Jornal do Colégio - 599

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Jornal do Colégio JORNAL DO COLÉGIO ETAPA – 2015 • DE 23/10 A 05/11

ENTREVISTA

“Na faculdade todas as matérias do colégio foram essenciais.” Renan Luca Kabariti entrou na Escola Politécnica da USP em 2005 e formou-se em Engenharia de Produção. Há cinco anos ele trabalha na área de logística de apoio às plataformas de perfuração e de produção. Aqui ele relembra seus tempos no colégio, e revela que, mesmo matérias fora de sua área – Português, Geografia e História – foram essenciais na faculdade.

Renan Luca Kabariti

JC – O que motivou você a escolher Engenharia como carreira?

No 3o ano você chegou a considerar a possibilidade de não passar direto na Fuvest?

Renan – Sempre tive relação com Exatas. Meu pai é engenheiro, minha mãe é formada em Matemática, trabalha em banco. Um primo fez Engenharia Elétrica na Poli. Já estava encaminhado.

Isso passa pela cabeça sim. Mas na hora da prova eu não me deixo abalar pela insegurança. Quando é para valer eu consigo focar. Eu sabia que estava bem preparado.

Por que preferiu Engenharia de Produção como especialidade?

Como foi o início na Poli?

Quando entrei na Poli eu pensava em Engenharia Química, mas acabei migrando para a Grande Área Mecânica, que inclui os cursos de Engenharia Mecânica, Engenharia Mecatrônica, Engenharia Naval e Engenharia de Produção. Se não passasse em Produção, que é muito concorrida, iria para a Engenharia Naval.

Além da USP, você entrou em outras faculdades? Prestei Engenharia Elétrica na Unicamp mas vi que Elétrica não era minha praia. Entrei na UFSCar e fiz matrícula para garantir a vaga. Depois é que veio o resultado da Poli.

Por que você preferiu estudar na Poli? Primeiro, o nome USP pesa, você sabe que vai ser bem reconhecido no mercado. Além de ter amigos e meu primo lá.

Como foi sua adaptação no Colégio Etapa? Foi tranquila. No início achei um pouco puxado, um pouco mais difícil do que eu estava acostumado. Mas entrei no ritmo e achei positivo.

ENTREVISTA

Carreira – Engenharia de Produção

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CONTO

Gennaro - Álvares de Azevedo

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Foi bacana, tudo novo, aquele monte de veteranos fazendo festa, recebendo os bichos.

Você teve alguma dificuldade? O que mais pesa no começo é que falta a organização que tem no Colégio. Na Poli tudo é muito diferente. O corpo docente é muito bom, mas tem pesquisadores que dão aula só porque são obrigados. O didatismo passa longe de alguns. Em compensação temos também professores excelentes.

O que você estudou em cada ano na Poli? Os dois primeiros anos eles chamam de Biênio, que é em um prédio à parte, onde você vê as matérias básicas. Os professores não são da Engenharia, são da Matemática, da Física. Então, no 1o ano tem Cálculo, Álgebra Linear, Programação, Computação, Desenho Geométrico, Cálculo Numérico, Física. No 2o ano você vai para uma Grande Área. Produção fica dentro da Grande Área Mecânica. Aí você tem matérias um pouco mais específicas, Termodinâmica, Cálculo 2, Física Experimental, Laboratório de Física, Química, Introdução à Resistência dos Materiais.

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POIS É, POESIA

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Castro Alves

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ENTREVISTA

No 3o ano, na Produção, que matérias você teve? A Produção começa com matérias bem específicas: Estatística, Contabilidade, Engenharia Financeira, Introdução à Administração. Ainda tem alguma coisa mais geral de Física e tal, mas foca mais em matérias ligadas a administração em geral.

No 4o e no 5o ano continua dessa forma? Continua. No 4o ano alguns colegas começaram a estagiar. Eu estagiei só no 5o ano. Na época eles dificultavam estagiar no 4o ano. Eles queriam só no 5o ano.

O que você teve de matérias nesses anos? Logística e algumas matérias mais genéricas, como Engenharia do Meio Ambiente. No 4o e 5o ano tem mais trabalho que prova. Você aprende mais a cooperar, começa a ficar menos individualista, o grupo importa mais. As matérias optativas são também bem bacanas. Quero deixar claro, as matérias chamadas de optativas são obrigatórias. Você tem que fazer matérias fora para cumprir sua grade horária. Eu peguei umas matérias na ECA, fui para a área de Comunicação, Mídias Digitais. Eu tinha muito interesse por Marketing.

Além das aulas, o que mais você fez na Poli, na parte acadêmica? Eu fiz iniciação científica no 3o e no 4o ano. Foi uma experiência superválida. Além de ter contato com o mundo acadêmico, você acaba produzindo artigos. Entra um pouco nos bastidores da faculdade, tem um relacionamento. No meu caso foi um relacionamento muito bom com meu orientador. Inclusive, meu orientador na iniciação científica foi o mesmo do trabalho de formatura.

Você recebeu bolsa? Eu peguei uma bolsa da Fundação Vanzolini.

Essa iniciação científica era voltada para qual área? Era voltada para a indústria da música. Por sugestão do orientador, estudei produção musical com a visão da Engenharia de Produção. Procuramos entender o que estava acontecendo com a internet, MP3. Nesse viés de Engenharia, estudamos a cadeia produtiva completa da música, desde a ideia e criação até quando o consumidor comprava, na época, um CD, ou MP3, ou quando escutava de forma pirata. Queríamos entender tudo que acontecia nesse ciclo.

Fora da parte acadêmica, o que mais você fez na Poli? Do 2o ao 4o ano eu era do time de rúgbi. Na Poli a atividade esportiva é levada bem a sério. Você acaba tendo gente boa em coisas que nem imagina, xadrez, rúgbi, futebol, basquete. Também toquei na Rateria [bateria dos alunos da Poli].

No 5o ano, qual era sua maior preocupação? O TF, o trabalho de formatura.

Qual foi o tema do seu trabalho? Qualidade e serviços. Acabei aplicando na empresa em que eu trabalhava.

Onde foi seu estágio? Foi numa empresa automotiva chamada Netz. Uma empresa pequena, tinha cinco sócios que eram ex-gerentes da Mercedes. Eles faziam testes de veículos em desenvolvimento, de carros

pequenos até caminhões. Eu era estagiário do diretor comercial, trabalhava com informação de preços.

Os clientes eram as montadoras? Eram as montadoras ou então fábricas de componentes. Por exemplo, a fábrica de câmbio queria desenvolver um novo câmbio, aí a gente equipava um caminhão e contratava um motorista para rodar durante um, dois anos, até quebrar. Colhidos e analisados os dados, eles eram levados ao cliente: “É assim que seu câmbio se comporta, está desgastando aqui, quebrou em dois anos”. Eles analisavam e depois punham uma garantia de um ano e meio. O trabalho que eu desenvolvi era para analisar a satisfação dos clientes depois de prestar os serviços.

Quanto tempo você ficou na Netz? Entrei no começo de 2009 e saí em fevereiro de 2010. Eu fui efetivado e dois meses depois acabei saindo.

Por que saiu, se tinha sido efetivado? Quando fui efetivado eu estava migrando para a área de qualidade. Tinha recebido uma proposta da Whirlpool [fabricante da Brastemp e Cônsul].

O que você fez na Whirlpool? A missão era organizar a logística de abastecimento das fábricas. Era pegar a matéria-prima e levar para a fábrica. Cuidava dessa parte. Era complicadíssimo. Você ficava sendo pressionado pela área de produção – “preciso fabricar, preciso da peça” – e tinha de ir à fornecedora fazer essa gestão. Mas era um trabalho mais gerencial, mais de dar os indicadores.

Você ficou quanto tempo nesse estágio? Fiquei um período bem curto, de março a julho, mas foi um período em que eu aprendi bastante.

Por que ficou tão pouco tempo? Logo que entrei eu prestei concurso na Petrobras. Entrei em março, prestei o concurso no fim de abril. O resultado saiu em maio, junho, para começar em agosto.

Foi difícil o concurso da Petrobras? Por conta da prova eu estudei bastante durante cinco meses. Trabalhava, estudava à noite e nos fins de semana. A lógica de estudo, de preparação, de organização é aquela que você já conhece do vestibular. Isso cai como uma luva para quem já estudou aqui, para quem já conhece, já sabe a importância de fazer simulado, de analisar, de estudar provas. Você está ali na nata da nata. Isso é bom, motiva estar no grupo de pessoas capazes.

Você foi admitido na Petrobras em agosto. Como foi o processo inicial no trabalho? Foi um mundo que se abriu para mim. Fui para o Rio de Janeiro fazer na Petrobras um curso de formação. Você fica cinco meses estudando – a história da empresa, como ela se organiza, os diferentes negócios. Tem diversas matérias, você tem de passar na prova final para poder começar a trabalhar. Quando terminou o curso começou o processo de alocação. Eu poderia ir para qualquer lugar do Brasil, mas fiquei no Rio.


ENTREVISTA

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O que ocorreu depois?

Como está a empregabilidade e a remuneração na sua área?

O curso de preparação terminou no fim de 2010, no começo de 2011 eu entrei para trabalhar, fui para a área internacional, em Organização e Gestão, que cuida de processos, padronização, gestão em geral. Fiz viagens para o exterior, fui para a Venezuela, México e Estados Unidos. Dava treinamentos também e a ideia era o pessoal de fora falar a mesma língua da Petrobras. Para isso tínhamos os nossos processos. No ano passado, depois de quatro anos, resolvi sair da área internacional.

Conversando com meus colegas eu percebo que alguns estão muito bem e outros ainda estão meio que na briga. O pessoal está trabalhando muito, está dando o sangue. Não tem dinheiro fácil hoje.

Por que você quis mudar de área? Gostei bastante do tempo que estive no Rio de Janeiro, mas queria ficar um pouco mais perto de casa. Queria um lugar mais barato também, porque o Rio está ficando muito caro. E depois de quatro anos numa mesma área eu achei que estava estagnando um pouco, podia aprender mais.

Você está em que área agora? Estou há um ano na área de Logística em Santos. Eu vim com esse viés de organizar os processos operacionais. Estou trabalhando com logística de apoio às unidades operacionais marítimas, que são as plataformas, tanto de perfuração quanto de produção. Basicamente é fornecer o que a plataforma precisa de material e retirar o que ela não precisa mais.

Você pretende continuar na área de Logística? Ainda tenho bastante a aprender nessa área. É uma área que me interessa bastante. E acho que a Petrobras também quer melhorar essa área. Agora, com a crise, cada vez mais a gente vai ter que trabalhar com mais eficiência.

Você está contente com a formação que teve na Poli? Estou bastante contente com minhas escolhas. Tenho a sorte, o privilégio de poder dizer que eu não me arrependo de nenhuma escolha que fiz.

O que você aprendeu no colégio que valeu na faculdade e em sua vida profissional? Quando o professor chegava aqui com aquelas matrizes e determinantes eu não sabia quanto seria importante na faculdade. Minha área não é muito específica, não lido muito com dados, com números, mas na faculdade todas as matérias do colégio foram essenciais. Agora, uma matéria que eu acho que foi importantíssima é Língua Portuguesa. No vestibular foi um diferencial, fui muito bem. Acho que foi minha segunda maior nota na Fuvest. No concurso também contou. E vale no dia a dia. Devo muito ao colégio por ter um Português um pouco mais correto. Não vou dizer perfeito, mas um pouco melhor que a média. Ah, Geografia também apareceu demais quando estava na área internacional. E Biologia, nunca imaginei que fosse tão importante.

Hoje, de volta ao Etapa, o que vem de recordação? Vir aqui é uma experiência emocional. Fiz questão de vir de metrô, fazer o mesmo caminho de quando estava no colégio. Lembrei o quanto eu estava bem preparado. Estava em boas mãos. Apesar de a gente até se irritar com a quantidade de provas, o que sobra são recordações boas. Tenho muitos amigos do colégio, a amizade segue firme.

O que você pode dizer a quem vai prestar Engenharia? Primeiro, parabéns. Você tomou uma decisão difícil, Engenharia não é para qualquer um. Passar no curso de Engenharia é difícil, se formar é mais difícil ainda. Talvez só na Medicina você tenha de trabalhar mais, estudar mais para se formar. Engenharia é pesada, é difícil. Em compensação, depois de se formar você vai se sentir capaz de tudo. Engenharia é um curso que prepara bem.

CONTO

Gennaro Álvares de Azevedo Meurs ou tue...* (Corneille) ennaro, dormes, ou embebes-te no sabor do último trago do vinho, da última fumaça do teu cachimbo? – Não: quando contavas tua história, lembrava-me uma folha da vida, folha seca e avermelhada como as do outono, e que o vento varreu. – Uma história? – Sim: é uma das minhas histórias. Sabes, Bertram, eu sou pintor... É uma lembrança triste essa que vou revelar, porque é a história de um velho e de duas mulheres, belas como duas visões de luz. Godofredo Walsh era um desses velhos sublimes, em cujas cabeças as cãs1 semelham o diadema prateado do gênio. Velho já,

–G

(*) Tradução: “Morre ou mata...”

casara em segundas núpcias com uma beleza de vinte anos. Godofredo era pintor: diziam uns que este casamento fora um amor artístico por aquela beleza romana2, como que feita ao molde das belezas antigas; outros criam-no compaixão pela pobre moça que vivia de servir de modelo. O fato é que ele a queria como filha – como Laura, a filha única de seu primeiro casamento – Laura, corada como uma rosa e loira como um anjo. Eu era nesse tempo moço: era aprendiz de pintura em casa de Godofredo. Eu era lindo então; que trinta anos lá vão, que ainda os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar3 infantil, pensativo e melancólico como Rafael se retratou, no quadro da galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. Nauza tinha vinte e eu tinha dezoito anos. Amei-a; mas meu amor era puro como meus sonhos de dezoito anos. Nauza também me amava: era um sentir tão puro! era uma


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CONTO

emoção solitária e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos embalavam aos céus da Itália. Como eu o disse, o mestre tinha uma filha chamada Laura. Era uma moça pálida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez era branca, só às vezes, quando o pejo4 a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se lhe destacavam no fundo de mármore. Laura parecia querer-me como a um irmão. Seus risos, seus beijos de criança de quinze anos eram só para mim. À noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro com minha lâmpada, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas faces, nas trevas. Muitas noites foi assim. Uma manhã – eu dormia ainda – o mestre saíra e Nauza fora à igreja, quando Laura entrou no meu quarto e fechou a porta: deitou-se ao meu lado. Acordei nos braços dela. O fogo de meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater sobre o meu, isso tudo ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu... Todas as manhãs Laura vinha a meu quarto... Três meses passaram assim. Um dia entrou ela no meu quarto e disse-me: – Gennaro, estou desonrada para sempre,... A princípio eu quis-me iludir, já não o posso, estou de esperanças...5 Um raio que me caísse aos pés não me assustaria tanto. – É preciso que cases comigo, que me peças ao meu pai, ouves, Gennaro? Eu calei-me. – Não me amas então? Calei-me ainda. – Oh! Gennaro! Gennaro! E caiu no meu ombro desfeita em soluços. Carreguei-a assim fria e fora de si para seu quarto. Nunca mais tornou a falar-me em casamento. Que havia de eu fazer? contar tudo ao pai e pedi-la em casamento? fora uma loucura... Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua casa... E Nauza? cada vez eu a amava mais. Era uma luta terrível essa que se travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso. Laura não me falara mais. Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se mais pálida, mas a gravidez não crescia, antes mais nenhum sinal se lhe notava... O velho levava as noites passeando no escuro. Já não pintava. Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma harmonia de morte, que empalidecia cada vez mais, o misérrimo arrancava as cãs. Eu contudo não esquecera Nauza, nem ela se esquecia de mim. Meu amor era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e de sede que me banhavam de lágrimas o travesseiro. Só às vezes sombra de um remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas névoas... Uma noite... foi horrível... vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome e palavras que ninguém podia reter, tão apressadas e confusas lhe soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face úmida de um suor copioso, chamou-me. Sentei-me junto do leito dela. Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meus ouvidos: – Gennaro, eu te perdoo, eu te perdoo tudo... Eras um infame... Morrerei... Fui uma louca... Morrerei... por tua causa... teu filho... o meu... vou vê-lo ainda... mas no céu... meu filho que matei... antes de nascer... Deu um grito, estendeu convulsivamente os braços como para repelir uma ideia, passou a mão pelos lábios como para enxugar as últimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, lívida, fria, banhada de suor gelado e arquejou... Era o último suspiro.

Um ano todo se passou assim para mim. O velho parecia endoidecido. Todas as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura: levava aí a noite toda em solidão. Dormia? ah que não! Longas horas eu o escutei no silêncio arfar com ânsia, outras vezes afogar-se em soluços. Depois tudo emudecia: o silêncio durava horas; o quarto era escuro; e depois as passadas pesadas do mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes como de um bêbado que cambaleia. Uma noite eu disse a Nauza que a amava: ajoelhei-me junto dela, beijei-lhe as mãos, reguei seu colo de lágrimas. Ela voltou a face: eu cri que era desdém, ergui-me. – Então, Nauza, tu me não amas, disse eu. Ela permanecia com o rosto voltado. – Adeus, pois; perdoai-me se vos ofendi; meu amor é uma loucura, minha vida é uma desesperança – o que me resta? Adeus, irei longe, longe daqui... talvez então eu possa chorar sem remorso... Tomei-lhe a mão e beijei-a. Ela deixou sua mão nos meus lábios. Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava debulhada em lágrimas. – Nauza! Nauza! uma palavra, tu me amas? Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre os vidros da janela aberta, batia nela: nunca eu a vira tão pura e divina! E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza. Uma noite houve um fato pasmoso. O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e chorava aquela voz cavernosa e rouca: tomou-me pelo braço com força, acordou-me e levou-me de rasto ao quarto de Laura... Atirou-me ao chão: fechou a porta. Uma lâmpada estava acesa no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. – Era Laura moribunda! E eu, macilento como ela, tremia como um condenado. A moça com seus lábios pálidos murmurava no meu ouvido... Eu tremi de ver meu semblante tão lívido na tela e lembrei-me que naquele dia ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda pendurado à janela, eu me horrorizara de ver-me cadavérico... Um tremor, um calafrio se apoderou de mim. Ajoelhei-me e chorei lágrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era Laura que se erguia dentre os lençóis do seu leito e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito. Por Deus! que foi uma agonia! No outro dia o mestre conversou comigo friamente. Lamentou a falta de sua filha – mas sem uma lágrima: sobre o passado da noite, nem palavra. Todas as noites era a mesma tortura, todos os dias a mesma frieza. O mestre era sonâmbulo... E pois eu não me cri perdido... Contudo, lembrei-me que uma noite, quando eu saía do quarto de Laura com o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por perto, roçaram-me uns cabelos soltos e nas lájeas6 do corredor estalavam umas passadas tímidas de pés nus... Era Nauza que tudo vira e tudo ouvira, que acordara e sentira minha falta no leito, que ouvira esses soluços e gemidos e correra para ver... Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh tomou sua capa e uma lanterna, e chamou-me para acompanhá-lo. Tinha de sair fora da cidade e não queria ir só. Saímos juntos: a noite era escura e fria. O outono desfolhara as árvores e os primeiros sopros do inverno rugiam nas folhas secas do chão. Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhávamos pelas montanhas, cada vez o caminho era mais solitário. O velho parou. Era na fralda de uma montanha. À direita o rochedo se abriu num trilho: à esquerda as pedras soltas por nossos pés a cada passada se despegavam e rolavam pelo despenhadeiro e, instantes depois, se ouvia um som como de água onde cai um peso...


CONTO A noite era escuríssima. Apenas a lanterna alumiava o caminho tortuoso que seguíamos. O velho lançou os olhos à escuridão do abismo e riu-se. – Espera-me aí, disse ele, já venho. Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o cume da montanha: eu sentei-me no caminho à sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer entre os arvoredos nos ziguezagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho bateu à porta de uma cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que aí se passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher lívida e desgrenhada7 apareceu com um facho na mão. A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre estava comigo. O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a capa e disse-me: – Gennaro, quero contar-te uma história. É um crime, quero que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moça bela. De outras núpcias tinha uma filha bela também. Um aprendiz – um miserável que ele erguera da poeira, como o vento às vezes ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela quando quisesse... Eu estremeci, os olhares do velho pareciam ferir-me. – Nunca ouviste essa história, meu bom Gennaro? – Nunca, disse eu a custo e tremendo. – Pois bem, esse infame desonrou o pobre velho, traiu-o como Judas ao Cristo. – Mestre, perdão! – Perdão! – e perdoou o malvado ao pobre coração do velho? – Piedade! – E teve ele dó da virgem, da desonrada, da infanticida? – Ah! gritei. – Que tens? conheces o criminoso? A voz de escárnio dele me abafava. – Vês, pois, Gennaro, disse ele mudando de tom, se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho! se o visses de dia, teus olhos se escureceriam e aí rolarias talvez de vertigem! É um túmulo seguro; e guardará o segredo, como um peito o punhal. Só os corvos irão lá ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, se tens ainda no coração maldito um remorso, reza tua última oração, mas que seja breve. O algoz8 espera a vítima, a hiena tem fome de cadáver... Eu estava ali pendente junto à morte. Tinha só a escolher o suicídio ou ser assassinado. Matar o velho era impossível. Uma luta entre mim e ele fora insana9. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais, ele estava armado. Eu... eu era uma criança débil: ao meu primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava... só me restaria morrer com ele, arrastá-lo na minha queda. Mas para quê? E curvei-me no abismo: tudo era negro, o vento lá gemia embaixo nos ramos desnuados, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente lá chocalhava no fundo escumando nas pedras. Eu tive medo.

Orações, ameaças, tudo seria debalde. – Estou pronto, disse. O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios estalados de febre. Só vi aquele riso... Depois foi uma vertigem... o ar que sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se cai de uma torre e se fica preso ainda pela mão, mas a mão cansa, fraqueia, sua, esfria... Era horrível: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas mãos, as raízes secas que saíam pelo despenhadeiro estalavam sob meu peso e meu peito sangrava nos espinhais. A queda era muito rápida... De repente não senti mais nada... Quando acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me tinham apanhado junto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o rio. Era depois de um dia e uma noite de delírios que eu acordara. Logo que sarei, uma ideia me veio: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquela morte horrível, pode ser que se apiedasse de mim, que me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu cão, tudo o que houvesse mais abjeto10 num homem que se humilha – tudo! – contanto que ele me perdoasse. Viver com aquele remorso me parecia impossível. Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me então uma ideia de vingança e de soberba. Ele quisera matar-me, ele tinha rido à minha agonia, e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pés para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces e amanhã procurar outra vingança mais segura?... Eu humilhar-me quando ele me tinha abatido! Os cabelos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava pelo rosto. Quando cheguei à casa do mestre, achei-a fechada. Bati... não abriram. O jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as portas que davam para ele estavam também fechadas. Uma delas era fraca: com pouco esforço arrombei-a. Ao estrondo da porta que caiu, só o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas e contudo era dia claro fora. Tudo estava escuro; nem uma lamparina acesa. Caminhei tateando até a sala do pintor. Cheguei lá, abri as janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei então ao quarto de Nauza, abri a porta e um bafo pestilento corria daí. O raio da luz bateu em uma mesa. Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa e os cabelos caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles um copo onde se depositara um resíduo polvilhento11. Ao pé estava um frasco vazio. Depois eu o soube – a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno e fora ela decerto que o vendera, porque o pó branco do copo parecia sê-lo... Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça... Era Nauza, mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e o colo de neve... Era um corpo amarelo... Levantei uma ponta da capa do outro: o corpo caído de bruços com a cabeça para baixo; ressoou no pavimento o estalo do crânio... Era o velho!... morto também, roxo e apodrecido!... Eu o vi: da boca lhe corria uma escuma esverdeada. Extraído de: Noite na taverna, Ed. Núcleo, 1993.

VOCABULÁRIO (1) cabelos brancos. (2) alusão à escultura romana, herdeira da grega, em que o homem é representado com proporções equilibradas e linhas harmoniosas, corpo de formas perfeitas. (3) o mesmo que ressumar, revelar, mostrar. (4) pudor, timidez, vergonha. (5) diz-se da mulher quando grávida.

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(6) o mesmo que lajes. (7) despenteada, com os cabelos revoltos, emaranhados. (8) carrasco. (9) (fig.) excessiva, árdua. (10) desprezível, vil, imundo. (11) poeirento.


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ARTIGO

Brasil caminha rumo à eliminação da malária, diz especialista da Opas Karina Toledo

ntre os países americanos, o Brasil tem sido um dos campeões no combate à malária e caminha rumo à eliminação da doença que ainda mata no mundo cerca de meio milhão de pessoas anualmente – a maioria crianças menores de 5 anos. A análise foi feita por Keith Carter, conselheiro sênior sobre malária e outras doenças transmissíveis da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) – vinculada à Organização Mundial de Saúde (OMS) –, durante a abertura da Escola São Paulo de Ciência Avançada para a Erradicação da Malária. Realizado com apoio da FAPESP, Bill & Melinda Gates Foundation, Opas e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o evento reúne 104 estudantes e jovens pesquisadores de 42 países desde o dia 22 de setembro até 2 de outubro na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). “O Brasil tem conseguido reduzir significativamente a transmissão de malária em seu território e representa um grande exemplo para o mundo. Claro que ainda há obstáculos a serem vencidos, especialmente nas áreas de fronteira. Já a Venezuela, onde o número de casos cresce a cada ano, é hoje o maior desafio do continente”, disse Carter em entrevista à Agência FAPESP. Em sua apresentação, o representante da Opas lembrou que, no início do século 20, a enfermidade transmitida pela picada dos mosquitos do gênero Anopheles estava disseminada em praticamente todo o planeta. Em meados da década de 1950 – apenas alguns anos após a criação da OMS – teve início a primeira campanha global para erradicação da malária, que tinha como principal arma o inseticida DDT (diclorodifeniltricloroetano). A ideia era dedetizar todas as casas, de todos os países, de modo a reduzir a densidade do mosquito vetor a um ponto que a cadeia de transmissão fosse interrompida. O programa conseguiu eliminar a doença principalmente na Europa e na América do Norte, bem como reduzir o número de casos em outras regiões. Mas a erradicação efetiva não ocorreu tão rapidamente quanto se esperava e as fases de consolidação e manutenção se mostraram mais caras e demoradas do que o estimado. “Em meados dos anos 1960, começaram a faltar recursos para dar continuidade aos esforços. Nas duas décadas seguintes o assunto caiu no esquecimento e o número de casos voltou a crescer”, contou Carter. Na avaliação da brasileira Marcia Castro, professora da Harvard T.H. Chan School of Public Health, dos Estados Unidos, vários motivos explicam o fracasso da iniciativa. “Em primeiro lugar, a cobertura não foi integral e mosquito não respeita barreira geográfica. Se você trata uma área, mas não todas, ele volta após algum tempo. Ficaram de fora da iniciativa, por exemplo, os países da África subsaariana, região onde até hoje concentra-se a maioria dos casos. Em muitos locais o acesso às casas era difícil por falta de estradas e falta de equipes de saúde bem estruturadas”, afirmou Castro.

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Além disso, com o passar dos anos, os mosquitos foram adquirindo resistência ao inseticida e isso tornou inviável a proposta de reduzir a densidade vetorial a ponto de interromper a transmissão – meta que se tornou ainda mais difícil de ser alcançada uma vez que nem todos os pacientes estavam sendo tratados e, portanto, permaneciam como reservatórios do parasita causador da enfermidade.

Erradicação da pesquisa De acordo com Castro, a iniciativa da OMS não só falhou em erradicar a malária como teve um efeito colateral nefasto: erradicou a pesquisa sobre a doença e o treinamento de profissionais de saúde em praticamente todo o mundo. “Eles achavam que o DDT sozinho resolveria o problema, então não seria preciso treinar pessoas ou investir na busca de novas estratégias de controle e de novos medicamentos. Pensavam ser desnecessário estudar a ecologia das regiões endêmicas ou a biologia do parasita e do mosquito vetor”, disse a professora de Harvard. A retomada só ocorreu nos anos 1990, disse Castro, quando muitos países se deram conta de que a malária não era apenas uma questão de saúde pública, mas um entrave ao desenvolvimento econômico. E era o início da globalização. “Nos anos 1990, a tônica passou a ser o controle do número de casos para que a malária deixasse de ser um problema de saúde tão dramático. Já não se falava mais em erradicação (zero casos no mundo) ou eliminação (zero casos em uma região). Foi então adotada uma combinação de medidas, que inclui controle vetorial, diagnóstico e tratamento precoce dos pacientes”, explicou.

Dois passos à frente Mas, segundo os especialistas, ainda são grandes os desafios a serem superados para, ao menos, manter a malária sob controle e isso só será possível por meio de investimento em pesquisas.


ARTIGO “A melhor droga antimalárica que temos hoje é a artemisinina e já há casos de resistência no sudeste da Ásia, onde ela foi muito usada. Não sabemos ao certo se a resistência já chegou à África e temos um grande receio de que ela se espalhe, pois não temos outra droga tão potente em mãos”, disse Castro. Além de novos medicamentos, a professora de Harvard ressalta a necessidade de desenvolver novos produtos para tratar mosquiteiros e borrifar as casas, pois também já há resistência aos inseticidas atualmente usados. “O mosquito parece estar sempre dois passos à nossa frente. Ele se adapta tanto em termos de desenvolver resistência como em termos de comportamento. Os livros sobre malária dizem que o Anopheles só se reproduz em águas limpas, mas larvas já foram encontradas em águas poluídas. Os livros dizem que ele pica dentro de casa, à noite, mas na Amazônia ele passou a atacar fora de casa, em dois picos: no início da noite e no início da manhã, quando as pessoas estão indo e voltando do trabalho”, relatou Castro. Para Carter, também são fundamentais pesquisas antropológicas, que permitam entender como vivem e se comportam os moradores de áreas endêmicas, como usam os medicamentos, o que fazem quando estão doentes. “Essas informações são importantes para guiar estratégias de saúde pública. E também temos de entender como as mudanças climáticas vão afetar a longevidade do mosquito nas diversas regiões”, disse. Também são necessários, segundo os especialistas, novos métodos de diagnóstico que permitam identificar portadores assintomáticos da doença. Bem como métodos que permitam diagnosticar a forma latente da malária causada pelo parasita da espécie Plasmodium vivax, a mais prevalente na Amazônia brasileira, que pode provocar recaídas meses após a infecção primária.

Treinando lideranças De acordo com o pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP Marcelo Urbano Ferreira, organizador do evento, o curso oferecido no âmbito do programa Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA-FAPESP) é a primeira versão regional do “Science of Eradication: Malaria”, que vem sendo oferecido desde 2012 por três instituições líderes na pesquisa sobre o tema: Barcelona Institute for Global Health (ISGlobal, da Espanha), Harvard University e Swiss Tropical and Public Health Institute (Swiss TPH, da Suíça). “Originalmente, é um curso avançado de capacitação, voltado a gestores de serviços de saúde ou pesquisadores sêniores da área. Nós adaptamos para o público da ESPCA, que inclui estudantes de graduação, pós-graduação e jovens pesquisadores – alguns deles envolvidos em programas de controle da malária”, disse Ferreira. Além da excelência acadêmica, a seleção dos 104 participantes buscou dar representação aos países endêmicos, com destaque para aqueles que já contam com programas de eliminação ou erradicação de malária, como Sri Lanka, Butão, Etiópia e África do Sul. “Conseguimos um bom equilíbrio entre pesquisadores de laboratório e acadêmicos que atuam como profissionais de saúde pública. Bem como um equilíbrio entre os envolvidos nas cinco áreas cobertas pelo curso: Epidemiologia e controle; Estudos dos vetores; Imunologia e vacinas; Tratamento e novas drogas; e Biologia de plasmódio”, disse Ferreira. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, out./2015.

POIS É, POESIA

Castro Alves (1847 – 1871) As duas ilhas Sobre uma página de poesia de V. Hugo com o mesmo título

Q

uando à noite – às horas mortas – O silêncio e a solidão – Sob o dossel do infinito – Dormem do mar n’amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dois gigantescos perfis... Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas Ao clarear dos fuzis. Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: “O que é? Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?!...”

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Adamastor de granito Co’a testa roça o infinito E a barba molha no mar; É de pedra a cabeleira Sacudind’a onda ligeira Faz de medo recuar... São – dois marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou. Dois rochedos, onde o mundo Dois Prometeus amarrou!... – Acolá... (Não tenhas medo!) É Santa Helena – o rochedo Desse Titã, que foi rei!... – Ali... (Não feches os olhos!...) Ali... aqueles abrolhos São a ilha de Jersey!... São eles – os dois gigantes No século de pigmeus.

São eles – que a majestade Arrancam da mão de Deus. – Este concentra na fronte Mais astros – que o horizonte, Mais luz – do que o sol lançou!... – Aquele – na destra alçada Traz segura sua espada – Cometa, que ao céu roubou!... E olham os velhos rochedos O Sena, que dorme além... E a França, que entre a caligem Dorme em sudário também... E o mar pergunta espantado: “Foi deveras desterrado Buonaparte – meu irmão?...” Diz o céu astros chorando: “E Hugo?...” E o mundo pasmando Diz: “Hugo... Napoleão!...”


8

POIS É, POESIA

Como vasta reticência Se estende o silêncio após... És muito pequena, ó França, P’ra conter estes heróis... Sim! que estes vultos augustos Para o leito de Procustos Muito grandes Deus traçou... Basta os reis tremam de medo Se a sombra de algum rochedo Sobre eles se projetou!... Dizem que, quando, alta noite, Dorme a terra – e vela Deus, As duas ilhas conversam Sem temor perante os céus. – Jersey curva sobre os mares À Santa Helena os pensares Segreda do velho Hugo... – E Santa Helena no entanto No Salgueiro enxuga o pranto E conta o que Ele falou... E olhando o presente infame Clamam: “Da turba vulgar Nós – infinitos de pedra – Nós havemo-los vingar!...“ E do mar sobre as escumas, E do céu por sobre as brumas, Um ao outro dando a mão... Encaram a imensidade Bradando: “A Posteridade!...” Deus ri-se e diz: “Inda não!...“ Recife, 1865.

A uma atriz (No seu benefício)

B ranco cisne, que vogavas Das harmonias no mar, Pomba errante de outros climas, Vieste aos cerros pousar. Inda bem. Sob os palmares Na voz do condor, dos mares, Das serranias, dos céus... Sente o homem – que é poeta. Sente o vate – que é profeta Sente o profeta – que é Deus. Há alguma coisa de grande Deste mundo na amplidão, Como que a face do Eterno Palpita na criação... E o homem que olha o deserto, Diz consigo: “Deus ‘stá perto Que a grandeza é o Criador”. E, sob as paternas vistas,

Jornal do Colégio

Larga rédeas às conquistas, Pede as asas ao condor.

Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira! Ninho amigo da pomba forasteira!...

Inda bem. A glória é isto... É ser tudo... é ser qual Deus... Agitar as selvas d’alma Ao sopro dos lábios teus... Dizer ao peito – suspira! Dizer à mente – delira! A glória inda é mais: É ver Homens, que tremem – se tremes! Homens, que gemem – se gemes! Que morrem – se vais morrer!

Assim, meu pobre livro as asas larga Neste oceano sem fim, sombrio, eterno... O mar atira-lhe a saliva amarga, O céu lhe atira o temporal de inverno... O triste verga à tão pesada carga! Quem abre ao triste um coração paterno?... É tão bom ter por árvore – uns carinhos! É tão bom de uns afetos – fazer ninhos!

A glória é ter com o tridente Refreada a multidão, – Oceano de pensamentos Que tu agitas co’a mão! – Montanha feita de ideias, Que sustenta as epopeias Que é do gênio pedestal! – Harpa imensa feita de almas, Que rompe em hinos e palmas, Ao teu toque divinal. Mas esqueceste... Não basta “Chegar, olhar e vencer” Do gênio a maior grandeza O ser divino é sofrer. Diz!... Quando ouves a torrente Do entusiasmo na enchente Vir espumar-te lauréis; Nest’hora grande não sentes Longe os silvos das serpentes, Que tentam morder-te os pés? Inda é a glória – rainha Que jamais caminha só. Aí! Quem sobe ao Capitólio Vai precedido de pó. Porém tu zombas da inveja... Se à noite o raio lampeja Tu fazes dele um clarão! Pela tormenta embalada Ao som da orquestra arroubada Vais-te perder n’amplidão.

Pobre órfão! Vagando nos espaços Embalde às solidões mandas um grito! Que importa? De uma cruz ao longe os [braços Vejo abrirem-se ao mísero precito... Os túmulos dos teus dão-te regaços! Ama-te a sombra do salgueiro aflito... Vai, pois, meu livro! e como louro agreste Traz-me no bico um ramo de... cipreste! Bahia, janeiro de 1870.

As duas flores

São duas flores unidas, São duas rosas nascidas Talvez no mesmo arrebol, Vivendo no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol. Unidas, bem como as penas Das duas asas pequenas De um passarinho do céu... Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu. Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos Das profundezas do olhar... Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar.

Recife, 27 de setembro de 1866.

Dedicatória

A

pomba d’aliança o voo espraia Na superfície azul do mar imenso, Rente... rente da espuma já desmaia Medindo a curva do horizonte extenso... Mas um disco se avista ao longe... A praia Rasga nitente o nevoeiro denso!...

Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor. Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor! Curralinho, março de 1870. Extraído de: Espumas flutuantes, Ed. Núcleo, 1997.

Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


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