Jornal do Colégio - 594

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Jornal do Colégio JORNAL DO COLÉGIO ETAPA  –  2015  •  DE 14/08 A 27/08

ENTREVISTA “Conheci pessoas incríveis, que me ajudaram muito.” Surrailly Fernandes Youssef ingressou na São Francisco em 2010 e forma-se em Direito neste ano. Durante o curso ela participou intensamente de atividades de extensão ligadas a direitos humanos e passou seis meses na França, em intercâmbio. Nesta entrevista ela fala de seus estudos e descreve suas atividades, que incluem o estágio que faz na Defensoria Pública. Ela também já prestou prova para mestrado e diz que pensa em prestar vestibu­lar novamente, para a faculdade de Ciências Sociais da USP.

Surrailly Fernandes Youssef

JC – Desde quando você pensava em seguir a carreira de Direito?

Além da Fuvest, você prestou quais vestibulares para Direito?

Surrailly – Acho que comecei a pensar sobre isso quando estava na 7a série, aos 12, 13 anos. Minha mãe é advogada, talvez isso também tenha me chamado a atenção para es­ tudar Direito. Eu sou de Londrina, no Paraná, e vim para São Paulo porque queria fazer Direito na USP.

Prestei também Fundação Getúlio Vargas e Mackenzie.

Por que veio estudar aqui no Etapa? Escolhi o Etapa por acreditar que ele poderia me dar todo o suporte para me preparar. Na verdade, fiz testes em al­ gumas escolas e o Etapa foi o que me ofereceu o melhor programa de estudos.

Sua adaptação no colégio foi tranquila? Bem difícil para mim. É um nível de ensino bem diferente do que eu tive na minha cidade. Eu estudei em colégios muito bons no interior, só que principalmente a parte de Exatas não era tão forte quanto no Etapa. Esse foi o meu primeiro desafio quando comecei a estudar aqui, porque as apostilas, os exercícios são bem difíceis. Precisei me de­ dicar muito mais na parte de Exatas. Estudava muito, mas isso não significa que não tive dificuldades no percurso. Peguei várias recuperações de Matemática durante o 3o ano. ENTREVISTA

Carreira – Direito

Cheguei. Eu tinha passado na FGV já, a 2a fase da Fuvest foi depois. Cheguei a pensar muito que não ia passar porque no meu ano Matemática passou a ser matéria específica para Direito. Saí da prova achando que não ia passar, mas deu tudo certo.

Como foi o início na São Francisco? No 1o ano são muitas matérias e o início é difícil porque você não está acostumada a estudar leis, códigos, você tem de se adaptar a uma linguagem que não tinha no Ensino Mé­ dio. A gente vai ter contato com um pouco de Introdução ao Estudo do Direito, vai trabalhar com Filosofia do Direito, conceitos básicos. Logo no 1o ano já tem Direito Penal, Di­ reito Constitucional, Sociologia, Teoria Geral do Estado.

Essas matérias continuam no 2o ano? Muitas continuam. Por exemplo, Direito Constitucional con­ tinua, mas com enfoque em Direitos Fundamentais. De

POIS É, POESIA

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Castro Alves (1847-1871)

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ESPECIAL Colégio Etapa sedia a primeira edição brasileira do Campeonato Mundial de Cubo Mágico

CONTO

Os pombos – Coelho Neto

Você chegou a pensar na possibilidade de não passar na Fuvest? O que você faria?

ENTRE PARÊNTESIS

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Eletrização

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ENTREVISTA

certa forma, tem Sociologia novamente, mas com enfoque jurídico. Tem matérias de Direito Penal, Direito Tributário, Di­ reito Civil, tem um pouco de tudo. Tem matérias de Crimino­ logia, tem Direito Internacional dos Direitos Humanos, que é uma matéria bem recente. No 1o ano só tive oportunidade de fazer matérias optativas no segundo semestre. Hoje tem muito mais optativas do que quando entrei na faculdade. Mas eu acredito que o mais importante da São Francisco não são tanto as aulas, mas os projetos de cultura e exten­ são, atividades de pesquisa que os alunos tocam dentro da faculdade. Logo que entrei eu me envolvi em dois projetos.

Quais projetos? No 1o ano eu integrei o NEI, Núcleo de Estudos Internacio­ nais do Centro Acadêmico XI de Agosto, e participei de um projeto para estudar o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Estou até hoje no NEI. Atualmente sou coordenadora do projeto. Sou supervisionada por um professor.

De que outras atividades você participou? Ainda no 1o ano eu entrei na Clínica de Direitos Humanos Luís Gama, uma disciplina de cultura e extensão da faculda­ de, que conta com o apoio do NEI e do Centro Acadêmico XI de Agosto.

O que você fazia nessa clínica? Trabalhava junto com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, com o Fórum Permanente de Acompa­ nhamento das Políticas Públicas para a População em Situa­ ção de Rua de São Paulo e com o Condepe, o Conselho Es­ tadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Na época a gente tocava a Ouvidoria Comunitária da População de Rua.

Quanto tempo você ficou nessa atividade de extensão? Fiquei um ano como aluna na clínica. E fiquei mais um ano como monitora. Organizamos um relatório sobre as viola­ ções de direitos humanos que a população em situação de rua sofria e o apresentamos ao Condepe. Depois a gente montou boletins sobre alguns temas que perpassam a situa­ ção de rua, como o trabalho, a discriminação de gênero, a vulnerabilidade, a precarização principalmente dos órgãos de assistência social que prestam serviço para essas pessoas.

Você teve mais alguma atividade extra? Dentro do projeto para estudar o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, além do estudo teórico do sistema, estudo de casos, decisões, a gente decidiu que uma forma de estar mais próximo e entender como são esses sistemas seria participar de competições de julga­ mentos simulados.

Como são esses julgamentos? Julgamentos simulados, as chamadas moot courts, são uma metodologia norte-americana de ensino. Você simula uma

sessão de julgamento perante uma corte. São casos hipo­ téticos sobre diversos temas. No meu 2o ano da faculdade, em 2011, eu fui como oradora, arguindo o caso, para uma com­ petição de julgamentos simulados do Sistema Interamerica­ no de Direitos Humanos. Essa competição, que está em sua 20a edição, é organizada pela American University Washington College of Law, em Washington. O tema do caso era direito das crianças, focado no tráfico de meninas para exploração sexual e também na questão penal juvenil – como crianças são tratadas pelo sistema de Justiça quando cometem cri­ mes. Você tem que arguir perante uma corte formada por pessoas convidadas que trabalham com direitos humanos em organizações não governamentais, pessoas que trabalham na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, professores que estudam o tema. Nós arguimos o caso perante esses juí­ zes, que fazem perguntas para testar os nossos argumentos na exposição. Desde 2011 eu participei de três competições.

Onde foram as outras duas competições? Participei da competição de julgamento simulado em de­ senvolvimento sustentável que é organizada pela FGV do Rio em conjunto com a Universidad Los Andes, da Colômbia, Universidad Rafael Landivar, da Guatemala, e a Tulane University, de New Orleans, Estados Unidos. A outra competição de que participei, em 2013, foi a Price Media Law Moot Court Competition, da Universidade de Oxford. A primeira fase foi em Nova York, fase regional das Américas. Seis equipes passavam para a etapa mundial, em Oxford. A competição, com foco em media law, é para estudar di­ reito à privacidade, à liberdade de expressão, face às novas tecnologias. Ganhamos como a melhor equipe da América do Sul e fomos para a etapa mundial.

Você fez estágios durante o curso? No 1o e no 2o ano não fiz estágio. Quando comecei a me envolver com a temática de direitos humanos, percebi que não seria escritório o lugar para estagiar. Eu procurei estágio na FGV. Alguns professores contratam estagiários para aju­ dar em pesquisas e concursos. Estagiei com o professor de Direito Internacional Público da FGV em 2012, no meu 3o ano da faculdade, com pesquisa de Direito Internacional Público.

Você ficou quanto tempo nesse estágio? Quase um ano. Saí por conta da competição da Price Media Law, tive de me dedicar para isso, e também por causa do intercâmbio que queria fazer na França. Precisava estudar para os testes de francês. Desde o começo na faculdade eu pen­ sava em intercâmbio, até porque eu queria fazer Direito Inter­ nacional e achava que era uma oportunidade de estudar um pouco mais o tema.

Quando você fez o intercâmbio? No segundo semestre de 2013, no meu 4o ano. Optei por fazer o processo seletivo no primeiro semestre do 4o ano para viajar no segundo semestre.


ENTREVISTA Você foi para onde?

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Para o Sciences Po, Institut d’Etudes Politiques de Paris. A São Francisco tem um acordo com a Sciences Po, que é uma faculdade muito interdisciplinar, e como eu sempre es­ tudei direitos humanos, que é uma matéria interdisciplinar, envolve Ciências Sociais, Ciências Políticas, eu me interes­ sei em pensar o Direito de forma interdisciplinar.

ter algumas experiências profissionais. Acabei trabalhando numa organização não governamental, o Instituto da Paz. Trabalhei na área de gestão do conhecimento, que fazia pesquisas sobre homicídios, roubos, latrocínios. Fazia rela­ tórios, cruzamento de dados, aprendi muito a usar o Excel. A gente fez um repositório também para comparar dados de países da América Latina.

O que você estudou em Paris?

Neste último ano, qual é sua maior preocupação?

Eu escolhi matérias que não tinham foco só em Direito, eram bem interdisciplinares. Foi bem difícil. Na verdade, mais difícil até que a faculdade de Direito da USP. Exigiam muitas formas de avaliação, exigiam que eu fizesse artigos no final de cada matéria. Foi uma experiência incrível por­ que aprendi demais. A minha tese de conclusão de curso, na São Francisco a gente chama de láurea, tem muito do que eu aprendi no intercâmbio.

Que matérias você fez na França? As matérias têm nomes muito diferentes no Sciences Po. Fiz Ciências da Paz, Ciências do Conflito, Sair da Violência Política, que é uma matéria que discute um pouco sobre justiça de transição. O enfoque dela é trabalhar como os países saem de crises após conflitos políticos, ditaduras mi­ litares e como lidar com isso e com as relações que ocorre­ ram no passado. Mas também com a reconstrução tanto do país quanto de uma democracia. Eu fiz uma matéria que era mais focada em relações internacionais, chamada Espaço Mundial, que tinha o enfoque de estudar um pouco Teoria das Relações Internacionais, organização entre os estados, temáticas que perpassam as relações internacionais. Fiz di­ versas outras matérias.

Quando você voltou para São Paulo? Em fevereiro de 2014.

Você estava então em seu 5o ano na USP e, por conta do intercâmbio, 4o ano no curso de Direito? Isso. Ainda tinha de fazer matérias obrigatórias do 4o ano.

Depois que voltou, o que mais você fez de matéria na São Francisco? Tinha matérias obrigatórias em Direito Civil, Tributário. Voltei para o NEI, mas agora como treinadora dos oradores que vão para as competições. Aí fui novamente procurar está­ gio. Como eu estava avançada na graduação, pensei em

Jornal do Colégio

Neste momento é terminar minha tese de conclusão de curso.

Quais são seus planos para depois de formada? Agora estou pensando no que realmente eu quero para frente, se vai ser concurso para Defensoria Pública ou se quero tentar estágio em alguma organização não governa­ mental, ou estágio em organização internacional, como o Sistema Interamericano, ou a ONU. Estou pensando em possibilidades.

Você pensa na área acadêmica? Penso muito na área acadêmica, inclusive prestei mestrado. Estou esperando o resultado sair agora no segundo semes­ tre. Se aprovada, começo no ano que vem. Também penso em talvez prestar vestibular novamente, para a Faculdade de Ciências Sociais da USP.

Que recordações você tem de seu tempo no colégio? Foi bem difícil, eu estudei muito, aprendi muito. Aqui conhe­ ci pessoas incríveis, que me ajudaram muito.

Das atividades extras que você teve no Etapa, alguma marcou mais você em seu dia a dia? Uma coisa muito importante que eu tive no Etapa foi o Clu­ be de Cinema. E também o Clube do Livro. Eu recomendo a todo aluno fazer parte deles, porque me ajudaram muito a pensar um pouco além das matérias que eu tinha no dia a dia. Até hoje muitas das coisas que aprendi nos clubes eu levo para as matérias que faço. Inclusive, uma matéria que eu fiz no intercâmbio foi sobre cinema. O Cinema e o Real é o nome da matéria, como o cinema aborda e interpreta a realidade. Muito do meu interesse por cinema veio do Eta­ pa. Foi bem importante para mim.

O que você diria sobre a opção de Direito para os alunos que ainda estão em dúvida? Acho que Direito é uma boa escolha.

Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


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CONTO

Os pombos Coelho Neto

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uando Joana apareceu à porta bocejando, fatigada da longa noite passada em claro, à cabeceira do filho, Tibúrcio, de pé no terreiro, firmado à enxada, olhava o pombal alvoroçado. O Sol começava a subir dourando as folhas úmidas; à beira do córrego esvoaçavam rolas e os sanhaços faziam alegre algazarra nos ramos altos das árvores das cercanias. O caboclo, imóvel, não tirava os olhos do pombal que ficava à sombra de copada mangueira. Por vezes franzia a fronte queimada acusando a luta íntima, graves preocupações que lhe trabalhavam o espírito. Um pombo abalava, outro, logo outro – ele voltava a cabeça, seguia-os até perdê-los de vista e tornava à contemplação melancólica. As aves iam e vinham, entravam, saíam agitadas, arrulhando alto; esvoaçavam em redor da habitação, pousavam nas árvores, no sapê da cabana, baixavam a terra inquietas, fazendo roda, arrufadas. Algumas pareciam orientar-se buscando rumo – alonga­ vam os olhos pelo claro espaço, aprofundando a vista nos horizontes remotos; outras voavam, descreviam grandes voltas e regressavam ao pombal. Juntavam-se em rebuliço turturinando, como se discutissem, combinassem a abalada. Algumas, indecisas, abriam as asas ameaçando o voo, mas logo as fechavam; outras arrojavam-se, mas retrocediam sem ânimo e o rumor crescia, na atropelada excitação da faina da partida. O caboclo não se arredava, olhando. Ele bem sabia que era a vida de seu filho que ali estava em jogo, pendente da resolução das aves. “Quando os pombos desertam, a desgraça vem logo.” Vendo-o, Joana perguntou: – Que é? O caboclo coçou a cabeça sem responder. Ela insistiu: – Que é, Tibúrcio? – A mode que os pombo ’tão arribando, Joana. A cabocla sorriu tristemente: – Uai – só agora é qu’ocê ’tá dando por isso? Desde que ele caiu de cama. Eu não quis falar, mas bem que eu ’tava vendo. O caboclo pôs a enxada ao ombro e foi-se lentamente a caminho da roça, por entre o capim molhado que exalava um cheiro picante. Galinhas cacarejavam ocultas nas ervas altas e um fio d’água, que derivava fino e suave, lampejava aqui, ali, nas abertas do mato. Tibúrcio, sempre de cabeça baixa, enxada ao ombro, seguia impressionado com a repentina migração das aves. Era o anúncio fatal. Ele bem ouvira a coruja noites e noites seguidas; não fizera caso – tudo ia bem: o pequeno com saúde, eles sempre robustos. Mas ali estava a confirmação do aviso – a fuga dos pombos; todos criados por ele, lá iam, abandonavam-no pressentindo a chegada da morte. Voltou-se, levantou o olhar – as aves esvoaçavam des­ crevendo círculos e Joana lá estava na soleira da cabana, encostada ao umbral, braços cruzados, a cabeça pendida, decerto chorando, coitada! Revoltou-se com uma surda explosão de ódio contra as aves ingratas. Nunca tivera coragem de matar uma só e vivia sempre

a consertar o pombal, mais uma coisa, mais outra, pensando em aumentá-lo para novos casais. E o filho? Não era ele quem pilhava o milho para os borrachos? quem sempre andava pela mangueira, de ramo em ramo, a ver se havia alguma fenda no pombal por onde a chuva penetrasse? Quem sabe se era porque o não viam que os pombos abandonavam a casa? Encolheu os ombros e seguiu, mato dentro. Ao atravessar a estiva, o coração bateu-lhe com força, na emoção dum presságio. Parou. A água rebalsada refletia-o imóvel e ele olhava sem ver a sua imagem, pensando no pequeno que delirava, ardendo em febre. Enveredou pela roça. O milharal apendoado era tão alto que o homem desaparecia seguindo os carreiros cobertos de folhas secas. Pomas de terra fofa encobriam formigueiros que ele sempre arrasava nos dias tranquilos. Nem deu por elas. Seguia. Papagaios fugiam chalrando, com as verdes asas luzindo ao Sol; gafanhotos enormes saltavam nas folhas. Por vezes um calango rastejava ligeiro. Havia um ranchinho de palha – era ali que o filho cos­tu­ mava ficar arranjando as suas arapucas; ainda lá estava um feixe de taquaras, mas a erva começava a invadir o abrigo aban­ donado... também ia já para um mês que o pequeno ali não aparecia. Quando chegou ao mandiocal, sentou-se alquebrado – a enxada pesava-lhe ao ombro como uma carga, as pernas afrouxavam, todo o corpo ressentia-se de fadiga como se ele chegasse de estirada viagem. Sentou-se num cômoro e pôs-se a riscar a terra com um graveto, pensando. Às vezes parecia-lhe ouvir a voz da mulher ecoando; levantava a cabeça e, atento, sobressaltado, ficava à escuta. Só ouvia o crepitar das folhas balançadas pela viração e o zizio dos insetos ao Sol. A terra transpirava, um vapor diáfano subia tremulamente do solo aquecido, as folhas pendiam lânguidas e no céu, dum azul intenso, passavam urubus vagarosos de­ mandando as malhadas longínquas. De repente um pombo atravessou os ares, outro, outro logo depois. Tibúrcio pôs-se de pé olhando – lá iam eles, lá iam! Asas estalaram – eram outros. Aqueles não tornariam mais, nunca mais! fugiam espavoridos, sentindo a morte que devia vir perto. Lançou um olhar largo em volta e só viu a verdura farta ondulando à brisa, sob a claridade cálida. Devia ter levado o filho à vila logo que ele caiu doente; mas quem podia contar com aquilo? De repente um febrão, delírio... Que fazer? Levantou os olhos para o céu e ficou contemplando o azul luminoso. Mais um pombo passou. Meneou a cabeça desanimado e, atirando um murro à coxa, pôs a enxada ao ombro e deu volta tornando a casa. Quando Joana o descobriu no terreiro, como se adivinhasse o seu pensamento, disse: – Foi mesmo melhor você voltar, meu velho. Eu aqui sozinha nem sei que hei de fazer. Ele olhou o pombal – estava deserto, em silêncio. Ao cair da tarde sentou-se no limiar da cabana e, fumando, ficou à espera dos pombos. As cigarras cantavam, todos os pássaros, que tinham os seus ninhos nas árvores próximas, recolhiam e, como ainda havia luz, deixavam-se ficar nos ramos desferindo os últimos galreios.


CONTO O céu empalidecia, nublava-se de leve o fundo campo triste. A aragem da tarde espalhava o suave aroma das açucenas que abriam. Perto um cão ladrava, a espaços; por vezes um lento mugido entristecia o silêncio. Tibúrcio não tirava os olhos do pombal senão para os alongar pelo espaço, procurando descobrir uma das aves. Talvez tornassem. Onde achariam elas melhor abrigo? A floresta era arriscada e pombos de casa não fazem vida no mato. Que outro pombal os teria atraído? Se ele houvesse seguido a direção do voo... Alguns tinham tomado para os lados dos campos, outros haviam endireitado para a serra. E não voltavam. Começava a escurecer. Joana acendeu a candeia. Já os sapos coaxavam nos aguaçais. Uma estrela luziu no céu. Tibúrcio fitou nela os olhos e pôs-se a rezar baixinho. O silêncio era apenas interrompido pelo burburinho d’água do córrego que rolava perto, nos fundos da cabana, saltando, escachoando em pedrouços. Tibúrcio suspirou e ergueu-se, encostou-se ao umbral sem ânimo de entrar. Joana chegou-se à porta. – Então?... – No mesmo... Agora nem água. Qual! Ele desceu o degrau de madeira, chamou-a e caminharam vagarosamente no terreiro que começava a clarear. Junto à mangueira, justamente sob o pombal, pararam e o caboclo, baixinho, como se receasse ser ouvido pelo filho, perguntou: – Joana, você não sabe reza nenhuma pra isso? E mostrou o pombal deserto. – Nhá Lina é que sabe. – E chama? – Diz que sim. Tibúrcio ficou a pensar. Súbito, levantando resolutamente a cabeça, disse em voz firme: – Eu vou lá. – Agora? – Então... Você não diz que chama? – Eu nunca vi, Tibúrcio. Dizem. – Você não quer. – Eu? eu não. Só o que acho é que é muito tarde. Você já viu como ele está? não dá acordo de nada. Eu ando, falo, viro e mexo no quarto e ele... nem como coisa. Ali só Deus! A voz ia-se-lhe travando na garganta; de repente desatou a chorar. Tibúrcio afastou-se, pôs-se a andar vagamente no terreiro. A Lua subia, os campos alvejavam e as sombras das árvores, muito negras, tisnavam a claridade. – Tem paciência, minha velha. A gente fez tudo. Os grilos cantavam estrídulos; um caburé passou com um grito rascante. O caboclo murmurou: “Já sei”. De repente Joana estremeceu, voltou-se hirta para a cabana, por cuja porta escancarada saía ao terreiro um raio de luz lívida e, depois de olhar um momento, como assombrada, partiu de arranco. Tibúrcio, imóvel, sem compreender o que fizera a mulher, esperava vê-la reaparecer tranquila, quando um grito lan­ cinante atravessou o silêncio. O caboclo arrojou-se para a cabana, foi direito ao quarto que uma lamparina alumiava: a mulher, de joelhos junto ao catre, debruçada sobre o filho, soluçava desesperadamente. – Que é, Joana? Ela rouquejou atirando os braços sobre o corpo da criança. – Acabou! Vê... Ele inclinou-se: o seu rosto roçou por uma face que ardia, a sua mão trêmula pôs-se a apalpar um corpo abrasado, sentindo o peito magro ripado pelas costelas, o ventre fundo. – Vê o coração, Tibúrcio.

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Ele apenas disse: – Acabou. A mulher ergueu-se de ímpeto, desfigurada, com os cabelos desgrenhados, os olhos flamejantes; quis falar, estendeu os braços para o marido, mas caiu molemente numa canastra e, dobrando-se toda, rompeu a chorar, redizendo o nome do filho com a ternura a coar-se pelos soluços: – Meu Luís! Meu Luisinho! Tão vivo, minha Nossa Senhora! Tibúrcio afastou-se e, na sala, diante da mesa em que jazia a candeia, parou com o olhar perdido, os lábios trêmulos e as lágrimas rolando em grossas gotas ao longo da face ossuda. Joana rompeu do quarto cambaleando como ébria e, vendo-o, atirou-se-lhe nos braços; ele amparou-a sem dizer palavra e, abraçados, ficaram largo tempo de pé na estreita sala obscura onde os grilos cantavam. Joana tornou para o quarto. Tibúrcio ficou encostado à mesa, de olhos fitos na luz da candeia, que oscilava com o vento. O luar entrava alvo, caleando as paredes. Ele moveu-se com arrancado suspiro, foi até a porta, sentou-se na soleira, acendeu o cachimbo e quedou-se olhando o campo iluminado. De repente pareceu-lhe ouvir arrulhos – levantou a cabeça, olhando. As estrelas cintilavam na altura, a copa das árvores reluzia ao luar. Seria ilusão? Encolheu-se e, imóvel, atento, ficou à escuta: os arrulhos continuavam. Ergueu-se impetuosamente e caminhou direito ao pombal, colando-se ao tronco da mangueira. Seriam os pombos que voltavam depois da passagem da Morte? Respondendo à sua ideia, pôs-se a resmungar enfurecido: – Agora é tarde! Agora é tarde, malditos! Um ruflo d’asas, turturinos meigos, pios partiram do pombal. Não havia dúvida. O rosto contraiu-se-lhe em ríctus. Adiantou-se e, do meio do terreiro, olhou o pombal, caminhando resolutamente para a cabana. Joana soluçava. Ele apanhou a candeia, dirigiu-se à cozinha e, vendo o machado a um canto, tomou-o, sempre resmungando. Voltou ao terreiro e, sob a mangueira, arregaçando as mangas da camisa grossa, brandiu o machado. Ao primeiro golpe no poste que sustentava o pombal as aves calaram-se. Tibúrcio redobrava de esforço, arquejando. A um estalo seco afastou-se, mas a construção continuava de pé, resistindo. Encostou o machado ao tronco e, agarrando-se aos galhos, guindou-se, foi marinhando pela árvore acima, e, firmando-se numa forquilha, atirou um pontapé à grande caixa que rapidamente pendeu, ruiu, com estrondo no terreiro. Dois pombos voaram assustados, estonteados, incertos na claridade noturna, e pousaram no teto da palhoça. O caboclo escorregou ligeiro pelo tronco e viu dois pequenos corpos que piavam, oscilavam, arrastavam-se – eram dois borrachos. Agachou-se, tomou-os nas mãos, pôs-se a mirá-los: eram hediondos, ainda implumes, tendo apenas uma leve penugem sobre as nervuras do corpo engelhado e mole. O caboclo virando-os, revirando-os nas mãos encoscoradas, sentia-lhes os ossos frágeis, e os animais debatiam-se movendo o coto das asas, esticavam o pescoço, piavam. Rilhando os dentes, foi-os espremendo, esmagando – os ossos tenros estalavam como gravetos, o sangue espirrou, escorreu-lhe por entre os grossos dedos, pelos punhos. Em ímpeto de fúria arremessou-os ao chão, eles bateram fofos como frutos podres que se esborrachassem e o caboclo espezinhou-os com rugidos surdos. Os pais arrulhavam aflitos na palha da cabana, indo e vindo. Joana, abraçada ao filho, soluçava quando Tibúrcio entrou no quarto. Quedou diante do catre, a olhar. Subitamente a


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CONTO

mulher estremeceu e, levantando-se de salto, agarrou o braço do marido, os olhos muito abertos, a boca em hiato, a cabeça inclinada como a ouvir vozes, rumores longínquos. – Que é, Joana? Que é qu’ocê tem? Ela murmurou apavorada: – Os pombos, meu velho. Ocê não tá ouvindo? Eram os arrulhos tristes que vinham de cima da casa. – Estão voltando. Quem sabe?! ele ainda está quente... E havia uma esperança imensa no coração dolorido da cabocla. Tibúrcio encolheu os ombros: – É choro deles. Estão chorando como nós. É um casal que ficou por causa dos filhos. Eu derrubei o pombal, matei os borrachos. Olha – e mostrou as mãos ensanguentadas. Eles voaram, estão em cima da casa. Você quer ver? Foi saindo; ela acompanhou-o. Desceram ao terreiro. Tibúrcio mostrou o pombal tombado, depois apanhou os esmagados corpos dos borrachos.

– Olha aqui... Joana olhava sem dizer palavra. Cessara de chorar, espantada, mirando o marido cujos olhos acesos fulguravam. Ele derreou o busto e atirou o primeiro borracho ao sapé, rugindo: “É bom?!”; atirou o segundo: “É bom?!” Os pombos abalaram espavoridos, perderam-se nas galhadas negras. “É bom?!” Joana não tirava os olhos do marido, muda, aterrada, vendo-o chorar aos arrancos, a olhar as mãos espalmadas, tintas de sangue. – Vamos, meu velho. Foi a vontade de Deus. Está no Céu. E vagarosamente o foi levando. Entraram e, diante do catre em que jazia o filho morto, as lágrimas romperam dos olhos de ambos e sobre o teto da palhoça os pombos, que haviam tornado, arrulhavam doridamente. Extraído de: Mar de histórias – Antologia do conto mundial, v. 8. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

POIS É, POESIA

Castro Alves (1847-1871) O voo do gênio À atriz Eugênia Câmara

Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas – nos vergéis da adolescência, Sem luz d’estrela – pelo céu do amor; Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, Às vezes toca a solitária flor.

“Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!” – “Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio [infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou...”

E disse então: “Quem és, pálido arcanjo! Tu, que o poeta vens erguer do pego? Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol? Quem és tu? Quem és tu?” – “Eu sou o [gênio”, Disse-me o anjo “vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por c’roas o arrebol”.

“Onde me levas mais, anjo divino?” – “Vem ouvir, sobre as harpas [inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos [céus. Quero levar-te das paixões nos mares. Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos... Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é [meu...”

“Onde me levas pois?...” – “Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia – lagos mais azuis...” E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o voo d’águia não se eleva... Abaixo – via a terra – abismo em treva! Acima – o firmamento – abismo em luz!

“Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia: A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar. Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila. Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar!”

“Porém não paras neste voo errante! A que outros mundos elevar-me tentas? Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor. Sinto que rolo em báratros profundos... Já não tens asas, águia de Tessália, Maldições sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror.” “Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová! Perdão! Perdão! Senhor, p’ra quem [soluça. Talvez seja algum anjo peregrino... ... Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá!” “Não mais, ó serafim! suspende as asas! Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado, Sobre as constelações e os céus azuis. Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo Mergulhei das paixões nas vagas [cérulas... Mas nos meus dedos – já não cabem – [pérolas – Mas na minh’alma – já não cabe – luz!...” Recife, maio de 1866.

Extraído de: Espumas flutuantes. In: Obras completas. Nova Aguilar, 1976.


ESPECIAL

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Colégio Etapa sedia a primeira edição brasileira do Campeonato Mundial de Cubo Mágico

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Colégio Etapa de São Paulo sediou nos dias 17, 18 e 19 de julho o 8o Campeonato Mundial de Cubo Mágico, organizado pe­la World Cube Association (WCA). O evento reuniu 429 com­pe­tidores de cerca de 40 países e teve ampla repercussão na imprensa mundial. O australiano Feliks Zemdegs, que há dois anos, em Las Vegas, venceu a competição ao resol­ ver o cubo tradicional de 3×3×3 com a média de 8,18 segundos, em São Paulo bateu o próprio recorde com a média de 6,54 segundos. O cubo mágico (Rubik’s cube) foi inventado em 1974 pelo arqui­teto húngaro Ern Rubik, que pa­tenteou a criação com seu nome. O primeiro campeonato mundial de cubo má­ gico foi realizado em 1982, em Budapeste, Hungria, e só se repetiu 21 anos depois, em 2003, em Toronto, Canadá. A partir daí estabeleceu-se a periodicidade de dois anos, com competições em Boston, Estados Unidos (2005),

Budapeste, Hungria (2007), Dusseldorf, Alemanha (2009), Bangkok, Tailândia (2011), Las Vegas, Estados Unidos (2013) e agora no Colégio Etapa em São Paulo.


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ESPECIAL

Edmilson Motta, coor­ denador geral do Etapa, explica as razões de o co­ légio ter sediado o evento: “Como o nosso país tem muitos cubistas bons, o Brasil era um candidato na­ tural ao campeonato, e essa era uma boa oportunidade de ampliar sua abrangência para o hemisfério Sul (todas as edições anteriores do campeonato foram na Amé­ rica do Norte e na Europa). Além disso, o cubo mágico é uma coisa impressionan­ te. Primeiro a pessoa se en­­ canta com ele e depois tem o desejo de estudar, apren­ der e desenvolver suas habi­ lidades. Para nós, educação é isso: con­­seguir tocar a pessoa, estimular sua curio­ sidade e a partir desse con­ tato inicial fazer com que ela estude e desdobre o conhe­ cimento em uma série de ações e possibilidades de desenvolvimento. É mos­ trar a beleza de cada tema a ser estudado.”

(ENTRE PARÊNTESIS)

Eletrização GARFIELD/Jim Davis

(PUC-SP) Leia com atenção a tira do gato Garfield mostrada ao lado e analise as afirmativas que se seguem. I. Garfield, ao esfregar suas patas no carpete de lã, adquire carga elétrica. Esse processo é conhecido como sendo eletrização por atrito.

ADORO CARPETES DE LÃ

II. Garfield, ao esfregar suas patas no carpete de lã, adquire carga elétrica. Esse processo é conhecido como sendo eletrização por indução. III. O estalo e a eventual faísca que Garfield pode provocar, ao encostar em outros corpos, são devidos à movimentação da carga elétrica acumulada no corpo do gato, que flui de seu corpo para os outros corpos. Estão certas: a) I, II e III. b) I e II. c) I e III. d) II e III. e) apenas I.

ADORO ELETRICIDADE ESTÁTICA

RESPOSTA

Alternativa C. Garfield, ao esfregar suas patas no carpete, troca elétrons com ele, adquirindo carga elétrica pelo processo conhecido como eletrização por atrito. Ao encostar em outros corpos, parte da carga adquirida pelo gato flui para estes pelo processo de eletrização por contato.

Folha de S.Paulo


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