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Jornal do Colégio JORNAL DO COLÉGIO ETAPA – 2016 • DE 15/04 A 28/04
ENTREVISTA
Gostava de Exatas e gostava de Humanas. Fez Economia na USP. Leonardo Poyo Chen teve dúvidas na escolha da carreira – gostava de Humanas e de Exatas. Escolheu Economia no 3o ano e entrou na FEA-USP. Sua base no colégio ajudou-o bastante. Durante o curso trancou um ano para estudar inglês no Canadá e chinês em Taiwan. Aqui ele fala de sua formação, dos trabalhos que fez, de seus projetos profissionais e do mercado de trabalho dos economistas.
Leonardo Poyo Chen
JC – Como foi sua escolha de carreira? Leonardo – Foi bem difícil. Fiquei o 3 ano inteiro em dúvida entre Administração, Economia e Relações Internacionais. Queria alguma coisa em Humanas com o pé em Exatas. Economia foi porque sempre me interessei bastante por temas atuais e conversei com muitas pessoas. o
E você prestou quais vestibulares? Além da USP prestei FGV. Economia também. Fui aprovado.
Por que escolheu a FEA?
começo, aqui eu tive de estudar muito mesmo. Mas foi bom porque os professores entendem e dão apoio. Foi complicado no 8o ano, mas depois deslanchou. No Ensino Médio foi bem tranquilo.
De quais atividades você participava? No 8o ano eu fiz aulas de preparação para Olimpíadas de Matemática. Prestei a Fuvest no 1o ano, passei para a 2a fase em Exatas. Na 2a série do Ensino Médio fiz também aulas para Olimpíadas de Química. Participei pouco, mas ajudou.
Na 3a série, o que você fez fora das aulas?
Pela tradição da FEA. E porque é de graça.
Quando você entrou no Etapa?
Era aula de manhã e à tarde todos os dias. Foi pesado para mim, mas deu certo.
Entrei no 8o ano do Fundamental. Minha irmã tinha entrado um ano antes e disse que o ensino daqui era bem melhor.
Como foi o início na FEA?
Como foi sua adaptação aqui? Foi difícil, porque tudo era novo. Quando você faz o Ensino Fundamental no Etapa você aprende coisas mais avançadas. No 7o ano da outra escola eu nem tinha aprendido direito equação de 1o grau e aqui estavam vendo de 2o grau. Lá eu nunca tive Química nem tive Física. Por isso, no ENTREVISTA
Carreira – Economia
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CONTO
Dentro da noite – João do Rio
Não foi nada complicado. Era estudar e fazer os exercícios. Tinha uma base muito forte do Etapa. Tive facilidade.
Que matérias você estudou em cada ano do curso de Economia? No 1o ano foi Cálculo basicamente e Introdução aos Clássicos do Pensamento Econômico e de História Econômica.
ARTIGO
A face da escravidão contemporânea
ENTRE PARÊNTESIS
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SOBRE AS PALAVRAS
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Tributo
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Verdade ou mentira?
ESPECIAL Etapa representa o Brasil e alunos são premiados em Física na Romênia
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ENTREVISTA Saiu de lá por quê?
No 2o ano foi Estatística e começaram as matérias básicas de Economia mesmo, Micro e Macro. No 3o ano começou Econometria e teve História Econômica, Formação Econômica. No 4o ano, Econometria e o resto eu escolhia o que gostava mesmo. Escolhi quase tudo da FEA. Fiz uma matéria no IME [Instituto de Matemática e Estatística] e tentei fazer Cultura Chinesa na FFLCH, mas não foi possível.
Eu tinha que trabalhar bastante lá e isso estava atrapalhando a faculdade. Eu estava gostando, mas queria terminar logo o curso. No 3o ano começaram matérias práticas, de Economia geral, e eu tinha de estudar. Em 2012 e 2013 não estagiei mais, só investi nos estudos.
Você fez Economia no período diurno ou noturno?
Qual é a importância do estágio na formação profissional?
Diurno.
Por que você demorou mais tempo para se formar? Eu fiquei um ano fora do país. Em 2009 eu tranquei o curso para viajar. Fui estudar inglês em Vancouver, no Canadá, onde fiquei cinco meses. Eu não era tão bom em inglês, não era fluente. Na sequência fui para Taiwan, terra dos meus pais. Fiquei lá sete meses estudando chinês.
Você teve algum auxílio para essas viagens? Para Taiwan eu tive bolsa do governo. Só paguei passagem. Fiquei no alojamento da faculdade e pagava 100 dólares por mês. Lá eu também dei aula de português e ainda ganhei um dinheirinho.
Como foi sua readaptação na FEA, ao retornar em 2010? Ao retornar, eu estava no 2o ano de Economia. Senti um pouco de dificuldade porque tive de revisar todo o conteúdo de Cálculo.
Você fez estágios durante o curso? Comecei em 2011, no 3o ano. No início desse ano, fui estagiar na Suzano Papel e Celulose. O estágio durou quatro meses. Trabalhava na tesouraria. Fazia bastante estatística, banco de dados.
Depois você foi para outro estágio? Fui para a Corretora Votorantim – corretora de ações. Uma experiência bem legal. Era bem mais Economia.
Estágio é muito importante, é a transição entre a faculdade e o trabalho. No estágio você aprende como se portar, como se vestir, como mandar e-mail, como escrever, como chegar até as pessoas e perguntar as coisas.
Na FEA, você chegou a participar de alguma atividade extraclasse? Participei do FEA Consulting Clube. Na época eu estava pensando em prestar consultoria. Também ia muito às palestras na faculdade. Eles chamavam caras muito top para falar, ministros da Índia, da Holanda, do nosso governo. Promoviam debates, eu gostava muito.
Você chegou a ter alguma dúvida após a escolha da carreira? Não, Economia é um curso legal, bacana, eu gostei desde o início e gostei mais nos últimos anos.
Qual foi o tema do seu trabalho de conclusão de curso? Desindustrialização do Brasil. Desde o ano 2000 mais ou menos, com o dólar bem baixo, até a época do governo Dilma. Se estava havendo uma queda na indústria e qual era a importância disso.
Em que ano você se formou? No final de 2013.
Depois de formado, o que foi fazer?
Uns sete meses. Até o começo de 2012.
Trabalhei para uma startup, a Kirk Bus. Ela vende passagens de ônibus on-line. Quando entrei ela não tinha mais de seis meses de existência, era bem pequena. Fiquei um ano, quando saí estava bem grande já.
O que você fazia na Votorantim?
Qual foi seu trabalho na Kirk Bus?
Pesquisa de ações. Eu tinha que avaliar as ações e ver se estavam caras, se estavam baratas, onde comprar. Eu tinha que lidar com dados econômicos também, pensar como a Economia ia afetar o negócio. Tinha que prever qual seria a demanda, se ia cair, se ia ser bom. Todo dia tinha que ler jornal: este fato aqui pode impactar no negócio, este pode prejudicar.
Com venda de passagens na Ásia – na Tailândia, nas Filipinas.
Você ficou quanto tempo nesse segundo estágio?
Isso daqui de São Paulo? Daqui de São Paulo. Eu contratava gente de lá para vir trabalhar comigo. Eu era tipo um coordenador mais ou menos. Startup é assim, você jovem já é coordenador.
ENTREVISTA
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Você contratava por teleconferência?
Como você se imagina na carreira daqui a dez anos?
Não. Tinha gente da Kirk Bus de lá contratando, tinha um brasileiro lá contratando gente de diversos países. Normalmente eram recém-formados, estudantes. Eles vinham aqui para trabalhar comigo.
Meu plano é já ter feito mestrado, talvez um doutorado também e estar atuando nessa área. Quero trabalhar, gosto muito da ideia de trabalhar para o país.
Você saiu da Kirk Bus por quê? Eu fiquei o ano de 2014 na empresa. Mas lá eu só usava Estatística e queria voltar para minha área de Economia. E estava sentindo falta de estudar de novo. Queria ver alguma coisa na área de Economia mesmo. Foi nessa época que fiquei na dúvida entre fazer mestrado ou prestar concurso público, no Banco Central. Decidi pelo concurso para depois fazer o mestrado.
O que você diz sobre o mercado de trabalho do economista? Se você quiser trabalhar como economista mesmo não são muitas as vagas. E as empresas meio que exigem que você faça mestrado. Formado, você pode até conseguir emprego, mas os caras vão falar: “Faz mestrado senão você não vai crescer”. É um mercado meio particular. Mas os economistas vão para diversas áreas. Claro que o que dá mais dinheiro é banco.
Quais são as áreas em que o economista pode atuar? Área de finanças, marketing, recursos humanos, vendas. Em tudo isso o economista pode trabalhar. O economista concorre nessas áreas com engenheiros e administradores. Mas tem a área específica de Economia. Essa área é que pede mestrado. No fundo, o que eu percebi é que os contratantes querem alguém com raciocínio.
E sobre o mestrado? Escolhi o Banco Central também porque eles incentivam que você estude mais, especialize-se. Estando no banco, poderei fazer o meu mestrado. Em vez de ganhar a bolsa do mestrado, ganho o salário.
Quais são seus planos para este ano? Até o meio do ano eu vou estudar para o concurso do Banco Central. E também vou prestar algum concurso em que caiam as mesmas matérias. Pode ser um concurso menor, só para não ficar parado.
Você acha que a pessoa precisa ter alguma qualidade específica para trabalhar em Economia ou a carreira abrange pessoas de diversos perfis? Economia é bem ampla, mas tem que gostar de Humanas e mandar muito bem em Exatas também, senão você não vai conseguir acompanhar o curso. Mas eu acho que Humanas é essencial.
A formação que você teve na FEA está de acordo com o que você precisa no dia a dia? Acho que faltou um pouco de finanças. Na FEA querem te formar um acadêmico, não é para trabalhar em empresa. Na Insper, na FGV, eles preparam você para trabalhar em empresa.
Que matérias você teve aqui que o ajudaram na faculdade? Quando comecei o curso na FEA senti que tinha muito mais facilidade em Exatas que outros alunos. Era visível porque a base aqui é muito forte. Nas matérias de Humanas também.
E como estão seus amigos da época do colégio? Um amigo trabalha no Tribunal de Contas da União, outro trabalhou comigo na Kirk Bus. Tenho vários amigos assim. Acho que os amigos do Etapa acabam ficando mais que os amigos da faculdade.
O que você pode dizer a quem vai prestar vestibular no final do ano? Diria que Economia vale a pena, é bem legal, mas a pessoa precisa ter força porque nos primeiros anos é difícil.
Você quer dizer mais alguma coisa para os alunos que estão se formando? O 3o ano é sofrido mas vale a pena porque na USP é outra vida. Estar lá, ver que você conseguiu, é muito gratificante.
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CONTO
Dentro da noite João do Rio
–E
ntão causou sensação? – Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita!, parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento. – Contra mim? – Podia ser contra a pureza de Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates, que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado... – Eu tenho o ar desvairado? – Absolutamente desvairado. – Vê-se? – É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso? O trem rasgava a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados de água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro: – Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente? O outro sorriu desanimado. – Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse: – Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu, cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado. – Mas o que é isto, Rodolfo? – Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te de Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te de João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam com a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido. – Tomas morfina, agora? Foi o desgosto, decerto... O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações. – Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a
Clotilde, ser de bondade a quem amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile do Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher – a beleza dos braços das Oréades pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enfiar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne a sentir. – Que horror! – Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! – estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. “Oh! não!” fiz, “estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço”. Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: “Se não quer que eu mostre os braços, por que não me disse, há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” “É, é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei: “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.” “Está louco, Rodolfo?” “Que tem?” “Vai fazer-me doer.” “Não dói.” “E o sangue?” “Beberei esta gota de sangue como a ambrosia do esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!” E os seus dois braços tremiam. Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “Mau!”
CONTO Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo o travesseiro, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: “Nunca mais farei essa infâmia!”, todos os meus nervos latejavam: “Voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer!” Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror... Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta. – Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de São Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper civilizado, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes. O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos. – Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura do outro lado da vida normal. É lúgubre. – Então continuaste? – Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: “Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.” Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei. Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixavam enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que havia de fazer?... Então depois, Justino, sabes?, foi todo dia. Não lhe via a carne, mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez”... Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza! De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou: – Mas então como te saíste? – Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de
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espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te.” E ela de dentro: “Já vou, mãe.” Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código. – E fugiste? – Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror. A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes. A voz do desvairado tornara-se metálica, outra. De novo porém a envolveu um tremor assustado. – Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco... De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo. – Adeus. – Saltas aqui? – Salto. – Mas que vais fazer? – Não posso, deixa-me! Adeus! Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com o outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.
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ARTIGO
A face da escravidão contemporânea Karina Toledo
mbora a escravidão tenha sido formalmente abolida no Brasil em 1888, ainda nos dias de hoje é possível encontrar no país trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravos. De acordo com um balanço divulgado recentemente pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), somente em 2015, o problema foi detectado em 90 dos 257 estabelecimentos fiscalizados e um total de 1 010 pessoas foram retiradas de condições de emprego consideradas degradantes. Na tentativa de compreender quais são os fatores que caracterizam o fenômeno da escravidão contemporânea, a historiadora e professora da University of Michigan Law School Rebecca Scott tem se dedicado a estudar documentos produzidos por funcionários do MTPS durante as ações de fiscalização. O projeto vem sendo realizado em parceria com o juiz federal e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Henrique Borlido Haddad e com Leo nardo Augusto de Andrade Barbosa, analista legislativo na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um escopo do trabalho foi apresentado por Scott no dia 29 de março, em Ann Arbor, em Michigan, Estados Unidos, durante a programação da FAPESP Week Michigan-Ohio. O evento, realizado na cidade de Columbus, em Ohio, tinha o objetivo de fomentar novas colaborações entre pesquisadores paulistas e norte-americanos. “A campanha de erradicação do trabalho análogo ao escravo que vem sendo realizada no Brasil desde meados dos anos 1990 – e que se fortaleceu principalmente no início do século 21 – reúne diversas entidades governamentais e não governamentais e tem gerado o que os historiadores mais almejam: um vasto material documental. Não conheço outro país com um trabalho tão sistemático nesse campo”, afirmou Scott em entrevista à Agência FAPESP. A análise dos processos gerados a partir da fiscalização do MTPS, disse Scott, permite aos pesquisadores irem além do campo especulativo e conferir quais são as condições reais que levam promotores e juízes a condenar pessoas por exploração de trabalho escravo. “Nos permite examinar conceitos legais, entender como os fiscais e os promotores fazem o diagnóstico da situação quando visitam os locais de trabalho e observar como esses conceitos legais estão evoluindo na sociedade”, disse. A colaboração com os juristas brasileiros começou há cerca de dois anos, quando eles estiveram em Michigan
para cursar o pós-doutorado. Haddad tinha experiência prática no assunto, pois já havia julgado diversos casos de empregadores acusados de explorar trabalho escravo. No ano de 2009, na Vara Federal de Marabá, no Pará, ele julgou em um só bloco 32 processos e condenou 27 pessoas. “Haddad acredita que toda a sociedade é prejudicada quando esse tipo de situação é mantida impune. Já Barbosa estava muito interessado em estudar como a legislação foi escrita e como foi se modificando”, contou Scott. Na condição de historiadora, Scott disse estar interessada particularmente na definição do conceito de escravidão contemporânea. “O uso desse termo tem a intenção de fazer uma analogia com circunstâncias presentes no Brasil até o século 19. Mas como usar essa metáfora sem cometer um erro? Não podemos diminuir as características únicas do processo de escravização de africanos no século 19. Definir a linha entre escravidão e liberdade é algo crucial para que a campanha para erradicação do problema avance”, avaliou Scott. Segundo a pesquisadora, as análises têm mostrado que são consideradas “condições análogas à escravidão” aquelas em que as violações dos direitos trabalhistas ultrapassam um certo limite e passam a ferir a dignidade humana. “Muitas vezes os empregadores percebem a vulnerabilidade de seus trabalhadores e atuam para multiplicar essa vulnerabilidade e, assim, diminuir o grau de autonomia que aquela pessoa tem para aceitar certas condições de trabalho. Outro componente são as condições de trabalho propriamente ditas. Há décadas pesquisas têm mostrado que
ARTIGO a escravidão tende a colocar seres humanos em condições similares a de animais, como dormir ao relento, por exemplo”, explicou.
Novas fontes Além dos documentos do MTPS, o grupo pretende em breve analisar o acervo do Ministério Público do Trabalho (MPT) da 15a Região – Campinas, que está sendo digitalizado com apoio da FAPESP no âmbito do projeto temático “Entre a escravidão e o fardo da liberdade: os trabalhadores e as formas de exploração do trabalho em perspectiva histórica”, coordenado pelo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Fernando Teixeira da Silva, que integra a equipe do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult). Conforme relatou no evento Sidney Chalhoub – que hoje é professor da Harvard University, mas já foi docente da Unicamp e ainda integra a equipe do Cecult –, o acervo do MPT corria risco de ser destruído por falta de espaço para armazenamento e foi salvo graças ao financiamento da FAPESP que permitiu sua digitalização. Atualmente, a base
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de dados conta com um total de 3 228 fichas, sendo que 1 053 já estão disponíveis para consulta pública na Unicamp. “Boa parte do material da Justiça do Trabalho já foi destruída por falta de espaço para armazenar, o que é uma pena. São fontes riquíssimas para historiadores estudarem a experiência dos trabalhadores em uma determinada época. Muito do que sabemos hoje a respeito da escravidão se originou em processos criminais e cíveis em que trabalhadores analfabetos tiveram seu depoimento colhido”, disse Chalhoub. Além de Scott e Chalhoub, participaram da sessão dedicada a temas de legislação e justiça social os professores de História da University of Michigan Paulina Alberto, Jean Hébrard e Sueann Caulfield, além da brasileira Eduarda La Rocque, coordenadora da iniciativa Pacto do Rio – que une representantes da sociedade civil, academia, órgãos públicos, parceiros privados e de organismos internacionais para promover e monitorar o desenvolvimento sustentável da região metropolitana do Rio. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, abr./2016.
SOBRE AS PALAVRAS
Tributo A palavra “tributo” origina-se das palavras latinas tributum e tributus, i, e é usada tanto para designar um imposto (taxa exigida pelo poder público), como em “Dados do governo revelaram que a proposta de orçamento para o próximo ano prevê uma arrecadação maior com tributos”, quanto para designar uma homenagem, uma consagração, um louvor, como na frase “Os alunos prestaram um tributo aos professores durante a formatura”.
(ENTRE PARÊNTESIS)
Verdade ou mentira? Um crime é cometido por uma pessoa e há quatro suspeitos: André, Eduardo, Rafael e João. Interrogados, eles fazem as seguintes declarações: André: Eduardo é o culpado. Eduardo: João é o culpado. Rafael: Eu não sou o culpado. João: Eduardo mente quando diz que eu sou o culpado. Sabendo que apenas um dos quatro disse a verdade, determine quem foi o culpado.
RESPOSTA Como as afirmações de Eduardo e João são contrárias, não há como ambas serem falsas ou ambas verdadeiras. Assim, apenas uma das duas é verdadeira. Se Eduardo fala a verdade, temos que João é o culpado e os outros mentiram. Porém, se João é culpado, Rafael não pode ser culpado, como ele próprio afirmou, pois haveria dois culpados, o que não é possível, segundo as condições impostas pela questão. Segue, então, que João fala a verdade. Podemos assim admitir que André, Eduardo e Rafael mentem. Porém, se Rafael mente, segue que é dele a culpa, já que tinha afirmado que não era o culpado.
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ESPECIAL
Etapa representa o Brasil e alunos são premiados em Física na Romênia
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rês alunos do Colégio Etapa – Diogo Correia Netto, Henrique Corato Zanarella e Thiago Rosswhite Bergamaschi – formaram a equipe brasileira que disputou em Bucareste, no final de fevereiro, a 5a edição da Romanian Master of Physics. No total participaram cerca de 70 estudantes, de 15 equipes de oito países (alguns países enviaram mais de uma equipe, caso da Rússia, com três). Os três alunos do Etapa foram contemplados com medalhas de prata. Segundo o líder da equipe, prof. Fernando Wellysson de Alencar Sobreira, esse resultado foi surpreendente por demonstrar tanto a grande qualidade dos alunos como a uniformidade de seu preparo. “Sobre este resultado vale ressaltar alguns pontos: um dos alunos está ainda no 2o ano do Ensino Médio, o que o coloca numa posição privilegiada. Outro ponto importante é o nível de dificuldade da competição. Para se ter uma ideia, o aluno que tirou primeiro lugar já havia participado da Olimpíada Internacional de Física em 2014 e 2015 e ganhou medalha de ouro nas duas ocasiões. Sua nota foi cerca de 80% do total possível. Isso coloca essa competição como uma das mais difíceis do mundo, quando comparada a competições de Física”.
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Esta foi a primeira participação do Brasil na Romanian Master of Physics. O Colégio Etapa foi a única escola brasileira a enviar representantes.
Matemática: só os melhores participam Em conjunto com a Romanian Master of Physics, foi realizada a Romanian Masters of Mathematics, competição a que são convidados apenas os países com melhor desempenho na IMO – International Mathematical Olympiad. Dos seis integrantes da equipe brasileira, quatro são alunos do Colégio Etapa (eles se classificaram para representar o Brasil a partir da Olimpíada Brasileira de Matemática de 2015): Andrey Jhen Shan Chen, Gabriel Toneatti Vercelli, João César Campos Vargas e Pedro Henrique Sacramento de Oliveira (eles conquistaram três medalhas de bronze). O Etapa envia alunos para essa competição todos os anos desde que o Brasil começou a participar na 3a edição, em 2010, e em todos os anos obteve medalhas. Segundo o professor Fernando Wellysson de Alencar Sobreira, “os resultados do Brasil mostram que nossos alu nos possuem nível para concorrer com os alunos dos mais desenvolvidos países do mundo, como Estados Unidos, Rús sia e China, e deixam claro o trabalho sólido que desenvolve mos com eles no treinamento para olimpíadas de Matemática”.
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