Ciclo de leitura | Os novos imaginadores da Palavra
Biblioteca Municipal de Silves / Junho a Dezembro de 2009
Ao longo dos últimos anos vários jovens escritores têm-se afirmado no panorama literário português pela sua originalidade, versatilidade, criatividade e actualidade ao nível da mundividência, temário e linguagem estética que as suas obras revelam. Almada Negreiros dizia que “nós não somos do século de inventar palavras. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”. O próprio escritor argentino Julio Cortázar declarou certa vez que quando se sentava para escrever era como se a literatura não existisse e ele tivesse de reinventá-la. Foi essa ambição do olhar e urgência imaginativa na busca de modelos, atalhos, arquitecturas e urdiduras formais e semântico-ideológicos incessantemente perseguidos pela literatura que levou a Biblioteca Municipal de Silves a apresentar um ciclo em que revisitou alguns dos principais autores da nova geração, abrangendo as áreas da poesia, romance, banda desenhada, micro-ficção, argumento televisivo (humorístico) e conto. As sessões, de periodicidade mensal (iniciadas em Junho deste ano) contaram sempre com a presença dos próprios escritores, que foram previamente lidos pelos membros da comunidade de leitores criada na Biblioteca. O primeiro cúmplice convidado foi Gonçalo M. Tavares, um dos abalos sísmicos no panorama da literatura portuguesa actual, que desde 2001 já publicou mais de uma vintena de livros, ligados a vários géneros, estilos e perspectivas. “Ler é preciso para ter lucidez” – diz o autor que privilegia nas suas obras temas como o medo, a violência e o mal, mas também os “gestos surpreendentemente bons”. O intenso diálogo com a filosofia, os exercícios lógicos e a exploração dos paradoxos – pilares fundamentais da sua obra – inserem-se numa lógica de investigação dos limites do mundo e da linguagem, de modo a pôr a nu as limitações das nossas formas convencionais de olhar para o mundo, tanta vezes baseadas numa redutora e superficial visão claro/escuro. Para abordar este escritor – para quem “as grandes qualidades do homem vêem-se quando está sozinho” –, optou-se por ler as suas várias obras (e não apenas uma em particular), de modo a que os membros do clube de leitura pudessem ficar com uma visão mais ampla e diversificada da sua produção literária. Uma escrita repleta de universos lúdicos, engenhosos, inventivos e humorados, em que se conjugam, com manifesta originalidade, densidade e leveza, ironia e violência poetizada, reflexão e lirismo… O segundo autor contemplado foi o algarvio José Carlos Fernandes, sendo proposto para leitura o primeiro volume da aclamada série “A pior banda da mundo”: O quiosque da utopia. Pretendeu-se assim sensibilizar os leitores para o género da BD, desconstruindo assim o estereótipo de que se trata de um universo dotado de conteúdos superficiais e apenas vocacionado para leitores menos amadurecidos ou exigentes. A obra em discussão introduz-nos na fantástica cidade sem nome, povoada pelas mais bizarras personagens. A banda que ensaia há trinta anos na cave de uma alfaiataria, que nunca actuou ao vivo e que nunca tem todos os elementos a tocar a mesma música é o microcosmos que nos convida a entrar nesse
mundo irreal que mantém contudo afinidades e semelhanças com o nosso quotidiano. Um retrato singular, desconcertante, inteligente e pleno de actualidade, humor e sátira dos nossos tempos, pela mão de um dos mais dinâmicos, prolíficos e premiados autores portugueses de BD. O senhor que se seguiu foi o escritor, argumentista, humorista e realizador José de Pina, fundador das Produções Fictícias e criador/co-autor de séries como o “Contra-Informação”, “Herman Zap” e “Herman Enciclopédia”, “Fogo posto!”, “Prazer dos diabos”, entre outras. O convidado é um dos mais férteis e cerebrais humoristas portugueses, privilegiando as áreas da política e do futebol. Para este ciclo foi escolhida a sua obra Nascido para mandar: guia prático para chegar ao poder em Portugal, em que o autor disserta, num original misto de rigor, ironia e desconcerto, sobre os bastidores ora mais desnudados ora mais insondáveis do universo político, as perversidades e contradanças do regime democrático e, assim, as melhores estratégias para atingir uma efectiva posição de relevo nesse mundo que tanto tem de sério e formal como de cómico e hilariante. Uma incursão pela nossa capacidade de nos rirmos de nós próprios, pois o “humorismo alivia-nos das vicissitudes da vida, activando o nosso senso de proporção e revelando-nos que a seriedade exagerada tende ao absurdo” (Charlie Chaplin). Rui Cardoso Martins, autor de umas melhores estreias literárias na área do romance em Portugal nos últimos anos (com a obra E se eu gostasse muito de morrer), foi o terceiro convidado do ciclo, sendo abordado o livro Deixem passar o homem invisível, dotado de um evidente (e confesso) pendor autobiográfico. Num cenário apocalíptico, um invisual – encarado aqui na sua dimensão humana e não como metáfora ou alegoria – e uma criança caem num buraco em Lisboa e a sua incursão iniciática pelas entranhas da terra aprofunda uma relação de cumplicidade e de partilha que mostra o quão salvador as palavras, as histórias e os livros o podem ser quando os atravessamos por dentro. Muitas vezes, é preciso descer ao inferno quer para desnudarmos as nossas fragilidades individuais e colectivas, quer para aprofundarmos os corredores da nossa interioridade enquanto seres humanos. Uma escrita em que se funde passado e presente, numa visão estratigráfica da cidade das sete colinas, que recupera – na senda de autores como Chatwin – o tópico do poder curativo da caminhada e da importância de encontrar um fôlego esperançoso e, assim, uma via de sobrevivência no meio da incompetência institucional e da indiferença e incompreensão revelados por um certo colectivo social, “num sítio tão imperfeito como o mundo” (Sophia de Mello Breyner), em que a realidade continuamente conspira contra o indivíduo e o coloca em eminente perigo, como, aliás, nos relembra/adverte, desde logo, uma das epígrafes do livro. A reflexão sobre o papel de Deus, a fé, os milagres e outras preocupações metafísicas, bem como acerca do livre-arbítrio humano e das receitas infalíveis percorrem igualmente o texto, não escapando à pena crítica do autor, para quem Deus só pode ser uma má pessoa, visto nos colocar perante a eminência do milagre e depois o retirar. Por outro lado, trata-se de uma obra que “abala” e reformula claramente o nosso modo de olhar, escutar e de deambular por Lisboa… A 3 de Dezembro, valter hugo mãe fechou este ciclo, com o seu último romance o apocalipse dos trabalhadores, uma reflexão sobre os caminhos, sempre tão relativos, da felicidade e do amor, em que a procura de um paraíso terreal por parte de várias personagens principais (maria da graça, figura central, sonha literalmente em morrer de amor) se torna o objectivo
primeiro das suas vidas, pontuada por uma esperança difícil, pela precariedade e pelos limites tantas vezes subjectivos do engenho e vontade humanos. Duas mulheres-a-dias protagonizam a acção, higienizando o real e, assim, resolvendo os problemas e limpando as sujidades – à imagem de um deus (por contraponto a uma divindade aparentemente indiferente e arredada da realidade dos homens) – que a sociedade vai acumulando. Nas entrelinhas desta visão do mundo reside um inequívoco enternecimento fascinado e comovido perante, por um lado, a hercúlea capacidade de sofrimento e de resistência humana, e, por outro, a manutenção da dignidade humana (não obstante todas as vicissitudes do quotidiano, que se deseja “mais amoroso”, para citar um dos poemas de valter hugo mãe) não só do elemento feminino como de todos aqueles que se situam na frágil e vulnerável base da pirâmide social: a anónima classe trabalhadora. Paralelamente, o livro aborda o tema da imigração numa perspectiva de humanização da visão do Outro, desconstruindo assim uma certa pequena xenofobia que a sociedade vai alimentando face aos estrangeiros, nomeadamente dos países de Leste, fruto de uma manifesta incapacidade de compreensão dos seus antecedentes, motivações, preocupações, dilemas e sonhos. Numa escrita acelerada, que precipita a urgência de uma história feita de minúsculas, de um notório fulgor poético e de uma dimensão humorística ausente dos seus romances anteriores, a morte (neste caso, uma al-bertiana autodestruição voluntária e revivificadora) assume-se como derradeira oportunidade de alcançar a felicidade… uma morte plena de maturidade, sabedoria e calma rente à felicidade, numa clara indiferença face ao juízo final e à existência ou não de Deus. Alvor, 9.12.2009 Paulo Pires [programador e mediador de leitura da Biblioteca Municipal de Silves]