Jornal Colégio - Nº 583

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Jornal do Colégio PRIMEIRA QUINZENA DE DEZEMBRO DE 2014 – NÚMERO 583

ENTREVISTA

“Você respira cultura dentro do colégio.” Hanon Guy Lima Rossi está no 4o ano do curso de Composição do Departamento de Música da ECA, na USP. Entrou no Etapa no 5o ano e logo começou a participar das olimpíadas culturais. Chegou a representar o Brasil na mais importante dessas olimpíadas, a International Mathematical Olympiad, com 100 países participantes, tendo recebido menção honrosa. Isso o inspirou, levando-o a concorrer no renomado International Antonín Dvorák Composition Competition, na República Tcheca, com 80 países participantes. Foi para esse concurso em 2013 e trouxe o 2o lugar. Voltou em 2014 e conquistou o 1o lugar!

Hanon Guy Lima Rossi

JC – O que motivou você a escolher Música como carreira? Hanon – Tive influência dos meus pais, que são músicos. Para mim foi natural. Poderia ter escolhido outra carreira, mas eu sabia música desde pequeno. Você chegou a cogitar outra carreira? Sim, cheguei a cogitar outra carreira por conta das olimpíadas culturais de que participei. Eu estudei no Etapa do 5o ano do Ensino Fundamental até a 3a série do Ensino Médio, e participei de Olimpíadas de Matemática, Química e Física. Se não fosse Música, talvez fizesse Física ou Matemática puras.

medalha de bronze na Olimpíada Paulista de Matemática. Isso foi uma grande alegria e me estimulou a continuar em olimpíadas até o final da minha estada no colégio. Em 2010 ganhei menção honrosa na IMO, a Olimpíada Internacional de Matemática. Em 2011 fui medalha de bronze na Asian Pacific Mathematic Olympiad.

Além da Fuvest, você prestou outros vestibulares para Música? Prestei também Unesp. Fui aprovado nos dois e escolhi a USP.

Você entrou no colégio com 10 anos. Foi fácil sua adaptação? A adaptação foi boa, porque o colégio estimula bastante isso.

No último ano do Ensino Médio você teve de abrir mão de alguma atividade para se preparar para os vestibulares? Não. O vestibular de Música não é tão exigente quanto a preparação que o Etapa dava. Fazendo os simulados e as provas normais do colégio já era estudo suficiente.

Sua participação em olimpíadas começou em que ano? Eu participo desde o 6o ano do Ensino Fundamental. Frequentei aulas extras de preparação para as olimpíadas e consegui, já no 6o ano, a minha primeira premiação, uma

O vestibular para Música tem prova antecipada de habilidade específica. O que entra nessa prova? A prova era separada em duas partes: a primeira parte era escrita, não era com banca. Havia ditados musicais, ditados rítmicos, melódicos. Basicamente eles tocam

ENTREVISTA

Carreira – Música

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CONTO

O peru de Natal – Mário de Andrade

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ARTIGO Suplementação com taurina pode ajudar na prevenção da obesidade e na resistência à insulina

ESPECIAL

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Concerto didático

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ENTREVISTA

a música e nós temos de transcrever no papel os conteúdos teóricos da música. Na segunda parte, com banca, nós temos de mostrar determinados conteúdos e demonstrar algum domínio diretamente. Para Composi­ ção, minha opção, eu tive de tocar música, fazer leituras à primeira vista e solfejar a música escrita no papel para os membros da banca, que são professores do Departa­ mento de Música.

Como você se preparou para essa prova? De 2006 a 2011 eu estudei na Escola Municipal de Música. Para fazer a prova de habilidade específica você precisa de conhecimento em música e precisa de preparação. A prova tem algumas exigências, mas o que eu aprendi na Escola Municipal de Música era preparação suficiente. Quais são os cursos no Departamento de Música da ECA? A Escola tem as áreas de Regência, Composição, Licenciatura e os instrumentos da orquestra – piano, violino e clarinete. Escolhi Composição. Como foi seu início na USP? O curso de Composição é em período integral? É no período diurno, mas é mais livre do que na teoria. Como foi sua adaptação no curso? A adaptação foi bastante tranquila, porque a quantidade de matérias que temos lá é bem menor do que no colégio. Como é a formação no curso de Música? A faculdade oferece o essencial para o músico conseguir lidar de alguma forma com as formas tradicionais da música clássica. As faculdades de Música, em geral, são de música clássica. Algumas faculdades, como na Unicamp, também oferecem cursos de música popular, mas de qualquer forma os músicos aprendem através de matérias teóricas características da música clássica. Quais matérias você teve em cada ano do curso? De forma geral nós temos aulas de Harmonia, Contraponto, Percepção Musical, História da Música e aulas práticas de instrumentos. Temos Canto Coral também, que é uma prática bastante interessante. Isso no 1o ano ou no curso todo? Também no 1o ano, mas todas essas matérias se es­ tendem além do 1o ano. Temos várias matérias op­ cionais que podemos escolher, muito especializadas, como, por exemplo, Redução de Partituras ao Piano, que é basicamente você ler uma partitura que não foi feita para um piano, foi feita para um grupo maior, e reduzir a música para caber no piano.

Em Música você tem liberdade para participar de eventos externos? Durante a faculdade não cheguei a fazer nada além da Música. A Música é um dos cursos em que as pessoas mais têm de estudar na faculdade. Mas no ano passado e este ano participei de um concurso internacional de composição. Participação em concurso foi uma ideia que eu adquiri justamente no Colégio Etapa. Antes eu não pensava em participar de concursos. Isso é interessante, influiu até na carreira em Música, porque eu também participei de concursos de piano, por exemplo. Mas isso só depois de ter começado a participar de concursos de matérias de Exatas, as olimpíadas culturais. De qual concurso internacional você participou? Foi o International Antonín Dvorák Composition Competition, em Praga. Eu soube dessa competição através de um cartaz no Departamento de Música. É uma competição muito importante, muito difundida no mundo inteiro. Como conseguiu se inscrever? O que foi exigido? Eu tive de mandar inicialmente composições próprias para uma primeira avaliação de uma banca. Só essa parte tem centenas de participantes do mundo inteiro. Algo em torno de 80 países participaram em 2013. A partir disso, eles selecionam entre 20 e 40 candidatos para a 2a fase da competição. Os selecionados viajam para a República Tcheca e lá têm cinco dias no Conservatório de Praga para fazer duas peças. Cada um dos cinco dias eles dividem em duas partes. Algo em torno de oito horas por dia, quatro horas de manhã e quatro horas à tarde. Cada competidor fica em sua sala particular e compõe duas peças do jeito que é pedido no edital. Eles dão temas para a gente escolher e compor, para evitar que alguém reproduza uma peça que já tinha composto antes. Qual foi o resultado? Em 2013 eu obtive o segundo lugar, na época o mais jovem premiado da competição, aos 20 anos. Por conta desse resultado fui convidado a retornar ao concurso este ano, indo diretamente para a 2a fase, juntamente com outros 20 competidores selecionados entre os inscritos na 1a fase. Em 2014, tive o privilégio de conseguir o 1o lugar na categoria Júnior, que é dos 18 aos 24 anos. O concurso este ano foi nos mesmos moldes do ano anterior? Sim. O molde é fixo para todos os anos. Cinco dias para duas peças. Uma peça precisa ser para um instrumento de teclado, ou piano ou órgão, precisa seguir um molde fixo. É algo muito corrido. Em geral você demora algumas semanas para fazer uma peça desse tipo. Como o tempo estava muito escasso, acho que todos os compositores usaram o tempo integralmente. Aliás, é uma coisa que


ENTREVISTA aprendi no Colégio Etapa, participando de olimpíadas. Os professores recomendam ficar até o final da prova, por mais que você ache que já fez o suficiente.

Qual é sua maior preocupação em relação à carreira? A grande preocupação de todos os músicos é encontrar campo de trabalho, porque ainda há muito para se explorar no Brasil nesses termos. Fora do Brasil você conseguiria um campo muito maior. Mas, para quem é do Brasil, conseguir algo lá fora é bastante difícil. Depende muitas vezes da sorte, dos contatos que você faz durante a faculdade. Você se forma em Composição no ano que vem. Quais são seus planos? É quase impossível um compositor conseguir viver só de composição. Em geral acaba tendo de dar aula. Só se ele conseguir também outro trabalho, como música para filme, comercial. Isso depende da escolha do compositor também. Alguns não gostariam de fazer isso. A curto prazo, minha ideia é fazer mestrado fora do Brasil. A longo prazo, eu diria lecionar música, não num conservatório daqui, mas em outro país. Para conhecer como funciona lá. É quase uma tradição para os músicos brasileiros serem reconhecidos fora do país e depois serem aplaudidos aqui. Onde você pretende fazer o mestrado? Não tenho exatamente uma ideia de onde vou fazer, isso depende também das instituições. Por enquanto eu só falo inglês, português e um pouco de espanhol. Se aprendesse alemão eu teria mais opções. Aprendendo francês eu poderia tentar o Conservatório de Paris. Poderia tentar na Finlândia também, que tem um campo vastíssimo em música. Basicamente, a música clássica se concentra na Europa mesmo? Sim. A música clássica ainda tem domínio muito grande na Europa. Nos Estados Unidos é possível achar coisas incríveis, mas você não tem a vivência musical nas ruas, como tem na Europa. Na Europa você vive a música nas ruas. Com o que está aprendendo no Departamento de Música da ECA, você acha que está preparado para atuar profissionalmente como compositor? Eu acho que o conhecimento que a gente tem na faculdade não deve se limitar às salas de aula. Você aprende muito convivendo com professores e colegas de turma. E a música é algo muito solitário, você passa a maior parte do tempo sozinho, aprendendo através

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dos livros, com seus instrumentos, com as partituras. Mas eu poderia dizer que a faculdade prepara sim para o mestrado. Ao menos prepara para fazer as teses, que são necessárias para fazer mestrado.

Na Música tem trabalho de conclusão de curso? Sim. Na Música existe TCC, o trabalho de conclusão de curso. Especificamente para Composição, além da tese, você precisa apresentar meia hora de música para ser tocada. Como um recital. Em outras áreas, como Instrumento, além da tese, você tem de fazer um recital. Em Regência, além da tese, você tem de reger grupos. Das matérias que teve no colégio, quais mais ajudam você hoje em dia? Chega a surpreender muita gente o fato de eu ter participado de olimpíadas de Exatas e de repente fazer Música. Parece que uma não tem como ajudar a outra, mas eu discordo, porque a formação de um artista é algo muito complexo e a música tem componentes muito fortes de Exatas. Inclusive uma partitura é completamente abstrata. É claro, você não consegue pôr toda a música na partitura. Grande parte é também a interpretação do músico. Quais são suas recordações do Colégio Etapa? Eu tenho bastante recordação de colegas muito pró­ ximos. Dos professores também, que são algo especial. E do ambiente: você respira cultura dentro do colégio. Você ainda tem amigos da época do colégio? Tenho e procuro fazer de tudo para manter contato com eles. Seu pai e sua mãe, também músicos, apoiaram sua escolha de carreira. Mas há casos em que esse apoio não é tão natural. O que você pode dizer a quem faz uma escolha de carreira e encontra resistência na própria família? Eu tive sorte porque minha família apoiava a minha carreira de música. Certamente há pais que preferem que os filhos façam escolhas mais tradicionais, nas quais seja mais fácil conseguir se sustentar. Mas, se a pessoa acha que está fazendo a coisa certa e há confiança em seu julgamento, ela vai acabar tendo sucesso naquilo. No caso da Música, um artista tende a se desenvolver sempre. Mesmo que vá perdendo algumas faculdades musicais, ainda assim ele evolui como pessoa. E quando você evolui como pessoa, você evolui como artista. Isso influi diretamente no seu trabalho.

Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


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CONTO

O peru de Natal Mário de Andrade

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nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira a mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, esponta­ neamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “lou­ curas”. Essa fora, aliás, e desde muito cedo, a minha esplên­ dida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, duma criada de parentes: eu consegui, no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada. Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas

e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”. – Bom, no Natal, quero comer peru. Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto. – Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo... – Meu filho, não fale assim... – Pois falo, pronto! E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia inda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, si não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja. Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura


CONTO em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral: – É louco mesmo!... Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão. – Não senhora, corte inteiro! só eu como tudo isso! Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas. – Eu que sirvo! “É louco, mesmo!” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo dum pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru: – Se lembre de seus manos, Juca! Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime. – Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não! Foi quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

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Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido. Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora. – Só falta seu pai... Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste: – É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família. E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante no céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Mamãe comeu tanto peru que um momento, imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade! A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.


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CONTO

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra

poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!... Extraído de: Contos novos.

Biografia Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) nasceu e morreu em São Paulo. Desde muito jovem, ligado à poesia, é admirador de Vicente de Carvalho e publica um livro parnasiano, Há uma gota de sangue em cada poema, em 1917. Diplomou-se pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde passa a lecionar História da Música. Em 1922, participando da Semana de Arte Moderna, lança o livro de poemas, Pauliceia desvairada. Daí em diante a sua atividade literária é intensa. Foi diretor, em 1934, do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo e um dos colaboradores em sua instauração. Organizou uma Discoteca Pública. Em 1938 está no Rio de Janeiro como professor de Estética na Universidade do Distrito Federal. Volta a São Paulo em 1940, na qualidade de funcionário do Serviço do Patrimônio Histórico. Morreu no dia 25 de fevereiro, em plena maturidade criadora, deixando por publicar uma série de obras do mais alto valor.

ARTIGO

Suplementação com taurina pode ajudar na prevenção da obesidade e na resistência à insulina Karina Toledo

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pós suplementar a água de camundongos obesos com o aminoácido taurina durante dois meses, pes­ quisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) observaram que os animais não apenas perde­ ram peso de forma significativa como apresentaram diver­ sos benefícios no controle da glicemia. Os dados sugerem que o tratamento poderia proteger os roedores de desen­ volver complicações como o diabetes. Os resultados da pesquisa, realizada no Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, com apoio da FAPESP, foram apresentados pelo professor Everardo Magalhães Carneiro durante a 29 a Reu­nião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), realizada em agosto em Caxambu (MG). “A taurina é um aminoácido que não é incorporado nas proteínas de nosso organismo e parece ter um papel im­ portante na sinalização celular. Nossos dados mostram que ela regula a produção intracelular de peróxido de hidrogênio (H2O2) – ou água oxigenada – e isso se correlaciona com a melhor ação da insulina nos tecidos periféricos”,disse Carneiro. O pesquisador explicou que a taurina é sintetizada naturalmente pelo organismo, principalmente nas células do fígado e do tecido adiposo. Também pode ser adquirida pela ingestão de alimentos como carne, peixe, mariscos e, em menor quantidade, vegetais.

“A taurina se concentra nas células alfa do pâncreas, exercendo um papel que ainda estamos tentando descobrir qual é exatamente”, disse Carneiro. A célula alfa, explicou o pesquisador, é a responsável pela secreção do hormônio glucagon – cuja função é mobilizar a energia estocada na forma de glicogênio no fígado durante períodos de jejum prolongado para prevenir a hipoglicemia, que pode ser fatal. Além disso, dados da literatura mostram que o glucagon produzido pela célula alfa também estimula a célula beta, sua vizinha, a secretar insulina. Há três tipos principais de células nas ilhotas pancreáticas: a alfa, a beta e a delta. A célula alfa estimula a célula beta a produzir insulina e a célula beta inibe a secreção de glucagon pela célula alfa. Já a delta produz o hormônio somatostatina, capaz de inibir tanto a secreção de insulina quanto de glucagon, dependendo da necessidade. “Parece que, de alguma forma, a taurina modula esse controle parácrino (no qual um hormônio produzido por uma célula controla a atividade da célula vizinha) da insulina, favorecendo maior ou menor secreção do hormônio dependendo do caso”, explicou Carneiro. Em estudos anteriores, os pesquisadores da Unicamp observaram que, em camundongos com peso normal, a suplementação com taurina a 2% na água aumentava a secreção de insulina pelas células beta, fazendo com que as


ARTIGO ilhotas de Langerhans do animal ficassem mais responsivas à glicose. Experimentos in vitro feitos com as ilhotas dos animais que receberam a suplementação com taurina revelaram que as células expressavam mais a forma ativa da proteína PDX-1, um fator de transcrição essencial para a síntese de insulina. Mostraram também que os receptores de insulina nos tecidos periféricos dos animais também ficavam mais ativados após a suplementação de taurina, favorecendo a captação de glicose no tecido muscular e menor produção desse açúcar pelo fígado. Os resultados foram divulgados no The Journal of Nutritional Biochemistry. “Parece que a taurina – não sabemos ainda se de forma direta ou indireta – induz a expressão de certas proteínas, como a fosfolipase-C, a PKAα e a PKC, na célula beta. E isso culmina com uma maior secreção de insulina. Decidimos então investigar se isso também aconteceria em um modelo de obesidade induzida por dieta”, disse Carneiro.

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não obeso. Também foram reduzidos em 45% os níveis de secreção de insulina, que foram acompanhados de melhoria parcial da intolerância à glicose e da resistência à insulina. Além disso, houve uma melhora parcial de 20% e 4% na glicose e colesterol plasmáticos, respectivamente. Isso foi associado com um aumento de 75% na atividade de uma proteína intermediária da cascata de sinalização da insulina no fígado, mas não nos músculos. Parte dos resultados foi publicada na revista Amino Acids.

Obesidade genética

Em seguida, os pesquisadores realizaram o mesmo experimento com um grupo de camundongos portadores de obesidade genética. Nesse caso, o acúmulo de gordura é causado por uma mutação no gene que codifica o hormônio leptina no tecido adi­ poso. “A leptina é um hormônio importante para o controle do apetite. Ele atua no hipotálamo e sinaliza para o organismo que é hora de parar de comer. Nos portadores dessa mutação, o organismo não produz leptina – o que acaba Homeostase glicêmica levando a uma ingestão descontrolada de Para induzir o sobrepeso nos camundon­ alimento”, explicou Carneiro. gos, os pesquisadores ofereceram uma dieNesse protocolo de estudo, os camun­ ta contendo 31% de gordura de porco a dongos obesos receberam suplementação partir do desmame. Por volta de 3 ou 4 me­ com 5% de taurina na água durante 60 dias. ses de vida, os animais já eram considera­ Animais obesos e pré-diabéticos As análises mostraram uma redução do dos obesos e pré-diabéticos, ou seja, apre­ que receberam o aminoácido na peso no grupo tratado, em torno de 16%. água apresentaram perda de peso sentavam intolerância à glicose (demora e melhora no metabolismo da A intolerância à glicose diminuiu 35%, a para a remoção do nutriente da corrente glicose (imagem: Unicamp). resistência à insulina, 30% e a produção he­ sanguínea) e resistência à insulina. pática de glicose, 28% – ainda significativa­ “À medida que o tecido adiposo aumenta, a demanda por mente superiores aos camundongos não obesos. insulina aumenta e a célula beta acaba ficando hipertrofiada. “Outro teste interessante que fizemos com o animal obeso Por outro lado, esse tecido adiposo aumentado produz é o de tolerância ao glucagon, que consiste em administrar substâncias inflamatórias e pequenos hormônios que esse hormônio e observar o quanto ele consegue mobilizar atrapalham a ligação da insulina com seus receptores nas de glicose no fígado. No obeso, a produção hepática de células-alvo”, disse Carneiro. glicose é altíssima em relação ao controle – 94% maior. “Então, mesmo o organismo produzindo mais insulina, Já no obeso tratado com taurina esse valor cai para 39%”, sua ação fica menos eficiente e isso sinaliza para o disse Carneiro. pâncreas produzir ainda mais insulina e vira um círculo No momento, os pesquisadores estudam mudanças no vicioso que acaba levando à falência das células beta e, padrão de expressão de mais de 11 mil genes no hipotálamo consequentemente, ao diabetes”, disse. induzidas pelas intervenções realizadas nos experimentos. Paralelamente, acrescentou o pesquisador, a resistência “Os dados preliminares mostram que a taurina modula a à insulina e a consequente dificuldade de levar o nutriente expressão de vários genes de forma a promover uma melhor para dentro das células acaba resultando em maior adaptação dos animais com relação ao comportamento produção de glucagon pelas células alfa, fazendo aumentar alimentar, que reflete em melhor controle glicêmico. ainda mais os níveis de glicose no sangue. Também parece proteger as células do hipotálamo contra o No mesmo estudo, parte dos camundongos recebeu estresse de retículo endoplasmático, que é um fenômeno suplementação com taurina a 5% na água durante o envolvido na morte de diversos tipos celulares, entre eles tratamento com a dieta rica em gordura. Após cinco os neurônios”, disse Carneiro. meses de tratamento, as análises revelaram que as ilhotas Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a pancreáticas dos animais haviam diminuído de tamanho, cultura científica, set./2014. ficando com aspecto semelhante às do grupo controle


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ESPECIAL

Concerto didático Camerata Fukuda e Coral Etapa apresentaram-se no Colégio Etapa

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om o intuito de promover o ensino e a cultura, o Etapa realiza, há vários anos, o Concerto Didático, evento que permite que o público tenha contato di­ reto com a música e as características de uma orquestra e de um coral. Apreciar de perto uma apresentação de música desse estilo é uma expe­ riência muito enriquece­ dora. Este ano, o Concerto aconteceu no dia 25 de outubro e, como de cos­ tume, teve a participação da Camerata Fukuda, considerada uma das or­ questras de câmara mais importantes do Brasil e apoiada pelo Etapa há 24 anos. A apresentação foi uma ótima oportunidade para a plateia conhecer o funcionamento de uma orquestra e o som de cada instrumento. Nesse concerto, a regência foi de Ugo Kageyama. A outra atração do encontro foi o Coral Etapa, criado em 2010 e formado por alunos do próprio Colégio. Contando com a regência de Mário Zaccaro, o Coral também atua com acompanhamento instrumental, garantindo maior dinamicidade às performances. O seu repertório é bem eclético, indo do clássico ao popular.

O Coral foi responsável por abrir o evento. Em seguida, foi a vez de a Camerata Fukuda preencher o palco e, por fim, os dois se juntaram para apresentar mais algumas canções. O Concerto didático, que neste formato – com o Coral e a Camerata – completa o 4o ano consecutivo, com certeza impressionou os convidados e cumpriu o seu propósito, oferecendo um momento de apreciação musical de qualidade.

AGENDA CULTURAL São Paulo – Clube de Cinema (quintas, das 19h10 às 21h35, sala 65) 27.11 – Platoon (Oliver Stone: 1986) e Guerra ao terror (Kathryn Bigelow: 2009) São Paulo – Clube de Debate (mensal, das 19h10 às 21h35, sala 65) 25.11 – Democracia em xeque: cidadania e sociedade civil Valinhos – Clube de Cinema (sextas, das 14h05 às 15h45) 28.11 – Waking Life (Richard Linklater: 2001)

Fique ligado: todas as terças-feiras acontecem as Palestras de Profissões para os alunos de 2o e 3o anos do Ensino Médio!


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