Jornal do Colégio 608

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Jornal do Colégio JORNAL DO COLÉGIO ETAPA  –  2016  •  DE 29/04 A 12/05

ENTREVISTA

“Meus grandes amigos são os do colégio.” André Silva Franco entrou na Medicina Pinheiros direto do colégio. Atualmente está no último ano do curso e vai prestar o exame de Residência em Clínica Médica. Nesta entrevista ele fala de sua formação no colégio e detalha o curso de Medicina e as atividades extracurriculares de que participou, no colégio e na faculdade. Para quem quer Medicina ele lembra: “Tem que estudar. Você não vai aprender se não estudar”.

André Silva Franco

JC – Quando você escolheu Medicina como carreira? André – Desde pequeno eu falava que ia ser médico. Medicina é uma carreira bem ampla. Você se forma médico e pode fazer mil coisas, desde atender pacientes a trabalhar em empresas, quase um administrador. Também gostava de ajudar e propiciar talvez algum conforto às pessoas. Acho que a união dessas coisas me fez ir para Medicina. Mas no 2o ano do Ensino Médio eu pensei em fazer Engenharia porque sempre me considerei de Exatas. Aqui no colégio fazia atividades de Física, Química, Matemática. Gostava também de Biologia e mudei. Por fim, fiquei com Medicina.

Tem algum médico em sua família? Não, vou ser o primeiro. Meu pai é físico, trabalha na área de Física Nuclear, na área médica. Minha mãe é técnica em Radioterapia.

Você prestou quais vestibulares? Prestei Fuvest, Unicamp e Unifesp. Fui aprovado em todos.

Quando você entrou no Etapa? No 6o ano do Ensino Fundamental.

Medicina tem um vestibular muito concorrido. Isso mu­ dou seus estudos? Sempre fui bastante estudioso. Acho que uma das razões de meus pais me terem posto aqui foi pensando em Medicina. Eu fazia obviamente o obrigatório, mas tentava ir um pouco além. ENTREVISTA

Carreira – Medicina

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Você chegou a ser premiado nas olimpíadas? Sim. Ganhei medalha de ouro nas olimpíadas brasileira e paulista de Física e de Química. Em Química fui para a olimpíada internacional no Japão e ganhei medalha de bronze. Na Ibero-Americana de Química, no México, ganhei ouro. Foi uma experiência muito legal de vida. Desde 2011 eu organizo a Escola Olímpica de Química no Instituto de Química da USP. É um curso anual para alunos que participam das olimpíadas. Vários alunos do Etapa participam. Pelo menos uns 10, 15 todo ano. Meu curso de Química, se os alunos quiserem participar, é aberto [<http://eoquimica.com/p/ home/>]. Este ano vai ser na última semana de junho.

Em que as olimpíadas contribuíram para sua formação acadêmica? Exercitando meu raciocínio. Também na faculdade, acho que ajudou bastante. Embora não tenha mais matéria de Física ou de Química, você tem esses conhecimentos aplicados.

Como foi seu início na Pinheiros? O primeiro semestre foi difícil. Eram aulas longas, quatro horas de manhã e quatro à tarde. Mas eu procurei manter meu ritmo

ARTIGO O uso da bioinformática no estudo de doenças complexas POIS É, POESIA

CONTO

Polítipo – Aluísio Azevedo

Passava um bom tempo estudando fora da grade curricular. Durante todo o Ensino Médio fiz as aulas de preparação para olimpíadas de Física e Química sem nenhum prejuízo com disciplinas do colégio. Participava dessas atividades e estudava para o colégio normalmente.

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Alberto de Oliveira (1857-1937)

ENTRE PARÊNTESIS

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Milhões ESPECIAL Alunos do Etapa são destaque na Olimpíada de Neurociências

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ENTREVISTA

padrão. Até hoje faço isso, para não acumular matéria. Acho que ter organização nos estudos ajuda muito na faculdade.

Esse esquema de aulas longas continua na Pinheiros? No ano passado teve uma mudança no currículo. Agora são aulas mais curtas, tem mais janelas durante a semana. O aluno consegue se organizar mais.

Então foi uma mudança positiva? Acho que sim.

Em que lugar os alunos têm aulas? Durante os seis anos os alunos têm atividades na Cidade Universitária. No 6o ano é metade no Hospital das Clínicas e metade no Hospital Universitário.

Em linhas gerais, que matérias você viu em cada ano da faculdade? Nos três primeiros anos temos muita Anatomia. No 1o ano tive Anatomia do Sistema Locomotor, Anatomia Cardíaca Pulmonar e Gastrointestinal. Tive as fisiologias – Fisiologia de Membranas, Fisiologia Cardíaca e Pulmonar. Tem as histologias, basicamente Biologia Celular – Histologia do Sistema Locomotor, Cardíaco, Pulmonar e Gastrointestinal. E no primeiro semestre tive Biologia Molecular, Introdução à Medicina, Noções de Enfermagem. Tive também Atenção Primária à Saúde quando a gente ia para UBS.

No 2o ano, como foi? No 2o ano continuaram Anatomia, Fisiologia e Histologia. Anatomia do Sistema Geniturinário, Fisiologia Endócrina e Suprarrenal. No 3o semestre, Imunologia. No 4o semestre tem Bases Fisiológicas da Clínica Médica, que é um curso bem extenso. A gente via dentro de cada especialidade da Clínica Médica o conteúdo básico aplicado. Também no 2o ano, Epidemiologia e Gastroenterologia, este muito interessante. No 3o ano começam Dermatologia, Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Farmacologia. Além disso, tive as Propedêuticas – quando aprendemos a examinar o doente: exame físico, fazer a história clínica, saber o que perguntar.

No 4o ano, o que teve? No 4o ano, o primeiro bloco, é da Clínica Médica, em 12 semanas. Você passa na Clínica Geral e nas especialidades: Endocrinologia, Reumatologia, Gastroenterologia, Pneumologia, Cardiologia, Imunologia... São 10 disciplinas. No segundo semestre tem Clínica Cirúrgica e Moléstias Infecciosas, mais um bloco grande de disciplinas: Pediatria, Psiquiatria, Obstetrícia, Ginecologia, Neurologia, Radiologia. No 4o ano você começa a se sentir médico, já tem paciente que você acompanha nessas disciplinas de forma ainda superficial. Já no 5o e no 6o anos você é o médico do doente. Em todos os ambientes, seja enfermaria, ambulatório, pronto-socorro, no posto de saúde, na UBS, você atende o paciente como um médico mesmo. Todos os casos são discutidos em equipe e as condutas também, mas quem realiza essas condutas, o atendimento, é o interno, o aluno.

Como são os estágios no curso de Medicina? No 5o ano, na faculdade, a gente tem muita enfermaria. Enfermaria tem que ter um esquema longitudinal. O doente está in-

ternado, você tem que vê-lo todo dia. No 6o ano é mais esquema de plantão, no pronto-socorro. Acaba seu turno, você vai embora. Embora tenha uma carga horária mais pesada, quando sai do plantão você desliga, relaxa.

O estágio faz parte da grade curricular? Aí também é um ponto que mudou. No currículo antigo, em que eu estou, é uma coisa fixa. A gente mal tem horário livre para fazer um curso diferente, uma atividade fora. No novo currículo você tem um período de um mês, dois meses para fazer um estágio optativo. A ideia é que os alunos que agora ingressaram tenham esse tempo para fazer estágio em outros hospitais ou no exterior. Acho que o novo currículo vai ser bem melhor.

Na faculdade, além das aulas regulares, você participou de atividades extracurriculares? Fiz muitas. No 1o ano participei do MedEnsina. Era plantonista e dei algumas aulas de reforço de Química.

Participou das Ligas? Eu participei desde o 1o ano da Liga de Doenças Sexualmente Transmissíveis. No modelo antigo a gente só tinha contato com paciente no 4o semestre, e as ligas eram um meio de ver no 1o ano como era a carreira médica. No 1o ano, em setembro, comecei uma iniciação científica no Incor, numa área de Cardiologia Molecular, para acompanhar os efeitos de terapias, para melhorar o impacto pós-isquemia. Você tem um infarto, são usadas proteínas endógenas para reduzir as complicações. Mas é um modelo in vitro e com células, é bem molecular. Na cultura de células você tem que aprender a mexer no fluxo laminar para não haver contaminação, fazer análises de dosagem, usar técnicas de Biologia Molecular para analisar expressão de proteínas. Aprendi essas técnicas. E no 2o ano consegui uma bolsa para um projeto meu, nessa linha.

Qual o nome do projeto? “Avaliação do efeito da proteína SPAK na secreção de colágeno de miofibroblastos de ratos infartados”.

Já completou o projeto? Ainda participo. A proteína SPAK está presente em todo mundo. Só que a gente pegava as células de coração de ratos infartados, fazia uma sobrecarga dessa proteína e via o que acontecia com as células. Normalmente, após infarto elas secretam muito colágeno para formar uma fibrose no coração. É um efeito desejável porque senão fica um buraco no coração. Tem que formar uma cicatriz. Só que em geral essa cicatriz fica exagerada e leva a um problema, o coração cresce e muitos anos depois dá uma deficiência cardíaca. A gente está vendo se a proteína SPAK reduz a secreção excessiva do colágeno para minimizar essa complicação.

Você esteve em outras ligas? No 2o ano participei da Liga de Combate à Febre Reumática. No 3o ano fiquei um semestre na atividade de Acupuntura. Como existe o tabu, achei melhor ver como era para tirar minhas conclusões. No 3o e 4o ano, na Liga de Diabetes. No 4o ano inteiro eu participei da Liga de Urologia.


ENTREVISTA Alguma outra atividade? Uma das minhas paixões na faculdade foi a Farmacologia, que tive no 3o ano. Tinha umas fórmulas de equilíbrio muito parecidas com cinética, fiz um resuminho que no fim tinha 400 páginas. O pessoal gostou e ele foi publicado como livro este ano. O título é Manual de Farmacologia. Sou o autor e o editor é o professor José Eduardo Krieger, meu orientador na iniciação científica. O livro tem 464 páginas.

Como esse livro foi recebido? O pessoal da faculdade e de outras faculdades tem gostado.

É para o pessoal de Medicina? Não, serve para Farmácia, Nutrição, Odontologia, Enfermagem. Foi publicado pela Manole, uma grande editora especializada em livros de Medicina.

Você já sabe em qual área vai se especializar na Medicina? Eu gosto da parte de Clínica Médica. Agora, dentro da Clínica Médica tem as especialidades e aí não tenho nada fechado. Eu gosto da clínica de todas as especialidades.

Você está no 6o ano e tem a prova de Residência. Vai pres­ tar em quais hospitais?

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os exames para ver, ele tinha um câncer gástrico, bem avançado, com sinais de metástase. Não tinha mais chance de cura. Ele não ia sobreviver mais de dois anos, com certeza. Eu é que tinha que dar essa notícia a ele. Foi difícil para mim. Ele chorou bastante, eu segurei o choro. Em seguida ele me deu duas balinhas de café e me agradeceu pela forma como o tratei. Foi também um momento marcante. E anteontem, quarta-feira de madrugada, estava cheio o pronto-socorro, peguei a ficha de um paciente que já esperava há umas três horas para ser atendido. Examinei-o inteiro, quando ele estava indo embora eu lhe disse que ia discutir o caso com meu chefe e depois a gente conversava. Tinha 82 anos. Ele falou: “Foi a primeira vez que um médico me examinou”. Isso também mexeu comigo. Deixa a gente triste. E feliz também porque você está criando um padrão de bom médico.

Quais são seus planos para o futuro? Daqui a cinco anos acho que vou acabar minha Residência. Eu entrei com 17 anos na faculdade e meu serviço militar foi adiado. Vou ter que quitar minha dívida. Ano que vem provavelmente vou estar nas Forças Armadas.

Obrigatoriamente? Como fica a Residência?

São cinco áreas que caem: Pediatria, Cirurgia, Atenção Primária à Saúde, Clínica Médica e Ginecologia e Obstetrícia. É o conteú­ do da graduação. É a matéria que você vê ao longo da grade de seis anos.

Se você é chamado para as Forças Armadas e passa na prova de Residência, a sua vaga fica garantida por lei. Pretendo passar. E aí só em 2018 eu ingresso na Residência. Seriam dois anos de Clínica Médica e depois mais dois ou três anos na especialidade. E daqui a 10 anos gostaria de estar ligado à USP, gostaria de seguir carreira acadêmica, mas não só fazer pesquisa, gostaria de ter meu consultório ou atender no HC, fazer a parte de ensino e pesquisa. Meu plano é ficar ligado ao HC em pesquisa e assistência.

Isso na prova de Residência do HC?

E como ficaram seus amigos da época do colégio?

Acho que é universal. Até a nota é a mesma. Parte teórica, 50%. Prova prática, 40%. Entrevista, 10%. O modelo de prova é o mesmo.

Tenho muitos amigos. O grupo de amigos com que eu saio toda semana é do Etapa, que eu conheci na 6a série. Bruno, Gustavo, Hélio. A Jéssica eu conheci no Ensino Médio, foi comigo para as olimpíadas internacionais, é do meu ano e é da minha panela do internato. Meus grandes amigos são os do colégio.

Por enquanto eu só pretendo prestar no HC.

Como é a prova de Residência?

Você se lembra de seu primeiro paciente? Dois pacientes me marcaram bem. Um deles foi o primeiro paciente que eu atendi, na liga de DST, no 1o ano. Era um senhor com 67 anos, ele tinha sífilis, que descobriu num exame de rotina e foi encaminhado para nosso ambulatório para fazer o tratamento. Nervoso, fiz umas duas, três tentativas para conseguir aplicar a medicação. Na minha ignorância, fiz ele sentir um pouco de dor nas picadas. Mas tem um acompanhamento, eu o segui por uns dois anos para ver se estava curado.

E o segundo caso, qual foi? O outro caso que também me marcou no início foi na Bandeira, em Pernambuco [A “Bandeira Científica” é um projeto idealizado e posto em prática desde os anos 1950 pela Faculdade de Medicina da USP, para prestar atendimentos de saúde e sociais a populações necessitadas]. O paciente veio com vários exames, que ele pagou para fazer, tinha alguns sintomas graves, estava perdendo peso, sangramentos. Ele não sabia ler. Peguei

Voltando hoje ao Etapa, quais recordações você tem? Muitas. Das aulas, dos professores, das Olimpíadas de Química. Ainda tenho contato com alguns professores. Dá bastante saudade daquela época. Lembro da Gincana Cultural. Acho que o pessoal tem que aproveitar, fazer as atividades extracurriculares, são momentos marcantes do colégio. São emocionantes essas atividades.

O que você pode dizer ao pessoal que vai prestar Medi­ cina? Tem que estudar. Você não vai aprender se não estudar. Tem que ter um cronograma, tem que se organizar. O que me ajudou muito foram as apostilas e as provas antigas. Eu resolvia todas as questões de tudo. Os testes e as escritas. Tem que estudar tudo. Tem que fazer o máximo de questão e ser organizado. Acho que é um esquema que pode dar certo. Funcionou para mim.


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CONTO

Polítipo Aluísio Azevedo

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uicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa. Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exiguidade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das cousas cá da terra. Não conheci ainda criatura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos porém na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos. O livro era excelente, mas a encadernação detestável. Imagine-se um homenzinho de cinco pés de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma ideia do tipo do meu malogrado amigo. Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança. Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho vítima de alguma violência; ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita. E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação. Outro doloroso caiporismo dos seus era o de parecer-se como todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós

em que ele, apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, amanuense de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes. Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao certo. As circunstâncias da sua falta absoluta de barba davam-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem, como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas, olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo era quase um bonito moço, porém, de baixo para cima era simplesmente horrível. Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas, com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até às orelhas e o chapéu até a gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário; e, quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem pôr um nhonhô de uns dez ou doze anos de idade. Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano, lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou comovido: – Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada! De outra vez quando ainda a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajos de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor com esta singularíssima frase: – Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?... E quer ver se me engana com essas calças? Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia despedido de casa. Não se dava conflito de rua, em que, passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão, sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palma-


CONTO das no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade. Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo ver nele um colega desertor. E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa. Uma existência impossível! Se se achava numa repartição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço: – Garçom! Há meia hora que reclamo que me sirva. Se ia provar um paletó à loja do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pareciam com Boaventura. Num clube familiar, quando o infeliz, já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão. – Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?! O mísero voltara-se inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! Ele já estava mais habituado àqueles enganos. Que vida! Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar. No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele ca-

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dáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles. Havia choro a valer e, entre o clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases: – Meu filho morto! Meu filho morto! – Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem! – Oh, senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca! – Mas não me engano! É o meu caixeiro! – Dir-se-ia que este moço era um meu antigo companheiro de bilhar!... – E eu aposto como é um velho, que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro! – Qual velho, o quê! Conheço este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente! – Estudante! Ora muito obrigado! Há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era médico velho! – Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a Gazeta à casa. É que a morte alterou-lhe as feições. – Meu pai! – O Bernardino! – Olha! Meu padrinho! – Jesus! Este é meu tio José! – Coitado do padre Rocha! Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa! E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo. Extraído de: Histórias divertidas.

ARTIGO

O uso da bioinformática no estudo de doenças complexas Karina Toledo

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erramentas de bioinformática têm sido usadas por pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) e da Universidade de São Paulo (USP) para modelar redes de interação entre genes, desvendar relações funcionais e, dessa forma, identificar potenciais alvos para o tratamento de doenças complexas, como esquizofrenia, autismo e câncer. Avanços nessa área foram apresentados pelo professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição

(CMCC) da UFABC David Corrêa Martins Junior, no dia 31 de março, em Columbus, Estados Unidos, durante a programação da Fapesp Week Michigan-Ohio. O evento, que terminou no dia 1o de abril, teve o objetivo de fomentar a colaboração entre pesquisadores paulistas e norte-americanos. Parte dos resultados também foi publicada em artigos nos periódicos Information Sciences e BMC Bioinformatics.


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ARTIGO

“Uma mesma doença complexa pode se manifestar de formas muito diferentes em cada paciente, com diversos graus de gravidade. O objetivo desse tipo de estudo é poder oferecer um tratamento individualizado, considerando essas particularidades”, explicou Martins Junior em entrevista à Agência FAPESP. Os estudos são baseados tanto em dados clínicos – de expressão gênica, interação entre proteínas e metilação de DNA – depositados em bancos públicos, como em dados de pacientes atendidos por colaboradores, como, por exemplo, a professora Helena Brentani, do Instituto de Psiquiatria da USP, que trabalha com portadores de autismo. Conceitos da teoria de grafos e de redes complexas, aliados a ferramentas de bioinformática, permitem, por exemplo, comparar em portadores de uma determinada doença e em indivíduos controle a expressão dos genes e sua centralidade nas redes gênicas. Também é possível comparar dados de pacientes com a mesma doença, mas com diferentes graus de gravidade, ou, ainda, avaliar como a expressão dos genes e a estrutura de uma rede gênica em uma mesma pessoa se modifica em diferentes contextos e momentos. A ideia é tentar desvendar como os genes estão conectados e como esse circuito controla as diversas funções celulares. “Quando não sabemos a função de um gene, podemos tentar comparar a expressão dele ou a estrutura de sua vizinhança na rede gênica com outros que apresentam um sinal parecido e cuja função é conhecida e, assim, formular hipóteses. Se temos um gene-alvo e queremos saber em que medida a sua expressão depende do sinal de outros genes, podemos usar ferramentas como inferência de redes gênicas ou priorização gênica”, contou Martins Junior. Segundo o pesquisador da UFABC, genes que já foram associados a doenças em estudos anteriores podem servir como ponto de partida para as análises. “Podemos avaliar quais outros genes estão mais associados a eles em termos de expressão e em termos da estrutura conectiva. Provavelmente eles também estarão envolvidos na doença em questão”, disse. Em um trabalho desenvolvido durante o doutorado de Sergio Nery Simões no programa de pós-graduação em Bioinformática da USP, foi desenvolvida uma ferramenta chamada Neri (Network Medicine Relative Importance), que integra dados de expressão gênica, redes de interação entre proteínas e dados de estudos de associação (genes sabidamente associados a uma determinada doença) para identificar novos genes que também podem estar associados à enfermidade em análise. “Fizemos um estudo de caso usando bancos de dados públicos de esquizofrenia e vimos que muitos dos genes obtidos pela ferramenta Neri estavam associados à chamada via glutamatérgica, responsável pela transmissão e

recepção de neurotransmissores durante as sinapses neuronais. Tal via é bastante citada na literatura como associada à doença. Isso sugere que outros genes identificados pela ferramenta também têm potencial para estar relacionados com a esquizofrenia”, explicou Martins Junior. As pesquisas do grupo são apoiadas pela Fapesp por meio de dois Projetos Temáticos – um coordenado por João Eduardo Ferreira no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e outro por Roberto Marcondes Cesar Junior, também no IME-USP. Há ainda um Auxílio à Pesquisa – Regular coordenado por Raphael Yokoingawa de Camargo no CMCC-UFABC.

Análise de redes sociais No mesmo painel dedicado ao tema “Bioinformática e Análise de Dados”, o professor de Ciência da Computação e Engenharia da The Ohio State University Srinivasan Parthasarathy falou sobre como informações coletadas em redes sociais, como o Twitter ou o WhatsApp, podem ser usadas para ajudar a prever ou mitigar problemas relacionados a desastres naturais e epidemias. Em parceria com pesquisadores de diversos países, inclusive brasileiros vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Parthasarathy coleta e analisa informações de mensagens curtas enviadas durante eventos climáticos extremos, como furacões e enchentes, ou durante surtos epidêmicos e usa o conteúdo para alimentar modelos computacionais. O objetivo é identificar problemas antes que eles se tornem críticos e fornecer informações que possam auxiliar as equipes que prestam socorro no local a planejar estratégias de controle. “Se eu tenho 5 mil pessoas disponíveis para prestar socorro, preciso identificar as áreas mais afetadas e que precisam ser priorizadas. Para isso, usamos essas informações coletadas nas mídias sociais em conjunto com dados físicos que tradicionalmente alimentam os modelos de prevenção de furacão ou de enchentes, como velocidade do vento e pressão atmosférica, que são uma forma mais tradicional de sensoriamento”, contou o pesquisador. O grande desafio, segundo Parthasarathy, é conseguir filtrar as mensagens que realmente são relacionadas com o problema em questão. “Há muito ruído nas redes sociais. Por exemplo, se nosso objetivo é monitorar uma epidemia de dengue em uma determinada cidade, temos de ser capazes de isolar os tuítes que foram originados naquela região e incluir aquela informação em nosso modelo. Essa integração de sensores sociais e físicos pode produzir melhores resultados”, comentou o pesquisador. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, abr./2016.


POIS É, POESIA

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Alberto de Oliveira (1857-1937) A história de Carmem I

C armem, como a inspirá-la o mar em frente

visse, e a noite a cair calma e estrelada, tangeu, nervosa e apaixonadamente, no dourado salão a harpa dourada.

E, aos pausados soluços do instrumento, ia-lhe a alma de moça (como ao vento, sem saber onde vai, folha perdida) ia-lhe a alma num cântico àquela hora fora pela janela, espaço fora, longe da casa, longe desta vida. Mas alguém de repente entra na sala, e em rude voz que lhe feriu o ouvido: – “Para que música?” (é o marido) fala. Não gostava de música o marido. II

S em a harpa, a amiga fiel a quem contava

as suas penas e os seus dissabores, Carmem: – “Não me permitem – suspirava – amar a música: amarei as flores”. Desce ao jardim. Borboleteia, esvoaça, e violetas e cravos, quando passa, rosas, jasmins, rindo, com as mãos nervosas colhe. Volta, e ante o espelho às tranças pretas prende os jasmins, os cravos e as violetas prende à cintura, prende ao seio as rosas. E olha, vê-se, revê-se. Quando, ai dela! o mesmo tom de voz aborrecido: – ”Para que flores?” – a surpreende e gela. Não gostava de flores o marido.

III

S em música, sem flores, que seria,

Carmem, de ti, se, em seu poder, que é tanto, como as flores e a música, a poesia não viesse as horas te vestir de encanto? Para Carmem agora a vida é um sonho; Do verso às asas, o país risonho vê da ilusão, entre os dourados climas; lá vai! Que azul de eternos sóis coberto! Tanto é o influxo que tem um livro aberto, um punhado de estrofes e de rimas. Range, porém, da alcova, a um lado, a porta, e o tom de sempre, austero e desabrido: – ”Para que versos?” – o êxtase lhe corta. Não gostava de versos o marido. IV

S em poesia, sem música, sem flores, só e aos vinte anos, quem viver pudera? Mísera Carmem! Já do rosto as cores com o pranto esmaiam, já se desespera. Quando uma vez... Não foi um cavaleiro (como se diz) em seu corcel ligeiro... foi das cousas que amava o amor vencido, vencedor, afinal, que num perfume, Num som, num verso, como outrora um nume, A arrebatou dos braços do marido. E onde hoje vive, ri, doudeja, salta Carmem, ditosa Carmem, de alegria, pois para ser feliz nada lhe falta: nem música, nem flores, nem poesia. Extraído de: Poesias completas de Alberto de Oliveira, Núcleo Editorial da UERJ, 1978.

(ENTRE PARÊNTESIS)

Milhões RESPOSTA 2 × 5 = 10 26 × 56 = 106 = 1 000 000 2 × 2 × 2 × 2 × 2 × 2 × 5 × 5 × 5 × 5 × 5 × 5 = 1 000 000 2 × 2 × 2 × 2 × 2 × 2 = 64 5 × 5 × 5 × 5 × 5 × 5 = 15 625 64 × 15 625 = 1 000 000

Resolva este probleminha: A × B = 1 000 000 A única condição imposta é que nem A nem B contenham um zero sequer. É evidente que pode ser utilizado qualquer algarismo. Haverá solução para este problema?


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ESPECIAL

Alunos do Etapa são destaque na Olimpíada de Neurociências Estudantes classificaram-se para a fase nacional da competição.

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erca de 130 estudantes de escolas públicas e privadas participaram da II Olimpíada de Neurociências de São Paulo (Brain Bee SP), organizada em março pelo Hospital Israelita Albert Einstein. Três alunos do 3o ano do Ensino Médio do Colégio Etapa destacaram-se: Caroline Magalhães de Toledo, 1o lugar; Laura Maita, 2o lugar; e Thiago Varga, 3o lugar. Os estudantes classificaram-se para a fase nacional da olimpíada (Brazilian Brain Bee), marcada para maio, quando competirão por vaga na International Brain Bee, que deverá contar com participantes de aproximadamente 20 países. O foco da competição é elevar o interesse pela ciência do cérebro, estimulando novos talentos. As provas são de nível avançado, com cerca de 50 questões sobre neurociências básicas: neurofisiologia, ramo da fisiologia que tem como objeto de estudo o funcionamento do sistema nervoso; neuroanatomia, que analisa a organização anatômica do sistema nervoso; neuro-histologia, estudo dos tecidos biológicos; neuroimagem, conjunto de técnicas de diagnóstico médico que busca obter imagens do encéfalo do paciente por meios não invasivos; e neurociências clínicas, pesquisas sobre doenças como Alzheimer, Parkinson, Transtorno Bipolar, Epilepsia, entre outras. O evento é uma experiência única para quem quer seguir carreira em Medicina, Biomedicina, Farmácia e Biologia. “Os alunos desenvolvem uma visão mais ampla do sistema nervoso e sua estrutura. Um diferencial para aqueles que pretendem seguir carreira nesse campo”, disse o coordenador da equipe de neurociência do Etapa, professor Daniel Berto.

Jornal do Colégio

AGENDA CULTURAL

São Paulo – Clube de Cinema (quintas, das 19h às 21h, sala 65) 05.05 – Casa vazia (Kim Ki-duk: 2004) 12.05 – Encontros e desencontros (Sofia Coppola: 2003) São Paulo – Clube de Debate (mensal, das 19h às 21h50min, sala 87) 09.05 – Publicidade infantil no Brasil. São Paulo – Clube do Livro (quinta, das 19h às 21h, sala 65) 23.06 – Macbeth (William Shakespeare) Valinhos – Clube de Cinema (sextas, das 14h05min às 16h05min, sala 209) 29.04 – E agora, aonde vamos? (Nadine Labaki: 2011) 06.05 – 12 anos de escravidão (Steve McQueen: 2013) Valinhos – Clube de Debate (mensal, das 14h05min às 15h45min, sala 214) 12.05 – Sexualização da infância no Brasil.

Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


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