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Jornal do Colégio 600
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JORNAL DO COLÉGIO ETAPA – 2015 • DE 06/11 A 18/11
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“Harvard square harvard yard” por User:Chensiyuan - Obra do próprio. Licenciado sob GFDL, via Wikimedia Commons - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Harvard_square_harvard_yard.JPG#/media/ File:Harvard_square_harvard_yard.JPG
Deborah, do Etapa para Harvard
Prédio principal de Harvard, em Cambridge. É uma das mais prestigiosas universidades do mundo.
Esta 600a edição do Jornal do Colégio, edição especial, traz a trajetória de Deborah Barbosa Alves. Uma história de sonhos e de conquistas. Deborah trabalha hoje no Vale do Silício, centro da revolução digital que transformou nosso mundo. Ela é uma das representantes do sucesso dos alunos do Etapa nas principais universidades do mundo.
Computação, Matemática e muito mais D
eborah Barbosa Alves formou-se em Harvard em Ciências da Computação e Matemática. “Eles chamam de Joint Concentration, como se fosse o Double Major de outras faculdades. A ideia é juntar dois cursos que se complementam de alguma forma e explorar suas intersecções. Em Harvard, você tem muita liberdade para escolher e testar coisas diferentes. Você só escolhe o seu curso efetivo na metade do 2o ano. Dá para pegar cursos de várias áreas e depois tomar sua decisão. Mesmo assim, depois pode mudar. Eu cheguei em Harvard certa de que ia fazer Computação. No 1o ano peguei aula de introdução e amei: ‘É isso mesmo que eu quero’. Fiz do curso de Computação minha concentration. Fora as aulas do conjunto Computação e Matemática, podia escolher eletivas. Isso é ESPECIAL Carreira – Ciências da Computação e Matemática CONTO O cônego ou metafísica do estilo – Machado de Assis
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feito mais para você ser exposto a várias ideias diferentes, não focar só no que mais gosta na sua carreira. Eu fiz cinco cursos de Artes Visuais, em particular escultura. Acho que meu maior foco fora de Computação e Matemática era esse. Além disso, peguei matérias de Teoria de Música, Economia, História da Psiquiatria, Global Health, de Saúde. Um dos requisitos da Joint Concentration é que você tem que escrever uma tese de graduação, como se fosse o TCC [trabalho de conclusão de curso]. Eu escrevi uma tese que era um tema de Computação relacionado à pesquisa de meu professor de Computação Gráfica. Mas era um tema bem matemático, uma intersecção muito legal: Experiments on Universal Rigidity of Bipartite Graphs [Experimentos na rigidez universal de grafos bipartidos].” POIS É, POESIA
ENTRE PARÊNTESIS
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Mais um de vestibular
ARTIGO Plataforma Zebrafish é inaugurada no Instituto Butantan
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Olavo Bilac
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Uma história olímpica de bronze, prata e ouro Aqui, Deborah relata como entrou no mundo das olimpíadas de Matemática e como se direcionou para Computação
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inha história com olimpíadas de Matemática começou quando eu tinha 11 anos. Na 5a série, uma professora do colégio em que eu estudava incentivou os alunos e eu participei da Olimpíada Brasileira de Matemática. Não passei na 2a fase. Na 6a série participei de novo e fui premiada. A OBM oferece uma viagem para os premiados, é a chamada Semana Olímpica, e eu fui convidada. Fiz amigos lá, muitos do Etapa. Foi aí que fiquei sabendo da exis exisepatência dos cursos de prepaue ração para olimpíadas que são oferecidos aqui, mesmo para pessoas que não estudam no colégio. Na 7a série, em 2006, comecei a fazer aulas no Etapa. Ainda estava no meu antigo colégio. Mudei para o Etapa pa no 1o ano do Ensino Médio. o Minha primeira olimpíada internacional foi a do Cone Sul, na Argentina, uma olimpíada para alunos até 16 anos. Ganhei prata. Depois fui a duas Romanian Master in Mathematics, em 2009 e 2010. Ganhei bronze nas duas. Também fui duas vezes para a IMO, a International Mathematics Olympiad, em 2010 no Casaquistão e em 2011 em Amsterdam. Na primeira fui menção
honrosa, na segunda fui bronze. Na Ibero-Americana de 2010, no Paraguai, ganhei ouro. No Etapa, além de focar muito em olimpíadas de Matemática, tive uma introdução à Computação. Desde pequena eu gostava de mexer com as coisas de Computação. Meu irmão é engenheiro e trabalha com programação também. Minha mãe fez um curso de Informática e eu pegava as apostilas dela, ficava querendo fazer faz site. Tinha blogs de várias coisas c quando era pequena. Quando entrei no Etapa continuei focando em Matemática, mas também vi o lado da programação nas aulas que a gente tinha aqui. Porém, Matem mática continuou sendo mi minha prioridade no Ensino Médi Médio. Também percebi que a Matemática de olimpíada é muito diferente da Matemática universitária. Na verdade, não tinha um interesse tão grande na carreira de Matemática. E sempre tive a ideia de que a área de Computação era uma potencial carreira para mim. Mesmo antes de entrar na faculdade, mesmo com pouca experiência. Só as experiências que tive quando pequena e aqui no Etapa.
“AS OLIMPÍADAS ABRIRAM MUITAS PORTAS” Qual foi a importância das olimpíadas em sua formação? “As olimpíadas foram o primeiro projeto a que eu me dediquei de verdade na minha vida acadêmica. Eu adorava estudar Matemática, me sentia muito bem estudando, e ao mesmo tempo conheci meus melhores amigos através das olimpíadas. Era uma coisa que me fazia feliz. Acho que fui para Harvard por causa das olimpíadas. Elas contaram muito para minha aprovação. Mesmo o emprego em que estou, é por causa disso. Até na minha área de computação o tipo de raciocínio que a olimpíada me deu é útil em tudo. Parece meio clichê falar que raciocínio lógico é útil para tudo, mas é verdade. Em vários sentidos, as olimpíadas abriram muitas portas para mim.”
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“Música sempre foi essencial para mim” “Eu sempre tive muito interesse por música. Meu irmão é engenheiro, mas desde pequeno sempre estudou música. Ele toca piano, violão, agora toca baixo numa banda e foi uma influência para mim. Meus pais e minha irmã também sempre gostaram muito de música, mas ele em particular me incentivou. Antes de vir para o Etapa eu já fazia coral. Tocava violão e cantava com meu irmão. No Etapa, quando surgiu o coral já comecei a participar. Música sempre foi essencial para mim. O coral do Etapa era muito bom e uma chance de extravasar. Depois que saí do colégio e antes de começar em Harvard ainda fiquei um tempo no coral. Até voltei nas minhas férias, cheguei a cantar no coral mais uma vez. Em Harvard também quis continuar participando de grupos musicais. Lá tem uma tradição de grupos a cappella, que é uma coisa que eu particularmente não gostaria tanto de participar, tem uma pessoa solando a melodia e você fica fazendo “aaa”, “uuu” atrás para dar todo o arranjo da música. Entrei em outro tipo de grupo, que canta músicas da Broadway, Disney, qualquer coisa que se encaixe com musical. Tem acompanhamento de piano, todo mundo canta e dança bastante. Eu participei dois anos e meio desse grupo.”
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“As universidades americanas querem que você abra seu coração” N
o 2o ano no Etapa, Deborah Barbosa Alves começou a MIT a duas estações de metrô de distância, eu poderia pegar se preparar para o processo de seleção (applications) qualquer curso lá. As duas universidades têm uma parcedas universidades americanas. ria, você sendo de Harvard pode escolher qualquer curso do “Nos Estados Unidos eles querem que você fale de MIT para pegar e vice-versa. Acabei nem pegando porque você. Que você abra seu coração para a universidade e mos- achei o departamento de Harvard maravilhoso. A vida na tre todas as facetas de sua personalidade. Isso conta para faculdade me convenceu muito a ficar em Harvard. Vi que eles. Nesse sentido, foi um desafio grande. Eu me dediquei Harvard era a escolha mais completa para mim. Além da bastante, mas no 3o ano até atrasei um bolsa, bols que foi muito boa. pouco minha preparação porque estaa-Quanto custa estudar em Harvard va muito focada nas olimpíadas. Ese quanto você ganhou de bolsa? tudei para as provas que eles exigem, o O custo é de aproximadamente 70 SAT [Scholastic Aptitude Test ou mil dólares por ano. Mas eles Scholastic Assessment Test] est] sã são muito generosos com as e o Toefl [Test of English ass bolsas de estudos. Se você a Foreing Language]. Fiz pode pagar tudo, você paga Fui aceita em provas de Matemática, tudo; se pode pagar parHarvard, Yale, Física e Química. Provas te, paga parte; se não pode MIT e Columbia. u bem difíceis, só que eu p pagar nada, não paga nada. Escolhi Harvard. do tive pessoas me ajudando Rece Recebi aproximadamente 90% l aqui no colégio, com aulas Eu me apaixonei de bolsa. Ela cobria os estudos, moradia, alipreparatórias. Sempre tive muito apoio do por Harvard. mentação na faculdade, seguro médico também. Etapa. É legal que aqui eles conhecem bastante o processo.” Nos quatro anos que ficou em Harvard,
As redações são muito importantes na seleção. O que eles pedem? Eles pedem redações sobre sua vida, para você contar desafios que enfrentou, tanto acadêmica como pessoalmente. Fiz uma redação sobre o meu pai e outra sobre minhas experiências de conhecer diversas culturas nas olimpíadas a que fui.
Além de Harvard, tentou outras universidades? Sim. Fui aceita em Harvard, Yale, MIT e Columbia. Sempre pensei que eu ia para o MIT, por ser uma universidade de tecnologia. Já sabia que eu queria estudar Computação. Quando passei nas quatro, fiquei entre Harvard e MIT. Mas sempre, na minha cabeça, estava escolhendo o MIT. Na última semana que faltava para me matricular fui visitar Harvard, Yale e MIT. Em Harvard fui muito bem recebida. Duas meninas que estavam lá me hospedaram e achei muito legal a diversidade dentro da universidade. Gostei bem mais do ambiente de Harvard, mais livre, mais receptivo quando fui visitar. Meio que me apaixonei por Harvard. Como sempre tive muitos interesses, senti que combinava mais comigo pelo fato de ter também um centro de computação muito bom. E estando em Harvard, com o
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onde você morou? Os estudantes de Harvard, em maioria, moram em alojamentos da universidade. Há um conjunto de casas a alguns quarteirões de distância de onde você tem aula. Uma pequena comunidade. Os alunos, principalmente do 2o ao 4o ano, dividem-se entre 12 grandes casas. No 1o ano são casas menores. No 2o ano você vai para uma das grandes casas. Você mora com outros alunos. Tenho duas amigas com quem morei os quatro anos, a gente se deu muito bem desde o 1o ano.
Fazendo Computação, Matemática e as matérias eletivas, como era o sistema de aulas? Em Harvard, a média é de quatro matérias por semestre, porque você precisa de um total de 32 matérias nos quatro anos de curso. Em Computação, cada matéria toma três a quatro horas de aulas por semana. O meu foco na faculdade era computação gráfica. O tempo de sala de aula é muito pequeno. Em média, acaba sendo de 10, 15 horas de aula por semana. Mas a aula é bem condensada, você tem muita matéria numa aula só. E o que pega mesmo é a tarefa fora da sala de aula. Toda semana tem uma tarefa que você tem que cumprir. Pode demorar de cinco até 15 horas por semana cada tarefa. Depende da dificuldade da aula.
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Fez vários estágios e agora trabalha no Vale do Silício D
eborah Barbosa Alves participou do VOA – Vontade Olímpica de Aprender – desde o início, a convite dos criadores do projeto, Henrique Vaz e Tábata de Amaral Pontes, alunos do Colégio Etapa (que também competiram em olimpíadas culturais e estudam em Harvard). “As olimpíadas de Matemática mudaram muito a vida de todos os fundadores do VOA e queríamos passar a experiência que tivemos no colégio com as aulas de preparação para olimpíadas a pessoas sem essa experiência. Decidimos focar em alunos de escolas públicas e dar a eles aulas preparatórias. Fizemos parceria com uma escola pública na Vila Mariana e usamos uma de suas salas de aula, com alunos do Ensino Fundamental. Depois trouxemos alunos de outros colégios e do Ensino Médio. Dei aula no VOA desde o começo do 3o ano do Ensino Médio até ir para os Estados Unidos.” Em Harvard, Deborah ficou muito engajada em assuntos relacionados ao Brasil. “Quando entrei, um grupo de brasileiros tinha se juntado em uma associação que pretendia promover eventos sobre nossa cultura. Essa associação chama-se HUBA – Harvard Undergraduate Brazilian Association. Fui presidente dela por dois anos. Em 2014, organizamos uma conferência em Harvard, a BrazUSC – Brazilian Undergraduate Student Conference. Este ano organizamos a segunda conferência. Participaram políticos de vários partidos, pessoas de business, entretenimento, setores público e privado. Juntamos brasileiros para pensar o Brasil.” Guga Chacra, jornalista da Globo News em Nova York, foi um dos palestrantes do BrazUSC. Veja sua participação num debate em que comenta o destaque do Colégio Etapa nos EUA. https://youtu.be/bhMw14eSLYo
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os quatro anos que ficou em Harvard, Deborah fez estágios em todas as férias na área de Ciências da Computação. No 1o ano trabalhou na Geekie, uma empresa de tecnologia em educação de São Paulo. No 2o ano trabalhou na parte de software da Formlabs, uma empresa na região de Boston que fabrica impressoras 3D. Em 2014, trabalhou na Quora, em Mountain View, Califórnia (no Vale do Silício). “A Quora é a empresa para onde voltei, efetivada. É como uma rede social que objetiva organizar e aumentar o conhecimento geral com um sistema de perguntas e respostas. Você faz uma pergunta e alguém responde. Você pode escolher tópicos para seguir. Eu sigo os tópicos de informática, de computação, de Brasil, sigo tópicos de várias coisas que me interessam. Talvez se possa interpretar o Quora como um jornal no qual você vê coisas que são relevantes para você. Suponha que eu quero saber como é o mercado de engenheiros de software na França. Faço a pergunta e adiciono tópicos à pergunta que têm a ver com computação, empreendedorismo e França. Aparece lá que eu posso direcionar a pergunta para determinada pessoa que já respondeu perguntas relacionadas à computação e França. Você recebe uma notificação quando a pessoa responde ao que você perguntou. E você pode compartilhar as respostas de que gostou e contribuir também respondendo perguntas. Vários detalhes fazem a plataforma ser muito mais rica. E tem controle de qualidade. Há pessoas contratadas para moderar as respostas ou acusar uma resposta falsa. A Quora é uma empresa que está crescendo ainda. Tem muitos desafios pela frente. O próximo desafio é a internacionalização da plataforma, que hoje é só em inglês.” Foto Google Street View
Ações sociais e culturais
Sede da Quora, em Mountain View, Califórnia.
Visto de estudante dá direito a trabalhar por 12 meses O visto de estudante dá direito a trabalhar nos Estados Unidos por 12 meses, período que pode ser parcelado. Deborah Barbosa Alves usou três meses para fazer um estágio e três meses para outro. “Sobraram seis meses. Mas, se você é da área de Exatas (ciência, tecnologia, engenharia e matemática – science, technology, engineering and math – STEM), pode ganhar mais 17 meses de permissão para trabalhar. Enquanto eu estiver lá posso também aplicar o visto de trabalho e ficar mais tempo. Por enquanto vou trabalhar com o visto de estudante”.
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CONTO
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O cônego ou metafísica do estilo Machado de Assis em do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda a casta de pombos...” – “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor...” Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias, um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar. Nesse dia, – cuido que por volta de 2222, – o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver. Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou. – Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros. Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias “um dos ornamentos do clero brasileiro”. Este “ornamento do clero” tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão. Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil coisas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego. Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros dia-
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mantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que, ainda assim, não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual... – Sexual? Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo. – Mas, então, amam-se umas às outras? Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada. – Confesso que não. Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? é o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: “Vem do Líbano, vem...” E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: “Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol.” Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dollar, o florim ou a libra, que é tudo o mesmo dinheiro. Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio. Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de coisas velhas e novas! Há aqui um burburinho de ideias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir. De quando em quando, aparece-lhe alguma dama, – adjetivo também – e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ab eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, formas de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado. Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do
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CONTO
poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e para diante da janela: “Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai.” Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se; entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia. Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em coisas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das ideias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também. Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de ideias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens. Coisas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de coisas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura. – Vem do Líbano, esposa minha... – Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém... Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia
e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, elevados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo. Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo. Justamente agora é que os dois cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rusgas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de ideias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se. Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. “Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?” pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que “é o selo do seu coração”, e que “o amor é tão valente como a própria morte”. Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe. Extraído de: Várias histórias.
(ENTRE PARÊNTESIS)
Mais um de vestibular
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Se a semana tivesse apenas cinco dias, de segunda a sexta-feira, e se o dia 1o de julho de um certo ano fosse terça-feira, o dia 1o de janeiro do ano seguinte seria:
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a) segunda-feira
d) quinta-feira
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b) terça-feira
e) sexta-feira
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c) quarta-feira
RESPOSTA Alternativa A Precisamos saber que julho, agosto, outubro e dezembro têm 31 dias, e setembro e novembro, 30 dias. Logo, 1o de janeiro é o 185o dia a partir do dia 1o de julho. terça-feira: 1o dia, 6o dia, ... ; quarta-feira: 2o dia, 7o dia, ... ; quinta-feira: 3o dia, 8o dia, ... ; sexta-feira: 4o dia, 9o dia, ... ; segunda-feira: 5o dia, 10o dia, ... . Como 185 é múltiplo de 5, vemos que o 185o dia seria uma segunda-feira. JC_600.indd 6
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ARTIGO
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Plataforma Zebrafish é inaugurada no Instituto Butantan m biotério com capacidade para criar até 3 mil peixes adultos do tipo paulistinha – também conhecido como zebrafish (Danio rerio) – foi inaugurado no dia 16/10 no Instituto Butantan. A espécie tem sido cada vez mais usada como modelo em pesquisas científicas, principalmente na área de saúde. Batizada de Plataforma Zebrafish, a nova estrutura foi montada no âmbito do Centro de Pesquisa em Toxinas, Resposta Imune e Sinalização Celular (CeTICS), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP. “Nossa ideia é que o local possa abrigar não apenas estudos do CeTICS como também de diversos outros grupos. Inicialmente, isso seria feito por meio de colaborações em projetos de interesse do CEPID que possam gerar inovação, artigos e teses. Mas, em um futuro breve, também poderemos comercializar o animal – normal, mutante ou transgênico –, bem como prestar serviços para a comunidade científica”, disse Monica Lopes-Ferreira, pesquisadora principal e coordenadora da Plataforma Zebrafish. Além das estantes onde ficam os aquários de criação, foram adquiridos para compor o laboratório microinjetores, lupas e microscópios. O CeTICS também conta com outros equipamentos de ponta essenciais para a realização de projetos na área de biologia molecular, imunologia, proteômica e desenvolvimento de fármacos, como espectrômetro de massa, citômetro de fluxo e aparelhos de sequenciamento. “Temos o melhor sistema de criação de zebrafish disponível e toda a estrutura necessária para as pesquisas. Se pensarmos que a maioria dos estudos é feita com embriões do peixe e que cada acasalamento gera em média 300 embriões, nosso aquário com capacidade para 3 mil animais adultos permitirá um número muito grande de projetos”, disse Lopes-Ferreira. De acordo com o coordenador do CeTICS, Hugo Aguirre Armelin, os trâmites para criar a plataforma começaram há cerca de três anos, quando ainda estava vigente o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), projeto aprovado no primeiro edital do programa CEPID e que depois daria lugar ao CeTICS. “Quando assumi a coordenação do CAT, uma das iniciativas foi criar uma estrutura para pesquisas com zebrafish. Esse tem sido um dos modelos de genética mais explorados no mundo há mais de duas décadas e aqui no Brasil não há ainda nenhum laboratório fazendo um trabalho realmente competitivo nessa área”, disse Armelin. Segundo o coordenador do CeTICS, a proposta é que o peixe comece a ser introduzido em ambientes de pesquisa onde atualmente são usados principalmente camundongos e ratos. Lopes-Ferreira, por exemplo, coordena uma pesquisa na qual foram isoladas e caracterizadas quimicamente toxinas encontradas em venenos de peixes. Em experimentos com camundongos, o grupo observou que algumas dessas moléculas são capazes de inibir processos asmáticos.
Acervo Instituto Butantan
Karina Toledo
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Biotério com capacidade para criar até 3 mil peixes adultos para uso em pesquisas foi montado no âmbito do CeTICS-FAPESP.
Lopes-Ferreira pretende agora aprofundar o estudo em zebrafish, aplicando a toxina nos peixes e comparando a expressão dos genes entre os grupos tratados e não tratados.
Vantagens Além do custo de criação muito inferior ao de qualquer mamífero, o zebrafish oferece diversas outras vantagens como organismo modelo, conforme explicaram os pesquisadores. Tem fácil manejo, pequeno porte (de 3 a 4 centímetros), alta taxa reprodutiva e rápido desenvolvimento. Evolui de ovo a larva em até 72 horas e torna-se adulto com apenas 3 meses de idade. Vive até os 5 anos, enquanto um camundongo não passa de 2 anos, e é possível usá-lo em experimentação durante todos os estágios de desenvolvimento. “O fato de os embriões serem totalmente transparentes permite observar uma série de fenômenos, como, por exemplo, o efeito de um composto sobre os órgãos, sem que seja necessário usar métodos invasivos”, comentou Armelin. Lopes-Ferreira ressalta que a espécie já teve o genoma sequenciado e que aproximadamente 70% dos genes são semelhantes aos dos humanos. “É relativamente fácil manipular o peixe geneticamente para criar modelos de estudos de doenças”, disse a pesquisadora. Para marcar a inauguração da nova plataforma, a equipe do CeTICS ofereceu, entre os dias 5 e 9 de outubro, o curso gratuito Manejo e Criação de Zebrafish. No dia 16 foi aberta ao público uma exposição com painéis explicativos sobre a biologia do peixe e as possíveis aplicações em pesquisa. No dia seguinte, como parte da programação da Virada Científica da Universidade de São Paulo (USP), foram organizadas visitas ao laboratório e um bate-papo com Lopes-Ferreira. “Somente agora a ciência brasileira está acordando para o zebrafish. Há no mundo cerca de 2 mil artigos feitos com base em pesquisas que usaram esse modelo e apenas 40 são brasileiros. Queremos aumentar esse número”, disse Lopes-Ferreira. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, out./2015.
05/11/2015 09:54:31
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POIS É, POESIA
Olavo Bilac (1865-1918) O julgamento de Frineia
M nezarete, a divina, a pálida Frineia, Comparece ante a austera e rígida assembleia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, De Hiperides à voz e à palheta de Apeles. Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, Transbordante de Cós, erguer com maior graça, Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, Mais formoso quadril, nem mais nevado seio. Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses, Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... Basta um rápido olhar provocante e lascivo: Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... Nada iguala o poder de suas mãos pequenas: Basta um gesto, – e a seus pés roja-se humilde Atenas... Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela Sua oculta nudez, mal os encantos vela, Mal a nudez oculta e sensual disfarça. Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala, E incita o tribunal severo a condená-la: “Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! Dos deuses zomba! É ímpia! é má!” (E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) “Por onde os passos move a corrupção se espraia, E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!” Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma... Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma, Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede, Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede. “Pois condenai-a agora!” E à ré, que treme, a branca Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados, – Leões pelo calmo olhar de um domador curvados: Nua e branca, de pé, patente à luz do dia Todo o corpo ideal, Frineia aparecia Diante da multidão atônita e surpresa, No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
Nel mezzo del camin...
C heguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo.
Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: “meu filho!” E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! Olavo Bilac. Melhores poesias. Editora Núcleo, 1996.
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