da manhã. Era no tempo das fotografias. Agora, dizes tu, há o orvalho dos murtais um cesto silencioso e humano.
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Nunca saberás que isso a que chamas silêncio orvalho eu chamo música e toco-a. § 3. Colhe de um corpo o carvão verde a sua música cereal moída moída. Abre um corpo na partitura canta-o enquanto se parte enquanto ficam anos por contar enquanto ficam anjos nas pálpebras inconfessáveis. Como se a manhã falhasse sempre. Como se escolhesses o comboio que pára em todas as estações e valesse a pena gastar outra infância para não chegar.
§ Avistei a boca ao entardecer. A língua não vinha nos mapas, mas no palato agrupavam-se diversas constelações e pertencia-lhes a ventura dos meus dedos. Não havia notícias de outros povos nem sequer uma mácula de cerejas. Plantei o primeiro seio a que chamámos macieira e abandonei o ventre à generosidade vegetal. Nessa noite dormimos por dentro e por fora do mundo. § Abriu no colchão as valas possíveis e enterrou por ordem alfabética cada parte do corpo: os pêlos os pântanos as unhas encravadas e as unhas que outros cravaram pelas coxas. Estudou cuidadosamente as ondas as horas para que não restassem dúvidas sobre os caminhos marítimos para a noite. Por fim podou todas as janelas do quarto; bebeu o vinho; roeu a carne do quarto até não sobrar nenhum coração. § A PROSTITUTA DA RUA DA GLÓRIA Tanges a noite sem saber que a noite é uma cítara com cordas de ferro onde os insectos ferem as asas. O teu canto arranha o azul da chama e a cidade desperta para a dança: um labirinto de minotauros
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sorvendo o odor do primeiro tango – um ténue resquício de feno escondido na nuca. Ainda ontem foi lua cheia no teu ventre. Sobrou um aquário onde os cegos vêm depenicar a caspa dos pombos. Hoje não saias, deixa-te ficar. Pelos corredores as fêmeas largam o pó das florestas quentes – ténues resquícios de feno escondido na nuca. Hoje não saias, deixa-te ficar. Deixa dormir o teu sexo cansado de morrer. § As noites eram aquele enxame desperto as noites eram noites bem bebidas a elevação dos lábios interiores dos cálices o pôr das mãos nos caminhos. § Começávamos o dia por baixo pelo tempo da pedra. A escarpa muscular onde ia gastando os teus sapatos. Manhãs compridas que chegavam ao mar. Trazíamos as letras inclinadas trazíamos na ponta da língua o nome dos naufrágios e estávamos à mesa como um corpo de baile. Uma subsistência sonora era esse o estado da arte: éramos as claves do sul de lábios estendidos à medida das máscaras. Eu ia de rastilho, de árvore acesa. Ia iluminando a mão com que batias no fundo. Traçava as águas juntava as pernas para as covas do teu dente. Passavam orlas e orlas e nós naquela descoberta naquela terra toda à vista brincando ao verão aos redemoinhos na chávena.
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CÂNTICO DAS NERVURAS São tão largas as noites para a concisão de um corpo. Tão escuro o sorriso que as pernas abrem ao mundo. E no entanto animal que passe aloira-se nas águas e geme de uma alegria que tem flores e frutos. §
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DANIEL JONAS | MOÇA FORMOSA, LENÇÓIS DE VELUDO O meu cérebro como betume atirado contra o teu corpo firme, virginal A cal dos membros acendida como fornalha na cama papirácea e inchada uma plataforma de pele para um jacto supersónico voo de baptismo o Revolver a terra em ti com esta enxada que escreve e marrar escolasticamente no húmus que saliva Triturar-te, enxaguar a dor de não no papel-refúgio de não sexo violentar-te como um pai a um filho na primeira bofetada ser-me-te ser-te-me ser-me-te ser-te-me inscrever-te nos anais de mim tocar-te TROMBETA no exagero de estar contente doer-me todo de ti, carimbar-me-te aplicar-te o beijo medicinal, empertigar-te nos póros cravar-te infinitivos por toda a parte como linguagem maquinal e eficiente enxovalhar-te na auréola acidental, plastificar-me em ti eu sei lá, embandeirar em arco Ah, diuréticas manhãs: para longe de mim! Vinde minhas noites gordurosas e lascivas quero-vos como a uma coisa fundamental Vinde por mim adentro abruptamente, indelicadamente e vozeai-me na consciência um RAISPARTATUDO Açulai-me o pentecostes com línguas estranhas entranhai-me sufocadamente, ó vinde! Ah, sou tão pouco de mim para ser o suficiente
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tão plácido, tão transigente, tão característico de não ser nada a pensar ser tudo Ó minha barca purgatória, minha brancura de febre hagiográfica deixa-me em banhos, maria deita-me em anhos, aries Estou contente neste estar contente de estar contente de qualquer outra coisa; tudo menos esta verticalidade mumificada este tesão cerebral, este peso nas decisões esta moral castrense, esta partitura doxológica ah, xô, xô, anjos afinados! evoé, evoé, diabretes intumescidos! limpai-me de mim que fedo estou estragado como um leite de meses o meu biscoito foi inter rompido à pressão de não inter romper sinto-me um carnaval de glórias passadas agito-me e nada sai de mim cogito-me e nada sei de mim cogito ergo sum coito ergo boom Estou histérico, sofro de uter? (o diferente mesmo) estou clistérico, uter, lavo-me por não dentro e acho-me um panteísta que se não acha Sou uma anedota tão mal contada sou ridículo no meu fato de sair às vezes tenho uma hérnia gigantesca nas sinapses sou tanto não eu Meto-me em trabalhos sem antes me ter metido em atalhos de mulheres sombrias e prazenteiras Lambo as abelhas sem antes ter lambido o mel lambo o mal, o fel, tudo o que havia de ser depois do doce, sem que antes tenha havido doce Mãe, tenho frio, mãe As palavras zumbem-me em redor como moscas e sodomizam-me o espírito e eu vou na cantiga
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que embala com garganta funda a primeira pulsão de um chico de chicas Mãe, tenho frio tenho um trio maravilha, trinidad&tobago convosco circe, circe cerce maravilha – seu pai morreu nesse número! – haja alegria, meninos! Ah a minha gula(g) congestiona-me em ti o súpero ser que és chocalha-me a torre de b a b e e eu espumo extasiado o esmegma primordial por só ver-te, por sorver-te, por verter-te no papel baboso Ah, je vous adore Marie, je vous baise les pieds ah, no pólo glacial arte&co obscena de um só take this longing Não sei se o que me comanda existe e se me comanda na verdade e nas frágeis mãos do tempo o absurdo é barro mas lá vamos nós outra vez é porreiro meu, tipo looping, ‘tás a ver? e os olhos fustigados de cilícios mentais ardem-me no membro roxo; isto é, estava a entrar, não me leves a sério não mo leves a sério A tua face de pastorzinhos deixa-me corroído por dentro e a saliva escorre-me pelo nariz que não assoo esse outro nariz que se mete onde não é chamado esse pobre coitado o mais das vezes retraído mal amado, enfant terrible, mon semblable Mastigo um gancho como prova da minha disciplina monástica Habito o escapulário das ideias frias
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arrastando o corpo flácido pela pedra rija das paredes ardendo em sensualidade de conventos Estou cheio de mim num vazio indescritível Estou cheio de mim nos vários outros da mesma solidão Aquele olhar ficou-me pregado nos olhos Aquele olhar de abandono que desejava ficou-me entalado na memória Como o olhar perdido de um cão Eu sou um realejo nesse olhar de sarjeta eu caminho nesse olhar Do meu luto assoma agora a tua carne vegetariana e, insidiosa, prolonga-se por mim acima uma vertigem que só eu sei O poema é uma camisa de forças um trâmite legal na desburocratização de mim um divã psicanalítico de gulosas cloacas no afundamento do self No teu corpo cadente o meu porco carente aparafusa-se analgésico e virtual Sinto-me uma profilaxia de talhante um sinal sem nexo numa estrada secundária uma tenda infestada de mosquitos E digo isto tudo porque a minha pena não penou em ti E digo isto tudo porque nada se cria, nada se perde tudo se transforma tudo em transe se forma no meu eu poético Alimentar-me as letras com o maná do teu desejo ser impossível e impossibilitar isso na possibilidade do verso numa palavra: economia Economia, Horácio, economia No sílex do teu corpo a minha obesidade queria ser lãzinha de meninos de coro Outra vez este lugar largamente apertado outra vez esta segunda opção tóxica que me dói no corpo todo
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e me morde na sanidade mental com a boca podre e licenciosa Ando a sentir-me muito mal ultimamente levo muito sémen inter rompido dentro de mim coit ado, que tudo pela metade que indecência moralista, que vida depois desta tão obstipada, que protuberância nasal que solidão entalada entre as pernas, apêndice de mim que ar maçónico que eu tenho, raios para esta GRANDESSÍSSIMA PERDA DE TEMPO este fugaz brinde à cobiça reprimida esta estética do enervamento este desatino de ter sono e não dormir esta comichão no cérebro palavra de honra, eu hoje não estou bem Por onde andas niña?, por onde andas tu? estou cansado desta procura intermitente a minha melancolia está a dar-me o berro e as poucas palavras que ainda dão à costa chegam-me escorbúticas e pálidas como um cadáver resistente e batalhador O meu coração ladra, a testa estremece-me o corpo incapaz de tudo, este traidor de mim enfim, a esperança era que o céu abrisse que eu desse conta do recado que o espírito cortasse relações com o corpo que fizesse greve em mim Ah, quanto não daria por ser menos uns quantos! Andamos todos dentro de mim numa rave extasiada às cabeçadas ao ar de couro cada um por si e nenhum por mim sinergeticamente um fiasco, isto é estou como hei-de ir, não me venhas com ideias a menos que eu me venha como ideias ao estro vaginal e aí cumpra todo o programa poético Acabo aqui para ver se ainda arranjo qualquer coisita
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COMO ONDA NO FIM DA JORNADA As mulheres surgem de lugares sombrios quando se leva a mão à boca e o poema apoia-se conceptualmente no dizer de sangue que é lume A infância saliva como onda no fim da jornada ardendo minusculamente e retirando-se para quando não era e os olhos fervem em pouca tinta regando o papel seco com o húmus que escreve a vida ateando no tecido seminal Enxameantes os dedos projectam-se na água que espera silenciosamente o golpe de ar, a boca que a leve galopante na respiração dúctil e pegajosa de escritor e a mão treme sem razão aparente. O dia traz lábios encardidos e corpos fulvos pesando como limões de estio na doce projecção da madre na alma suprema O retrato da parede causa-me enxaquecas e a imaginação é um cacto depressivo furtando-se à cama como a castidade mais casta ou a opressão do prisioneiro. Dizer bem nunca disse nada e a moralização é um espinho na poesia enfraquecendo-a em nada a aperfeiçoando antes pelo contrário Depressa e bem sem olhar a quem: eis o adágio errante na esquina escarlate e o poeta sacrifica-se ao todo, ao bem-comum olhado de cima a baixo como um motivo de interesse e paragem obrigatória e então a casa regressa após a distância e era teres-nos visto, êmbolos da vida rindo-nos de nada e alargando o jogo com suposições insensatas e no cerne de tudo
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As coisas são para se dizer, dizias e de novo as mulheres surgiam, ausentes manietando-nos o comum espírito às caras ruidosas apresentando-nos corpos salientes na erva inexistente limpando o vício às ideias negras Sintomático foi teres amado a todas. Os mesmos jogos em declives lascivos e primários como rios acidentais e de nenhures em tumultuosos corações à procura de nada. Limitei-me a dizer que sim e foi o bastante para escutar as noites que caíam com uma força impensável para a altura dizimando rostos perfeitos e sublimando as mentes § IMPRESSÕES DIGITAIS beijei as tuas impressões digitais quando estava só como que tentando trazer-te de novo pelos dedos e de novo segurar-te a boca se sou trapalhão no meu modo de sem tir é porque a chuva e a prata me puseram a dormir quando ainda te queria apanhar febre e dor apareceram como manchas amarelas em branca chávena. Adoraria encostar e tender teu tenso corpo ao meu amor cadente mas minúsculas lágrimas pretas de súbito desabaram
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e a tua alma foi despejada por caracóis de linho e mudas nuvens § A OSTRA […] Ficarei ali a ouvir-te quando nada mais tiver que o amor e é verdade que gosto desta noite densa e bêbada e deste ter largado amarras ao verde e à inexperiência quando o teres chegado foi bem mais importante que tudo ou pelo menos não menos importante. Estou igual. Estou tão igual que dói 62
Não vives para nada. Depois de todas as variações os croissants, as meias-de-leite depois de tudo não vives para nada para mais nada Sou agora esta apoplexia de quartos minguantes de amantes breves e ébrios e extraordinários. Resta-me adormecer após a retirada, após o whisky após o pó, único ao meu nível, após a sombra. O nevoeiro deu-nos cabo das ideias de praia. e verdadeiramente esse era o tempo em que íamos buscar pão e estranhávamos o autocarro e líamos qualquer coisa entretanto e nos púnhamos a pensar na vida nos tons puídos de perguntas sempre mesmas na desgraça que se abateu sobre nós todos no vizinho que se lembrou de construir aquele anexo sem autorização da câmara.
Ah, um pilão que me batesse descompassadamente na cabeça! que me descosesse as rachadelas na testa e me abrisse de par em par esse admirável novo. Olha que bem tentei e tudo isso claro, estas coisas acontecem, que é que se há-de fazer? e é certo que nunca nunca foi demasiado tarde: demoraste tempo até te teres tornado belo, éramos miúdos, agora que já sabemos como as coisas são rimo-nos disso nos outros e olhamos para as horas à espera do comboio, convencidos dos horários, da certeza da ordem que havemos de lá chegar e haveremos de lá chegar? mas tu não ficaste. Nem poderias ter ficado. A cama à altura estava fria, dormíamos como sobre medalhões gélidos e assombrosos e brônzeos e acordávamos destapados e com mãos separadas. Não valia a pena trovar, tu havias calafetado os ouvidos com medo do frio e nem o calor das minhas canções os derretia. Simplesmente não ficaste. E não ficaste bem Só a chuva foi sensível à minha dor e ao meu apelo e cansado que estava de memória e voltagem me deitei nos amplos arames da álgida cama entretecendo nos dedos a chave pútrida e mole da sonolência e do vazio. Tu dizias não estou para te aturar e eu deixa-me ficar no teu holliday inn e não me importariam nada os néons nem as propagações do escuro se ao menos roesses a corda e desatasses a espicaçar os pequenos charcos, a boina estaria então pelo teu cabelo e outra vez as mãos e outra vez as residenciais acesas. Se tu falasses não sei o que havia de fazer Aparecem as mesmas outras mulheres que como conta-quilómetros que já deu a volta parecem novas e estáveis e seguras e parece mesmo como se tudo recomeçasse meu deus, estou a recomeçar!
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Só que o motor já pesa e a manutenção é cara pelo que o esforço e a tensão levam a máquina ao fanico para dizer as coisas assim. Como dizer? O meu nome. Como dizer? Como dizer tudo outra vez? Depois de tudo e disto e de muito mais? Como dizer? O meu nome. Como te chamas mesmo? E parecia que a chuva chegava mas para dentro, afiada como um bisturi para nos aliviar a côdea à ruminação e o engulho ao estômago cansado. Talvez evite conhecer-te, eu sei lá, é tão tarde. Quem dera usasse azulejos e não pele quem dera dizer-te não é hoje o dia de ires embora; não vás embora. A voz é rouca e felpuda, podemos tomar banho e a seguir um chá. Coisa pequena e frágil que tristeza toda é essa, homem?, és de cá?, chegaste agora? perdeste já as comingattractions. E depois, lentamente, como dois míseros barcos nos estirámos pelos canais ainda acordados como se rumássemos contra o sono e a desolação. Os nossos dois corações ainda quentes, os nossos corpos com formigueiro § NÃO DEIXES QUE OS CORAÇÕES TE ATRAPALHEM MAIS Não tragas quiasmos nem vendettas agora que a ocasião é de silêncio e o caminho do amolador de facas se varou no bairro como um profeta anunciado não faças perguntas desnecessárias ante a dimensão do momento nem corrijas assim tão veemente os meus impulsos cheios de sangue ou as minhas condições tardias
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de momento está esgotado mas podemos recuperar o desejo e as estantes estão cheias de estantes e horas picotadas e vazias como quando vinhas e expulsavas o odor bafiento da casa e trazias sempre um novo perfume para as causas perdidas. Olha quem fala, dizes, e atravessas com um olhar assertivo toda a rutilante emanação de fosforescências e desagravos. Tenho aquilo de que precisas enquanto não reclamas e é com as mãos todas que ris depois comportas-te irrequieta criança desassossegas o espaço prévio com todas as intenções e possibilidades e da superfície sempre soubeste tirar espigões e – olá, como está? – a tua vontade foi sendo expatriada como um arruaceiro pontual que viesse do frio mas do mar se refugiou a estranha lua e no meio do nada o teu peito enobreceu como no meio das urzes a ambivalente errância Repara, então, como se passou o túnel de álgido piso e dos braços se levantaram as memórias como um contraforte para a evidência e um sossego para o esforço. Há um inchaço vigilante neste corpo tão magro que até dói. Tu dizias que havias de chegar e parece impossível que nunca mais chegues e do arbitrário se criou um ovo rombo e inerte como paragem de autocarro marcada por aparatoso choque
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Limpa as estrelas da boca, moça não deixes que os corações te atrapalhem mais § Escrevo para me esvaziar de mim. A cuspo. Para me libertar das musas. De um saber imperial. Dos meus órgãos calçados com planisférios. Escrevo para que te apaixones pelo que pareço e não pelo que sou: O meu interior é horrível e degradante e eu por fora um límpido sorriso de candelabros. Eu sou perigoso. A minha língua é azul. § DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS Considera este poema num impresso de IRS; considera que to dou de seguida como quem entrega o modelo 2. Considera a prestação de serviços, os encargos dedutíveis, as retenções na fonte, o total uma vogal gorda. Considera ainda as deslocações no sujeito passivo, a profissão de desgaste rápido, o consumo de água e de energia. Considera as correcções por excesso dos limites legais, as quotizações para o sindicato, os pagamentos dos serviços prestados por terceiros.
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Considera o mapa de amor tizações e reintegrações, o imobilizado corpóreo, o exercício reduzido a letras matemáticas de taxas e valores. Considera tudo isto: e paga o que deves. § MOÇA FOR MUSE Para o teu corpo criaria outdoors magníficos e circunstanciais. Os transeuntes boquiabertos apontariam com dedos tesos a tua aparição beatífica e ponderariam astros à procura de um sinal 67
Calarias a passagem do tráfego ensurdecerias a má-língua circunvizinha alimentarias o sonho de guindastes e as montras haveriam de fechar em sinal de respeito Eu, por minha vez, con sentir-te-ia lancinante e trémulo como uma abóbora, místico e surreal como um a cento de intensidade. Olhar-te-ia com formigueiro nas pernas e desataria a implorar-te o perdão de coisas que nunca foram minhas § ELEMENTÁRIO O verdadeiro sentido das palavras é que o poema consiste em falar do que não pode ser dito a quem se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras é que o poema consiste em não falar do que pode ser dito a quem se quer dizer ou o verdadeiro sentido das palavras é que o poema consiste em não falar do que não pode ser dito a quem se quer dizer ou o verdadeiro sentido das palavras é que o poema consiste em falar do que pode ser dito a quem se não quer dizer isto, claro, partindo do princípio de que há um sentido das palavras, verdadeiro, um poema e um a quem se queira dizer. 68
§ PECADO CAPITAL A Vitória de Samotrácia é mais ou menos a minha história sentimental: tinham todas um corpo e asas até mas pouca cabeça. § CONFIAVA QUE SENDO MITSUBISHI A MINHA PENA haveria de saber escrever haikus como Bashô. Assim não é, de nipónica a minha pena nada tem; a minha pena é portuguesa. Canta o fadô como ninguém.
AEROFÁGICAS Anafada aquela fada tem o condão de não gostar nada de varinhas mágicas § COMÉDIA Vazio. Queixa-se de vazio. E nisto esvazia o outro tão cheio disto tudo. § 69
OS DEUSES NÃO FUNCIONAM. Dizer meu Zeus não os engana. Sobre um muro de cal demorada nenhuma lamentação se torna mais branca, nem percorrendo bosques no enleio de ramosa dor Diana tu não me apareces. Como um veado inábil enleio os próprios galhos em galhos de frondoso alheio ou o cálice prefixa a cal como aviso. Não sei por que procuro assim um deus: ando à procura de um deus pelos bosques como de bagas.
SOBRE UMA FOTOGRAFIA Ah, nitrato de prata, nitrato de prata como ela me retrata § Belo é quem o bem pratica (provérbio português)
NÃO QUERO PROPÓSITO NENHUM SEM PROPÓSITO, KANT Não quero propositada no belo tamanha falta de propósito. Talvez seja vício de pensamento, mas, Kant, sempre do belo esperei algum propósito, por exemplo, ser bom. Erro de cálculo meu, com certeza, Kant, mas que bom seria se o belo fosse bom ou que algum bem do belo viesse. Mas nada de bom do belo vem a não ser ser belo e belo partir, assim desinteressada e despropositadamente, Kant. § CARRO Tu para aí sentada e eu para aqui sentado, os dois para aqui sentidos sem nada a dizer. Levantas-te, e dizes: dá-me a chave do carro (e eu pergunto-me o que irás fazer ao carro e tenho um medo de mil anos)
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Percebo agora que nada foste fazer ao carro excepto mijar à porta mas foi a forma como disseste: dá-me a chave do carro § A FALTA SALIENTE Obstinadamente invisto contra uma corrente contrária que obstinada investe contra mim uma musa de saliente falta. Libertar-me bem queria mas não sei se o medo se a circunstância se a melancolia me treme quando só o lance resolvia, me limita quando a imensidão pedia, me oxida o aço à porfia. Tudo à volta me comprime a uma mesquinha condição e O’Neill às vezes não existem teu machado de língua afiada, tuas ensinadas varinas de sinuosas varizes, tuas empenadas narinas de empinados narizes, às vezes O’Neill é só o vazio e as suas raízes. Obstinadamente busco um país que me maravilhe, um país das maravilhas. Não esta portugalice do ali borda-se, gato à janela, lindo postal, calçadas e motivos, velhos desdentes, sim sim, já agora, num sei, sei lá bem, pois bem, já cá não mora. Obstinadamente busco um país sem história para contar; confiar que haverá uma mesa e um lugar onde se perspectivem coisas depois do dia oblongo e da cidadela tomada; essa mesa e esse lugar nem sequer meus. Busco qualquer outra coisa que não esse, isso. Busco a tépida esfera, a plúmbea fronte ou afundar os dedos num sôfrego e talvez abster-me na insistência quando a dúvida fosse um sólido na tua cabeça e já não houvesse tampões para o horror talvez sim então sim talvez abster-me.
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Os teus poetas não me valem, os teus poetas não se lhes dá que eu morra. E esta pluma é um xamã que arde sem se ver na mandíbula dorida de apertar a palavra, inexistente sílaba da oclusão. Se houvesse uma goteira a preservar da noite o cerrar do livro! Se houvesse maneira de não morrer! Insisto obstinada e dementemente busco um país. Esqueço-me da corrente que acomete, falha a previsão é um fusível, um grifo alcandorado nos cabos de alta tensão. Penas pesadas as dos mitómanos: serem investidos numa sociedade sem grifos onde galifões beijam com saliva viperina o lábio rubro do inocente efebo e lambuzam a mordiscadela posterior com desvelo clínico e libações ordinárias. Este é o teu país O’Neill, que destrói as ondas e as praias e descura feridas individuais de beijos sociais, 72
o mensageiro do amor que as vagas tala a trazer-te a proposta disjuntiva sem saída: se a cana do nariz intacta então a cana de pesca partida. § ANDA MEU RELÓGIO, VÁ, DESPACHA-TE Por que te alongas nessa cama d’horas Quando nestoutra cama de demoras Dela a falta me atrasa e desanima? Vá, reage, acorda, desatarracha-te, Revolta-te, dá a volta por cima. Tuas pontadas são frias e lentas, Pareces coração de velho trengo. Em mim outro cronómetro, um podengo, A cada quarto teu deu novecentas. Tu que antes te apressaste a apressá-la Como descansas agora e bocejas? Maldito prumo que ora me fraquejas: Não me és digno do pulso mas da sala.
§ DESCUIDO-ME DA VIDA, ABRAÇO A OBRA Eu vivo, quase apenas p’ra dizê-lo, E cada sentimento p’ra vivê-lo Apenas se de meu nada lhe sobra. Vai gorda a lua, nutre-me a magreza, Os sonhos que me cumprem metabólicos No fio da existência os hiperbólicos Tormentos, mutilada inteireza. As musas forço, o coxo que me escolta Sob as penas arqueadas de ferreiro Tira áureas Afrodites do braseiro – Um brando odor violento estupro o solta. P’ra isto foi a mártir flor pisada: P’ra ser por seu perfume coroada. § QUE TRISTES AS PALAVRAS, P’RA AQUI POSTAS Sem nervo, chochas, magras, lamentando O jeito que à dor dão, mais refilando Que chorando, maçada que é! , de costas P’ra mim, inoportuno sofredor, Galanteador sem chama, ao deus dará, Que sempre as chama, quando deixará De as chamar ele, amar, morrer a dor? Bem sei o que lhes vai, ir quereriam Também, nas mãos me sofrem, e confesso De bom grado deixá-las-ia, e meço-as Bem, mas fossem e a quem se entregariam? Castigo-as, não vão noutro mais sofrer. Cabras, não sabem, dizem, que dizer. § NÃO SEI, DE TANDO LADO VEM O APELO, Esta urgência de estar em toda a parte Vem das cidades, chama-me, ouço: Parte E eu queria, mas não hei-de, não o anelo. Sou lento, sou lentura, sou um gelo,
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Dilato-me por mim, é tudo, arte De Ártemis que não soube, quis, caçar-te E em natureza morta pôs desvelo. Fico-me aqui co’a minha própria pena. É pena, tanta pena e não me voo, É triste, tanta tinta e não me escrevo. Fico-me escravo aqui do meu enjoo. Mais tarde quando ouvires a cantilena Destrói a carta que eu por mim não devo. § O NOME, EVITARÁS O NOME, A IDEIA. Esquece Ítaca, ao contrário do que dizem Não lembres esse porto, não o pisem Teus pés na mente mais, desfez-se a teia. Marujo que ontem foste hoje és de terra, Em terra as velas plenas não as chames, Na noite do delírio não o exclames, O nome, a língua morde, os dentes cerra. Não digas Em memória o sonho o sigo Que o sonho é futuro sem memória; Diz antes Não sou digno desta história Nem deste vasto céu, do mar índigo. Aceita a tua sorte, às águas lança-a. Alija o lastro, o cabo corta, avança!
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§ AGORA QUE O SISTEMA SE AGREGOU E eu sou metade bem, meu mal metade, Um quase cheio mal, meu estar me invade E vai de perguntar por que não vou? Onde hoje estou ‘inda ontem foi meu rogo E na garganta ainda levo graças Por bênçãos ontem répteis hoje garças Que hoje o ontem é de novo fogo. Instável ser, mulher, Rosa-dos-Ventos, Subtracto à razão, ao radar de Deus Patente apenas, que ínvios sãos os teus Caminhos, que fugazes teus assentos!
ร s como um marinheiro que se enjoa Dum calmo mar que evoca a vida boa! ยง
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FILIPA LEAL | [poema dedicado a Jorge Sousa Braga]
Há um girassol que só se vira de frente se dissermos o seu nome. § O PRINCÍPIO DO AMOR As pessoas ordenavam-se mal. Ordenavam mal o princípio do amor, da cidade. Faziam filas (e filhos) à porta. Ordenavam-se talvez como quem conhece o trajecto para casa. Sonâmbulas, repetidas: ordenavam, ordenavam.
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Algumas enlouqueciam pacientemente à porta, antes de entrar. Entende: ordenavam-se tão sem desordem nessa espera que algumas morriam imediatamente à porta logo que entravam. § O PRIMEIRO HOMEM Era um homem viciado na luz. As mulheres que diziam “o homem, o homem” levantavam-se ou levantavam os olhos
ofuscados e repetiam o homem e apontavam confusas para dentro do olhar do homem. O homem achava estranho que elas dissessem apenas isso: “o homem”, e um dia disfarçou-se de mulher para se esconder da luz. Da primeira solidão do homem ninguém falou. Ninguém repetiu a primeira solidão do homem. § SE AO MENOS A MORTE Ela morria tantas vezes em tiroteios à porta de casa que já não sabia morrer para sempre assim de uma vez só. Se ao menos marcasse um dia para a morte, uma hora certa como no dentista que apesar de tudo nos faz esperar onde apesar de tudo não sabemos quando será a nossa vez. Se ao menos a morte tivesse revistas e gente na sala de espera não estaríamos tão sós tão vivos nessa ideia final nesse desconforto. Poríamos o nome na lista quando estivéssemos prontos sabendo que seria fácil desmarcar marcar para outro dia ou simplesmente não comparecer. Depois, ficaríamos com a dor,
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com o terror de passar sequer naquela rua como ela à porta de casa. Ela que morria tantas vezes porque morria de medo de morrer. § ODE LOUCA Todos os homens têm o seu rio. Lamentam-no sentados no interior das casas de interior e como o poeta que escreve a lápis apagam a memória com a sua água. Os rios abandonam os homens que envelhecem longe da infância, e eles choram o reflexo absurdo na distância. Por vezes, enlouquecem os rios, os homens, os poetas nas palavras repetidas que buscam uma ode que lhes diga a textura. Todos procuram o mesmo: um lugar de água mais limpa ou um espelho que não lhes negue a hipótese do reflexo. O rio sofre mais do que o homem, o poeta, porque dele se espera que nos devolva a imagem de tudo, menos de si próprio. Todos os rios têm o seu narciso, mas poucos, muito poucos, o simples reflexo das suas águas. § NO FUNDO DOS RELÓGIOS Demoro-me neste país indeciso que ainda procura o amor no fundo dos relógios, que se abre como se abrisse os poros solitários
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para que neles caiam ossos, vidros, pão. Demoro-me no ventre desta cidade que nenhum navio abandonou porque lhe faltou a água para a partida, como por vezes desaparece a estrada que nos conduz aos lugares e ali temos que ficar. § POR UMA LUZ REAL A rapariga debaixo da luz verde da árvore parecia usar a máscara disforme dos pesadelos. Era uma imagem nítida, quase branca. Fumava. Olhava-me para dentro do medo sem rosto debruçada, lenta, circular. Era noite. Eu estava na rua à tua espera. Na rua não, no carro. Eu estava no carro de vidros abertos de olhos abertos debruçada. Mas felizmente tu chegaste com a tua luz real (tão real) para me interromper o pesadelo.
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QUARTO MINGUANTE Os adolescentes da cidade deitavam-se cada vez mais cedo. Faltava-lhes o espaço para a náusea desse lugar diminuto, desse tédio que só no quarto a sós lhes denunciava a paixão. Os adultos da cidade deitavam-se cada vez mais tarde. Não suportavam a náusea desse lugar diminuto, desse tédio que no quarto só lhes denunciava a solidão. 80
§ O PESO DOS LIVROS Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento. Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente. Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro. Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando não conseguimos respirar. Quando pensei nisso, tive uma vaga noção de título. E um hálito branco a querer ser página. § NO PRINCÍPIO ERA Não dormia sem o escuro absoluto. Doíam-lhe os olhos de ter visto cidades,
de ter esquecido gente, do frio do vidro nas palavras. Demorava tanto a entender o mundo que agora não dormia de muita luz que as coisas tinham antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto nesse lugar onde vivia com outros como ela que às vezes pensava: tão estranho nascer (quer dizer, nascer mesmo, estar aqui) para o dia passado com estranhos. E por isso, no princípio, não dormia sem procurar o amor, sem beijar na testa a noite que acabava serena e exausta como a noite. No princípio era. Depois esvaziou-se com cuidado. § DIGO-TE POR ISSO 81
Digo-te por isso que não me obrigues a luz. Que escrever não é fácil, que viver não é fácil quando começamos a frase a meio. Que lavo a cara ao chegar tão tarde e mesmo assim o dia não se despega, e mesmo assim tu não estás, ninguém está. Que não tenho espaço na minha secretária, na minha vida, na minha cama para tanto espaço. Que já me disseram urbana, e nem por isso me disseram decadente, e que eu gostei. Que já me disseram muitas vezes disfarçadamente triste, e que por isso, por ser triste, por sermos todos tristes, não mo deviam dizer. Digo-te por isso
que não era minha intenção dizer-te mais uns versos tristes e sem luz, e por isso, só por isso, não era minha intenção dizer-te nada. § O HOMEM QUE EXISTIU […] II. A melancolia é uma questão de tempo, disse-me o homem. Era um homem que existia, normal como os que existem. Daqueles que não costumam vir nos poemas porque não são centros de metáfora ou de revolução. Porque não gritam nunca. Porque não dizem não. Hoje sei. A melancolia é uma questão de falta de tempo. § CARTA DO AMOR DE INVERNO Não sabia ao certo o que queria dizer. A voz regressava-me intacta, sem sentido. Ousava-me sem destinatário quando os poemas eram fórmulas e os dias tão quentes. Ligava-te para pronunciar. Os sons quase te enlouqueciam na incapacidade, na minha incapacidade das palavras. A ideia, juro, parecia quase nítida até que me atendesses. Mas quando ouvia a tua voz cheia de sentido,
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quando era eu o destinatário do meu cálculo indeciso, lamentava serenamente a próxima morte. Então dizia coisas estranhas, como: Estou de frente para o mar ou: Tenho medo. Dizia quase palavras e tu, num português exaltado, magnífico, lembravas a tua falta de medo, a tua rigorosa capacidade. Rejeitavas-me violentamente os sons, essa espécie de versos que pareciam servir-me para tudo. Dizias coisas estranhas para mim: palavras. Falavas-me de objectividade, de eixo, de grandeza, da urgente possibilidade das marés. Despedias-te dizendo para eu não ter medo, ou apesar de eu ter medo, como se me tivesses ouvido a falar nisso. Hoje penso que talvez fosse ainda cedo para a linguagem. Que talvez fosse ainda excessivamente Verão. Mas agora deixaste-me mesmo e eu continuo de frente para o mar. Não dividimos casas nem quadros mas peço-te que partilhes comigo esta responsabilidade – é que neste amor tão grande há uma preocupação que prevalece, intacta: Quem avisa as andorinhas? § […] Eva conhecia o medo inicial, não da solidão, não do pecado, mas de alguma inexistência. Trazia consigo a sensação da inexistência do mundo. Não sabia de onde chegara, e talvez por isso lhe parecesse errado partir. Ouviu: – Se partires, não regressarás a lugar algum. Nunca se regressa partindo.
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§ […] Ouviu: – O fascínio é o perigo em que te moves. Em breve, conhecerás o abandono. Eva abriu a arca. Dela retirou o pó e a serpente em forma de coração. A nudez de todas as coisas começou a assombrá-la. Percorria a pele com aquela forma indefinida. Colocou-a sobre a árvore como se a coroasse. Depois sentou-se, e chorou. Sentia um profundo cansaço. Não dormira durante muitos dias, porque quisera estar atenta. Tão atenta. Agora não sabia descansar. Não sabia como ocupar o espaço. Não havia, em suma, um lugar que não fosse dessa árvore que se tornara branca como as paredes e as maçãs agora apodrecidas a um canto, gastas. §
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JOÃO HABITUALMENTE | MOSAICO LUSO-BRASILEIRO Povo que lavas no rio por que não lavas na fonte? É de pau é de pedra numa casa portuguesa concerteza talhando com teu machado as tábuas do meu caixão e depois do adeus é o fim do caminho as águas de Março fechando o verão É de pau é de pedra o povo que lava no rio e como bandos de pardais, os putos dragão tatuado no braço calção corpo aberto no espaço o menino é de oiro é de oiro o meu menino Gosto muito de te ver, leãozinho talhando com teus dentinhos as tábuas do meu caixão a morte saiu à rua num dia assim são as águas de março fechando o verão Na casa da mariquinhas pão e vinho sobre a mesa coimbra é uma canção mesmo depois do adeus e o rio de janeiro continua lindo do choupal até à lapa ainda há povo no rio são como bandos de pardais mas por que não vão para a fonte? vai formosa e não segura tua pele tua juba gosto tanto de te ver, mariquinhas numa casa portuguesa concerteza
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Está na hora de embalar as trouxas e zarpar são as águas de março nas tábuas do meu caixão § ESPECIARIAS (homenagem à parte sórdida do cancioneiro medieval)
Comi a Nela tarada Comi-a com noz moscada Comi a a tarada da Nela Comi-a toda com canela Com gengibre e açafrão Comi-a de pé e no chão Comi a Nela ciumenta Comi-a a mesmo com pimenta Das cuecas aos colarinhos Empurrei-a com cominhos Veio-se a Nela vezes mil Comi-a sempre com caril Com piri-piri e molho Comi-a toda até ao olho Comi a Nela tarada Comi-a com malagueta E agora não como mais nada Vou tocar uma punheta
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§ APOCALIPSE recatai-vos velhas fugi para a igreja abanai o sino fechai bem no quarto o vosso netinho o vosso menino para que não veja para que não saiba para que não seja
assim como esses que são cabeludos que só têm barba dizem palavrões e dão encontrões nas ruas da baixa aos senhores sisudos são uns parvalhões recatai-vos velhas trazei um polícia uma esquadra inteira ai tanta sujeira imaginem só andam-se a drogar até metem dó a cambalear isto está perdido ó velhas fugi ide para ali que aqui está fodido recatai-vos velhas tapai as orelhas guardai o menino fechai-o no quarto metei-o na cama para que não veja para que não ouça para que não seja para que não tenha para que não venha perdeu-se o respeito já não há moral ó velhas fugi olhem para ali beijam-se na rua fodem ao luar antes de casar já nem vão à tropa
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só querem dinheiro todo para estourar já nem vão às putas mostrar que são homens ó senhor prior já nem vão à missa não têm missal isto é um horror vamos mesmo mal fechai os olhos não vejais o netinho guardai-o no fundo de um quarto comprido para que não veja para que não tenha para que não seja para que não venha recatai-vos velhas que já nem na praia se consegue estar ó virgem maria ó senhor do céu essas estrangeiras deu-lhes para andar de mamas ao léu a tremelicar ó velhas cuidado assim é que não ‘inda a procissão só vai no adro não deixes que a merda se ponha a medrar gritai pelas ruas falai prós jornais morra a juventude fine a desvergonha
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chamemos quem ponha estes animais c’o a corda rente ó velhas chamai o presidente libertai-vos velhas vinde para o sol dançar rock n’roll ide até a lua c’uma ganza fixe esticai o dedo apanhai boleia fumai muito haxixe ponde a casa cheia dos nossos poetas dos nosso malucos andai de autocarro a fugir ao pica 89
libertai-vos velhas não pagueis a taxa acabai com a graxa aos vossos patrões cagai no juízo nas boas maneiras cagai nas peneiras ó velhas então? vinde para aqui para a confusão ó velhas vesti uma mini-saia deixai que vos caia esse ar tão mortiço essa cara chocha mostrai a coxa gritai uma asneira uma malandrice pelos microfones
das rádios-pirata ouvi os Police os Rolling Stones não vos afogueis em mais água benta bebei um bagaço jogai a dinheiro ide ao cangalheiro adiai a morte ide pelo mundo por estradas à sorte vinde para aqui para o reviralho e se não quiserdes ide para o caralho! § AGRADECEMOS 90
Agradecemos em júbilo pela oportunidade que nos deram, estamos reconhecidos aos donos da vida. e em romaria lhes beijaremos os anéis nos altares onde estiverem. nós, os que adoramos viver, sentimo-nos na obrigação de agradecer. aos patrocinadores, colaboradores, a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho, aos que nos entusiasmaram encorajaram enrabaram e aos que ainda estão para vir agradecemos a colaboração ao haxixe de marrocos à febre de malta ao vinho da casa à heroína
que casa com o cowboy lá para o fim do filme agradecemos ao fim do filme por ter acabado às sombras da tarde por fazerem sombra à tarde aos caminhos d’aldeia por cheirarem a merda de vaca ao senhor padre por ser virgem nem ele sabe a importância que isso tem nós também não agradecemos ao white horse royal label aos pudins flan os maravilhosos momentos proporcionados 91
à nossa namorada as incontáveis fodas e as que demos sem contar à mulher-a-dias pela religiosidade com que nos lavou as cuecas pela afeição com que nos viu crescer pela idiotice de nunca querer ter sido mais nada agradecemos ao presidente da câmara ter perdido as autárquicas aos partidos no poder e aos que ainda nos hão-de vir foder às sogras tios e primos a paciência de serem há tantos anos da família agradecemos ao sol da praia aos pardais ao ar lavado e a todos os outros heróis mortos em combate e imortalizados amortalhados em grandiosas estátuas muros de betão
agradecemos aos morcões e aos estúpidos trissómicos e outros produtos das aberrações cromossómicas a beleza com que são horríveis é aí que vemos a infelicidade de que escapámos é aí que temos a noção do tamanho bonito de existirmos assim agradecemos à dor aos sofrimentos inúmeros com que bordamos os nossos dias porque nosso será o reino dos céus aos ladrões e às putas aos corcundas aos paralíticos pela sensação de imprevisto quando caminhamos na rua por exibirem conceitos tão próprios de vida e juramos passar a cumprimentar toda a gente estar infinitamente gratos infinitamente gatos piolhos porcos morcegos infinitamente coisos despidos ao frio vestidos ao sol saias casacos camisas gabardines de vénus tanta roupa tanta sobre chãos corpos galácticos juramos estar infinitamente gratos a todos os casais felizes uniões duradouras bodas de prata por demonstrarem o conceito da felicidade emparedada o valor da paciência o infinito do esforço agradecemos à arte à ciência à história à sociologia à política à religião darem emprego a tanta gente
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agradecemos à tecnologia aos motores pelo mesmo motivo às fábricas aos computadores idem e a tudo quanto faça barulho cheire mal foda a vegetação os rios os sóis a aragem porque inevitavelmente somos a favor de uma poluição avançada, não dessa como nos países de terceiro mundo que é feita de gente magrinha feia de ver. Defendemos uma verdadeira poluição pesada d’acordo com os padrões europeus agradecemos à tropa, verdadeira escola d’homens e à escola tropa de meninos agradecemos a cristo marx reich pela inutilidade prática das suas demonstrações e agradecemos a todos quantos fizerem demonstrações cheias de inutilidade prática terem tido tanto êxito não nos esqueceremos igualmente dos nossos teóricos já lhes basta a infelicidade de serem teóricos de se esquecerem de comer tudo a bem dos teoremas teóricos explanações metafísicas conceitos epistemológicos não podemos claro deixar de sentir ternura pelos nosso teóricos agradecemos às entidades divinas a força que nos dão a garra o querer e o tesão
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e agora não agradecemos a mais ninguém porque vamos comer um bom bife talvez devêssemos agradecer à defunta vaca porque sempre em tudo o que façamos sem dúvida contraímos obrigação de comer um bom bife e foder uma garrafa de verde o que é um acto poético de incomensurável estética. § NEM TANTO AO MAR Amo o mar porque não tem fim e os vagabundos que não tem pilim Mas pelo meio das formas e das aparências sem fundo parecendo que amo o mundo amo-me sobretudo a mim Talvez venha a querer ao mar ou vagamente a um vagabundo talvez os ame no fundo Mas no rodar infindo daquilo que não tem fim quero-me principalmente a mim Ao resto das formas e das aparências do mundo amo só assim-assim
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AQUECIMENTO GLOBAL Vinde a mim Prados do fim do mundo Quanto tempo terei ainda para vos pastar? Era verde A erva que agora vos amarelece Mirrais sob o vento sulfúrico Andam-vos por cima as aves desorientadas Nem sois figura nem fundo Vinde a mim Bosques em agonia Quanto tempo sereis ainda a minha clorofila? Morreis agora mais rápido que as aldeias Sepultando na lama insectos teratológicos Olha, filho, o prado que seca Olha o bosque que amarelece Desiste, pois, de colher tangerinas E cinge-te aos pedregosos leitos falecidos Não temas: são as novas cores do universo Prepara-te para a grande festa E vem brindar ao aquecimento global Às turbulências, aos ciclones ao efeito-estufa em espiral São belas, as novas vestes da princesa Não vês como ainda respiro? Plano nas cinzas de tudo quanto acontece Sou um transgénico em passeio no pinhal Venha o ronco telúrico ebulir o planeta Seque prados, arda bosques Ponha estios nos Invernos Ponha pólos no equador
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Que a mim Nem me aquece nem me arrefece § EM TODA A CASA pelas paredes cheira ainda à tua pele cutânea mas desde que te foste estar aqui é oco, cansativo, uma espera. E às vezes (como se tivéssemos chorado) respirar custa. sobretudo nada apetece. sair para a rua? Ir então em frente a repetir os passos, passear nas avenidas a espaçar as horas – dispersar a espera? tudo cinzento. Choverá? aqui é que não fico. No quarto onde dormimos o espaço sobra, e cada coisa já morreu ou está a mais. em toda a casa uma violência subterrânea: a tua ausência § O NOÉ TINHA UM GINÁSIO Olha um leão! E uma barata a fazer a esparregata! Aquela ali é a Alexandra? Vejo um besouro a nadar e um canário no espaldar e até a salamandra nos exercícios de argolas o Almeida nos halteres com um belo fato adidas uma mosca no decatlo o quê? Vou jogar pelas mulheres? Coitadinhas! Estão perdidas!
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O besouro vem à tona tenta nadar mariposa o tatu na maratona e a raposa, e a raposa? Um pugilista suado leva socos vai ao estrado o remador afundou-se aquela ali é a Alexandra? O Almeida está cansado quer desistir da carreira esta perna é da barata? partiu-a na esparregata. A avestruz que é fundista corre corre faz batota a águia e a galinha na luta greco-romana a Quicas e a Lili a foder na minha cama onde se meteu a Alexandra? Andará essa malandra nos exercícios das argolas? Olha um leão! Canção Alentejana A menina estava à janela com o seu cabelo ao vento Pus-me nela mas nem mesmo da vidraça da minha própria janela lhe podia ver a graça espelhada no relento E nem mesmo a vi a ela Não me vou daqui embora (nem que chovam canivetes) sem levar uma prenda tua sem levar a roupa dela Pode ser que seja bela e enquanto estiver nua
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hei-de à noite pôr-me nela na minha pobre janela com o meu cabelo à lua. § FOGO De que valem o certo e o regular? E o chão liso, um tapete p’ra andar? Não vou a passo – antes quero correr És o fósforo e a chama se quisesse fugia – prefiro arder § DRÁCULA APAIXONADO 98
quero o teu colar o teu pescoço o teu arfar (e quero-te, claro, a veia jugular) § DEIXÊMO-LAS PASSAR AS VACAS As vacas ao irem para o bebedouro deslocam-se em linha recta até depararem efectivamente com o bebedouro Antes disso ninguém as detém senão exactamente antes daquilo que lá foram fazer
e se não beberem aguardarão com paciência divina o regresso de outros pardais. É que é pelo fim da tarde que vêm os estorninhos toutinegras e pardais e é através deste processo que as vacas se inteiram da necessidade de se deslocarem até depararem efectivamente com o bebedouro antes disso, já sabemos, ninguém as detém. O que me agrada nas vacas é o pouco tempo que perdem a pensar nos homens é isso que fundamentalmente me agrada nas vacas, agrada-me logo a seguir à linha recta que traçam quando as toutinegras decidem que é hora de matar a sede. Ninguém as detém, nem aos pardais e de resto se assim não fosse não haveria orquestra para compor o fim de tarde nem nada. Antes mesmo das sete badaladas e tudo antes das velhas de xaile. Dirigem-se à igreja efectuando um esse no sentido de evitarem o galope denso de linha recta dos animais impelidos pelo recital de fim de tarde dos estorninhos e é então vê-los numa linha a direito, simples, insistente, direccional numa caminhada sem a diagonal ou atalho até depararem efectivamente com a nitidez no bebedouro.
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O INCÊNDIO (mote e glosa sobre a beleza do fogo)
mote: fogo, fogo, fogo glosa: que belo que é o fogo fogo, fogo, foge do fogo afago a chama do fogo e afogueio-me na brasa morna em breve pele queimada aparecem já os bombeiros e diz o comandante exibindo as inúmeras queimaduras do terceiro grau que enfeitam a sua bravura: 100
a mim não há fogo que me foda venha de lá essa labareda ainda agora havia fogo e já me afogo na água que matou o fogo § (2 poemas dedicados com carinho aos poetas da Nova Renascença e às suas esposas)
BIONOXITREMOS Donde brota o dês encanto das aves esbu galhadas? e em que canto o recanto dos pássaros?
em que águas afogam o pio? § HINO TÁCTICO VAZIO do ovo a clara e a algema do poema o estratagema § O HÍMEN E a altivez agressiva desta pila que rejubila e sobe para o céu? Enrijece está tão hirta direi tesa? e aponta para o hímen esse véu.
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§ AS RAPARIGAS DA ALDEIA Tenho sonhado às vezes com as coradas raparigas da aldeia trazem um leve cheiro à palha e preenchem-me a necessidade de mamas abundantes. Convidam-me mesmo quando olham para o chão Tenho a impressão de que fodem como animais antigos: na lentidão de enormes carapaças num fragor de pedras cravando espinhos ao rebolar
Preferem a luz turva do fim do dia retornam ao povoado discretas na companhia dos bois e um botão a menos na blusa Gosto das raparigas da aldeia. Aos domingos de manhã varrem o lar e dão lustro às panelas de tarde andam em ranchos dão gritinhos, fogem para o mato Quem me dera pôr-me nelas! § A CRIATURA Era uma criatura oca vazia por fora vazia por dentro nem alta nem baixa nem nova nem velha de feitio brutal e forma barroca Era tão oca que nem o vento a enchia nem a chuva a molhava e o vento soprava e a chuva chovia nada disso a movia oca da cabeça aos pés por cima e por baixo de frente e de esguelha oca de lés-a-lés castanha cinzenta e cinzenta castanha nem o raio a tolhia nem o sol a suava Era uma criatura que se auto-devorava
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comia a boca com a sua própria boca dava urros aos seus próprios murros deglutia as entranhas e outras coisas tamanhas era oca e bacoca dum cinza metal não tinha cabeça porque a tinha no estômago e tinha tijolos no lugar dos miolos era oca e bestial comendo com a própria boca mesmo a parte mais oca a oca vazia mesmo essa comia Certa bela manhã saciada de si saltou para as rua espalhando terrores rompeu a roncar largando vapores comeu três poetas e meia dúzia de artistas comeu os livreiros e os alfarrabistas pintou a manta e matou três pintores Era uma criatura oca tão oca e vazia que todos olhavam e ninguém a via tanto cirandou que fez o que quis roubou a princesa comprou um polícia e casou c’o juiz Um dia já de certa idade subiu ao poder e comeu a cidade
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JOÃO NEGREIROS | O INTERRUPTOR hoje quando estava a sair de casa olhei para o relógio e percebi que devias estar p’ra chegar e então deixei a luz da cozinha acesa porque é a que gasta menos para que não encontrasses a casa às escuras na chegada mas depois pensei melhor ao chegares vendo a luz acesa podias pensar que eu estava em casa a fazer-te uma sandes de atum ou um cachorro e ias ficar desiludida porque eu estou a sair 104
e quando chegares já me fui e vais sentir a mostarda ou a maionese no canto da boca mas vai ser mentira por isso para não te desiludir mim a casa escura
saio deixando atrás de
para não te magoar § CARA dá-me o teu rosto finge que é o meu dá-me o rosto finge que não é agora dá-me o rosto ama-me como quem mastiga dá-me o rosto sem expressão que eu faço o resto dá-me o rosto p’ra chorar por ti sangrar por ti queimar pestanas por ti
e corar por ti dá-me o rosto um qualquer um um aquele que não faz falta e que dás às viúvas nos funerais dá-me o rosto o da manhã túmido cansado do que vai ser a seguir dá-me o rosto que eu prometo que não o estrago dá-me o rosto que eu que eu que eu ponho-lhe creme hidratante dá-me o rosto que o meu sobra-me está gasto foi p’ra longe o meu não sei acho que até o esqueci dá-me o rosto aquele que já não vês que eu prometo usá-lo como se fosse meu § A ÚNICA VERDADE ABSOLUTA As pessoas quando sentem fazem-no com o coração é no trajecto p’ra cabeça que se perde a informação
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§ QUARTO CRESCENTE vou pintar uma parede de cada cor e encostar-me a cada uma para que cada uma seja [o que eu quero construir mas como só tenho quatro quatro não chega por isso vou lá para fora imaginar [paredes para que se façam muros que eu quero cair uns altos e até ao tecto que está a fazer de céu eu quero pintar o ar como quem pinta paredes para sentir os desafios como um ar que [se lhe deu e vou respirar distâncias para as cheirar mais perto e vou escalar o areado como quem rasga os dedos e ainda assim sorri porque sobe [como quem morre vou pintar o mundo de uma cor única que são todas e matizar as pessoas com nuances subtis para que sejam coerentes mas eu vou ficar transparente para que vejam por mim o que eu não quero que dói [muito
só que o ar anda racionado e o homem racionalizado e dizem-me que o não faça que fique quedo como quem respira só para fazer [circular o ar como o polícia que diz do acidente que aqui não há nada para ver e fecharam-me à chave e fecharam-me a chave dentro duma gaveta que está lá fora e lá longe e estou a fazer pequeníssimos quadrados nas paredes do meu quarto para simular a [imensidão do mundo mas não me chega falta-me gente e até pus um anúncio no jornal a pedir [gente pequenina em part-time para me inundar as paredes vestidas de quadrados que fazem de muros das casas das pessoas lá fora e dentro do meu quarto corre bem e agora nem são quadrados são manchas que eu nem distingo
corre muito bem porque as cores começaram [a intrometer-se nas almas umas das outras que eu nem percebo
que eu nem sei ao [certo que viajam como quem corre
manchas que se misturam como quem nada como quem escorre do tecto como quem escorre do chão ao tecto como quem escorre de fora para dentro como quem se entranha como quem se une como quem se mune de aventuras e segredos que quiseram ser contados para [deixarem de existir e a perfeição do mundo interior é ter as barreiras simples feitas para cair e a sua única tristeza são as arestas que choram no canto porque separam a mãe do [filho e a solidão da aventura e ao meu quarto só lhe falta ser circular para ser o mundo mas lá fora circula e um dia hei-de sair para dizer a todos que se espalhem ao comprido e debaixo uns [dos outros como quem ama sem saber como como quem chama sem saber quem como quem brinca sem saber a quê e vou-lhes ensinar a verdadeira linguagem dos afectos
e o mundo vai ser de uma cor
melhor
que é moldável [palpável e daltónica
o mundo vai ser de duas cores da [minha e da tua
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SEREIA SE QUISERES Anda depressa dormir que eu prometo que vou fingir que não adormeço. Entras-me a meio do sonho como a sereia que fez do início das escamas a cintura… para se fazer mais fina, mais estreita, mais estreito que sou eu… que até cabo em ti com o mar à volta… como um mau português que se afoga na salitre das tuas vogais parasitas que nunca me soam a mais. E tenho a mania que te amo só porque não conheço ninguém melhor… ou melhor… até conheço, ou conheceria se tivesse a imaginação mais fértil… para te imaginar como a irmã feia e burra da mulher mais que perfeita que não existiu no passado. Mas como não me sai da cabeça a imagem… nem com shampoo… e, como a mulher mais que perfeita nunca vai dar à costa, tenho de me contentar contigo que és só a perfeição. És tu, és só tu. E tu: – Serei… sereia… serei a… se tu quiseres. E eu… à falta de melhor… quero. §
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JORGE SOUSA BRAGA | MISSISSIPI Há muito tempo que não saio de casa (a não ser para ir ao supermercado ou à [geladaria) Se soubesses a confusão de rios que vai no meu quarto Estou morto por te apresentar o Mississipi Estou morto que venhas estou morto por ouvir o som irritante da campainha da entrada Há muito tempo que não saio de casa Se soubesses a vontade que tenho de passear no interior da tua orelha § ACONTECIMENTOS EXTRAORDINÁRIOS NA CIDADE INVICTA […] 108
4. Na reunião da comissão de moradores de um dos bairros da cidade foi aprovada por unanimidade a substituição dos candeeiros de iluminação pública por pirilampos. § O GUARDA-RIOS É tão difícil guardar um rio quando ele corre dentro de nós § A borboleta que poisou no teu mamilo perdeu vontade de voar §
Só tu sabes sorrir na vertical § Nem todos os frutos vermelhos merecem o céu da tua boca § NOS SEMÁFOROS DA RUA DE SANTA CATARINA Ao menos os teus olhos permanecem verdes todo o ano § 109
DIÓSPIROS Há frutos que preciso acariciar com os dedos com a língua e só depois muito depois se deixam morder § SAGRES Só tenho uma ponta de cigarro para fumar E para apagá-la: todo o mar
PORTUGAL Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais e nunca mais voltasse Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente Portugal Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional (que os meus egrégios avós me perdoem) Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo Anda na consulta externa do Júlio de Matos Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas Portugal Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador Portugal Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém Sabes estou loucamente apaixonado por ti Pergunto a mim mesmo como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade Portugal estás a ouvir-me? Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de [Braga ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou Portugal Sabes de que cor são os meus olhos?
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São castanhos como os da minha mãe Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca § MONTANHAS 1. Quando uma montanha se apaixona tudo pode acontecer… Começar aos saltos ou então ficar para ali deitada a olhar as nuvens. Convém por isso não a escalar nesses dias e sobretudo não beber da água das suas nascentes. 2. As montanhas apaixonam-se com frequência. Vestem-se de branco. De verde ou azul. Por vezes abrem as pálpebras. E a lava da sua paixão corre-lhes pelas faldas. 111
§ CARTA DE AMOR A Eugénio de Andrade
Um dia destes vou-te matar Uma manhã qualquer em que estejas (como de costume) a medir o tesão das flores ali no Jardim de S. Lázaro um tiro de pistola e… Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto Podes invocar Safo, Cavafy ou S. João da Cruz todos os poetas celestiais que ninguém te virá acudir Comprometidos definitivamente os teus planos de eternidade Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão Um dia destes vou-te matar… Uma certeira bala de pólen mesmo sobre o coração
POEMA DE AMOR Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno e quase ia morrendo com o receio de que não te coubesse no dedo § Todos aqueles que nos primeiros dias de Março perscrutavam atentamente o céu ficaram desapontados. Este ano as andorinhas chegarão atrasadas, devido a uma greve dos controladores de voo. Um homem que se passeava nu na Praça de S. Marcos em Veneza foi salvo no último momento de ser preso por atentado ao pudor, por um bando de pombas que o vestiram completamente de branco. Todas as pessoas deixam uma marca indelével no século por onde passam, uma pegada na areia ou o nome escrito em letras de oiro no pedestal das estátuas. A única marca que quero deixar é uma pequena mordedura atrás da orelha. 112
§ 3 AM Mãe Não consigo adormecer Já experimentei tudo. Até contar carneirinhos Não consigo adormecer Nem chorar (Que maior tragédia poderá acontecer a um homem do que a de já não ser capaz de chorar?) Mãe Sabias que o cordão umbilical pode funcionar como uma corda num enforcamento? – tenho aprendido coisas bem singulares neste convívio com os deuses – Um dia destes regressarei a Tebas para ser coroado Reservei hoje mesmo um lugar num avião das Linhas Aéreas Gregas Gostaria de brindar contigo com uma taça de orvalho antes de partir
Mãe Detesto coberturas de açúcar mesmo que levem limão Isto é tão certo como o é tu não me compreenderes Estava a sonhar que estava a sonhar e assim por aí adiante até ao infinitivo. Depois acordei. E fui descendo vertiginosamente de sonho para sonho Ainda não parei de acordar. E de sonhar Mãe Tenho uma surpresa para ti um caramanchão para que te possas sentar todas as tardes a catar estrelas na minha cabeça Mãe Abriu um concurso para preencher uma vaga de ascensorista no Paraíso e eu concorri Achas que tenho alguma hipótese de ser admitido? – tenho a boca cheia de formigas – Mãe um dia hei-de subir contigo degrau a degrau o arco-íris
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§ STRIP-TEASE Quanto mais me dispo menos nu me sinto § PASSAGEM DE FIM DE SÉCULO Vou comprar a Vénus de Milo para a pôr a servir de cabide no meu quarto Um arroto dos meus é mais romântico que uma valsa de Strauss
No fundo o que eu tenho é vocação de incendiário Assim como Nero Como não posso incendiar Roma contento-me em incendiar o teu coração A minha linguagem muitas vezes confunde-se com a do vento Ambos estamos metidos até ao pescoço no comércio do pólen Não ponham orquídeas à minha frente senão vomito O céu azul e as tuas mamas são rosadas Obrigado mas só bebo leite pasteurizado Se pudesse pintava o céu de preto e depois punha-me a olhar as estrelas através dos teus olhos § REMOS Uma das coisas que aprendi muito cedo ainda foi a remar. De modo a conjugar o som dos remos a cortarem a água com o bater do meu coração. Aprendi primeiro a remar contra a corrente. E agora não sei – nem ouso – remar de outra maneira. § CELAS Lua cheia: com esta moeda de oiro posso comprar um sorriso § Acabei agora de comer um campo de tulipas Não sei o que fazer com tanta beleza nas tripas
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O ÚLTIMO GIRASSOL Hoje vomitei um líquido esverdeado Eram as primeiras folhas Estou prestes a florir § Vou ao céu E venho-me § VIA LÁCTEA Segundo dados da Organização Mundial de Saúde praticam-se diariamente 115
Cem milhões de cópulas em todo o mundo das quais resultam mais ou menos trezentos mil litros de esperma isto sem contar com o produto das actividades solitárias e das poluções nocturnas § A FERIDA ABERTA Há uma ferida aberta que sangra ciclicamente um cíclame que floresce às horas mais inapropriadas Quem me dera poder guardar todos esses milhões de flores
que acabam diariamente em pensos higiénicos nos contentores § CANÇÃO DE AMOR Ensinei o meu pénis a dizer o teu nome. Só ele é capaz de soletrá-lo de trás para a frente e da frente para trás indiferentemente Só ele fala como falo § 116
A RELIGIÃO DA COR A paleta está cheia de cores: azul-celeste, laranja, rosa, cinábrio, amarelo vivo, violeta, borra de vinho. Falta-me uma cor ainda. Para pintar a inexistência de Deus. § OS AMANTES Desde que Magritte pintou os amantes, estes como por magia deixaram de ter rosto. Nos jardins, nos cinemas, no bulício das ruas é frequente ver agora homens e mulheres sem rosto, abraçados. Todavia, tudo não passa dum equívoco. Sem dinheiro para pagar aos modelos Magritte optou por cobrir com um lençol o rosto inacabado dos amantes.
EPÍLOGO Estas páginas foram escritas a caminhar sobre a água, e só assim se podem ler. Não procurei nada, não retive nada. Limitei-me a acusar o choque – brutal, por vezes – de um grão de pólen ou de uma brisa inesperada. Não conheço outro ritmo que não seja o das estações. Outra música que não a das gotas de chuva nos limoeiros. Outra fuga que não a de um pássaro assustado com a sua própria sombra. No fundo, o que me recuso a acreditar é que estejamos condenados. Apesar dos prados envenenados, da lenta agonia dos rios e do mar. Da atmosfera cada vez mais carregada de cidades. Contanto que a poesia seja – continue a ser – um lugar onde ainda se pode respirar § 117
JOSÉ MIGUEL SILVA | PARTE POÉTICA Não é fácil ser poeta a tempo inteiro. Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia, pois levanto-me tarde e primeiro há que lavar os dentes, suportar os incisivos à face do espelho, pentear a cabeça e depois, a poeira que caminha, o massacre dos culpados, assistir de olhos frios à refrega dos centauros. Chegar por fim a casa para a prosa de uma carne à jardineira, o estrondo das notícias, a louça por quebrar. Concluindo, só por volta das duas da manhã começo a despir o fato de macaco, a deixar as imagens correr, simulacro do desastre. Mas entretanto já é hora de dormir. Mais um dia de estrume para roseira nenhuma. 118
§ UM ARTISTA PLÁSTICO Agora escuso de fingir, posso deixar de jogar ao erro da inteligência tardia. Eu sempre soube que os sentimentos, não os conceitos, sempre soube que os críticos não sabem nada que preste. Não me perdoo, por isso, a minha falta de fé, a cobardia que me enchia o peito. Prémios, encomendas, o aceno dos fátuos – outras tantas amarras para um ego tumefacto. É impossível fazer arte numa era juvenil, em que a lentidão dos Mestres nos parece anonimato e os deuses, acessórios, bonitas aparências. Quem vive de restos, produz restos. Jogos, formações, diversões filosofais – arrependo-me tanto. Felizmente, dei-me conta, e antes dos 40 comecei a destruir o vistoso cercado da minha impostura, o talento de falsário que demónios me sopraram. Pus de lado a brincadeira. Já não suportava a humilhação
de me apanhar em falso. Os críticos, esses, falaram de neurose, de um suposto movimento nihilista, invocaram o chavão da impotência pós-moderna. Coitados. E coitado de mim. Se pudesse começar de novo pediria a Fra Angélico menos ideias e mais solidão. O único consolo que tenho é o de saber que consegui apagar quase todas as pegadas que deixei no caminho que me trouxe a este círculo do inferno reservado a diletantes, vigaristas e decoradores. § UM POETA Eu nunca gostei de bolinhos da sorte. Quanto tinha fome bebia um copo de água, um refrigerante. Era suficiente, até à próxima crise. Praticava, com algum desdém, a arte do jejum filosófico. Não conseguir acreditar em palavras com mais de cinco letras. A realidade, talvez por isso, negou-lhe o brevet de aviador. Nem Dédalo nem Píramo nem nada. Eu olhava com terror o sorriso das praças. Na cabeça de um menino via o mapa do inferno, e até o amor me deixava sem palavras. Poeta? Não. Apenas um enorme desejo de cegar. Em suma, fui um triste, um céptico, um homem estacado na fronteira entre verdade e pânico; muito rente aos afectos e desconfiado, sempre, da ideia de cintilação. § ARROMBADOR Nunca gostei de portas, sempre as figurei como um grosseiro despotismo. Não percebia por que razão davam passagem a uns e a outros negativa. Rebelei-me contra elas, tornei-me arrombador. Decidido a contestar
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os seus ínvios desígnios, passei os vivos anos da minha juventude a estudar o idioma das fechaduras. Aos poucos fui chegando a uma secreta mestria. Nenhuma resistia à sedução dos meus arames. As portas franqueadas, e não o que atrás delas se defende, procurava. Poucas vezes roubei. Essa alegria me bastava, de introduzir desordem na composta segurança de uma casa. Agora que penso nisso acho que havia algo de bárbaro nessa minha obsessão em destruir a ilusória placidez das fortalezas, os escudos da propriedade, da suficiência. Portas atrás de portas, a minha vida passou. Até chegar aqui, a este lugar indistinto. Também nele há uma porta. Não me seria difícil arrombá-la. Não fosse o caso (e esse é o castigo da minha soberba) de eu não saber se estou no paraíso ou no inferno. § VIAJANTE Eu sempre acreditei na aventura. Aos dez anos lia o Verne e o Salgari, em lugar da volta ao mundo que me estava prometida. Piratas, vagabundos, marinheiros, intrépidos segadores de espaço, a gesta dos heróis. Aos dezassete tinha tudo para me alistar na marinha. Não me quiseram. Aos vinte, a debilidade dos meus pulsos fez rir o imediato do cargueiro Argos – o mais belo panorama que meus olhos já viram. O resto, já sabeis, igual a tantos. Comprei um táxi com dinheiro emprestado. Iniciei-me nisso a que chamam ganhar a morte. Durante quinze anos não saí desta cidade, conheço-a melhor do que me conheço a mim. Quando os médicos me avisaram contra a sorte sedentária que levava, vontade de rir:
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os índices de colesterol, o ataque cardíaco. E pensar que fiz quilómetros bastantes para dar catorze voltas, tão inúteis, neste túmulo de raiva e desconsolo. § INICIAÇÃO Entre pedras afiadas, a janela por abrir. Alguém o acompanha Nos recados da manhã: sal 12 pães 1 kg de maçãs fósforos canela. Ao sair da mercearia, roubaram-lhe os pedais da bicicleta, a roda de orações.
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Mãe, quis saber, quem tomou conta de mim quando eras pequenina? § VISTO DE PERTO Tu corres a meu lado na direcção contrária. Qual de nós irá chegar primeiro à solidão. § SALMO Deste-nos, é certo, o corrimão. Mas os degraus, os degraus onde começam?
Estendeste-nos a mão, mas por dentro da fogueira. Por dentro da fogueira que difícil é tocar-te. Hospedaste nossa alma numa torre acastelada, mas a torre levantaste-a em terrenos inimigos. Rasgaste em toda a parte veios de água. Mas a sede temos nós que procurá-la. Abriste em nossa fronte claros olhos, abriste. Mas em torno colocaste toda a treva. Sediaste em nosso peito o coração do mundo, mas o mundo rebenta-nos o peito. 122
§ QUEIXAS DE UM UTENTE Pago os meus impostos, separo o lixo, já não vejo televisão há cinco meses, todos os dias rezo pelo menos duas horas com um livro nos joelhos, nunca falho uma visita à família, utilizo sempre os transportes públicos, raramente me esqueço de deixar água fresca no prato do gato, tento ser correcto com os meus vizinhos e não cuspo na sombra dos outros. Já não me lembro se o médico me disse ser esta receita a indicada para salvar o mundo ou apenas ser feliz. Seja como for, não estou a ver resultado nenhum.
AMEAÇAS Aviso-te, velhaca, mais uma vez: mete-te com os da tua laia, ladra, que me levaste da mesa os copos por onde bebia e deixaste na alma as cadeiras frias. Arrepende-te, Morte, e devolve-me as veias, os amigos, as sementes de papoila. Restitui-me o intacto futuro da minha juventude, a fotografia onde cabíamos todos e a minha solidão era uma onda quebrada nas pedras de gelo. Traz-me de volta o silêncio do Jaime, o cheiro a serrim, traz-me o Leal e ainda o Artur, com todas as músicas desse verão, o nó da fortuna, de ’89. Não te esqueças também do Luís, deixou por contar o resto da história. Nem do Joel, o mais desgraçado rapaz, que me confessou um dia haver morrido sem nunca ter sido beijado. Fazes-me isso, e perdoo-te o resto. Mas se torno a ver-te a menos de quinze passos dos meus – eu juro que te mato. § TRÊS Era um gato com oito semanas e medo dos meus oito anos. Ao cravar em mim as unhas, ainda vejo o sangue no seu focinho banzo. Às vezes o amor degenera em violência. Ao terror do outro respondemos com pedradas cegas. Aflitos por não compreender.
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ONZE A dialéctica do senhor e do escravo (seja isso o que for) começou pela vítima. Alguém, por exemplo, descuidou a beleza, cresceu demasiado, não atou as sapatilhas. Assim se constitui o perfeito cenário para uma infância de subtracções. É fechado numa caixa, recebe a desfeita do seu socorro, sofre as mais cruéis comparações. Minado por peguilhas, volta-se para Jesus. Jesus diz-lhe: não te fiques, fode-lhe as trombas. Mas a vítima não sabe karaté, não sabe onde lhe dói. Vai ter que ser diferente, que aprender, de costas para a luz, a arte de fintar o agressor. Pode ser que tenha sorte. § AGOSTO Foi no meu segundo e último verão algarvio. Creio que se chamava Dulcinea a bela e dou a minha palavra em como tinha os olhos violeta. Na praia, eu era um feixe de ossos aglomerados pelo frio e o amor, esse, ainda mal descera do pescoço para baixo. Dulcinea amava Gatão, mas Gatão só amava Liana. Liana cravava-me cigarros em francês e fazia-me corar de desejo quando enumerava os mecs que tinha comido nos subúrbios de Nancy. Na tarde em que Gatão conseguiu levar Liana para o canavial, Dulcinea sentou-se ao pé de mim. Nunca pensei que se pudesse beijar sem tirar a chiclete da boca. No dia seguinte, já nada tinha sido. Chamava-se, creio, Dulcinea. Era mais especiosa do que a Dama Não Sei Quê nos contos da lua vaga. Tinha trato com gente de circo, domadores de sereias, marroquinos. Deve ser por causa dela que detesto o Algarve.
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VINTE ANOS E NADA Tinha vinte anos e já não acreditava em nada. É curioso, como se perde num lance de dados todo o pecúlio de vida que nos foi transmitido com a sopa e o abecedário. Vinte anos e não queria ver ninguém. Entregava-se aos espelhos de vinil, preferia a quase nada o punção meditativo das canções. Tentava equilibrar-se entre a razão defeituosa e o friável sentimento de ter vinte anos e não ter mais nada. § PART-TIME Fifteen minutes with you I wouldn’t say no. The Smiths
Durante muitos anos trabalhei em part-time na Livraria Bakunine, ao Carregal. Não foram os anos mais felizes da minha vida, pois o amor, o ranço, a solidão, a verdade é que ficava muitas horas encostado à montra a ver se tu entravas perguntando se eu tinha segredos, sebes, aluviões ou a ignorância da morte. Dir-te-ia que sim. Mas tu, Gata Borralheira, só querias saber de astrologia, de puericultura, de pronto a vestir para o outono da alma. Raios te partam, rapariga, como podia eu amar-te, tão estúpida eras. § PARA AGRADAR A UMA SOMBRA Isn’t it just like love? The Psychedelic Furs
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Agora que já chorei o meu papel de solitário posso virar a folha e declarar que, na verdade, eu nunca estive sozinho. Tive sempre a boa companhia da minha sombra. E não posso dizer que nos déssemos mal: uns dias pior, outros pior. Como todos os casais. Tínhamos (e temos) a mesma idade, os mesmos gostos musicais, um amor paralelo por fogo de lenha, líamos os livros a meias, quase não gastávamos nenhum oxigénio. Dos dois era ela quem insistia, às vezes, para irmos dançar. Mas eu, é claro, detestava o tremedal das discotecas; amava mais depressa o movimento descritivo dos romances do que a luz hipotecada de um corpo distante. Com o tempo, no entanto, foi crescendo esse litígio. As nossas relações foram perdendo vulto à medida que ela convidava mais gente para a nossa cama. Até que um dia chegou a casa e apresentou-me “o amor da nossa vida; agora somos três”. E assim a minha sombra, a minha ingrata começou a dizer coisas lacerantes. Por exemplo: “Vai tu ao cinema. Nós ficamos. “ Ou então: “Bem podemos, de vez em quando, caminhar separados, ou não achas? “ E fecha-se no quarto com a outra, em colóquios ofegantes. Altura em que, de raiva, saio porta fora. Uma vida a três é talvez menos longa do que uma vida a dois. Há um milímetro agora de distância entre mim e a sombra. O espaço bastante para um raio de luz. Não ficámos, realmente, pior do que estávamos. Mas chega a ser enjoativo ver o trevo cor-de-rosa que semeiam no quintal, felizes como duas estrelinhas de cinema. Nem sei o que diga. Parecem crianças.
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MORANGOS SILVESTRES – INGMAR BERGMAN (1957) Para a Berta Neto
Um ser humano é um combinado de egoísmo, sofrimento e necedade. Não comove ninguém. Uma pedra não comove ninguém. A beleza é um acidente banal e pressupõe a morte; muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala, chega a ser assustador. A inteligência, refrescante como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora, que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir à inteligência? O de criada de servir nos aposentos da ganância. Não comove, é evidente, ninguém. A bondade, sim, comove. Mas é tão débil e rara que ninguém a ouve. Não é fácil, assim, encontrar algo que possamos amar. Eu tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer: tudo me parece, até a música, produto de uma falha. Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer quem me convença que bem outra poderia ser a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes, tudo arde numa estranha aceitação. Francamente, não consigo perceber. E gostava tanto, mas tanto, que alguém me demonstrasse que não tenho razão. § FOGO-FÁTUO – LOUIS MALLE (1963) Se cada um fizesse a sua parte, o mundo seria um lugar perfeito: a despovoada alegria dos montes, as ruas esmaltadas de verdura, os séculos sem rumo nem História. Utopia menos dúbia não conheço do que esta. E era tão simples: bastava que cada um abdicasse um pouco do nó cego a que chamamos eu, dessa falsa confiança,
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uma vida a conta-gotas. Bastava um tiro certeiro, um nó corredio, um saco de plástico a fechar no pescoço. Mas não, deixemo-nos de sonhos revolucionários: a paz na Terra só virá por acidente (vascular-cerebral, ao volante, o que for). Somos todos egoístas, frívolos, vivos, incapazes de um gesto despoluidor. Eu próprio, que devia dar o exemplo, estou sentado na cozinha a tentar decidir-me entre pão com manteiga e bolachas de centeio, enquanto a chaleira, no fogão, assobia para o ar. § A BARREIRA INVISÍVEL – TERRENCE MALICK (1998) 128
[…] 2. É difícil caminhar sobre uma linha invisível, uma linha de água, entre o mal e o mal. Dividido pelo sangue que atravessa os pensamentos, do inferno ao paraíso, com o chumbo atravessado na memória, os bolsos pesarosos de letais pressentimentos, caminha sobre as águas quem caminha sobre si. Por isso é tão difícil caminhar sobre as águas. § SO GOODNIGHT Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa nos últimos, digamos, duzentos anos. Há muitas perguntas que vão perdendo altura à medida que as penas tombam e também as garras já não prendem como soíam.
Depois de ter visto de que palha são enchidos os príncipes felizes, já não saio de casa sem levar comigo uma carteira de fósforos. Agora tenho mais tempo morto, só de cinco em cinco anos compro uma pilha nova para o relógio. Em vez de cortar os pulsos cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite para lhe perguntar por que não tocas. E o que mais me custa, no fim de contas, é dar razão a Confúcio quando afirma: quanto mais te ergues para Deus mais ele de ti se afasta, deixando-te sozinho a arrumar a casa. Mas estes chineses, na filosofia moral como no ténis de mesa, acabam sempre por levar a taça, e por esta altura da minha queda já concedo que seja o silêncio a condição natural para uma ave sem nome que Setembro chamou e que há duzentos anos não aprende nada. 129
§ VOLTA AO MUNDO 1. Voltemos a isto, à contagem dos erros na soma do mundo, à impotência do riso contra tudo o que não sabemos mudar: a morte, o egoísmo, o levadiço coração humano. Porque não há mais nada (ok, há o amor – vai-te foder) e no mercado do juízo a catequese está em alta. Regressemos à toada desta fábrica de luz defeituosa, intermitente como a vida. Se não há melhor emprego para a culpa e os domingos custam dias a passar. 2. Mas que resta para ver ou comentar
nesta cadeia de penúrias, perguntas, recordando como tudo já foi dito vinte vezes por cabeça e repetir repetições é engodar ritualmente uma ilusão atraiçoada pelos factos. Não o nego. Mas na raia do discurso o movimento, reconhece, é mais alegre e nada passa sem pagar alguma taxa de sentido. O silêncio é primitivo, desumano, e faz da vida uma proeza bocejante, muito pouco pessoal. Além disso, quem na poesia busca o acicate dum lamento ou esconjuro, tem direito certamente à inestética dum “foda-se” canoro quando a sanha do martelo lhe rebenta no verniz, escurecendo com o dedo o mundo todo. 130
Que querias, que calasse o prejuízo na laroca dum esgar arranjadinho, decoroso? Que diabo, mas será que só os ricos é que podem vestir mal? 3. Não sei que horas são no teu relógio. No meu é cedo/tarde – está parado vai fazer uns vinte anos. Não importa, pois as coisas vão e vêm, e de novo se levanta o mês de Março nesta era da ironia, com seus truques estafados e promessas desfolhantes. Juntamente, tudo passa e tudo volta, mas diverso. Só por isso, justamente, tem piada estar aqui, abrir os olhos, conferir ainda e sempre, na vitrina da manhã, a produção da Primavera.
LAMENTO DE SAVONAROLA Tanto dinheiro investido na criação dum instrumento para celebrar a Sagrada Família, e quem podia prever tal degradação: do divino ao patrono e família, do patrono ao seu mundo, do mundo ao próprio artista, do artista ao nada e arredores. Assim perde recursos quem confia em artistas, raça de gente volúvel e desmiolada. Com publicitários, aposto, nada disto teria acontecido. § PERGUNTA OCIOSA 131
Os gregos ensinaram “paciência” e “modera o apetite”, os cristãos acrescentaram “compadece-te e perdoa”. Sugestões orientadas para os dias rigorosos da pobreza ou da velhice, quando resta carrilar no conformismo a empenada carruagem do possível. Numa época, porém, em que velhos nada contam e ninguém se penaliza por viver a curto prazo, na corrida milionária ao armamento do desejo (pois o pleito do consolo não se trava já na alma mas na quina dos sentidos), a que podemos nós chamar “sabedoria”? § VOZES APANHADAS DO CHÃO NA IGREJA DE SAN MINIATO AL MONTE […]
2. A minha vida divide-se entre luz e sombra. Dos vinte aos vinte e nove fui aplaudido por holofotes em cio, todas as notícias me queriam conhecer, e em meus braços decidia-se a beleza ou fealdade das mulheres. Quinze filmes de sucesso e depois, o desastre: quatro fracassos consecutivos. O meu rosto, disseram, passara de moda, ultrapassado pelas máscaras de gás que atravessaram, com a guerra, meia Europa, quando o público desatou a imitar o cinismo dos intelectuais e a achar ridículo o sensível romantismo dos meus gestos. Assim se fundiu a minha auréola, o meu prestígio. Remetido para as trevas, nunca mais fui perseguido por fotógrafos, e tudo em meu redor se esvaziou como um balão abandonado pelo fogo. No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma apaixonada deu a cara, nenhuma malcasada. Só então compreendi quão morto estava. Reflecti, vós que passais, na minha história: morre duas vezes quem viveu da sua imagem. § ENFIM Essa cara cor de beco sem saída, sorriso de apagar quarenta velas, o nariz em agonia – não te canses. A justiça, o remoinho da beleza, a liberdade são paixões impopulares, desaprovadas pela gorda humanidade. Já sabias. Não te queixes. Colhe as favas, as medonhas, do momento. Podes sempre cozinhá-las com temperos escolhidos. Sabe a pouco? Paciência. Satisfaz-te com a fome e compreende: o proveito do banquete é estudar os comensais.
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JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA | BICICLETAS Por muito tempo amarei casas que existam apenas para guardar uma bicicleta ou os remos de um bote As casas interessantes não têm pretensão nenhuma Estão perto de nós na hora necessária mas a qualquer momento com mais clareza afastam-se das certezas que perdemos e da imensidão que se avista de lá Um velho provérbio diz: Se deres um passo atrás, talvez te coloques a tempo de uma estação clemente § A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER No princípio era a ilha embora se diga o Espírito de Deus abraçava as águas Nesse tempo estendia-me na terra para olhar as estrelas e não pensava que esses corpos de fogo pudessem ser perigosos Nesse tempo marcava a latitude das estrelas ordenando berlindes sobre a erva Não sabia que todo o poema é um tumulto que pode abalar a ordem do universo agora acredito
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Eu era quase um anjo escrevi relatórios precisos acerca do silêncio Nesse tempo ainda era possível encontrar Deus pelos baldios Isso foi antes de aprender a álgebra § INSCRIÇÃO o brilho é o leve jubilo que sustenta os versos
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ainda que sejamos obscuros e nenhum nome sirva jamais para dizer o fogo § QUANDO AINDA SE IGNORA A MORTE Se agitares tesouras numa fogueira não esqueças que me feres um avesso de lume é o meu único segredo no impreciso avanço das lâminas um anjo a descobriria Tira a faca da gaveta mas não esqueças se a cravares na água
com altas vagas o mar me sepultará dentro da casa abandonada Não lamentes serem os versos saberes tão frágeis as flores mais belas são as que se colhem quando ainda se ignora a morte § A INVENÇÃO DA LÍNGUA (SEQUÊNCIA) I Aquele assombroso lugar tomara o modo intranquilo da água nenhuma caligrafia por essa impossibilidade retinha a terra desconhecida que só me oferecia uma voz 135
Um canto deve antecipar o mudo caminho da mão e a conduzir como a certo louco que tornando-se inofensivo ao adormecer da minha aldeia eu levava de regresso a casa Nessas deslocações descobri a língua […] § A PRESENÇA MAIS PURA Nada do mundo mais próximo mas aqueles a quem negamos a palavra o amor, certas enfermidades, a presença mais pura ouve o que diz a mulher vestida de sol quando caminha no cimo das árvores “a que distância da língua comum deixaste o teu coração?”
A altura desesperada do azul no teu retrato de adolescente há centenas de anos a extinção dos lírios no jardim municipal o mar desta baía em ruínas ou se quiseres os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas as conversas ainda surpreendentemente escolares soletradas em família a fadiga da corrida domingueira pela mata as senhas da lavandaria com um “não esquecer” fixado o terror que temos de certos encontros de acaso porque deixamos de saber dos outros coisas tão elementares o próprio nome Ouve o que diz a mulher vestida de sol quando caminha no cimo das árvores “a que distância deixaste o coração?” 136
§ CALLE PRINCIPE, 25 Perdemos repentinamente a profundidade dos campos os enigmas singulares a claridade que juramos conservar mas levamos anos a esquecer alguém que apenas nos olhou § SOBRE UM IMPROVISO DE JOHN COLTRANE Ainda espero o amor como no ringue o lutador caído espera a sala vazia
primeiro vive-se e não se pensa em nada não me digam a mim com o tempo apenas se consegue chegar aos degraus da frente: é difícil é cada vez mais difícil entrar em casa não discuto o que fizeram de nós estes anos a verdade é de outra importância mas hoje anuncio que me despeço à procura de um país de árvores e ainda se me deixo ficar um pouco além do razoável não ouvem? O amor é um cordeiro que grita abraçado à minha canção § UMA COISA INOCENTE Estendi a mão por qualquer coisa inocente uma pedra, um fio de erva, um milagre preciso que me digas agora uma coisa inocente Não uses palavras qualquer palavra que me digas há-de doer pelo menos mil anos não te prepares, não desejes os detalhes preciso que docemente o vento o longínquo e o próximo espalhe o amor que não teme Não uses palavras se me segredas aquilo que no fundo das nossas mentiras se tornou uma verdade sublime
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A MINHA MÃE A minha mãe gosta das luzes acesas mesmo quando dorme depois é de uma distracção flagrante Ela diz que devemos cuidar da aveia do amor e parece não ver que minto sobre jeiras e despensas vazias “Gosto do modo como as andorinhas esperam” canta ela através do meu abandono Minha mãe acha que ofereço roupagens de Salomão em troca de fracas penas porque se as palavras me disserem o que realmente guardam (e ela carrega no se, como declarando em perigo a condição terrena) estarei desprovido na mesma melhor seria deixar truques que misturam punhais e revelações Seus olhos quando por vezes me olham com uma miséria que dói lembram o que se ouve de incertos mendigos que algures escondem fabulosas somas § OS PLÁTANOS Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta e corro, cambaleante, para a vazia escuridão assusta-me a certas horas a companhia do que não adormece a resistência disso que permanece no nosso espaço movido por outras forças Mas também acontece acender primeiro a luz e só depois sentir um medo louco da casa que me acolhe dos seus redemoinhos imperceptíveis
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que julgo cada vez mais perto como se estivesse para ser morto às mãos do próprio Deus Não sei bem acordar vivo destas coisas: por vezes aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto ou deixo-te um instante só (um instante só) para fechar os olhos que tanto ardem ou atiro das margens folhas ao rio para medir o tempo de uma vida a naufragar § O POEMA O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia. §
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LUÍS QUINTAIS | ARTE PRIVADA Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso como se de uma arte privada se tratasse. A ti, a quem falo de poesia, a ti que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes, respondo-te que também eu não compreendo, que não há que compreender, porque nada nos condena à fala antes que as palavras aconteçam. Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho e nunca terminado: um princípio de verão, a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas. A rua de dia de semana e o arquipélago da solidão despertando para as poucas coisas que procuro e que o poema irá entretecer se entretecer. – A virtude que, cega, vai conhecendo o seu caminho. Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras, e se ficamos tristes não era para ficarmos, pois não existem momentos irrepetíveis. Eles aninham-se no sangue e voltam a mergulhar-nos na experiência: um dia de verão, um bosque, colinas onde a serpente de alcatrão se enrola. A ausência de tráfego como motivo. A pouco e pouco vou recuperando a gravura. Agora sei que havia uma ave sobre as colinas, pois há sempre uma ave, ou a sombra dela, nos meus poemas. Que havia água, o cheiro das inusitadas chuvas pela manhã de Junho.
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O rumor da imagem colado aos dedos. O ocre escuro das areias espalhado na mesa é um símbolo da infância, mas não o reconheço ainda. O poema é uma enumeração que não teve lugar, que nunca terá. Eu, à beira do fracasso, não o reconheço ainda. Enquanto isso tem lugar em mim o advento do que me define, e o barro de que sou feito coze por dentro. § LAMENTO Em memória de Paulo Jorge Valverde (1961-1999)
1. Ao contrário de mim, sei que sempre amaste as fotografias, porque sempre estiveste próximo, jocosamente próximo da morte. E ela brincava contigo através do brilho das imagens. No preâmbulo do teu regresso, que fazia eu? Estava em Granada, por puro acaso. Por puro acaso visitara a casa de Lorca, e os seus olhos tinham algo de temível. Era uma dessas fotografias em que o poeta sorri para a câmara segurando alegre um dos seus sobrinhos. Senti o rumor dilacerante daqueles olhos, como se se tratasse do eco do teu nome que o futuro se encarregaria de me devolver intacto. Rodeado de asséptica atenção, morrias devagar. Cuidados intensivos. Que expressão mais consonante com a única intimidade que conheci de ti – o que se expunha neste lugar, neste purgatório
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de máquinas e escalas afinadas para a ténue linha da vida que do teu corpo se escoava. 2. Já não estamos no tempo. E é aí que te encontro, num lugar de pesadelo, num lugar de fria, metálica arquitectura. Pede-se a palavra, o único modo de recobrares os sentidos, a única esperança. Que te dizer à beira deste cárcere de reservas em que te encontras envolto? A palavra que te trará à minha mesa, onde assistiremos juntos ao desfilar do indeterminado, nós, os que sempre amámos as clareiras onde o indeterminado começa a cantar. Os olhos de Lorca atravessam longos corredores de aflição e invadem esta sala de agonia. Nada posso fazer. A não ser perseguir ficções, as que nos têm forçosamente de salvar. Se assim não for, só nos resta a sujeição à perda, ao desespero. Oiço o vento que se desprende das árvores de São Tomé, as que estão nas fotografias que me envias, ou melhor, imagino as bruxas que se metamorfoseiam em pássaros apenas para habitarem os postais que me envias. 3. Sobrevivendo-te, talvez te tenha traído. Terei sido eu aquele que te conduziu pela mão ao lugar convulso onde para ler se implora luz e se obtém silêncio? Arredar-te-ia deste silêncio. Como fazê-lo? Saberei trocar de ilha? Saberei merecer a ilha difícil, a ilha das fantasiosas deserções onde perscrutaremos por fim o mar?
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QUEDA Dois homens abraçaram-se ruidosamente na rua, e o seu colóquio à sombra de ábditos deuses transportou-me para um comércio de infâncias e de começos. Cheguei a invejar-lhes a cruel alegria. Dois cães brincaram na água, e a sua herança de sangue expôs-se: ira inclemente, rigorosa forma expondo-se. Cheguei a invejar-lhes a ausência de conceito. Aqui te abrigas, nesta vaga hereditária e antiga, aqui sonhas a tua origem e o teu fim, aqui repousas no eixo do fátuo enigma. Nada foste. Nada és, animal cego e piedoso § ÉTICA Vou falhando as pequenas coisas que me são solicitadas. Sentindo que as ciladas se acumulam cada vez que falo. Preferi hoje o silêncio. A ausência de equívocos não é partilhável. No inegociável deste dia, destituo-me de palavras. O silêncio não se recomenda. Deixa-nos demasiado sós, visitados pelo pensamento.
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VISÕES DO MUNDO Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais. Como uma invenção de Vermeer as traseiras de um edifício antigo podem ser os limites da minha moldura. Nada há de exaustivo no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu de um vermelho débil que ele nunca teve. Um universo de vozes, infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos que quebram o alheamento que sobre as fechadas se perpetua. Em baixo, uma varanda onde nunca está ninguém. Nada sei da ausência que a varanda desvenda. Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza de que os meus domínios foram encontrados. Neste perímetro de luz procuro a consistência dos sentidos. O território com que se abastece uma paixão descritiva, o lastro da imaginação. § A PROEMINÊNCIA DA MÃO DIREITA É a mão direita que domina. A esquerda obedece cegamente. É a mão direita que fere. A esquerda consola. É a mão direita que disciplina, brutaliza. A esquerda é o exercício próximo e doméstico de afagar
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o que a comove, o que recatadamente a silencia. Esta é a terra, os modos de nela me orientar: as minhas mãos, a proeminência da direita sobre a esquerda, o que toda a vida quis negar. § AS IMAGENS QUEBRADAS IV Um homem rouba versos, tem por agradável a sua tristeza, o orgulho da sua tristeza. Abre a janela, e a manhã vem afagar-lhe a face, libertá-la da sua máscara, do negro sangue que, por dentro, a contamina. Um homem rouba versos às lajes de um quarto em que a luz brinca. A luz diz-lhe que as renovadas litanias que a viajante memória sem rumo reuniu, não são suas, mas as de um pretérito de um outro, de um desígnio injustificado e sem enunciação, de uma primavera de infância em escombros, de um choro de ausentes, de uma árvore em chamas que o sonho trouxe. § O PEQUENO HAMLET O Tomás, o meu filho, brinca na velha ponte abandonada junto à casa onde habito agora. Gosto muito deste filho cheio de consequentes silêncios, reservas que lhe vêm do desamparo da infância – de toda a infância – mas que nele se sublinham como se um veio nocturno se acercasse das coisas que interroga. A mim tudo se me esquece quando olho este filho que espanca com um ferro o ferro da ponte. Observando-o na desatenção que o guarda assim no fotograma da memória, interpelo-o: “E leste O príncipe da Dinamarca?”, e ele responde-me seco, mortalmente evasivo: “Não é O príncipe da Dinamarca, é O cavaleiro da Dinamarca”, e volta a espancar, rebarbativo, o ferro.
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§ Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro. Deslizas sobre a terra. Deslizas sobre as águas. Tudo é veloz e extremo. Pó em torno da tua dor. Pó em torno do teu choro. O que te atinge em pleno voo. A cegueira que te atinge em pleno voo. Ergues-te para a mais secreta alegria de abandonares o teu corpo. Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro. A tua história, onde escreveste o indefinível do teu nome. Eras criança. Estendias as tuas asas. E as tuas asas faziam a imensa sombra sob a qual se abrigava o que era reconhecível e amável. Deslizas sobre a terra. Deslizas sobre as águas. Tens o talento antigo de estenderes as tuas asas. Agora quebradas, para sempre quebradas. Já sem a amplitude do início, é no ocaso que escondes a tua vergonha. Por tua vontade, desejo e mágoa exumas a palavra do passado, a inocência que o não era. Que a palavra te redima do erro. Que a palavra seja o erro. 146
§ Havia uma guerra que cobria planícies, territórios por onde a alma tinha desenhado os seus domínios, exercido as suas magias. Saías do corpo para a desolada paisagem. Alguma coisa morria em ti cada vez que saías. Serias capaz de sonhar este luto? Um dia escreveste a pequena canção com que haverias de encerrar a tua vida. Foi a música que te moveu, mas sobre ela não tens explicações a dar. Nem sequer sobre o vocabulário com que dizes o enigmático voo. § A persistente solidão. Nada veio mudar isso. É madrugada. Estás recolhido no mais profundo sono. Tens essa virtude antiga de sair do corpo e caminhar pelo ar, flutuando, celebrando a primeira luz que desponta. O teu corpo está submisso. A tua alma voga,
mas parece querer despenhar-se. Do teu corpo brotam pássaros azuis. Perseguem-se, brincam junto ao tecto, gritam. É a vida que se esvai. Desde o início que é assim. A persistente solidão da tua morte que se prolonga. Nada veio mudar isso. Nem o que te atemoriza: o diverso da natureza, as imaginadas formas que descreves, os fetos gigantes, uma outra glaciação sepultada sob a casa, esta tristeza que se acerca do teu sono. Progrides pelo quarto. Pressentes o mundo, esse palco de fogos. Denuncias o visível. Observas o teu corpo. Pássaros azuis brotam de ti no mesmo sonho de todas as noites. Trazem-te as memórias que subsistem ainda, a pouca vida que te resta. Recordam-te a infância: um país de migrações e fugas, de enigmas em que descrês, o que te arrasta, o que te magoa. Recolhes as cinzas dos teus dias, as que se espalham pela violência do voo, da breve ficção enunciada. A persistente solidão desde o início. Desde o início, a tua morte e este movimento de ligar as máscaras que se soltam do teu corpo adormecido. Tudo regressa à normalidade, à tranquilidade do teu sono. A luz desponta inteiramente. Ergues-te para o pressentir da embriaguez e da simetria. § Algo terá de ser conquistado. O que principia na noite, os seus débitos, os seus cálculos de anos. O livro em suspenso aberto sobre a mesa, quase ilegível depois do esquecimento. A cor, a sua descoberta ou invenção, a funda cor do inverno. A voz de alguém que se perdeu, alguém de graciosa chama a eclodir-lhe no rosto. O olhar que se precipita no teu, se esvai no teu como sinal dos dias que colherás.
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A revoada das aves no paraíso, ali, ao dobrar a esquina, no instante de um verso antigo. Algo terá de continuar, apesar de tudo deverão continuar os seus medos, as suas efabulações, o mapa de o procurar. § I O estrépito que o passado faz. As palavras gritadas. A terrível máquina de dizer e calar. Tudo gira no nada e no nada se compraz. Uma fúria ergue-se no plasma. Uma cidade é destruída. Escuta os muros que se abatem. Desenha árvores, o rápido deslizar de nuvens, o desenho que a mão faz quando teme agarrar o sentido, e o sentido é escuro, escuro. II O dia acaba, e com ele a incerta medida dos teus erros. Uma lâmina de vento inicia-se no escuro. A noite apaga o teu zelo. O vestígio do ontem cruza o sítio da memória, somente atenuado por outras presenças.
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III O rio escurecia e depois aclarava e depois escurecia. As árvores gravitavam nas margens da tua memória, faziam correr estilos de morte e promessa. As personagens do inscrevível seriam afinal mais monstruosas do que se suspeitara, e os insectos emudeciam enquanto o outono regurgitava as suas vítimas. E tu, tu? E tu fazias abolir o sentido para fazer eclodir de novo o novo sentido. E tu procuravas entre despojos um aro de bicicleta partido, um casaco com bolsos que dessem para o improvável, um qualquer outro achado preso à cega geometria e à circunstância do procurar. IV Atravessas a ponte, lês o jornal, alheias-te do rio, mas o rio sitia-te com a sua música de eleição, a que julgaste escutar, apesar dos sinais de morte te encadearem com a sua luz extrema. Terás tu ainda a certeza do começo movendo-se no écran do primitivo medo de que não há limite, fuga, consolo. V Animal afeiçoado à metamorfose e à fuga, o rio muda de cor
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e tu anotas o denso espelho e imaginas a métrica que o levará à foz. O rio é o teu deserto e a palavra apenas palavra com que o descreves a tenda onde o provisório vem habitar. § REALIDADE Olho para a realidade desprovida de silêncios. As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta a gravidade que as prende à terra. Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz. São o muito desta vida onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas o frágil contraponto de domingo se passeia atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo alheias à semana que aí vem, onde cada um por si, e a desrazão por todos, irá colher as incertezas do amanhã. Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados, tacto de treva onde a realidade acaba como um promontório sobre o Outono: onde começo a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música. § PSICOGEOGRAFIA Como nos salvámos, ainda que só por instantes? Recusando mapas, designando ocasos,
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espreitando a intransparência do vidro das casas após a entropia que devora famílias. Salvámo-nos por inquietação móvel, por solidão contrafeita e vigilante. § LAURA Nome, tão-só. Singularidade maior que lhe arrebataria a memória metrificada no ofício de uma espera consagrada à improvável eternidade. O amor é uma patologia da linguagem, ou a linguagem um rede rota, leito em que a experiência segue o seu curso feroz? O que arde na negra intensidade dos séculos arde em versos, domina corpos para melhor dominar medidas de vária tradição e forma. Serás porventura o nome dela quando te reencontro encapsulada na minha morte. O teu sangue flui nesse nome que devoro agora. § Leitor, eclipsam-se teus difusos pensamentos, eclipsam-se as palmeiras, os retratos, os ternos animais, as casas, as mãos.
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Leitor, de mágoa e vento são tuas mãos. Condenado ao oco, breve, estás. § VIII Houve alguém que encontrou mapas, esquemas, modelos, a marca d’água de uma linha na profusão da mente. Isso, o vestígio que arruinava a visibilidade de todas as metáforas, não era uma cidade, antes a selva 152
crepuscular que, sedutora, nos envolve quando queremos morrer. E não quererás tu morrer quando desapareces na ininteligível exposição metafórica do mundo? A carne das coisas tem um brilho de cristal, mas esse brilho engana, é o efeito apenas de uma luz sem origem, a luz do desespero. Tudo o que pode salvar, se é ainda legítima a decisão que está aí, no traço que, espesso, reclama a impressiva nostalgia daqueles que se atribuíam ao infortúnio
numa encruzilhada de gratificações, de frutos amargos e de poesia, tudo o que pode salvar é um eco do que salva. Tudo o que podemos amar é um eco desse eco, o drama dos espelhos outra vez. § XVI Tudo são máquinas, a luciferina intenção de cortar, pela janela, o desenho interrompido, ou então, tudo são máquinas ainda, quando a boca se desenha presa às palavras enunciadas desde o começo da biografia (que biografia, se só haverá farrapos?): fantasmas enunciando-se à pressa e que a cidade reúne nos muros que a não cingem já. Tudo são máquinas prestes a incendiar mapas, a eliminar traços, a apagar vestígios. “Começará o mundo depois do mundo acabado”, escreveste no caderno. É de lixo lírico, a paisagem, humano resíduo. As máquinas que escrevem, escrevem na pele. Tudo são máquinas. O mundo irá começar dentro de momentos, prepara-te. §
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MANUEL DE FREITAS | Pode-se evitar tudo menos as evidências – se estão nus os olhos por elas apedrejados,
SUCH A SAD MACHINE – para o Diogo Vaz Pinto –
Talvez hoje, de certa maneira, eu tenha percebido. Há uma idade em que acreditamos na poesia, em que a julgamos (coitados de nós) a única saída possível. Tocar na capa de um livro ou numa “suffering jukebox” torna-se quase a mesma coisa. O mundo pede-nos desespero – e nós tentamos dar-lho. Há uma idade, um desencontro, um fim sem recomeço que teima em nomear mortos impartilháveis, versos longos que celebram o luto de haver versos, de haver morte. Mas já não é a idade certa, aquela em que tolerávamos poetas e poemas que cresceram ao contrário, por nos ser mais próximo o final da noite, essa morte retórica que nos embebedava tanto. Não sabíamos, mas acreditávamos – na poesia ou noutra merda qualquer que não viesse sujar o azul das mesas, esta cor baça que persiste e que fomos, de comum acordo, dissipando. Uma idade em que nos apetecia ainda falar de idade, sem futuro nem constrangimentos. (Deixa-me ao menos pagar-te a cerveja.
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Começou a chover. É demasiado tarde para quem nunca esteve aqui e espera sentado, que lhe digam que morreu.) § CERVEJARIA LEIRIÃO (2) – para o Rui Pedro Gonçalves –
Há trinta anos, neste mesmo sítio, dificilmente porias a questão de saber se a poesia é uma emoção comunicável, um modo triste de conhecimento ou uma arte perfeitamente inútil. Levantavas-te, tentavas chegar ao balcão e pedias rebuçados, com os bolsos cheios de berlindes e a vida inteira – que te parece agora tão pequena – à frente. 155
Onde isso já vai. Sentado na esplanada que veio agraciar fumadores e outros brandos vadios, reparas que alcatroaram o caminho que te levava à escola – a esses dias de medo, urina, solidão que não passou nem passa nunca. Pedes outra cerveja, aliviado de não seres já aquela criança mimada. Ao teu lado, na esquina da taberna, és informado por escrito da morte da mulher do “Direitinho” (esse que te cortou, tantas vezes, o cabelo). E lembras-te do filho deles, do Luís, que tinha a tua idade mas nunca pôde dizer “há trinta anos” ou sequer “há vinte”, pois morreu mais cedo, de leucemia. Constou, na altura, que foi “um enterro muito concorrido”. Mas eu apenas olho a estrada – perfeitamente alcatroada, é certo – e não consigo ter saudades de passados e futuros em que ainda não me imagino morto. (Tentava, de novo, ser da altura do balcão, pedir Genebra que nos tornasse a noite suportável. Ficávamos, por duzentos escudos, os três bêbedos.)
Pouco depois, ao jantar, a minha mãe insiste em pôr mais sal na sopa – e diz que a vida não é triste. Porque acredita em Salazar, Jacinta Marto, Bento XVI. Nunca perceberá que, para mim, o paraíso é um comboio para Lisboa, um modo, enfim, de me poder calar. § RUA DA ATALAIA – para o Rui Pires Cabral –
Trazemos no fundo do casaco algumas canções usadas – e achamos, por vezes, que é para nós que as estrelas brilham, entre prédios demolidos e amores também. Acabamos, mais cedo ou mais tarde, por acreditar no silêncio. A felicidade, para outros, continua válida. Mas disso, obviamente, nada podemos saber. § SUPERMERCADO – para a Ana Paula Inácio –
Tenho 38 anos e sei finalmente o que quero. Basta olhar para o cesto de compras: bolachas Leibniz, papel higiénico Renova, leite com chocolate Agros, uma garrafa de Famous Grouse e pelo menos seis latas de Superbock. Discos já tenho que cheguem, por muito que me desminta, e não viverei o suficiente para ler todos os livros que me ocuparam a casa. É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
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simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos. Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda não houve rotina que me fizesse decorar o nome), passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito – e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas. Só muitas horas depois, quando as luzes me garantem que o bairro inteiro dorme, escrevo poemas como este, versos em que inutilmente vos digo que sou um homem feliz, un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa. § BWV 988 Talvez tudo fosse diferente se o mundo tivesse começado tão bem como as variações Goldberg Não sei, não quero saber, não faço ideia. Eu, que da arte nada quero, estou há vários meses sem escrever um poema. Mas agora, aqui, sou trespassado por uma cama demasiado larga e pelo olhar negro do gato que se apieda, talvez, de mim. De uma certa ideia de mim que acorda às quatro da manhã para a mais ampla noção de vazio. Felizes, mais ninguém, os que se matam e não têm um gato a servir fixo de remorso nas dobras sujas dos lençóis. Esses, apenas, que não procuram de rastos a certeza de outro dia. O amor? Talvez, quando um cadáver se recria e afaga penosamente
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a morte de que de uma maneira ou de outra se morre. Quem me dera ser menos realista, menos real, menos permeável ao desgosto. Mas a verdade é esta: partiste a meio da noite, fodemos pouco e mal e quando a janela me guilhotinou já um táxi te levava para longes terras da cidade em pânico. É tudo – sabes? – tão dolorosamente simples. A mão que não quer esperar-me, o rumor sórdido dos bares, a certeza de que a vida, a vida, não deveria ser exactamente assim. Reúno, numa espécie de voz, esses estilhaços. Sei que não vale a pena, sempre o soube. 158
Há os que se despedem e os que não. E, indiferentemente, progridem as diferentes coisas. Carteiros matinais, aviões, poetas que dão corda à musa e escolhem devagar o timbre da gravata. Estão no seu direito, partilham o bem comum, a cidadania do terror. E eu, infelizmente, existo. Abro outra lata de cerveja, sob o olhar reprovador do gato. Sim, gostava de ser felino – uma coisa mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta. Mas li demasiados livros, fumo pelo menos três maços e não me parece que volte a acreditar em Deus (se nem Bach me convence, estou perdido). E, porém, há nisto uma simplicidade atroz. A demorada asfixia
das veias, percutindo a noite, a certeza óbvia de que não estás aqui. Que música, sequer, me redimiria agora? Vou morrer assim, de costas para os espelhos. A sabê-lo. Deve ser isso, a dor. O cancro da manhã infiltrando-se pela janela, como se eu pudesse num mundo adiado, palco já sem mim. Ou o olhar que te viu e deixou de ver e percebeu subitamente que um corpo, um corpo apenas, é matéria de desastre, pronúncia errada. A música, claro, se tivéssemos música, qualquer coisa assim. Em vez disso, os órgãos acomodam-se ao suplício dos minutos, desagregam-se. E bastarias tu – ou ninguém, porque ninguém basta. É um erro – mas gostamos tanto – pensar que um rosto nos salvará disto que não sabemos de ser, de nós. Esse pronome pessoal, o inferno. E é estranho, no mínimo, que o mundo saiba acontecer, apesar. O silêncio desta dor devia calar o universo, dinamitar arredores. Mas não, desiste. Desiste até de desistir. Não será este o último poema, por mais que o julgues ou sintas (e os versos, para ti, foram sempre sentimentos vãos). Acordarás sinistro, quase vertical, para as tabernas disponíveis. Dizem que abusas. Talvez. Como explicar-lhes, a esta hora, que nesta retórica gasta comprometes a vida toda?
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Nunca te leram – ou mal. E o grito permanece incólume no susto da manhã, nas paredes mais escuras que encontrares. O mais estranho não é a literatura, o solene esgar da poesia. Mais estranho, sempre, é sobreviver a isto, fingir que não, sorrir. Enquanto o olhar negro negro de um gato testemunha a tua morte e se despede melhor do que tu da música e dos dias e da música. Qualquer coisa assim. § ERRATA 160
Onde se lê Deus deve ler-se morte. Onde se lê poesia deve ler-se nada. Onde se lê literatura deve ler-se o quê? Onde se lê eu deve ler-se morte. Onde se lê amor deve ler-se Inês. Onde se lê gato deve ler-se Barnabé. Onde se lê amizade deve ler-se amizade. Onde se lê taberna deve ler-se salvação. Onde se lê taberna deve ler-se perdição. Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui. Onde se lê Manuel de Freitas deve ser com certeza um sítio muito triste. § PEDAÇOS DE VINIL COM LAMA Devia ser o disco mais ouvido: a Quinta Sinfonia, numa gravação de Klemperer. As manhãs e as tardes auguravam um futuro
melhor, prendados costumes que depressa perdi. Já então olhava para a taberna da Ana, enchendo a janela do meu quarto. Tinha medo da sombra, do silêncio, adivinhando em cada passo o monstro que me habitava. E lia, para não pensar, desacreditados escritores franceses. Um dia, de tanto o amar, peguei no disco e quebrei-o em pequenos pedaços de vinil — para doerem mais, melhor. Mantive, não sei bem porquê, a dura capa de cartão, essa fúnebre alegoria da infância. E o que sobrou do disco foi parar ao ribeiro junto à casa dos meus pais. Mais tarde, o ribeiro com hortas de domingo à volta foi sufocado pelo terror de um aldeamento, versão provinciana de condomínio fechado, num mundo em que são cada vez mais as portas. Beethoven, esse, quase deixou de me comover, soterrado como as rãs pelas mãos invisíveis de quem mata. O que me comove, passado tanto tempo, é perceber que fiz a esse disco o mesmo que faço e volto a fazer aos corpo que julgo amar: parti-los, muito devagar, para que doam sempre um pouco mais. § FANDANGO Estava tudo certo nele: o sorriso,
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o modo lento de chegar ao sítio onde as cervejas me arrefeceriam para sempre o coração. Só lhe faltavam as pernas, que não pude saber como perdera. Era o dono da taberna, do Fandango, que eu frequentava nos intervalos do liceu, sozinho, ou muito depois das aulas. Às vezes almoçava lá, sabendo que seria o único a fazê-lo e gostando disso. O consumo de álcool não dependia, nesses anos, de quaisquer decretos-lei sobre a idade. Espaçosa, asseada, parecia-me a taberna ideal para quem tinha, a contragosto, dezasseis anos e nenhum poema. Da última vez, recebeu-me apenas a senhora. Perguntou-me se eu sabia. Não, não sabia que ele tinha morrido “tão novo, coitado”. Ser “novo” adquiria nos seus lábios a força do muito amor, pois ultrapassara já os setenta. Mas eu, talvez mais velho, senti-me fulminado por esse gesto de rara ternura. Só não regressei porque, alguns dias depois, a porta apareceu fechada. Nunca saberei se foi ao seu encontro, achando que uma cadeira de rodas não era companhia de homem. A morte é como os taberneiros: não pergunta a idade. Serve-nos, indistintamente, cicuta em copos lavados e convida-nos de rosto no chão para o último fandango. § CARPE DIEM O fantasma de um fantasma de um fantasma. Uma tautologia escusada para quem achou sempre que nunca existiu.
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Repara no teu dia: entraste na taberna da Zulmira, de frente para o azul forte das paredes. Ela não te reconheceu, hesitava entre o jornal, a vassoura, a televisão. Em directo de Coimbra, da Sé Nova, o horror vinha matar o fim da manhã, neste país. Acontece. Aquela ginja, a mulher que se dispunha a segurá-la traziam-te por filosofia de bolso a resignação. Mais tarde, os relâmpagos iluminaram-te o caminho, como se houvesse caminho. A viúva do Hortelão também não te reconheceu. E é isso: começas a perceber que não existes, doutra mais funda maneira — sem resposta. Há um copo, ao teu lado, e um corpo que não fotografará o desespero. As mãos — procurando a sombra.
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O excesso, agora, é uma maneira de dizer ausência, o azul caído em meados de Setembro. § A DAY AND A DAY Dois ou três cancros de que vais sabendo (“há pouco a fazer”), o amigo maior de um amigo brutalmente esmagado debaixo de um camião. Não, não está a ser propriamente um Inverno de contentamento.
O corpo já quase não responde a tanta tristeza. E a casa, devagar, fecha-se para dentro, implode. Parece um coração, uma metáfora que te deixa nos ombros um irrepetível cheiro a merda e a sombra de um gato que vai morrer. (“É a vida”, deve pensar sem cérebro – mais feliz – o teu companheiro de jantar. Já lhe chamaste silêncio, mas ninguém se chama assim, ferindo o preto e branco da memória. Assoa-se, pelo contrário, ao guardanapo sujo de tinto da casa e acena-te com caspa da sua vaga imortalidade. Na outra mesa, dois corpos sussurram o inevitável calão do amor, Muita gente, afinal, cabe neste mundo. Da porta do bar saem depois alguns engates e avós calcinadas à terceira caipirinha. Um preto de óculos que bebeu de mais acaba espancado no passeio, sob o fervor policial do costume. Custa ver – a vida, outro bar vazio, sem quadros, onde beijas a ausência, tudo o que perdidamente desamas e não vale a pena e se dissipa sem pressa no copo de cicuta cuja razão desconheces.) É possível que Joachim Bernhard Hagen tenha sido um exímio tocador do instrumento que às vezes preferes. É um modo de acordar, no fundo, e de perceber na pele a inutilidade da manhã, os gestos que não serão ainda esse amplo terreno de morte – que depois circunscreves a um poema e não voltas a dormir. Odeio-te.
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OPUS 78 para a Graça e o José Carlos
I. Molto Moderato Cantabile Não saberíamos de melhor lugar para os primeiros contos de fadas, coisas de meninas apenas. A casa cor-de rosa, as avós, nessas tardes infinitas em que a antena dois te ensinava a reconhecer os nomes de Schubert, Chopin, quase nenhum Bach. Aprendias, sem querer, a morte, o que mais se opõe à música. Tudo isso, escusado dizer, participava de um flagrante anacronismo. Quem, da tua idade, terá lido (e lido com paixão) as páginas tão baças do Cavaleiro Andante? E tu ali, cavaleiro parado, vítima precoce de sono nenhum ou, anos mais tarde, da ruína. Refreia, para já, a comiseração; estava tudo certo, sob o langor das tardes, na rima quase perfeita de duas avós viúvas e irmãs. Das altas janelas da sala, podias ver os laranjais, os cavalos, o primo autista que amava sobretudo os gatos — enquanto Fischer-Dieskau, na rádio, cantava Ständchen como nunca mais. II. Andante É um enredo banal: morreram. Aquela que arde no Lied dizia preferir a masculina voz e que não terá expirado, como sempre desejou, escutando a Sexta de Beethoven. Mas também a outra, a mais firme avó, que te ensinou apenas
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um absoluto silêncio (porventura o maior dos dons). Com elas, ou por elas, se perdeu a imprecisa criança que pressentia já não ter ofício nem lugar para além das laranjeiras e da música que se colava ao ardor das páginas, quando finda a tarde e o mundo. Regressaste hoje à aldeia. Não reconheces, de obesos que ficaram, os que na escola se sentavam ao teu lado — e é isso, também, a morte. Não consegues perceber porque fecharam as tabernas. Nem uma sobrou para contar a história, aliás perfeitamente inútil, da tua adolescência. Fechada ainda, quem sabe se para sempre, está a imensa casa cor-de-rosa, entregue ao pó do último silêncio e ao acaso lento das aranhas. Do sótão, lembras-te?, via-se a aldeia toda, muito antes de ser vila. Agora, porém, só nos degraus do poema podes procurar a ida, a morte inteira, a música tão calada de quem fosse. III. Menuetto Mas faltava alguém, a Noémia. Criada — mas de quem, ao certo? — que não matou o gasto coração dessa tia que foi, ao contrário da irmã, paciente bisavó de muitos. Sempre lhe chamou “minha Senhora” — pouco mais dizia, enquanto atravessava o frio corredor e conhecia, como só pobres conhecem, a rate de nada ter. Talvez por isso, as peúgas que em cada aniversário me oferecia ofuscavam os brinquedos, outras carícias, o luxo pouco menos que letal dos primeiros livros.
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Tinha barba ou quase, debaixo do sorriso largo e da muda virgindade de quem se habituara a perder. Talvez gostasse de mim e eu dela. O silêncio, neste ponto, permite todas as suposições. Na cozinha, o luís ajudava-a a migar couves, cantarolando no seu mundo vagos restos de sonatas. Era a vítima mais fácil (e mais branda) de quem, por tanto servir, saboreava o gosto de mandar. Na outra sala, ou no jardim, envelhecíamos calados, com a diversa certeza de que a cozinha não era o nosso reino. Bordávamos, tão longe de tudo, as flores de uma almofada que perdi ou, no meu caso (e sem o saber então), a dor inútil destes versos. IV. Alegretto Não esperes que te ajude o Cavaleiro Andante ou — menos ainda — a música. Cresceste demasiado, o teu corpo não cabe no teu corpo e o amor (ah, o amor) ajuda mas não salva. — Vem comigo partir estes pinhões, sob o esboroado cor-de-rosa das paredes. Os cavalos, acredita, não te farão mal.
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Depois das laranjeiras havia um tanque, depois do tanque um jardim. Mas de pouco te serve dizê-lo, agora que tratas por tu a mais íntima distância do que foste. § ODE À NOITE (INTEIRA) Gosto do momento, exacto ou nem por isso, em que se torna possível colar cartazes nas paredes ao lado dos meus ombros (espero o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
– ou das pessoas que desconheço e das bebidas todas que ignoro (porque me matam menos e se chamam – como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo). Existem, claro, raparigas louras um tanto heterodoxas que não te apetece beijar (a forca do baton, perfeita – o cigarro aceso pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de um dia procriar com zelo, evitando rugas, tumores e o mundo como representação misógina. Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas, com a cerveja a premiar a farda demasiado verde e os bigodes de serviço. Outros, alguns, tornam concreto o torpor de um charro e pedem-te em crioulo básico um cigarro português que tu vais dar, sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings, t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar por algumas horas no axioma frágil do teu corpo. Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar qualquer, país de enganos e baratas. E quase gostas disso, quase: a música de punhais, servil, um certo e procurado desencontro. Um táxi te ensinará depois o caminho de casa – ou o seu contrário, pois só ali (anónimo e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.
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O resto, a vida, fica para outra vez. § POR ESSES E OUTROS MOTIVOS [para o José Miguel Silva]
Essência? Só se for a gasolina. Para Heidegger, Leibniz ou Espinoza era eu na altura demasiado novo e agora (devo confessá-lo) demasiado
velho. O mundo, estou em crer, não passa ou não quer passar por esses solenes alçapões do sentido. Sistemas, teorias, relógios tão parados. Nascemos (é um azar comum), envelhecemos mal, temos dúvidas e dívidas sobre as quais ninguém – mesmo que se lhe chame Deus – responde. Ou até filhos parecidos, emblemas da matéria que provisoriamente nos devolvem o nariz adunco, um sinal, a morte tatuada e certa. Coisas que remendem o melhor dos mundos. Eu (devo confessá-lo?) tenho passado bem sem filosofia e sem emprego. Não corro aos púlpitos disponíveis, não protesto – e prefiro passar fome de gin quando o restaurante que me espera se traduz em várias línguas.
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É por esses e outros motivos que não gosto assim tanto dos poetas meus contemporâneos. § QUANDO SÓS À BOLEIA DO CREPÚSCULO [para o Fernando Guerreiro]
Não mais a literatura, os seus fúteis e imperiosos desígnios – julgamos dizer, insistindo numa ourivesaria do terror e em gestos que sabem o quanto chegam tarde. Quando sós, à boleia do crepúsculo, dizemos coisas assim, mentimos com os dentes todos que não temos.
E a mentira (a literatura) é ainda a improvável derrota de que não nos salvaremos nunca. Tão igual à vida, portanto: pouso o copo, recupero o fôlego, fumo uma silepse. Sei que vou morrer. E isso que – talvez – nos diz é uma evidência que escurece (tivemos por amigo o desconforto). Quanto ao mais, vamos andando. Casados ou sozinhos. Mortos. § TERCEIRO DIREITO O inferno, aqui. Deve ser normal. Um choro de criança, no andar de cima, sobrepõe-se à música que não ouço e que é talvez de Brel (nenhum quarteto de Mozart serviria agora). Há dias assim. Os guindastes da insónia não seguram a voz, desastre anunciado pela teimosia de pássaros suburbanos. Coisas de muito esquecer, se eu pudesse. Mas o corpo hesita, volta a ser o envelope vazio de um destino por assinar – e que nada tem, neste momento, de “literário”. Sinto a luz na garganta, sufoco discretamente, alheio ao excesso de imagens que me traz o dia. A alegria, se quiserem, fica para mais tarde. Aqui, de novo, morre-se muito mal.
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TEMA SEM VARIAÇÕES – para o Manuel de Freitas, mon semblable –
Sempre soubeste: a morte. Sempre sentiste: a morte. As tabernas fechadas eram apenas uma espécie de refrão. Mas isso, terás de convir, não desculpa o facto de andares há vinte anos a escrever o mesmo. Faz como as tabernas: cala-te. § BARREIRINHA 171
De repente, pai, entre o silêncio de duas ondas, ouvimos a única pergunta: quantas vezes ainda nadaremos juntos? § ESTUDOS CAMONIANOS Estavas linda, Inês, e Camões decerto não se importará se eu disser que tinhas posta no lugar a carne inteira do meu futuro desassossego. Aos poucos vai o corpo apodrecendo, gentil da terra furor de que esquecemos notícia e lastro, entretidos a morrer por novas avenidas velhas que em breve nos não verão mais, apartados pela vidinha.
Mas estavas tu linda, Inês, alheia ou talvez nem tanto ao cego conhecido engano que por vezes se dissipa antes mesmo de existir. § GRAPEFRUIT MOON Não é fácil resistir a tudo o que nos roubam. Tempo, memória, mundo. Toleramos o insuportável com insuportáveis venenos. Até melhor ordem, se houver. Noutras casas (lembro-me) éramos mais, bebíamos apressadamente a juventude. Mas a vida — chamemos-lhe assim — separa os que se juntam, gosta de abismos fáceis. Ao quinto ou quarto gin (lembras-te?) deitávamo-nos a sorrir para a estrelas, sobre o pano gasto do bilhar.
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A música era esta. Perdemos quase tudo. § PUBLIC CASTRATION IS A GOOD IDEA Conheço um pouco o esgar imundo de dois corpos enlaçados, as banais previsões da cópula. E graças a deus o sexo é igualmente repartido para obsessão geral. Pudesse servir-me essa amarga cinza de lençóis,
de mal-entendidos. Precisamente aí, onde falar de coração nega qualquer lucidez. É no entanto razão menor estar ausente da vergonha comum. A quem balbuciar a mais ténue recusa? Prefiro ainda o silêncio da deserção, os argumentos que soube amordaçar, que nem argumentos são. O mercado de carne não há-de por isso vacilar. E entretanto poupou-se esperma, paciência e a inútil alma que emprestamos às coisas. § 18.15 Há todos os dias uma cidade, castrante sucessão de lugares. Quando a arma mais temível é o suor, a peste, a contingente exalação, aí sós nos quedamos, vergonha sem pesar.
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E cumprem-se horários, infecções alaranjadas na pele empedernida. É, diz-se por vezes, a mais grata hora de se ser defunto. Outras vezes não se diz nada e basta a peste, o impertinente suor aderindo ao cor-de-laranja de uma vida assim mesmo diluída. Dias felizes para tantos contarem aos porcos dos netos. § STUPOR MUNDI Sofremos com nojo a pertença em nós inculcada de uma geração, as suas taras vindas de longe, modos diferentes
de se ser igual. Com uma raiva triste os vemos foder, procriar, indo aos poucos definhando, esperados que são por pós-modernos jazigos. Não há nada a fazer, nenhuma palavra nos salva. É-se sempre contemporâneo da merda. § PURGATORY OF FIERY VULVAS Um buraco húmido e afável onde entras sem jeito, dir-se-ia que devagar, solenemente — para que seja mentira. Tão breve esse buraco, o entrar nele contundido. Num instante te resumes ao vómito branco que desesperado o açoita. Que depois languidamente para nada escorre como um trôpego verme. De tudo isso digamos já agora a vergonha e o fascínio de quase nada, desse nada avizinhando-se em nojo do saloio vazio, da perfeição imbecil, da dor maior. A merda mais pura buscando-te as fossas da alma. § BENILDE, SENTADA Benilde, nessa tarde, tinha dores e estava viva, se me desculparem o truísmo. Abandonara o balcão,
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por uma vez, sentando-se perto destes versos. Eu tinha apenas febre, um cansaço de tudo e de mim também. Anoitece, de facto, cada vez mais cedo. À falta de clientes, as sombras do jardim irrompem pela taberna, contornam devagar o oratório do Grupo Excursionista Os Gosmas. Pergunto-me se algum deles estará ainda suficientemente vivo, se o pequeno comboio os levou ou não até ao fim da dor, agora iluminado. Mas não me respondas, poema. Deixa-te ficar ao lado de Benilde, sentada e tranquila nesta tarde de Novembro. A noite não precisa de palavras. § LICEU SÁ DA BANDEIRA 175
Quando somos demasiado novos e o tapume de sentidos e vontades nos obriga ao inferno real da escrita, pouco adianta acrescentar que esses passos num abismo alheio não interessavam sequer à ocasional professora de português que, entre duas bicas, nos falava do monóculo de Cesário. Eu confundo tudo – até já de pronome mudo (e rimo). Na verdade, talvez tenha amado essa magra professora de liceu que só me leu (se é que leu) passados muitos anos. Mas o que importa, neste poema, é o susto com que chegamos às palavras que não temos. Enquanto a dor, apenas, se revela soberana e intransmissível. Havia o Campos, Sá-Carneiro – descobertos por acaso na pequena livraria que em breve terá de sofrer
a sombra do maior centro comercial de Santarém. Mas depois era o deserto. E em minha casa apenas se liam (se é que se liam) sonetos das primas pelas mesmas editados, tão incertas em grau quanto em talento. Não gosto de lhe chamar destino, mas houve uma espécie de sorte nesse azar imenso (estar vivo, numa cidade indizivelmente bronca): Dois crepúsculos que a penosa biblioteca do liceu me fez seguir durante meses, deixando que a cicuta e o assombro se conformassem a “sons e sentidos” que não eram, nem poderiam ser, os meus. Alguns desses nomes viriam talvez a salvar-me. Não de mim, claro, mas do esterco mais ou menos consensual dos que então se tinham por poetas. Eu não percebia: como pode um poeta não sofrer? Já disse que confundia tudo: a biografia e a obra, antes de mais, mas também, num plano diverso, a clamorosa insignificância em que me pareciam comungar os malabaristas de escola, os secos & institucionais ou os que pelo escárnio e pela ruptura queriam o mesmo e assinavam. Provavelmente, não me estava a enganar. Eram dos que iam realmente às escolas, o que ajuda a tirar dúvidas (que me desculpe a Sophia, que também lá foi uma tarde). E ou viviam disso ou sempre garantiam férias mais folgadas num paraíso suburbano. Eu preferia ficar em casa, a ler por exemplo a Florbela. Quantos poemas dela não passei à máquina... Esses e os outros, os que escrevia mal e tão bem fui sabendo deitar fora. Tinha dezassete anos, vontade de morrer, maus hábitos.
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Não sei se o país mudou. Eu não. Haverá mais estradas, menos lugar para o corpo e, nas letras, os do costume foram como se previa substituídos pelos mais novos do costume. “Já cansa a cona, caramba”, diria o Mário – que nunca fez exactamente parte deste horror quotidiano sem reabilitação possível. Desenganem-se. Há muito pouco a reter disto a quem um atávico pudor nos impede de chamar morte. Talvez aquele primeiro corpo, numa praia a que não voltei nem voltou a anoitecer assim. Ou o diálogo perfeito entre uma pavana de Byrd e o mar de Santa Cruz. A poesia, se quisermos insistir no termo, começa no corpo (cf. Herberto Helder) para acabar num livro – ou em lado nenhum, que é o melhor dos destinos. 177
§ QUERELLE Não tenho, para ser sincero, muita simpatia por aquele rapaz de óculos escuros que roubava livros em Santarém. Rapou o cabelo, decorou páginas inteiras de Genet, sem que nada percebesse do amor. E, no entanto, é ele que me pede agora contas da vida que não vivi – esse náufrago de espelhos abolidos e de noites sem saída. Esse rosto imberbe que finjo reconhecer ao longe. Talvez lhe pudesse simplesmente dizer: ao menos não engordei, cretino, e escrevi mais poemas do que tu alguma vez sonhaste.
Mas ele riposta, implacável: não te voltarão a chamar rapaz. Deves-me todos os poemas que escreveste. § JINX para o Manuel João Fradique e o Rui Pires Cabral
“Isto é amor, isto vai ficar”, disse o barman, ao fechar o livro, num sorriso que depressa traduziu em copos de tequila que bebemos lado a lado, mendigando-lhe canções. Não sei o que é o amor, mas sei que nada – mesmo nada – ficará, e que a morte escreve demasiado bem o silêncio que a tua e a minha noite acumularam nas gavetas de já não sermos jovens. Tinha chovido, enfim, na travessa da Água-da-Flor. O último bolero levou-te a minha casa, onde o vómito e as palavras dispensam, além De testemunhas, a ameaça da posteridade. Por uma vez, o gato portou-se bem. Nem ligou ao telemóvel que, de quando em quando, te pedia um amor alegremente exterminado por razões apenas tuas ou por não haver, sequer, razões. Só agora percebo que me esqueci de responder à única pergunta que fizeste: Como sair daqui? Rui, Manuel, João, Barnabé são maneiras rápidas de dizer ninguém, de nomear isto que não fica e terá do amor pouco mais do que a suspeita: revólver sem balas a que voltamos sempre, quando até para tabaco nos recusam trocos e fingimos, tão longe do poema, a vida que nos foge.
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MIGUEL CARDOSO | Por exemplo: esta terra não está feita para nós. Ruy Belo Ou: Junta meia dúzia ou assim de dúvidas das mais resistentes. Precipita-as na geografia movediça disto (será por aí que entrará meio desfocado o futuro). Nesse novelo de timbres e toques, nesse feixe de sopros e sons e olhos soltos prepara-se a queda. Pisarás obstinadamente a terra, distraidamente o mundo. Enfia o cigarro por um instante naquela ranhura do cinzeiro. Espera. Pela espuma que dizem anda por aí nos dias, ou melhor ainda pelo estremecer dos arames nada inocentes que deixaste na côdea do dia anterior. Em todos os dias então anteriores. Espera que arranque o motor de uma das mãos, os flexores profundos. Solta as falanges. Espera, outra vez. Usa outras coisas que assobiem um pouco o ar. Insiste e vinca muito bem as dobras do costume, com a unha. Nada a ver com espanto (ou não exactamente): é que assim tesoura-se melhor. Usa (por exemplo) a discreta pausa dos parêntesis. Outras – as mais irreversíveis – cesuras. Cospe e ganha gosto a decompor desta terra a aspereza com o desamparo (feliz?) de não estar feita. Como a cama usada para o ensaio das necessárias cambalhotas. Desmancha. Repete: esta terra não. E aqui abranda asperamente o não e já te disse faz e desfaz esses nós
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quantas vezes for necessário. Segura uns segundos o estremunhar da crise. Experimenta atar a terra com tesouras – sempre exercita apocalipses, ainda que provisórios e raramente consequentes. Podes pegar por qualquer ponta – isso depois ajusta-se (embora não se acerte). Remexe em tudo. Deita fora as instruções. § E há quem tenha dito: Mas haverá uma cidade em que serão esquecidos por completo Os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas Haverá um acordar Mário Cesariny É porventura impossível apercebermo-nos disto muito claramente. Há outras maneiras, mesmo no rumor com que os gestos se adiantam ao saber. Assim se abranda um pouco a cegueira dos dias. Porque apesar de tudo. Experimenta chocalhar o ouvido como se cavasses trincheiras entre as notas, antecipa as incontinuidades, cuida da impressão como se fosse a mais exacta ciência. Algures entre o torcer da língua e o derrapar dos pés. Afinar esta dança não é a menor das nossas tarefas. Estou certo que já alguém o disse. (mesmo que o não soubesse):
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Não conheço violência mais delicada ou delicadeza mais bruta. § O CANTO QUE CORTA A GARGANTA Musa ensina-me o canto Que me corta a garganta I Ensina-me a revirar a língua. Mas não tão subitamente. Preciso destas poeiras e ventos (e não só para que me arranhem) Ensina-me o vagar da língua que não estranha as estranhas ranhuras da saliva ou o assobiar do respirar nos contornos murmurados do cinzento, a inclemência dos objectos lisos nas escuras câmaras da minha lucidez. Sôfregas, mundanas. O incalculável, sobretudo. A ressaca de estar tão rente ao presente, de ter as têmporas tão enroscadas em mim. Ou lá o que é isto. Ensina-me o canto que verga incomodamente a excitação da língua. O que é certamente uma maneira de apressar a reticência do futuro. Ensina-me esse mastigar só com a sua ondulação de músculo
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e porventura a refinar o cuspo azedo que fabrico. São ensaios. Para ir treinando a urgência. Guardarei os dentes para outras tarefas, outros verbos, sentidos menos restritos. Ensina-me uma língua que arranhe. É só isso. Como cambalhotas no asfalto: felizes, ainda que necessárias. Mais: que arranhe o próprio arranhar. Uma língua como a falam os homens mesmo que nem sempre o saibam (que eu o saiba e o não saiba ao mesmo tempo) Como a cospem os que vezes sem conta cuspiram o belo, porque era levemente implacável. Como aqueles a quem foi ensinado que as horas que assim suaves batem as certezas nos agarram a este solo e que essa é a única canção. Todos eles têm outro obscuro canto a assobiar entredentes. A voz em esforço pois passa esfolada e indecisa um pouco pelas frinchas do necessário – a ele voltamos sempre ao espreitar pelas nesgas da raiva.
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Dizem-me que a língua pertence ao obscuro e húmido. Ou vice-versa. Que os poetas portanto a têm particularmente retorcida e golpejada pelas sombras. Mas não é isso: que se foda a língua dos poetas. As suas pregas dão-se mal com o meio-dia. Eu dou-me mal com estes dias mas insisto em lhes lamber o pó. Ensina-me a lamber o pó de outra maneira. Quero a língua de todos os aflitos, as espirais toscas da lâmina desvairada que é o mundo. 183
Areja-a ao sol, contorce-a sob a luz desatina-a para que encontre a fala desencontrada. O torcer esforçado que se esgueira pelos lugares que nos deu este tempo. Ensina-me a dobrar a dor a estirar o corpo e o embaraço dos gestos quase possíveis Nesta língua, neste prenúncio zumbido de quase futuros. Ensina-me, musa, a música impraticável §
PEDRO AFONSO | ocorre-te sempre uma queda solitária um som turvo demasiado distante e na falta de um corpo uma poça ausente de sangue como que penetrando a terra te faltasse nos braços a carne de um socorro e assim caminhas de membros extintos por entre as casas esperas da luz cada esquina que te acenda o susto da sombra do teu regresso § aqui onde a toda a gente é permitido viver para sempre o ar desliga-se do som numa nébula esverdeada cores de gritos amanhecem nas paredes e os passos da multidão da visita deixam pegadas de nuvem no soalho só no fim do dia depois de uma brancura surda depois de tudo dizermos o silêncio trará de novo à casa a opacidade ou um adeus solene que raspa a porta de ferrugem
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§ procuro-te e são sempre manhãs lilases e o mundo ainda vazio dos arrastados caminhares das nossas vidas promete um vislumbre fugaz do espaço em que se imprime
branco por cortar e limpo apenas uma inclinação abrupta por onde entrar nu sem mãos e de sangue muito à vista muito frio caminho sem distância de mim muito claro e cego molhado um pouco acima da pele onde os nervos doem dessas manhãs surges sempre envolto num místico anel de fúria lúcida § só acredito nestes amanheceres prateados em que me diluis com tua boca e uma voz escorre morna ao acordar são ficções de pólen por entre as pedras frias dos chãos dos dias 185
§ quando o lá ao longe turva encobre-se a cidade de nuvens de aves marinhas chega com elas uma visibilidade de vento mais curta a distância entre as coisas sopradas e as suas imagens havendo menos meio que olhar no espaço por não trazerem sombra estas nuvens em bandos de acordes metálicos inflamam o brilho das árvores e então os ramos que lhes fazem mãos deslocam-se e vêm-nos tocar os gestos com contornos de seda como nestes dias estamos ao coberto de um tempo que não é o nosso passeamo-los com mãos sonâmbulas na folha da tarde onde investimos quase bêbados passos de chuva § agora nesta era de olhos somos fósforos ardidos na escuridão
só nos encontram raros tacteares pacientes e perdidos mas há também um branco nevoeiro onde a ignição é uma luva sem dedos para duas mãos e as palavras são embrulhadas num néon de gritos ofertas para calar a dor resta-nos esta lama fria guardar nossos ossos delirantes na espera de serem comidos § à mesa o café solta um fio de fumo a colher inútil o prato escusado a sombra da mão que segura o cigarro acorda-me do sono do fumo que sonho a corda ou o fio de fumo que foge 186
vou agarrado às crinas de fogo de um horizonte incandescente cego na velocidade do avanço do brilho que me rouba a pele e me lava os ossos soltos no fumo caio caio na cadeira em pé caio para muito fundo e vou agarrado às crinas de fumo de um horizonte de fogo branco largo a pele os ossos e o nome afundo ainda assim os pés no fogo antes da cabeça no brilho do fumo e as crinas roçam-me o peito que já não tenho não vivo o brilho o branco o escuro o fumo que foge à secretária escrever tudo isto como que se voltasse como que como se como aqui e aqui durmo
como se as crinas deixassem o peito se o rasgo de brilho tivesse sido e os livros são fumo se se experimentar e a casa é fogo e fumo será o pó é fumo parado ou quase tudo arde as crinas varrem o mundo em fogo o toque é fumo nem isso os ossos o fumo é um grito do fogo em brilho e os corpos não são fumo antes de serem fogo os rostos que amo são brilho e as crinas desenham-lhes a linha inexpugnável da individualidade que é a luz negra do amor astros astros e labaredas velozes e pêlo em fogo e o fumo que fica para trás e por cima e o brilho dos rostos que os astros que caem deixam no nada e este cair que é só andar depressa
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e a cama que será fumo e que é um fogo que nasce das pernas imparáveis do corpo do brilho da fome e do sono e as crinas no peito que são mãos ardentes que dizem dorme dorme dorme §
PEDRO MEXIA | EU AMO Eu amo o teu gravador de chamadas. Ele não me abandona e repete vezes sem conta a tua voz. § LET IT COME DOWN Banquo: It will be rain tonight. 1st Murderer: Let it come down. Shakespeare, MacBeth
Não tenho nem uma partícula da tua existência e a chuva é assassina. Levanto as abas do sobretudo que me protegem involuntariamente de ti e das agulhas ternas que chovem. Noite antiquíssima e cíclica, noite frágil, noite modernamente sábia e por escrever. Não tenho sequer os segundos em que me separei de ti, porque a chuva lava a tua memória imediata e deixa-me sujo. A chuva despe-se lentamente e eu consinto porque não tenho mais nada.
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§ FAIXA ETÁRIA Olho para mim, como se fosse a pessoa da mesa em frente (que não olha para lado
nenhum) e reparo como estamos todos, neste café, a fazer o que é próprio da nossa idade ou a lamentar não o fazermos ou a lamentar a idade e que visto de fora (mas teria de ser mesmo de fora deste poema) isto é um jogo animado de bonecos psicológicos e biodegradáveis, cada um com o penteado e os sapatos que lhe são próprios, exuberantes ou ensimesmados pensando que havemos de ser todos parecidos, ou já fomos. § 189
NA MESA AO LADO Ouço alguém dizer que lhe morreu a mãe. E esconde o choro nas mãos. Nunca vi esta mulher antes, não sinto nada, tenho vergonha de não ficar fúnebre. § METRO O comboio atravessa subterraneamente a cidade, rápido e metálico, e não há ventre materno que dure uma vida. As multidões têm um só corpo, conversam, desconfiam, são o mundo por minutos. Mas em certas horas e certos meses estamos tão sozinhos
que até os nomes das estações fazem companhia. § METROPOLITANOS Aqui estamos, atravessando sem saber o nosso destino, à espera que o próprio caminho o torne evidente (mas não), somos todos assim metropolitanos (urbanos), saímos na estação errada, lemos cabeçalhos, vemos o envelhecimento nos rostos que connosco através de túneis dantescos (cliché), e pensamos (ou dizemos agora que pensámos) que há um plano que nos ultrapassa (rodoviário), um plano (subterrâneo) de linhas que se cruzam com as linhas da mão, interceptadas em cores e com o guarda-roupa do nosso tempo (capitalismo tardio), atravessamos (atrasados), sob o sol que imaginamos em cima (platónico), interrompidos pelo parêntesis irónico da consciência que talvez queira fazer a diferença mas não faz nada (nada). § CLOSING TIME As últimas lojas fecham. Um grupo de repetentes discute Ética. Não tenho ninguém a quem telefonar.
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ROBERT DE NIRO A noite segrega os casais daqueles que estão sozinhos: os primeiros passam, rapazes magros com a camisa de fora e elas penduradas a fumar, uma blusa transparente que deixa ver o soutien, mas quem vê isto o que faz: olha para a chávena, o relógio, lê tablóides, conta os segundos do medo antes de voltar para casa, pede cigarros, elogia a Exposição do Mundo Português (“esse, sim, era um homem”), suspeita que metade dos homens são homossexuais e a solidão torna-os criaturas lamentáveis e vis que gostariam, como o taxista, de limpar a imundície das ruas.
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§ VELHOS Os tristes tão tristes velhos não sabem a hora da morte mas conhecem a hora de fecho do centro comercial. § “DÊ SANGUE” Dê sangue, mas não necessariamente
o seu, dê por exemplo o sangue sacrificado em vão, o sangue do tédio, o sangue que faz falta, dê o sangue dos corpos que se dão porque alguém pede. § LOJA DO CIDADÃO Em fila, quase divertidos, os cidadãos limpam os polegares negros com lenços de papel e suspeitam que o homem da medição lhes roubou centímetros. Revêem as fotografias pequenas que sobraram e comparam-nas com o cartão caduco. Alguns planeiam perguntar ao empregado calvo do guichet metafísico: com o bilhete podemos renovar também a identidade?
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§ RUAS As ruas não parecem dignas quando são mais do que vemos ao atravessá-las, aparições enevoadas ou quase num ápice transparentes. Não podemos pedir demais à matéria nem de menos à imaginação. E fazer o mundo poético é destruí-lo. § TAXI DRIVER O taxista diz-me que a poesia pertence
a uma idade teológica e que hoje temos de tornar a vontade uma realidade objectiva. As imagens, diz, deixaram de ser uma ideia e agora são uma representação, e, de acordo com a sua experiência, um cruzamento não é um símbolo mas uma necessidade de decisão. O taxista diz que, no sentido etimológico, a filologia é uma perversão, e que prefere os romances policiais e o naturismo. Sempre que experimento alguma coisa, diz, vejo que somos mais sólidos do que a aprendizagem e que chamamos frases aos nossos alibis. As pessoas não têm mistério nenhum, diz, são apenas diferentes, viajam no banco de trás e contam as mesmas histórias. Eu levo toda a gente onde me pedem mas nunca ninguém chega a tempo a lado nenhum, diz o taxista, e eu dou-lhe dinheiro um pouco acima do preço e digo “está bem assim”.
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§ CONSOADA 2 Consoante a consoada assim o entendimento de meus versos.
SÓTÃO Morre quando queiras ou não queiras mas deixa tudo em ordem aos que ficam. § AUTO-RETRATO COM VERSOS DE CAMÕES Foi-me tão cedo a luz do dia escura enquanto me enganava a esperança que naquilo em que pus tamanho amor errei todo o discurso de meus anos. § MEIA-NOITE Depois da meia-noite o rigor e a misericórdia dançam. A luz é baixa como um candeeiro no chão, ou difusa, em cores, tranquila. Em dez minutos alguém me põe a vida nas mãos. O álcool emociona-nos nos momentos errados mas nada se move, só as mãos quase criminosas, parece que não saímos mais disto e que estas regras valem. Depois da meia-noite falamos pelos meses em que estivemos mudos, brincamos com o copo, a morte de um animal de estimação explica, numa frase absurda, todo o nosso passado.
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A gravidade ganha outro corpo, somos sábios, o riso ilumina os dentes e o cabelo e as frases como o fumo, impregnam-se nas cadeiras da nossa proximidade. Ninguém tem este poder. Ninguém, como nós, ri assim de estar sozinho. § AQUÉM Não compreendo toda as caligrafias, começando pela minha, metade do que nos foi prometido parece-me entretenimento, fun and games, distracções, dou atenção à palavra de mortos, como se essa mesma morte não fizesse prova, fiquei aquém do que se pode esperar de um filho, e isso é mais importante que metáforas. § AS SOMBRAS [baseado em “When You Are Old”, de Yeats]
Quando estiveres velha e cansada e cheia de sono e as sombras excederem as coisas em seus tamanhos, recorda esses olhos verdes e castanhos que foram um dia os teus olhos, e numa espécie de sonho recorda como muito amaram o teu corpo numa dança e te amaram com amor falso ou verdadeiro e amaram tua alma como um luzeiro e a mágoa no teu rosto em mudança. E no meio de luzes eléctricas como velas murmura, um pouco aliviada, que o amor não existe
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ou então vive num cume celeste e escondeu o rosto numa multidão de estrelas. § PAPEL QUÍMICO O “sofrimento” é uma emoção poética, estamos sempre sozinhos com o nosso fantasma e os versos o papel químico do mundo. § Ela disse você ia ter uma morte nada bonita o fígado que se desfaz humanamente até ao fim eu disse mas isso já aconteceu com o meu coração. § 196
VAMOS MORRER Vamos morrer, mas somos sensatos, e à noite, debaixo da cama, deixamos, simétricos e exactos, o medo e os sapatos. §
RUI CÓIAS | Não distinguimos com clareza o que mais importa. Vemos apenas o que podemos ver claramente. Nada descobrimos.
1. Se quiseres que eu me perca buscarei outra ilha. Esperarei a sombra diante dos olhos, o milhafre na ravina de crisântemos. Ao longe, correndo para a primeira luz do dia, estarei à tua espera, acenando com a mão esquerda, avançando sobre o mar. Não te esqueças, aprendi um dia como deus nos traz um sono leve que nos cega. § 3. Sabias ser o augúrio a adivinhação do futuro pelo voo das aves? Sob que promessa faremos então discorrer as nossas penas? Acalentarás o adulto milhafre, serpejando a vazante, ou pretendes me detenha na venerável contemplação do corvo? Minuciosa é a travessia para o coração sereno, sem lástima; pois anda e comigo reparte o ofício do condutor de cotovias. Pelos quintais seguiremos o seu trilho na erva molhada, também com ele formaremos um cortejo, pobres aprendizes por chegarem os anos e o que vivemos, um dia, indiferentes, sem perguntarmos que só isso podia importar. § 7. Foi a noite em que provámos as plantas da loucura. O visitante bebia água no tanque e molhava a fronte à passagem da coruja.
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Disse que subiriam como névoa pelos braços quentes as canções de outras línguas que cantámos. Tão lentas eram que inclinavam ao relento, tal a brisa do tanque por detrás da roupa. Toda a memória havia passado em um corpo estranho, nunca os olhos ficaram tão vagos antes de sorrirmos. Quando partiu o visitante deixou o último recado distribuído nos beirais. Não provocou rasto nas veredas e nos remoinhos de água mas dizem que aparece soterrado pela noite. E ao amanhecer, sem que os galos já cantassem, descobrimos uma a uma nos beirais as flores do esquecimento. § 9. São os olhos que aproximam os lugares ao coração. Agora que regressamos é nisto que penso enquanto fazemos sinais uns para os outros com as luzes dos carros, na rápida estrada, ao anoitecer. Olha-se devagar para a vida e sobretudo assim damos conta dos silêncios, dos nomes devolvidos ao tão leve silêncio. A casa vincada pela névoa, a aldeia imobilizada ao passearmos em grupos, o café que me conforta quando o recebo entre as mãos. Como dizer que são estas as mais secretas regiões da alma a que voltamos sempre nos maiores frios de dezembro? Se de repente dizem que estamos a uma eternidade frágil dos dias inquietos, cruzas uma palma da mão sobre a outra e olhas para as unhas, rindo de quando em vez para mim, que fico tão feliz. E no regresso, quando os sobressaltos se repetem e anoitece nas estradas vazias e o mundo adormece, há uma solidão que estremece as bermas e nos aflige debaixo da língua, como uma chuva miudinha. Como falar depois da tua inclinada cara a meu lado
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e do recanto mais longínquo dos pinhais? Como acreditar que o tempo não trará aos olhos a maior solidão em que ficámos? § 11. Não é difícil um homem apaixonar-se. Ferir a sua paisagem, cinzas de um passado caído, fluente. Ao fim de vidas partilhadas pode ser que diga “estremeci durante anos sem te abraçar”. Agora é tarde. Agora é tarde sobre a terra cercada. Por planícies ficou o desespero, a dor lilás dos homens soçobrados na paciência nocturna. Só depois do terror os cães ladram fielmente aos portais da manhã, só após o gume das vidas partilhadas. “Passei a vida a fugir para a tua boca”, e confundo já o teu rosto com um qualquer. § 12. As vozes partiram. Voaram para fora do terraço deixando-nos sós. Os homens têm medo de chorar sozinhos. Por isso escutam as histórias prodigiosas uns dos outros. Assim toleram o amor falhado, o amor flectindo na face como cachos de uvas. Os homens perderam-se, ficaram desamparados e retidos com medo da noite. Não voltarão a estender-se no cansaço branco da juventude. Apertam nas mãos rosários de oiro
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sob os alpendres e deixam-se fitar pelas mulheres que passam altivamente. Ao fim da noite adoecem no calor dos terraços, escutam em silêncio os poemas de kavafis. Ao fim da noite, as mulheres apaixonam-se perdidamente por eles e dão-lhes as almas para que as protejam. § 14. […] E sabes, no que mais tenho pensado é nisso, no significado das rotas, no que elas têm a ver com tudo isto que te conto, com o que nos conduz na vida e não sabemos. Há um mistério nisso. Tu também sabes. É o maior mistério e não podemos persegui-lo. Como se nos afastássemos e só pudéssemos esperar e fosse mesmo isso o que está certo. Sim, cubro toda a terra daqui. Outro dia abri a semente vermelha do café raro e percebi que não quero sair nunca mais. Talvez te custe saber isto, não sei. Se calhar, custa-me mais a mim. Por isso quero dizer-te que não posso partir. Acho que a vida encontrou-me na tranquilidade certa, a verdadeira, a que nos cerca como um nevoeiro. E podia contar-te mais, se quisesses. Agora entendo como devíamos contar a nossa vida sabias? Contar o que ela tem a ver com tudo isto, Deambular por toda a nossa vida até aportarmos aqui, vigiados pelas hortênsias, cobrindo toda a terra. Agora eu amo este planalto como não te amo a ti. Porque amo-te apenas quando partiste.
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Quando me deixaste na mão a certeza de te esperar e o dom de vigiar os navios e os cagarros. Agora o vento cresce do mar pelo lado norte e espero-te. As nuvens enegrecem no canal, já tinha dito. Assim ficarei até que chegues. Até reconhecer o teu silêncio na inquietação das rotas. Disseste que vinhas quando não esperasse a tua carta. E crê mais não ires pressentir do que a minha sombra lá pelo tempo das beladonas. § 19. Em dias de viagem, pensamos poder seguir para norte ou se viramos a poente, para longe da costa. Às vezes depende da transição na fachada das casas, da forma como pronunciamos os nomes nas placas locais ou simplesmente porque o céu rodou a sul, na traseira do carro. Então a imaginação retoma-nos como um pinheiro manso: atravessamos a vida nos mapas e deixamos o corpo em todos os lugares. Onde as estradas são a única verdade intensa, o lado que acompanha no mundo a devastação da luz, haveremos de viajar juntos para sempre. Depois perguntamos que percursos fizemos, que curva de pó é aquela no sopé da montanha, porque terá a floresta crescido tão perto do mar. “Em que direcção passámos a fronteira Onde pelo rio fora o incêndio cercava os montes?” É difícil passar. Tão difícil como, anos depois, ver chegar o inverno ainda com o cheiro das fogueiras nos eucaliptais de Lorvão. Pudéssemos voltar. Pudéssemos, nos olhos pretos e líquidos de quem olha indiferente.
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Ficamos a crescer. Como os lugares lá longe, nas curvas da estrada. E viajamos. Nada atraiçoa ou nos descobre. Onde caminhámos, para norte ou nascente, à beira das terras, juntos ficámos para sempre. § 22. Dizia que viajar é poder partir-se para o lugar em frente, que cada lugar só impressiona porque sugere a visibilidade do próximo. E que no fim, quando abandonamos tudo e já não ouvimos senão o repique dos sinos, as paisagens deixam de existir para não passar do que a respiração liberta. “O que nos conduz é podermos sepultar o corpo noutro lugar; porque em todos os sítios passados deixámos o corpo à vista do lugar mais próximo”. Percebi, sem que mostrasse algum temor, que havia descoberto a transparência do mundo, que fora auxiliado pela face suspensa dos viajantes. E lembrei-me como o tempo havia de ensinar, desde a juventude à velhice, que onde a beleza assola habituamo-nos a uma pausa nos olhos, nas mãos e nos olhos que são o que nos diz do pouco do que nos fica sempre. § 6. Lembras-te do que falávamos nesse tempo, naqueles quartos ainda vulneráveis – de excessivos anos, onde fumávamos, atirando os cigarros acesos para a rua?
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Não creio que julgássemos as nossas palavras, nesse tempo, nem esses mistérios que – tarde saberíamos – arejavam nas alamedas e couraças, até aos arredores, onde íamos e vínhamos, aceitando convites, sem cuidados, tais esboços de espumosa tinta, esvaecendo-se, em vapor. E dizias – e já maio avivava nos perfis a descrença que gentilmente se abatia ao passar-se em sub-ripas: “hoje descerei as escadas, de cabelo molhado, ao vosso encontro”. Era pois o tempo um desfile aflitivo despejado na nossa idade, já reclusa da candura combalida – fim da década. Hoje descerei as escadas e baterei à tua porta – nada tão certo e penosamente dito, a frisar a voz, aumentando, a forçar os clarões entrevistos a meio da subida das ladeiras, onde inicia o seu cortejo o andor de cabeleiras jovens, subitamente assomando aos sótãos de janelinhas, subitamente quebrando quem havia chegado, alegremente, da conraria. Que distinta é essa ameaça – que só a franqueza impedia – logo intuindo as solidões que emanam no tempo, e se refundem num ponto só, em que paramos, à espera de alguém nos lançar o dever da esperança para de novo, num salto para trás, podermos repousar. Se hábil é o âmbar de quem persuadido vive da sua glória, assim aturdido numa centelha quente, na luz marítima, logo lhe despontando, sem que saiba, a filigrana da derrota, se por sepulcros latentes ali vínhamos , sem sabermos, aparatosos noviços, revolvendo o pó, abraçando-se, sem engano, exibindo o desfecho de lestos deuses, de seguida debelados – que certo é que a tua descrença eu não julgasse, nem as tuas palavras entendesse, nesses quartos, nesse tempo, e a desceres alamedas e as escadas uma graça levasses, quase um esboço esmaecido, mel e bronze, quase um deus – quando, todos juntos, embuçados, chegando a maio, sob um sol distante que a banda dos carrosséis amolecia, pela encosta víamos descer os primeiros corpos da primavera e lá em baixo os esperávamos em duas áleas para que passassem. § 17. Ousámos esta beleza, o equilíbrio – o despojamento,
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como se houvéssemos renascido e à ilharga caminhássemos – sem rumo na respiração doce, ou um corpo emergisse com a sua face confiante, não temendo sequer o torpor do seu reverso, – para não esquecer que à morte basta cortejar-nos, tocar-nos na apatia de um vento frouxo, e que noutro lugar ou aqui, com outro nome ou começo, a regressar e a partir definitivamente, vamos apurando a ordem do mundo. Em toda a vida a voz muda – o silêncio muda – mais enxuto, como abóbadas de catedrais russas, e há quem passe e nos apanhe desprovidos e não volte nunca, e as árvores vão ficando próximas, em altíssimas ilhas, e nada nelas esperará senão a parca folha ou o pescoço da gaivota avistada adentro do estuário. O destino alcança-se assim, nesta ordem, imprecisa, na cadência do que connosco e entre nós se apazigua com a luz que se converte ao passar o vidro e se retira. E porém as mesmas vozes voltarão outro dia a casa, panos assomarão aos postigos humedecendo olhos, silenciarão fundos de parques e lustres na névoa, as mulheres acenderão candeias nos quarteirões e as praças de todas as cidades alinharão ao anoitecer. Devemos suster este equilíbrio – paz, depois da neve, ligá-lo em alguma parte numa rede de fronteiras, e na mudança do traço mosqueado para o esculpido ali discernir a gaivota estirada, fitando-nos, ao alcance da mão, atenta ao vento certo para poisar ou apenas hesitando, ali percebendo, no que nos tolhe – que ignoramos a fonte, que é possível conhecer mais do que se pode conhecer nesse instante de ir tão longe quanto podemos ir. Se nos mapas assumimos de cima os percursos discorridos, e regressamos e voltamos definitivamente a partir e todas as partidas são sem regresso, também no ápice de asa corrida, a ir mais além, seja o flutuador de cortiça, ou o bico de folha na planura, é que damos por mais próxima a beleza que levanta. §
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RUI PIRES CABRAL | o que sempre procuro na poesia: uma espécie de beleza arrepiante, desarmada, de efeito emocional e epidérmico semelhante ao da música. Não tenho outro critério para avaliar a poesia: aquela que me convém tem de ficar perto do coração e dos sentidos.
É FAVOR FECHAR A PORTA Descer a rua numa noite de Agosto e por momentos nada ouvir senão uma voz na cabeça que faz e repete o poema mais desnecessário; ver por toda a parte os sinais perdidos e as cicatrizes dum fortuito trânsito: alguém insiste em abrir ao perigo a porta do número 133, enquanto os rapazes do café vizinho fumam sob o toldo à hora do fecho e invadem o verso com uma frase avulsa: coitado, morreu-lhe a filha
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tomar à esquina o táxi onde espera um homem sem rosto, seguir essa estrada — para um recomeço ou uma despedida? — e entender de súbito que tudo é por acaso, não ter a ilusão doutra certeza. § CONSERVE ESTE BILHETE ATÉ AO FIM DA VIAGEM Devo dizer que sempre preferi os versos feridos pela prosa da vida, os versos turvos que tornam mais transparentes os negros palcos do tempo, a dor de sermos filhos das estações e de andarmos por aí, hora após hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos que gritam: Temos as noites contadas. E também os que replicam: Valha-nos isso. § ABRIL Eu disse: quem pôs aqui este rio? Alguém tinha desenhado na paisagem um cenário para a nossa história. Manchas inteiras de urze, papoilas, giestas. Até se disse em Terena que Abril não vinha assim tão verde há muito tempo. Sim, tinha chovido muito nesse ano, mas nada esteve por acaso, nem o céu de manhã cedo nos castelos com a erva a crescer dentro e fora das muralhas, nem sequer a nossa primeira noite, aquela em que esperaram por mim noutro lugar. Sozinho, sem outra defesa que não fosse a minha própria solidão, eu estive onde tu me pudesses encontrar. E depois subimos juntos a rua molhada. E já chovia por Abril sem o sabermos. § “HE LOVED BEAUTY THAT LOOKED KIND OF DESTROYED.” (7) Gostava dessa espécie de beleza que podemos surpreender a cada passo, desvelada pelo acaso numa esquina de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta que foi toda a infância de alguém, com visitas ao domingo e tardes no quintal depois da escola; a beleza crepuscular de alguns rostos num retrato de família
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a preto e branco, ou a de certos hotéis que conheceram há muito os seus dias de fulgor e foram perdendo estrelas; a beleza condenada que nos toma de repente, como um verso ou o desejo, como um copo que se parte e dispersa no soalho a frágil luz de um instante. Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada onde a vida encontra o espelho mais fiel. § “YOU ARE A FOREIGNER OF SOME SORT.” (13) À míngua de uma ideia de futuro, só o medo te compelia a mudar. E além dos livros difíceis que te davam as horas mais duras, sofrias os danos do hábito e uma assídua preocupação com a morte no escuro antes de dormir. Ao corpo do mundo só o conhecias com a parte mais desacompanhada de ti próprio – um coração com defeito, peça de dúbia oficina, que confundia o amor e tomava por alegria um perdido laranjal junto à linha do comboio, com nuvens roxas ao largo e os teus amigos todos antes do inverno e do necessário inferno reservado a cada um.
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“JÁ É TEMPO DE ACABARMOS COM ESTAS DIVAGAÇÕES.” (27) Sete e meia: também a praça tem as suas horas mortas. Alguns trocam a esplanada pelos bancos do jardim – aí se sentam ao frio, graves como sentinelas, não se sabe o que vigiam. Terão chegado mais jovens à solidão derradeira? Ou são apenas o espelho da tristeza de quem passa e se interroga? Os do costume, entretanto, até bebiam mais uma, catam dos bolsos moedas, pedacinhos de cotão. Mas está na hora, senhores,
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que o dia pesa no corpo e o rapaz que serve às mesas já pôs o lixo na rua. Meus amigos, faz-se escuro: adeus, adeus. (7): James Gavin, Deep in a Dream: The Long Night of Chet Baker, Londres, Vintage, 2003, p.239. (13): Henry James, The Europeans, Harmondsworth, Penguin, 1985, p.54. (27): Edgar Allan Poe, Aventuras de Arthur Gordon Pym [tradução de Eduardo Guerra Carneiro], Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p.83.
§ O REI DOS OLHOS FECHADOS Fazes entrar em Fevereiro o rei dos olhos fechados, o das escadas rolantes. Quanta luz desperdiçada,
quanto desconsolo nas grandes superfícies da memória. Ouves o vinho rolar nos ouvidos, a realidade defenderá até à morte os seus mistérios. Fazes uma vénia ao rei destituído e morto, ele atravessa os fundos da casa precedido pelo próprio corpo. § A FLORESTA EM CEDOFEITA Foram estas as ruas que se ergueram para nós, mal desenhadas, velozes sob o fardo dos nossos adereços: símbolos de pano, mortalhas, música ligeira com muitos violinos e um coro de mulheres. Mas o movimento rasa apenas a superfície das coisas, é a malha onde prendemos os olhos, uma espécie de venda. A floresta que conduzia à igreja está debaixo do cimento – não a ouves respirar? Tudo o que cresce sobre a terra tem a mesma vocação, as casas, o passado, o corpo em todo o caso: qualquer coisa o segura desde o princípio. E as praças que estiveram ao fundo da noite uma vez é para onde caminhamos a vida inteira. § MARLBOROUGH DRIVE Se pudermos estar felizes não será mais bela a voz do trompetista de Oklahoma? Oh, there’s a lull in my life. Sim, o amor é triste e o mundo é árduo e nunca nos serviu como convinha. Mas
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nas cercanias da vila, no Volkswagen em segunda mão, vê como resplandecem os vidros de Marlborough Drive ao entardecer! Uma ambição sentimental à nossa pequena escala, prados entre castanheiros, duas onças de tabaco de enrolar. Que importa que tudo rode para um fim e que a nossa verdadeira condição seja morrer um pouco mais a cada instante? A pele reconhece estas canções, sabe que é Junho, conhece a estrada que devemos escolher. A pele é sábia. Por uma vez, que valha a pena morrer. § A NOSSA VEZ É o frio que nos tolhe ao domingo no Inverno, quando mais rareia a esperança. São certas fixações da consciência, coisas que andam pela casa à procura de um lugar
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e entram clandestinas no poema. São os envelopes da companhia da água, a faca suja de manteiga na toalha, esse trilho que deixamos atrás de nós e se decifra sem esforço nem proveito. É a espera e a demora. São as ruas sossegadas à hora do telejornal e os talheres da vizinhança a retinir. É a deriva nocturna da memória: é o medo de termos perdido sem querer a nossa vez. § NÃO HÁ OUTRO CAMINHO para o Vítor
Os poemas podem ser desolados como uma carta devolvida, por abrir. E podem ser o contrário disso. A sua verdadeira consequência raramente nos é revelada. Quando, a meio de uma tarde indistinta, ou então à noite, depois dos trabalhos do dia, a poesia acomete o pensamento, nós ficamos de repente mais separados das coisas, mais sozinhos com as nossas obsessões. E não sabemos quem poderá acolher-nos nessa estranha, intranquila condição. Haverá quem nos diga, no fim de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta? Não sabemos. Mas escrevemos, ainda assim. Regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. Escrevemos, regressamos. Não há outro caminho. 211
§ GNOSSIENNE Nº 1 Eu acreditei que podia amar o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos mas crescias fora de alcance no teu próprio pensamento. Uma distância que só serviria aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas. Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio em que me mantinhas era mais urgente que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo mas eu perdia sempre alguma coisa quando te ganhava. Às vezes era só a minha vontade, outras vezes era toda a frase do meu nome.
I WAS MADE TO LOVE MAGIC A manhã com as suas proibições na tua fala. A claridade estava a crescer numa cama que já se tinha atravessado no escuro como uma nave enfileirando para a guerra. Eu não tinha ficado para conhecer a vista das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas mas não cheguei a levantar as persianas. Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar porque quando falávamos os nossos olhos não coincidiam com nenhuma palavra. Teria gostado de te levar comigo outra vez mas era difícil recuperar as razões para o desejo. E no caso de nos ter acontecido uma mudança onde é que havíamos de procurar os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes e eu só falava em livros. § ESCURO Pergunto-me desde quando deixou de haver futuro nas janelas. Janeiro dói nos olhos como areia e tu e eu estamos para sempre sentados às escuras no Verão. § NUNCA SE SABE Papéis velhos com poemas: são o joio das gavetas. Relê-los causa aversão
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e uma espécie de tristeza arrependida – são tão nossos como as más recordações e ainda vemos a circunstância precisa, a causa, a ferida, por detrás de cada um. Mas na altura havia esperança: é isso que representam. Não pelas coisas que dizem – é só descrença e fastio – mas pela simples razão de termos querido guardá-los. Com um pouco mais de alento, de inspiração e trabalho, ainda se endireita isto. Ou seja, os versos. E até a vida. § DIANA OF LOVE Estávamos em Londres naquele dia de Setembro em que foi a enterrar a Princesa do Povo. Não havia barulho nos passeios, não havia casa aberta onde pudéssemos comprar qualquer coisa para merendar na relva de St James ou Kensington Gardens: os próprios parques tinham mergulhado num lutuoso torpor. Sentados à sombra, nós os dois estávamos exactamente a meio da nossa história. Para trás, a lenta cadeia de acasos que culminou no encontro a desoras sob os astros duma gruta; pela frente, todos os maus passos que, somados, haveriam de ditar o nosso fim. Mas nessa tarde de sol e silêncio, enquanto a Inglaterra chorava aquela que na morte teve o nome do amor, estávamos juntos ainda – e sei que fomos felizes na cidade mais triste do mundo. Era sábado, uma mulher que passava vendeu-me um ramo de rosmaninho (for remembrance, dear): largos meses murchou numa gaveta. E quando dele me desfiz já não era um memento por Diana, mas o último vestígio de um amor tão morto quanto ela.
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SHIRLEY ANN EALES Na vitrina lê-se Livros Raros e Usados sob o azul inclinado de um toldo – mesmo em frente à glacial cafetaria de franchise onde o dia destrata o desejo e não se pode fumar. Subo aos pequenos gabinetes mergulhados no doce bafio da literatura e percorro de A a Z as espinhas estreitas e rachadas da poesia. É o sítio mais vazio de Novembro e o que mais me reconforta; o livro que escolho, por metade de uma libra, traz no frontispício um nome e uma morada: Shirley Ann Eales, de Scottsville – um sumido autógrafo de maiúsculas magras e triangulares onde a imaginação encontra por enquanto pretexto e oxigénio suficientes para arder. O livro teve outra existência, pertenceu a outra casa, a outra mesa de cabeceira – e o pensamento, de tão óbvio, conjura de repente uma vertigem, é um corredor abrupto para a imensidão do mundo onde trafica o acaso. Ah, sabemos que a vida é improvável se damos por nós a cismar, a meio de uma tarde insípida, numa mulher desconhecida que lia poemas em Scottsville, nos anos 70. Mas haverá aqui alguma espécie de sentido, algum sinal guardado para alguém mais sábio ou inocente
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do que eu? Não sei quem és nem onde estás agora, Shirley Ann, mas como seria belo se pudesses um dia encontrar, por obra da mesma sorte, o teu nome nestes versos. § CHINA DOLL à Daniela
Eu ia na passadeira com um propósito mas a gravata de um homem atirou-me para o coração do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda com pintas discretas, o catalisador da vertigem. Aquilo que o vento levantava na avenida era uma espécie de música, um barulho de sinos remoto
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e descompassado, viam-se algumas flores a entrar na boca do esgoto como se fosse ali a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam na taquicardia, caíam em desamparo para a cova do meu peito. Do outro lado da rua um sinal de trânsito foi a minha âncora. § CANTIGA as palavras repousam fermentadas na geometria do meu lagar
é uma guerra e está dentro de mim como um bicho emboscado agora já tenho quatro versos turvos e uma dor longínqua no intervalo dos ossos com o que sobra invento outra mitologia § CORREDORES Agora dormes e acordas cada vez mais longe. Não sei porquê. Julgo que tens sido fiel a uma certa noção de sofrimento. Os teus dias já nascem obrigados à noite que fundaste, são os corredores de uma misteriosa predestinação. Mas e se o tempo fosse um erro teu, um erro de percepção? Anda daí. Estas avenidas não têm verdadeiramente outro propósito, foram escritas por capricho no grande livro de Deus. Haverá outras oportunidades para a descrença, outras violências. Entretanto, devolve-me o favor das tuas mãos e permite que caminhemos juntos outra vez. Ao sol, ao sol. § I'M COMING HOME O tempo corre nas paredes livremente mas não toma a direcção da morte: ela esteve aqui desde o princípio, uma vocação adormecida debaixo do estuque. A manhã nasce viciada nos brandos venenos que os móveis destilam, haverá pombas
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sobre o parapeito, o senhorio arrastará o chinelo sob um eco que caminha pelo tecto. Nada poderá perturbar a fluência da penumbra nos cantos para onde se varre a casa aos domingos. A pele respira tenuamente mas não posso falar em tristeza. Este é o meu endereço, um lugar composto para a submergência. § LOST WEEKEND Um dia é maior do que a soma das suas horas, às vezes comporta todos os invernos e as estações assombradas pelos prejuízos do prazer. Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica? A cidade não foi feita para as nossas pretensões, está apenas alastrada por dentro de nós, crispação de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias. Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite, é a própria razão que nos ilumina os atalhos para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente para tudo o que não nos acontece. § PRELUDE Nº 24 De regresso ao meu palácio adormecido, esta luz deve significar que foste apenas uma das invenções da noitada. Tinha começado a chover outra vez, todos os fogos estariam mortos se eu não tivesse trazido uma parte das tuas mãos nos meus bolsos. Mas eu não me lembro de te ter dito como é que as coisas funcionam para mim. À força de estar sempre tão calado já não distingo nada por detrás da minha cara. Como é que te serviu o meu desejo entre a desordem que fazíamos? O tempo era tão comprido nos meus sentidos que eu poderia ter dito: quero ficar contigo para sempre. Ainda bem que as [circunstâncias não me levaram a dizer uma mentira.
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Por enquanto ainda te reconheço nos movimentos que faço, ponho a roupa no armário com a tua pele. Mas não verei muito do dia que se aproxima, acho que já o gastei todo contigo esta noite. Vai ser fácil encontrar nos esconderijos da música um bom lugar para o sono. E contra isso, tu também não tens muitas hipóteses. § WINTER NIGHT A meio da tarde o dia ainda não foi encetado, parece barricar-se nas folhas moles dalgum livro. Tu já sabes como eu gosto dos cafés nas horas de pouco movimento. Os empregados podem entregar-se a querelas ruidosas nessa altura e os reformados na mesa do fundo vão dizer em voz alta aquilo que pensam sobre o governo. Ao princípio da noite é como ter sangue nas mãos. Talvez o tempo ainda se componha, talvez possa telefonar a um amigo. É certo que nas ruas se torna mais fácil distrair o medo, há sempre espaço onde pousar a cabeça. Mas em que me torno no quarto quando não estás a olhar? O cheiro da comida flutua ainda pelos corredores, sente-se o peso que dorme no escuro até às entranhas. Se pudesses ver como isso às vezes me magoa. § CURVA Antes não nos pesava o passado, colhíamos os dias ainda verdes, a frescura da sua polpa na vontade dos nossos dedos. Depois vieram os sinais dos primeiros cansaços sem remédio, a noite fincou-se nas pedras, fez-se de estorvos.
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Aquilo que sobrou de ti cabe-me nos bolsos e é pouco para as minhas mãos. § IN HEAVEN Como se fosse impossível, eu não me recusei a ti no escuro, via o clarão do desejo nas tuas pernas abertas, um rio negro alastrando como se procurasse em nós esconderijo urgente. E depois falaste durante muito tempo com os incêndios da cidade a rebentar por trás dos teus olhos. Parecia que não te bastava trazeres-me de regresso ao mundo real, também o querias justificar para mim. § FOTOGRAFIAS Nesta vida – é um facto – estamos sempre a desaprender coisas novas. O mundo vai guardando a luz nas suas bainhas negras e temos a melindrosa companhia dos fantasmas que nos procuraram: eles governam rudemente os nossos pequenos reinos e há um ceptro novo para cada coroação. De repente, com a volta das estações, damos por nós muito mais velhos nas fotografias. As razões que nos assistiam empalidecem em paisagens cruelmente coagidas pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos responder: o caminho turva-se: são as incertezas
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da maturidade. As palavras não nos iluminam e o amor está condenado aos defeitos naturais do coração, que ainda assim há-de voltar a arder sem defesa nem socorro uma vez mais. § LIVROS O tempo cumpriu as promessas que nos fez e o dia já não é corrigido pela música: estas casas não terminam em nenhum jardim, estão viradas de frente para o inverno, a nossa direcção. Mas não deixa de ser estranho reler agora os livros de que gostávamos, os livros que não podíamos compreender ainda: enchemos com eles as estantes do futuro, para o dia em que não poderíamos suportá-los, de tão próximos. A bela geometria das superfícies não pode continuar a distrair-nos de tudo o que nos atormenta: a vida é isto, esta imensa e inútil espera, e os livros afinal jamais nos ensinaram outra coisa. § MUDANÇA A fé que perdemos nestas ruas não se recupera nem produz as consequências da sua mais profunda vocação. Antigamente não sabíamos quase nada e ninguém ensombrava o nosso sangue: o desamor era apenas um pretexto para dividir ao meio o fundo calafrio de alguns versos. Mas foi talvez o amor que nos manteve juntos e unidos
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nas montanhas. E quando a noite encheu a boca de pedras, nós descemos à cidade onde julgámos poder respirar com mais proveito, outra insuspeita cilada da esperança. § JUST RIGHT FOR LOUNGIN’ Hoje o que nos convém é uma certa escuridão inventada de raiz. Talvez seja o nosso prémio, a meio do caminho, depois de tantos sobressaltos. Deixamos entrar no quarto as mais modestas canções: Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém.
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Antes uma ameaça, agora uma simples explicação. § [PASSAGEM DE PEÕES] À vinda do supermercado diz-me o pequeno monstro que às vezes me faz companhia: “E qual é a tua razão de ser? “ Na rua, a tarde rola devagar entre prédios murchos – e ele acrescenta: “Não me digas que são os versos. “ E ri-se.
TIAGO GOMES | POEMA RELIGIOSO Haja ordem no caos Cristo disse ao seu amigo Abraão enquanto subiam a montanha onde numa pedra um pouco se sentaram e disseram olá a Maomé que tinha ido passear as suas cabras com Judas que se perder entretanto. § PLÁSTICOS TÃO PRÁTICOS Hoje em dia tudo é cosmético e mecânico. Problemático e fundamentalmente informático. Tudo é prático e de plástico que não quebra não derrete.
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§ FANTASMA DE FREUD II Freud era um inconsciente que estava ciente de ter o sexo sempre presente nos labirintos da sua mente. § O HOMEM PENSANDO E O ACTO Mete a linguística no caixote do lixo a palavra certa na mão, atirando directa ao alvo.
No vazio da noite com a alma cansada o corpo caído no quarto solitário todo o passado tremendo em ti. Distorces a caneta e tiras o sumo tinta abstracção sorriso de palavra voas no teu poema e tentas dar-lhe um final feliz. § MODO DE UTILIZAÇÃO – Não fumar neste livro. – Não se pode andar com vacas neste livro. – Este livro já não contém explosivos. – Não leia este livro. – Este livro pode provocar doenças graves. – Não proíba. – Não pense. – Não proteste. – Não trabalhe. – Nada é proibido. – Não deixe às crianças brincar com este livro. – Se vai ler este livro, beba. – Interdita a leitura deste livro a menores de 18 anos. – Este livro foi visado pelos censores. – Este livro teve o patrocínio da sex. – Secretaria de estado do xamon. – Este livro não é para ajudar a unicef. – Ler poesia provoca cancro e doenças cardiovasculares. – Ler poesia pode matar. § Costumava trazer consigo sorrisos de várias cores. § Sempre ouvi dizer que era a vida quando algo triste acontecia.
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PUB Mãos vazias fogo cruzado remoinho urbano suor frio dor e destroço parte-se a coluna cervical ao tentar passar a meta pub. Teleflash. Perfume da flor decadente do hash. Acordo e oiço o boletim metafísico que anuncia para hoje zona de altas depressões. § ABSINTO Pouso a solidão na mesa a imagem há algo de social agora que são poucos os que não dormem. E os outros todos, os bilhões, os colhões da humanidade que se levantam de manhã e não falam exalam um odor seco e intoxicante de vinho a martelo mal encarados pobres portuguesinhos fechados a cadeado achim e achado bamos andando calando e soltando as agressões que há muito estavam mudas e que nesta noite onde as ruas estão vazias e nas casas nem sequer se fala nem se discutem os mínimos problemas da miséria e da mesquinhez. no fundo, o pequeno grande português: – Cale-se.
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– Não me calo, mas ando na miséria, protesto mas nem sequer falo, sento-me debaixo de um autocarro, discuto, grito e gesticulo, mas calo-me. Onde está esse gajo português de 500 que ia dar passeios de barco à vela descobrindo novos caminhos? Acho que esse gajo deve estar na paragem há duas horas à espera do autocarro para andar uma paragem coxo, cheio de sacos de plástico. Mas vai-se andando, com o Inverno as dores pioram só o salário e a pensão é que não pioram, não sobem, nem descem porque quase não existem. 225
§ Je m’amuse avec ma muse Et elle souffre. Tu as compris? §
TIAGO NENÉ | PERFÍDIA Incrível como se ama qualquer animal recém-nascido. por isso, ainda que em vão, amamos o amor quando nasce, esse animal que em criança alimentamos, e que um dia nos comerá o coração. § MAJESTIC e não há uma só repetição que se cruza com uma primeira vez, e alguém que deixa uma beleza em prol de outra, o desamor de um amor culpado, uma eternidade invertida, o cansaço invisível num homoponto. e não há uma dor que sobe aos dons, e um inverno rigoroso que é o pudor do verão [e talvez da primavera], e os líquenes de uma canção por gestos. e não há corações num frappé [é, porém, lindo o majestic] sobre uma travessa de uvas passando nas ruas dos dedos que emparedam o sangue oculto mas lilás sob o movimento dos astros da pele. e nenhum segredo desperdoa todo o tempo, e não retiramos as minas de tacto sobre o mapa da cidade, e nunca regressaremos aqui, antes dissolvemos agora o rasto do seu infinito.
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e diz oscar wilde que o inverno traz consigo a sabedoria, e eu ainda espero que vague uma mesa. § O TERRAMOTO [a uma pessoa intemporal]
querida Joana, o terramoto apanhou pessoas que faziam amor, pessoas que morriam de uma causa lenta e dolorosa, pessoas que celebravam contratos com apertos de mão, pessoas com instrumentos na terra fértil, pessoas que faziam de conta, pessoas sem relógio. os que faziam amor perpetuaram-no, os que morriam viram a sua morte impedida por uma colectiva e mais bem aceite, os que celebravam contratos perderam as mãos coladas, os que trabalhavam na terra fértil foram soterrados, os que faziam de conta procuraram cumprir uma promessa, os que não tinham relógio escaparam ao tempo. meu amor, sermos egoístas é tentar impedir que as coisas mudem, sermos intensos é não respeitar causas e efeitos, espero-te no meu futuro, ainda que ele não seja o efeito directo de um presente que ainda treme muito. § AUNG SAN SUU KYI montemos o circo. façamos de conta. deixemos que o sonho acorde e confesse. sintamos todo o impacto de ver as palavras de pele tomarem forma e rédea de coisas lúcidas presas no desejo de um pequeno erro. o nosso coração é a nossa cabeça, e para sermos felizes, ou temos sorte, ou somos brilhantes.
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somos romeu e julieta, reféns perfeitos de todos os sonhos. § GESTAÇÃO / POEM IN PROGRESS a ecografia morfológica está bem, as medidas estão certas, o poema está com um quilo e pouco e tem trinta e dois centímetros. daqui parece perfeito, sei que não tem hidrocefalia, nem lábio leporino, ou cataratas congénitas. eu vi-o mexer-se bem no fundo do seu pré-destino moral e todos os seus significados continuavam inteiramente livres, o seu autêntico deliberado, e os seus acontecimentos espantosos impondo ao sonho as excepções que ele necessita para ser credível. para a semana far-se-á uma amniocentese, e se porventura o líquido estiver contaminado, sou capaz de tomar pirimetamina, sulfadiazina e ácido folínico.
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§ 03032007 no livro que me foi emprestado – uma edição de poesia de novalis – vinha uma nota muito ténue a lápis tremendo. dizia: procuro o último livro de ruy Duarte [de] carvalho – de que nunca li coisa alguma – e encontro este, que procurei
há dias sem encontrar. vinha datado e escrito assim: 03032007. não vinha assinado, nem a caligrafia pertence a quem mo emprestou. e estes factos, lentamente suspensos na superfície móvel da memória mais imediata, impuseram no mapa sem rios da minha leitura um sentido extremo de ficção real. § REFEIÇÃO INCOMPLETA talvez não queiras um amor absoluto, mas uma só refeição completa. podes comer-me as pernas, os braços, o fígado à florentina, e os dedos dos pés al ajillo, ou talvez encontres o peixe que vive dentro do meu sangue. não é verdade que assim morra, diz o livro que não podemos viver sem amor, e podemos morrer sem amor? o amor é o momento, e o meu amor é passivo, são as tuas hipocondrias nos meus órgãos, os teus dentes exemplares nas minhas praças e a misteriosa velocidade só de imaginar o que digo com a convicção e ordem com que o exijo. fá-lo, fá-lo, fá-lo, fá-lo. chegarás à côdea do meu coração de três dias lentos. afinal, não precisas de um amor absoluto, mas de uma só refeição completa.
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KARMA e duvidamos dos instantes mas não de todo o tempo, dos versos mas não da poesia. se alguém nos disser que o tempo parece uma cascata de céus acreditamos mais facilmente do que se alguém disser que nos ama. e acreditamos nos poetas, e não naqueles loucos que dizem que uma pessoa se mata muitas vezes se tiver muitos corpos. e duvidamos de certas palavras mas não de todas as combinações entre sílabas. acreditamos na geração do movimento mas não conseguimos sair do meio do caos. e acreditamos nos tiros que acabámos de ver partir mas não que estamos prestes a morrer.
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§ UM POEMA COM FORMA ESTRANHA alargar [anota aí] a imobilidade depois de ver a rapidez das sombras, uma [filma, filma isto] existência não expressa é mais verdadeira. só ele [tira a máquina da chuva] saberia como fazer passar o seu corpo por cima de si mesmo, por fora da música, do [que música é esta?] karma, sobre as nuvens [um, dois e três] fixas de cor profunda [ele é
o poeta dos íssimos, mas shiuuu] tudo o que lhe odeiam [ele tem trinta e nove de febre e toda a genialética] é tudo o que eles gostariam de ter, ele que sabe como resumir todo o silêncio a só um começo. [corta. repete] § PROTOCOLO kyoto, pulmões de ferro, picar o ponto a: delírios minúsculos, seguir a linha dos pássaros, feridas dissemelhantes, ruas emparedadas no interior dos teus canais, aproximações da inocência, distância entre sangues marítimos, respiração húmida do beijo frondoso, óculos de um gandhi-flipper ficcionado num olhar que ainda caminha, cintila numa cor oca de clarividência irresponsável, evidencia a árvore íntegra por cima do teu lábio fazendo o mar ciciar nos pulmões de ferro, na tua cabeça livre, no teu suave azul solúvel gotejando isenção, libertando substância subtil e dúctil das coisas meramente ténues, essas coisas, esse hábito volúvel, esse protocolo fragilmente feroz, fictício, nu,
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flora no interior do teu corpo ausente e frio. ยง
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VALTER HUGO MÃE | contabilidade venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste […] § a presunção da transcendência para o mário vitória
deus nosso senhor pensa que um dia me rendo implorando por minha alma como se uma alma fosse garantida a todas as pessoas, mesmo às mais zangadas ou até suicidas mas o inimigo cá dentro sabe o contrário deus nosso senhor pensa em mim todos os dias, esperançado, a fazer com os dedos milagres sobre a luz, o quente do verão, a oportunidade boa do sexo ou os amigos, para que eu me torne melhor pessoa mas o inimigo cá dentro quer o contrário deus nosso senhor gosta de mim, ainda que eu seja defeituoso na beleza da alma, e que na feitura do corpo cumpra só o egoísmo implacável do prazer. deus nosso senhor gosta de mim para me enganar e levar ao paraíso
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mas o inimigo cá dentro morrerá contrariado deus nosso senhor virá de igual modo apaixonado por mim a mexer-se pelo meu corpo, como se desfigurado de encontro aos meus ossos, esboroando-os lentamente numa farinha que deus nosso senhor pensará ser apenas açúcar o inimigo cá dentro vai devorá-lo § poema do amor e da tenra idade para os meus sobrinhos hugo e bruna
havia um lugar muito distante onde as crianças não tinham um braço no meio do peito. eram crianças horríveis apenas com um braço de cada lado, vindo de cada ombro. só muito mais tarde, já adultas, o braço do peito lhes crescia. por isso, nunca se apaixonavam na adolescência, incapazes de agarrar nos corações umas das outras. o governo, quando soube de tal deficiência nos pobres habitantes daquele lugar, incapaz de suscitar o atempado crescimento desse braço tão fundamental, ordenou que se fizesse um pequeno buraco no peito de cada criança, por onde, ainda que sem lhe tocar, pudessem ver o coração umas das outras. foram raros os casos mas, a partir de então, tornou-se possível encontrar seguros amores de adolescente. § poema sobre amor de pais para os meus pais
o menino disse que nunca mais falaria aos pais caso eles se amassem. era contra o amor. e, por amor, os pais deixaram de se ver. o menino disse que não comeria caso a mãe saísse de casa e, por amor, a mãe encontrou na casa uma prisão, depois um refúgio, mais tarde uma pele. o menino disse que saltaria pela janela se a noite não fosse clara, por isso, por amor, inverteram-se as coisas e o dia passou a ser escuro. por fim, disse que deixaria de os amar se o esquecessem, e os pais, por amor, substituíram o nome de deus pelo do menino e rezaram a vida inteira §
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instintivas no seu papel, como o estrume que o campo come ordenam-lhes que meçam o sonho com o tamanho da noite e nunca com o dia, mas adoecem infectadas de desejos § se o vento é a ignição das árvores venha o temporal, elas ateadas sobre as nossas cabeças, desmembradas da terra como voadores desajeitados, meu pai já conheço o vão da tua fome, peço-te, faz de mim uma colher divina
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§ meu amor inventado ainda assim tanto demoras § a remoção das almas [...] não me esqueças nunca e quando eu morra também devora-me antes que as flores me façam cheirar bem §
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Escrevo do lado mais invisível das imagens Na parede de dentro da escrita e penso Erguer à altura da visão o candeeiro Branco da palavra com as mãos Como a paveia atrás do segador Vejo os pés descalços dos que correm E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos Correi. Como o segador seguindo o segador Numa ceifa terrestre, tombando. Digo: Imaginai Daniel Faria 241
[…] O que faz a poesia? Remir por certo tipo de palavras certo tipo de coisas certo tipo de asas flap flap flap certo tipo de razões desesperadas. Luís Quintais